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Como não conquistar ninguém pelo estômago ou Na cozinha com Tigella

Instrução: selecione ações que lhe pareçam estereótipos de gênero. Brinque com estas ações, repetindo-as e variando-as enquanto ensina uma receita de nada. Não é nada, mas precisa parecer uma receita. As palavras que estarão nesta receita precisam ser mastigadas, mordidas, cuspidas. Sinta o sabor de cada fonema, de cada som. Deguste os sons. Deixe os sons da receita passearem por sua voz e seu corpo como ingredientes. Delicie-se.

Certo dia me dei conta da quantidade de programas de televisão (aberta e fechada) sobre culinária. Nacionais, internacionais, apresentados por homens, mulheres, jovens, pessoas maduras, idosxs, bonecxs, descoladxs, casuais e sensuais. Sim, tem sensualidade na cozinha. Que o diga Nigella Lawson. A britânica é umas das celebridades mundiais da culinária, e tem programas veiculados no Brasil pelo canal GNT133. É impossível assistir seus programas sem ser seduzidx pelos decotes, curvas e sensualidade com a qual Nigella se relaciona com a comida. Inspirada no programa Na

cozinha com Nigella, eu trouxe minha Tigella para este Pequeno Manual de Inapropriações.

As experimentações que resultaram nesta cena começaram com materiais diversos: copos, bacias, fitas. Eu queria investigar a alteração de vocalidade pelo acoplamento de objetos no corpo. Primeiramente, levei esta ideia para os meus bolsistas do curso Laboratório Permanente de

Performance134. Em maio de 2013 eu já havia planejado o desenvolvimento desta pesquisa com meus bolsistas Maíra Wiener e Dilmon Nunes135. Mesmo tendo ficado doente no dia do encontro, liguei para eles e pedi que realizassem o experimento com os participantes do curso sem mim. Eles deram continuidade à proposta e filmaram a experiência para eu poder assistir o processo posteriormente: cada participante do curso já tinha sido avisado para levar um objeto que pudesse ser acoplado ao corpo para alterar a voz. Teve

133 Assisti ao programa Na cozinha com Nigella ainda em 2014, pela

GNT. O canal veicula programas culinários de Nigella Lawson produzidos por emissoras inglesas. Não consegui encontrar a informação exata sobre o período de veiculação deste programa específico pela GNT, que parece ter como título original Nigella

Bites, produção do canal britânico Channel 4, entre os anos de 1998

a 2001. Informações disponíveis em: http://en.wikipedia.org/wiki/Nigella_Lawson. Acesso em 08 de maio de 2015.

134 Ação do programa de extensão Laboratório de Performance,

coordenado por mim no Centro de Artes da Udesc desde 2012.

135

escova de dentes, fita adesiva, fio dental, cone de papel filme, grampo de roupa e mais. Eles partilharam algumas canções que todos conheciam e experimentaram cantá-las com estes objetos presos ao nariz, no meio da boca, etc. Chamaram a experiência de decompositores, pela forma como as vozes foram alteradas pelos objetos. Mesmo não tendo continuado esta investigação no lab por motivos diversos, continuei a me debruçar sobre esta investigação no processo de criação do

Pequeno Manual.

Nas investigações que eu fiz para esta cena, gostei muito das sonoridades proporcionadas por uma bacia e por alguns copos. E a bacia e os copos me lembraram de Nigella. Então, comecei a brincar/jogar com a ideia de ensinar uma receita decomposta pelas ações do corpo vocal. Juntei mais uma colher de pau. Brinquei com ritmos da colher batendo na bacia e da minha voz golpeando os ingredientes. Brinquei com palavras que representavam ingredientes comuns, e com as imagens que os sons dessas palavras me traziam. Degustei os sons. Lembrei-me de experiências de poesia fonética e poesia sonora. Lembrei-me de uma performance que assisti no youtube do greco-britânico Mikhail Karikis136. Lembrei-me de Artaud. Lembrei-me de vários outrxs artistas da vocal performance art137, como Meredith Monk e Fátima Miranda. Experimentei criar com a voz e com palavras- ingredientes uma poesia sonora, uma partitura vocal com variações rítmicas, tonais, tímbricas e de intensidade. As ações vocais eram acompanhadas por ações físicas. Por fim, minha receita ficou assim:

Ahm, Ahm Água Leite 136 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GiGhupsyU9Y. Acesso em fevereiro de 2015.

