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A Leitura Moral da Constituição nas Funções Representativa e Iluminista do Supremo / The Moral Reading of the Constitution in the Representative and Illuminating Functions of the Supreme Court

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 7, p.52418-52438 jul. 2020. ISSN 2525-8761

A Leitura Moral da Constituição nas Funções Representativa e Iluminista do

Supremo

The Moral Reading of the Constitution in the Representative and Illuminating

Functions of the Supreme Court

DOI:10.34117/bjdv6n7-770

Recebimento dos originais: 03/06/2020 Aceitação para publicação: 29/07/2020

Jean Claude O’Donnell Braz Pereira Mestrando do Uniceub (Brasília-DF)

Administrador

Advogado e pós-graduado em Gestão Pública pela Fundace-USP Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União

Endereço: SQN 215, Bloco F, apt 311, Asa Norte, Brasília DF E-mail: jeanclaudeod@gmail.com e jeanclaudeod@tcu.gov.br

Jefferson Carús Guedes

Doutor e Mestre em Processo Civil pela PUC-SP Professor da Graduação

Mestrado e Doutorado do UniCEUB (Brasília) Advogado e Consultor Jurídico

Endereço: Uniceub: 707/907 - Campus Universitário, SEPN - Asa Norte, Brasília - DF, 70790-075 E-mail: professor.carusguedes@gmail.com e trabalho.uniceub@gmail.com

RESUMO

As tensões causadas pela rápida transformação social, econômica e cultural e a perda de legitimidade popular do Poder Legislativo colocaram o STF como protagonista de um processo de transformação do sentido próprio da Constituição, fazendo que a Corte adentre em áreas cinzentas de atuação dos demais Poderes. Esse processo de transformação é feito, entre outros caminhos, consoante a leitura moral da Constituição, utilizando-se a dicção de Ronald Dworkin. Assim, é necessário aferir em que medida a Suprema Corte goza de legitimidade social e jurídica para exercer o papel de guardião moral da inação e de certa condescendência dos poderes eleitos; da correta aplicação de institutos, como o distinguishing e do overruling; de um mandato não explícito conferido pelos jurisdicionados; do discurso racional jurídico; da possibilidade de utilização de critérios morais e éticos tidos como universais. De outra borda, impõe-se a instituição de limites à leitura moral em questões relevantes em que se discutam desacordos morais razoáveis; nas hipóteses em que se observem assimetria ou ausência de informação e no conflito agente-principal subjacente; nos princípios constitucionais e de Direito Internacional; na lógica e na coerência do sistema jurídico; no diálogo e na deferência aos poderes eleitos.

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal, Overruling, Distinguishing, Leitura moral, Backlash, Override.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 7, p.52418-52438 jul. 2020. ISSN 2525-8761 ABSTRACT

The tensions caused by the fast social, economic and cultural transformation and the loss of popular legitimacy of the Legislative branch have placed the STF as the protagonist of a process of transformation of the Constitution's meaning, leading the Court into gray areas of action of the other branches. This transformation process is carried out, among other paths, according to a moral reading of the Constitution, using the diction of Ronald Dworkin. Thus, it is necessary to assess the extent to which the Supreme Court enjoys social and legal legitimacy to exercise the role of moral guardian of inaction and a certain condescension of the elected powers; the correct application of institutes, such as distinguishing and overruling; a non-explicit mandate given by the jurisdictional authorities; rational legal discourse; the possibility of using moral and ethical criteria considered universal. On the other hand, the imposition of limits on moral reading is imposed on relevant issues in which reasonable moral disagreements are discussed; in cases where asymmetry or lack of information is observed and in the underlying principal-agent conflict; constitutional and international law principles; in the logic and coherence of the legal system; in dialogue and deference to the elected powers.

Keywords: Supreme Court, Overruling, Distinguishing, Moral reading, Backlash, Override. 1 INTRODUÇÃO

As tensões causadas pela rápida transformação social, econômica e cultural na sociedade contemporânea, aliadas a uma perda de relevância do Poder Legislativo em questões capitais e perda de sua legitimidade popular, colocaram o Supremo Tribunal Federal como protagonista de um processo de transformação do próprio sentido da Constituição: de um lado, a necessidade de segurança jurídica e a crescente incorporação de elementos do common law em nosso sistema, como a valorização dos precedentes e as súmulas vinculantes; de outro, o clamor social por transformações políticas e sociais que não encontram ressonância nos representantes eleitos, fazendo com que a Suprema Corte adentre em áreas cinzentas de atuação dos demais Poderes.

Esse processo de transformação é feito, dentre outros caminhos, consoante uma leitura moral da Constituição, utilizando-se a dicção de Ronald Dworkin1. Inserem-se nesse debate também a questão “contramajoritária”2, de julgar em sentido oposto às maiorias parlamentares, e o papel representativo e iluminista da Suprema Corte, conforme o denominam Luís Roberto Barroso3. O termo “representativo” aliás, não soaria bem para o professor Jeremy Waldron, para quem a representação popular é inerente aos órgãos legislativos eleitos, e se as instituições democráticas

1 DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The Moral Reading of the American Constitution. Harvard University Press,

1996.

