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O corpo vocal dissonante em Antonin Artaud

Começarei a esboçar este mapa dissonante com Antonin Artaud, que neste contexto foi um dos poetas87 da cena mais expoentes da primeira metade do século XX.

Radical em suas acepções sobre a encenação e a atuação, o francês Antonin Artaud (1896-1948) criticou, sobretudo, o teatro literário, cuja criação era centrada no texto dramático:

Essa linguagem [da encenação] só pode ser definida pelas possibilidades da expressão

87 Poeta aqui tem o sentido de propositor, visto que muitos

pesquisadores afirmam que Artaud nunca conseguiu colocar totalmente em práticas suas ideias acerca da arte teatral.

dinâmica e no espaço, em oposição às possibilidades da expressão pela palavra dialogada. E aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suas possibilidades de expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço, de ação dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade. (ARTAUD, 2006, p. 101-102).

A voz, no ideal de Artaud, estaria disposta a gerar múltiplos sentidos em cena, diferentes instâncias de um processo comunicacional que não primaria apenas pelo discurso articulado da linguagem/texto, mas que procuraria atingir o inconsciente da audiência através de seus sentidos: uma voz que se tornaria corpo para chegar a outros corpos. A palavra se transformaria em material de criação dramatúrgica para x atuante no ambiente acústico da cena:

[...] ao lado desse sentido lógico, as palavras serão tomadas num sentido encantatório, verdadeiramente mágico – por sua forma, suas emanações sensíveis e já não apenas por seu sentido. (ARTAUD, 2006, p.146).

A influência que Artaud traz de suas experiências como vivenciador de rituais dos índios Taraumaras (México) o faz repensar as relações estabelecidas entre palavra, voz e cena:

Ele quer mudar o destino da palavra no teatro, manipulá-la no ar como um objeto concreto, torná-la significante em vários planos, fazê-la atuar em conexão com os gestos, com a luz. (ASLAN, 2003, p. 259).

Segundo o pesquisador Cassiano Quilici (2004), a palavra tida como uma forma de magia em cena traz uma

essência pré-simbólica ao teatro artaudiano. A palavra- encantamento, aliada à glossolalia (língua inventada), ruídos, gritos, onomatopeias, sussurros e todo tipo possível de experimento sonoro (como ele mesmo realiza em Pour en finir

avec le jugement de dieu88, peça radiofônica de 1947), aponta sua pesquisa de desconstrução da linguagem em prol de um teatro livre do domínio do discurso logocêntrico.

Para este poeta, artista de teatro, cinema e rádio, a voz deveria ser dissonante ao texto dramático, criando níveis diferentes de percepção da voz e das palavras através de suas próprias sonoridades no espaço e nos corpos. Em busca de um teatro ritualístico e ancestral, no qual os elementos da cena não fossem a representação de uma realidade, mas a própria realidade, Artaud propõe o retorno da magia ao teatro (ARTAUD, 2006). O teatro artaudiano pretendia ser uma arte atuante sobre os sentidos da audiência, e não sobre a razão:

A cena deixa de ser, como proposto na tradição aristotélica, apenas uma ação mimética, que representa uma narrativa mítica ou ficcional, e passa a reivindicar um poder de atuação sobre o “corpo” como forma de acesso a novas modalidades de ser. (QUILICI, 2004, p. 48).

É possível entender que essas “novas modalidades de ser”, que Quilici atribui ao pensamento artaudiano, permitam também que x atuante desestabilize as naturalizações de vocalidade atrelada a gênero em cena?

As únicas relações diretas com gêneros (identidades sexuais) que encontrei nos escritos de Artaud presentes em O

Teatro e seu duplo (2006), e nas bibliografias secundárias

consultadas, dizem respeito à respiração.

No texto Um atletismo afetivo (2006, p. 151-160), Artaud - inspirado na Cabala89 - discorre sobre as categorias de respiração que produziriam as paixões: andrógino

88 Para acabar com o julgamento de deus (tradução minha). 89

(equilibrado, neutro), masculino (expansivo, positivo), e feminino (atrativo, negativo).