137 Wânia Storolli (2012) explica que o termo foi cunhado pela

musicóloga Theda Weber-Lucks em sua tese Vokale Performancekunst als neue musikalische Gattung.

Ovo Amendoim Banha Va vê vé vi vô vó vulva Amassa Bate Soca batessoca vagabunda vacavacafaca fffffffffffffff farinha fermento forno

hum gostoso gostosa

ahhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!

Optei por não indicar no roteiro minha partitura vocal, para tentar deixar aberta a experimentação para futurxs leitorxs/vocalizadorxs. Então, quando fui tentar fixar minha criação, transcrevi algumas indicações fonéticas apenas.

Meu objetivo em cena era desconstruir a prosódia (acordos da fala/emissão de uma língua para a compreensão semântica) e explorar os sons dos fonemas que formavam as palavras dessa receita, em busca de uma poesia sonora.

A poesia sonora começa enfaticamente138 nas experimentações da poesia fonética dadaísta e futurista do início do século XX, e se desenrola por outras experimentações sonoras e musicais, como nas composições

138 Raoul Hausmann (1992) aponta o poema Ich liebe dich de Paul

Scheerbart, escrito em 1897, como inaugurador da poesia fonética. Todavia, Dick Higgins (1992) indica a presença de elementos de poesia fonética e poesia sonora em obras muito antigas da literatura, com a utilização de aliterações e onomatopeias que valorizavam a sonoridade em detrimento da semântica na vocalização dos textos, como em As Rãs, do dramaturgo grego Aristófanes (séc. IV a.C.), além de citar outros tantos autores anteriores ao século XX.

para voz do italiano Luciano Berio139. A poesia sonora, influenciada também pelas possibilidades eletroacústicas da segunda metade do século XX, inspirava-me a experimentar as palavras como materiais, e a voz como acontecimento na criação dessa cena.

Não procurei trabalhar nesta cena com qualquer intermediação tecnológica da voz. As alterações de vocalidade eram provocadas por mim ou pelos objetos acoplados ao meu corpo. Eu estava investigando algo como a

polipoesia, conceituada por Enzo Minarelli (1992, p. 119-120):

A polipoesia é concebida e realizada para o espetáculo ao vivo; apoia-se na poesia sonora como prima donna ou ponto de partida para entabular relações com: a musicalidade (acompanhamento ou linha rítmica), a mímica, o gesto, a dança (interpretação ou ampliação ou integração do tema sonoro); a imagem (televisiva ou por slides, como associação, explicação, redundância ou alternativa), a luz, o espaço, os costumes e os objetos.

Minarelli também indica a presença da tecnologia na

polipoesia, mas eu não queria utilizar intermediações

tecnológicas nesta cena. Eu queria experimentar as possibilidades do meu corpo vocal na criação deste poema- receita-de-nada.

Do ensaio aberto para a estreia, procurei explorar mais a musicalidade da voz, nas variações rítmicas e tonais, na repetição ou prolongamento dos sons, e criar metáforas para minhas ações físicas a partir das sonoridades experimentadas.

A receita começava com a repetição de um vício de linguagem, do território dos sons que muitas vezes

139 Para conhecer um pouco sobre as composições de Luciano Berio

(1925-2003), sugiro a visita ao site oficial do Centro de Estudos Luciano Bério. Disponível em: http://www.lucianoberio.org. Acesso em 08 de maio de 2015.

produzimos sem perceber: “Ahm....ahm....”, a cozinheira ensaiava começar.

Para cada ingrediente, trabalhei com uma metáfora, uma imagem visual e sonora (os sons também criam imagens). A água virou para mim um flagrante inicial (aaaaaahhhhhhh!!!!!!!!!) que em seguida deslizava sedutora pela última sílaba. O leite eu extraía dos meus próprios peitos, imaginando encher a bacia com o som do “ch” 140 do leitchi pronunciado pelos catarinenses (como tchau).

Tigella coloca leitchi na receita

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O ovo foi decomposto em letras, e virou uma abreviação pra mim, que anunciava o O.V.O. dentro de um copo. Um chamado abafado.