2 WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. The Yale Law Journal, v. 115, n. 1346, 2006. 3 BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira

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por vezes pecam por omissão ou comissão, os tribunais também poderão agir de modo tirânico, por vezes4.

Esse protagonismo do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, evidencia-se na abordagem sobre temas acerca dos quais, em princípio, caberia primordialmente ao Poder Legislativo deliberar, notadamente em situações de maior complexidade e com desacordos morais razoáveis. O risco de lack of information, assimetrias de informação ou conflitos de agência (agente-principal)5 entre juízes e jurisdicionados, podem levar a uma ruptura da legitimidade da Corte junto à sociedade brasileira e a uma maior possibilidade de erro6

Em todos os quadrantes, patenteia-se a necessidade de refletir sobre a Teoria da Integridade de Ronald Dworkin, segundo a qual o papel do exegeta não pode olvidar a tradição institucional da Suprema Corte, as suas decisões e o próprio desenvolvimento do Direito e da sociedade. Desse modo, a interpretação judicial constituiria algo além do simples judicial review, mas produto forjado na moral e dos princípios insculpidos na Constituição6.

Afloram vozes que apontam a ausência de controle democrático do Poder Judiciário (accountable judges), defeito de que não padeceriam os demais Poderes.

Seguindo a tradição romanista do civil law em nossa tradição jurídica, poder-se-ia afirmar, com Tocqeville7, que nossos juristas não passam de eruditos. Mas essa pode ser uma impressão distorcida. A crescente incorporação da teoria dos precedentes ao nosso Sistema judicial, ou a sua tentativa falha, parece ter aproximado nossos juízes dos homens de lei ingleses ou americanos, os quais, segundo o autor de “A Democracia na América”, assemelham-se aos sacerdotes do Egito: como estes, os únicos intérpretes de uma ciência oculta.

Esse sistema hermético por vezes torna complexa a identificação de uma já tênue fronteira entre Direito e política, ou entre Direito e moral.

4 “Instituições democráticas irão algumas vezes alcançam e reforçam decisões incorretas sobre direitos. Isso significa

que elas às vezes agem de forma tirânica. Mas o mesmo acontece com qualquer processo de decisão. Os tribunais, por vezes, também agirão tiranicamente. Tirania, ou a definição dela que estamos utilizando, é mais ou menos inevitável. É apenas uma discussão de quanta tirania provavelmente haverá, que foi assunto de nossa discussão na parte IV”. (WALDRON, idem, tradução livre)

5 FILHO Joaquim Rubens Fontes Filho e OLIVEIRA Clara Brando de. Problemas de agência no setor público: o papel

dos intermediadores da relação entre poder central e unidades executoras. In: Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV-EBAPE, 2017; p. 596-615.

6DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The Moral Reading of the American Constitution. Harvard University Press, 1996,

p. 15-16.

7 TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Livro 1. Leis e Costumes. Trad. De Eduardo Brandão. São

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Diante disso, o papel do Supremo Tribunal Federal como guardião moral e como provedor de demandas não preenchidas por outros atores públicos deve encontrar limites na legitimidade de suas decisões perante a sociedade e perante os demais Poderes do Estado.

2 A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO

2.1 CARACTERIZAÇÃO DO QUE SEJA UMA LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO O conceito de “leitura moral da Constituição”, surgiu a partir do trabalho de Ronald Dworkin, em uma obra que analisa a interpretação da Constituição norte-americana pelos seus juízes, levando em consideração princípios abstratos contidos na Carta Política, denominada “The Moral Reading of the American Constitution”.

O autor fundamenta sua tese na Teoria da Integridade, segundo a qual o papel do exegeta não pode olvidar a tradição institucional da Suprema Corte, as suas decisões e o próprio desenvolvimento do Direito e da sociedade. Desse modo, a interpretação judicial constituiria algo além do simples judicial review, mas nascido da moral e dos princípios insculpidos na Constituição.

De outra borda, o constitucionalismo político do professor Jeremy Waldron pauta-se pela crítica contundente à revisão judicial feita pelos juízes acerca de questões de política moral. Waldron, mesmo sem se reportar diretamente a Dworkin, rejeita a tese da “resposta certeira”, ao considerar arbitrárias e ilegítimas as decisões dos juízes tomadas com fundamento em critérios morais.

Em todo caso, nem Jeremy Waldron nem Ronald Dworkin outorgam relevância a uma moral objetiva, substantiva, não aceitando a tese de que uma decisão judicial, por mais correta e reconhecida pela sociedade, seja mais adequada do que qualquer outra visão alternativa quanto à sua moralidade. Entretanto, Waldron vai além, e considera ilegítimos os juízos morais dos magistrados sobre questões políticas, enquanto Dworkin defende a incorporação da moral política nas decisões judiciais, como política salutar e de boa aplicação do Direito.