Os estudos sobre a respiração na Cabala levam Artaud a pensar nas bases orgânicas dos afetos, e na indução dos estados afetivos nx atuante através da respiração (MARTIN, 1991). Artaud propõe utilizar estas categorias em várias combinações no atletismo afetivo, sem fazer menções ao sexo dx atuante ou ao gênero de alguma personagem, mas sim aos estados pretendidos no trabalho dx atuante

como xamã (MARTIN, 1991).

Neste território, o corpo vocal se reorganizaria e poderia apontar para um caminho de dissonâncias de vocalidade e gênero em cena?

A partir destas pistas, talvez seja possível aferir que na cena ritualística e onírica artaudiana, criadora de uma segunda realidade mais real do que a primeira (por invocar pulsões extremas – a peste artaudiana), a desestabilização das representações binárias de gênero que naturalizam os corpos vocais nas categorias masculino e feminino poderia se dar através da desconstrução da linguagem logocêntrica em prol de outras possibilidades de linguagem (do corpo, da voz, dos sons, do espaço), e mesmo pela troca da extrema experiência literária (linguagem/representação/razão) para a extrema experiência sensorial (corpo/voz/sentidos). Um “corpo sem órgãos” seria um corpo vocal dissonante?

De acordo com Quilici,

O “corpo sem órgãos” nasceria, justamente, de uma necessidade profunda de liberdade, implicando um duplo trabalho: dissolução do “organismo” e suas “estratificações”; criação de um novo corpo. Para Deleuze e Guattari, trata-se de pensar e criar práticas “experimentais” bem dosadas, que permitam desfazer automatismos e produzir um corpo povoado pela “circulação de fluxos e intensidades”. (QUILICI, 2004, p. 54).

Nesta perspectiva, um corpo sem órgãos pode ser entendido como um corpo em devir, em transformação. Assim, sem fixações (automatismos), haveria no pensamento artaudiano espaços para dissonâncias de vozes, e quiçá, de corpos vocais em suas marcas específicas de gênero.

Todavia, Artaud figura no teatro muito mais como um filósofo do que como um diretor teatral, devido a suas poucas realizações de seu Teatro da Crueldade90, e muitos escritos que deixaram pressupostos de encenação e atuação que influenciam e inquietam filósofxs e artistas até a atualidade.

A pesquisadora feminista Jill Dolan (1991, p. 97) acredita que o argumento artaudiano utilizado pelo teatro feminista cultural americano dos anos 1960 e 1970 também acabou sendo mais poético do que prático. As artistas visavam sobrepor a presença do corpo feminino à supremacia da linguagem masculina em cena, mas acabavam por se contradizer ao ratificar as marcas específicas de gênero, inscritas nas narrativas corporais apresentadas. A abordagem essencialista do feminismo cultural também ignorou os contextos específicos de formação de singularidades, como etnia, classe social e orientação sexual não heteronormativa, em busca de uma autenticidade una da mulher (DOLAN, 1991, p. 87).

Artaud teve uma vida breve (e grande parte vivida em hospitais psiquiátricos) e poucas obras cênicas. Contudo, Edward Sheer (2004) cita influências artaudianas nas obras de Grotowski, Peter Brook, John Cage, Robert Wilson, entre outros, ratificando a grande influência de Artaud para artistas dos séculos XX e XXI.

90 Teixeira Coelho (1982) considera Les cenci, de 1935, o

espetáculo no qual Artaud chegou mais próximo da realização de seu Teatro da Crueldade. Todavia, segundo SHEER (2004), em suas palestras (1933 na Sorbonne, 1937 em Bruxelas e 1947 no Teatro Vieux-Colombier) Artaud conseguiu performar princípios do teatro ritualístico e antirrepresentacional que propunha em seus escritos. Os principais textos sobre seu Teatro da Crueldade foram escritos entre 1931 e 1936, e publicados na França em 1938 no livro