O amendoim era uma reza brincalhona, fanhosa, atravessada pela reverberação da voz em dois copos que eu movimentava entre a boca e a bacia.

A banha era um sacrifício real. A exposição da minha própria gordura, avolumada neste período de pesquisa. Esta exposição demandou a aceitação de minhas banhas para a demarcação e exposição do corpo. Mais uma vez me vi normatizada, pois se não fosse isso, a exposição da banha não seria um sacrifício para mim, e não teria ganhado espaço nesta cena.

Mordendo a palavra em sílabas, às vezes com nojo, eu utilizava uma fita adesiva larga e papel filme para apertar e marcar minha pele como uma linguiça: várias voltas de salame em uma só pessoa.

A mulher-porco141, com fita/cirurgia no nariz e nos lábios também, marcava com obsessão os acúmulos das refeições sedutoras no corpo, e pedia ajuda para a audiência nesta tarefa.

A mulher-porco

A mulher-porco era ela mesma seu próprio ingrediente. Para mim, a ação da banha nesta cena começa a indicar a desconstrução da sedutora Tigella e, além disso, a própria desumanização da cozinheira. O zoomorfismo, reiterado pelas palavras do roteiro lido por mim após a cena, pode colocar

Tigella não só no papel de um animal, mas no papel de um

animal que as pessoas comem. Um anúncio de canibalismo, uma mulher que se inventa para ser devorada ela mesma com

141

Esse nome surgiu da observação de minhas amigas Isabella Irlandini e Vivian Coronato, também doutorandas do PPGT, nas apresentações do Pequeno Manual de Inapropriações na Udesc em novembro de 2014. Elas me trouxeram a imagem do porco, após assistirem a peça em dias diferentes, porém não lembro qual delas primeiramente relatou a imagem.

a comida (ou como a comida) que produz, como metáfora ao consumo das imagens de beleza. As imagens, que se desprendem do referencial real, são outra coisa, uma

impersonificação, algo sem identidade, mas com uma

ideologia que reflete (e se reflete em) normatizações e criação de desejos de ser.

A desfiguração proporcionada por estes materiais, e o zoomorfismo resultante na cena, lembraram-me das performances com argila do francês Olivier de Sagazan. Participei do primeiro encontro de uma oficina142 com ele em Florianópolis, em 2013, e assiti na mesma época sua performance Transfiguração, no SESC Prainha, também em Florianópolis. Sua interessante investigação proporciona a criação, desconstrução e recriação de diferentes personas, humanizadas ou não, e também a exploração de vocalidades que emergem dessas criações. O artista investiga intersecções entre performance, pintura, escultura e dança, e me inspirou a investigar as alterações no corpo e na voz com as fitas. A fita que eu prendia no meu lábio inferior nesta cena às vezes se soltava em parte, e criava um zumbido na minha voz durante alguns momentos da cena.

Após ter banha suficiente para a receita, com a ajuda da colher de pau eu invocava a vulva como ingrediente: “Va vê vé vi vô vó vulva”, prolongando bastante o /l/. A colher direcionava as sílabas pelo espaço em meus movimentos, e ao mesmo tempo borrava ainda mais o batom vermelho, já maculado pela fita adesiva da mulher-porco.

Com os ingredientes selecionados, Tigella incitava o público, ordenando: “amassa”. Ela sussurrava secretamente a violência que se seguiria.

“Bate”, a voz espancava e a colher de pau ritmava-se com a bacia. “Soca”, a voz ordenava na composição. “Batessoca”, eu dizia, e a tensão da violência já se instaurava nos olhos do público. “Vagabunda”, “vacavacafaca”, “ffffffffffffffffffffff”. Os sons que vinham da bacia, que

142 Oficina e apresentação organizadas pela artista Elisa Schmidt

(Florianópolis-SC), com patrocínio do Prêmio Funarte Petrobrás de dança Klauss Vianna 2012.

acomodava meu rosto inteiro, julgavam, intimidavam, bufavam em aliterações. A voz grave me levava diretamente a habitar cenas de violência contra a mulher. No ensaio aberto, utilizei uma bacia vermelha, que escondia meu rosto como um corpo sem cabeça, sem individualidade. Por sugestão de Brígida, mudei a cor da bacia (e dos copos, que eram transparentes e coloridos) para objetos apenas transparentes. Na estreia, meu rosto e expressões eram revelados pelo material translúcido. A violência ganhava uma face.

A face da violência

O estereótipo da mulher do lar, dominadora do território doméstico e, portanto, boa cozinheira (para ser uma boa esposa, segundo preceitos falocêntricos), voltava a partir da varredura do “fffffffffffffffffffffffffffffff” para indicar os passos finais da receita: “farinha”, “fermento”, “forno”. Ainda na bacia, eu anunciava as etapas finais com uma vocalidade que me remetia às preliminares de uma relação sexual caricaturizada, exagerada na melosidade e sex appel.

Tirando a bacia da cabeça, eu experimentava a ilusória comida, lambendo os dedos passados no interior da bacia, como quem experimenta um doce delicioso direto da panela. Em seguida, eu olhava para o público, aproximando-me de alguém, e assediava: “gostoso”, “gostosa”. As cantadas eram inúmeras, e deixavam minha voz cada vez mais aguda, também prolongando cada vez mais os sons do assédio, até simular um gozo de tanto lamber os dedos com comida imaginária.

Após gozar, em uma abordagem irônica aos filmes pornôs que coisificam e estereotipam as mulheres, minha

Tigella se recolhia, e eu iniciava a desmontagem de sua

persona.

Tirar todas as fitas no meu corpo e rosto doía. Algumas vezes machucava realmente a pele, arrancava cabelos. E como eu não conseguia alcançar todas as fitas, devido à limitação de movimentos que algumas delas me impunham, eu pedia ajuda ao público também para tirá-las. Suportei as pequenas dores em cena, assim como aprendi a suportar a dor da pinça que arranca os pelos da sobrancelha, e a dor da depilação com cera quente nas pernas, virilha, axilas e buço desde a adolescência. Atualmente não realizo mais depilações com cera pela dor que me causa, mas a fita adesiva em cena me ajudou a explorar esta experiência de demarcação de gênero que vivenciei na história do meu próprio corpo.

O incentivo a assumir mais riscos em cena, saindo de minhas zonas de conforto, também foi uma sugestão de Fátima no ensaio aberto. Neste ensaio, eu usei pouca fita, eu não pedi ajuda para ninguém. Eu controlava tudo. Procurando me expor a mais riscos, eu passei a pedir para o público também colocar fita e papel filme à vontade. E isso criava limitações inesperadas de movimento. Ao tirá-las, eu precisava lidar com um cuidado real para não me machucar muito. Eu precisava estar completamente presente nesta ação.

No final da cena da Tigella eu também tirava os cílios postiços e a maquiagem. Outra dor decorrente do sacrifício

por um ideal estético: a cola de cílios machucava minha pele, e a maquiagem carregada precisava ser esfregada por um lenço umedecido diversas vezes para sair. Para mim, expor essa ação de desmonte para a audiência, apesar de ser uma ação muito comum e corriqueira, parecia sensibilizá-la pela minha dor, ao menos era isso que eu percebia em algumas expressões.

Nesta cena, meu processo de (re)invenção procurou transitar entre a construção e a desconstrução de estereótipos de mulheres e de imagens de mulheres, ocupar territórios- problemas, como a violência e a sexualidade, e queerizar as escutas através da poesia sonora e das interferências de objetos na vocalização.

Esta relação com os objetos como prolongamentos do próprio corpo vocal é inspirada nos objetos relacionais de Lygia Clark. Rolnik (s/d) analisa estes objetos como algo que tinha sentido apenas no uso atribuído pela artista a eles: eram objetos ordinários, que a artista utilizava em suas ações performáticas com cunho terapêutico no contato direto com a audiência. Apesar de eu não utilizar os objetos no público, penso que os sentidos (diferenciados dos significados utilitários que possam ter no cotidiano) que eles criam em cena emergem das relações que proponho entre meu corpo vocal e os objetos. Não são signos para serem decifrados, como Rolnik afirma que também não o eram os objetos relacionais de Clark, mas transformam o corpo na relação com ele, transformando-se no próprio corpo.

Esses acoplamentos também queerizam o corpo vocal, nas transformações que realizam sobre corporeidade e vocalidade, deslocando-os dos lugares-comuns da representação do corpo e da voz atrelada a gênero e da utilização dos objetos no cotidiano.

A poesia sonora que procurei construir na cena de

Tigella pretende não conquistar ninguém pelo estômago por

dois motivos: primeiramente porque não há, de fato, alimentos reais na cena; em segundo lugar, porque meu intuito foi justamente desconstruir estereótipos da mulher atrelados a imagens de beleza e papéis sociais engendrados.

Stanislavski definiu o conceito de ação verbal em seu sistema para indicar o potencial da voz revelar as intenções das personagens, intenções estas não contempladas no texto (ou até mesmo contraditórias ao texto), mas essencialmente dependentes do texto (e da linguística) na cena realista. Eu procurei investigar as ações do corpo vocal, criadas e potencializadas pela poesia sonora que emergiu na cena de

Tigella: ações independentes da estrutura linguística,

realizadas com ou sem palavras, com onomatopeias, com decomposição de palavras, com ruídos. Procurei a ação encantatória das palavras de Artaud, sem abrir mão do completo reconhecimento semântico, mas abrindo as possibilidades de sentido através da ação do corpo vocal no espaço da cena.

Schafer (1991) ao discorrer sobre as imagens e sensações suscitadas pelas sonoridades das letras e palavras cita a obra de James Joyce, Finnegans Wake, e suas palavras-trovão. Essas palavras (poesia sonora) são formadas por letras repetidas e algumas versões em vários idiomas. É uma leitura dos potenciais sonoros do idioma, como o presente na obra de Joyce, que leva Schafer (1991) a interpretar os sons das letras do alfabeto como onomatopeias. Assim, meu intuito não foi esvaziar minha poesia sonora de semântica, mas explorar outras possibilidades de sentidos além da semântica.

As ações do corpo vocal buscaram deslocamentos de vocalidade e prosódia, aproximando a palavra da música, como aconteceu na poesia sonora do século XX, que buscou dissolver fronteiras e absorver (e ser absorvida) por outras linguagens (como a música e a vocal performance art).

Schafer (1991, p. 239-240) afirma que

Para que a língua funcione como música, é necessário, primeiramente, fazê-la soar e, então, fazer desses sons algo festivo e importante. À medida que o som ganha vida, o sentido definha e morre; é o eterno princípio Yin e Yang. Se você anestesiar uma palavra, por exemplo, o som de seu

próprio nome, repetindo-o muitas e muitas vezes até que seu sentido adormeça, chegará ao objeto sonoro, um pingente musical que vive em si e por si mesmo, completamente independente da personalidade que ele uma vez designou. As línguas estrangeiras também são música, quando o ouvinte não compreende nada de seu significado. (SHAFER, 1991, p. 239-240).

Esta musicalidade (inata à própria voz em seus parâmetros e cadências), sendo sobreposta à semântica, libera a voz das limitações impostas pela linguagem; e sendo rebelde às formas tradicionais de música, libera a voz das convenções do canto. É um espaço de (auto)invenção de musicalidade que a poesia sonora ocupa.

As experimentações vocais e sonoras das vanguardas europeias também contaminaram a produção musical. A chamada música atonal, como o dodecafonismo, serialismo, música eletroacústica e minimalismo, passou a agregar em suas composições sonoridades até então consideradas não musicais. Os experimentos abrem mão dos centros tonais para incorporar o ruído, que

[...] atua exatamente como interferência sobre o código e as mensagens tonais (que vinham se tensionando na segunda metade do século XIX, mas que decolam agora para um efeito cascata de alterações harmônicas, com ‘dissonância’ generalizada, alterações rítmicas, desmantelamento da métrica do compasso, alterações timbrísticas e de texturas, uso de agregações de ruídos, barulhos concretos e consequente esgarçamento, rarefação e dispersão das linhas melódicas. (WISNIK, 1991, P. 44).

Tais procedimentos também reverberam nas produções cênicas experimentais contemporâneas, como nas

óperas multimídia da compositora brasileira Jocy de Oliveira, nos espetáculos de música-teatro do grego radicado na França George Aperghis, e em experiências de vocal

performance art, como as realizadas por Fátima Miranda e

Meredith Monk.

Zumthor (1992), ao discorrer sobre as experiências em territórios intermediários143 dos dadaístas no Cabaret Voltaire, aproxima as experiências de poesia sonora dos artistas deste movimento com a arte da performance, quando afirma que