Waldron critica ainda a revisão judicial ex ante da legislação, feita por um tribunal constitucional, nas etapas finais de promulgação de uma lei8. O autor vê dificuldades em compreender uma revisão

8Exemplo disso, no Brasil, é a possibilidade de o parlamentar impetrar mandado de segurançaperante o Supremo Tribunal Federal para assegurar seu direito líquido e certo de não se dar seguimento à aprovação e promulgação de uma norma inconstitucional, e assegurar o exercício escorreito do poder constituinte derivado. Consoante entendimento tradicional do STF, não se admitia, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF apenas admitia, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança perante o Supremo com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo”, onde o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa (Dentre outros, MS 32.033, Redator do Acórdão Min. Teori Zawascki, Julg. 20-6-2013; MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso,

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judicial prévia, com um tribunal funcionando como uma Casa Revisora (o que seria papel do Senado, por exemplo).

Nesse passo, avulta o pensamento de Luis Roberto Barroso, ao advogar que o pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, sem desprezar o direito posto, procurando empreender uma leitura moral do Direito sem recorrer a categorias metafísicas, mas exercê-la (a leitura moral) inspirado em uma teoria da justiça que não comporte voluntarismo ou personalismos. Tal paradigma pressupõe: “a normatividade dos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional e; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana”9.

Dworkin assevera, por exemplo, que a Primeira Emenda da Constituição dos EUA prevê que o Congresso não poderá aprovar leis afetando a liberdade de opinião dos americanos. Compreende a leitura moral no sentido de que todos, juízes, legisladores e cidadãos, podem interpretar as cláusulas abstratas da Constituição no sentido de que elas invocam princípios morais sobre decência e justiça (DWORKIN, 1996, p. 2).

Juízes cujas decisões são “conservadoras” irão naturalmente interpretar princípios constitucionais abstratos de modo conservador, assim como fizeram, erradamente, com relação a certos direitos sobre propriedade e contratos seriam fundamentais para a liberdade. Juízes cujas convicções são liberais, poderão interpretar esses princípios de forma liberal. Mas o autor norte-americano afirma que a leitura moral não é, por si só, uma opção estratégica liberal ou conservadora.

Por exemplo, juízes conservadores desaprovam fortemente os programas de ações afirmativas direcionadas a certos grupos minoritários. De outro lado, juízes conservadores que valorizam particularmente a liberdade de expressão, são mais propensos do que outros conservadores a estender a proteção da primeira emenda a atos de protestos políticos, mesmo por

DJ de 23-04-2004). Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal assentou a possibilidade de controle material prévio de constitucionalidade de emendas, cujo conteúdo viole o núcleo das cláusulas pétreas: "o controle prévio de constitucionalidade material das propostas de emendas constitucionais deve ser reservado aos casos de inequívoca violação ao núcleo das cláusulas pétreas, o que verifico não ocorrer, in casu. Digo constitucionalidade material porque, apesar de não se tratar de objeto de análise, neste momento, entendo serem plenamente sindicáveis perante esta Suprema Corte (i) os vícios ocorridos no âmbito interno do procedimento de deliberação das Casas Legislativas, e (ii) as regras constitucionais que disciplinam o trâmite de análise das propostas de emenda à Constituição" (MS 34.518-MC/DF rel. Min. Luiz Fux, julg. 22/11/2016). (Grifos acrescidos)

9 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. (O triunfo tardio do direito

constitucional no Brasil). 2007, p. 5-6. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/neoconstitucionali smo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf>. Acesso em: 20/8/2018.

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causas que eles desprezam, como mostram as decisões salvaguardando protestos de queima de bandeiras.

Portanto, Dworkin não considera revolucionária a leitura moral na prática. Legisladores e juízes no seu trabalho de dia a dia, instintivamente (intuição), tratam a Constituição como um conjunto de elementos morais abstratos que só poderiam ser aplicados em casos concretos por meio de julgamentos morais casuísticos. E eles não têm outra opção. Entretanto, o autor acredita haver uma incompatibilidade entre o papel da leitura moral e sua reputação. Ela tem inspirado todas as melhores decisões da Suprema Corte, mas também algumas das piores (DWORKIN, 1996, p. 3-4). Isso porque visões pessoais sobre a moral política dos juízes influenciam suas decisões constitucionais. Apesar de negarem essa influência, buscam explicar suas decisões por outros meios embaraçosos. Afirmam estar dando efeitos práticos a intenções históricas obscuras, ou expressando uma estrutura geral da Constituição que não foi claramente definida a priori. Dessa forma, a leitura moral poderia soar desacreditada, na medida em que parece restringir grotescamente a soberania moral dos indivíduos, retirando-a de suas mãos e entregando-a a um grupo de indivíduos iluminados, exatamente as questões de política moral as quais as pessoas deteriam o direito e a responsabilidade de decidir por si próprias.

2.2 A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO PELO JUDICIÁRIO

Nos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, quando denunciou o que chamava de ativismo judicial, aposentou-se em 1961 e afirmou a um repórter que tinha cometido dois grandes erros como Presidente dos EUA: a indicação do Chefe de Justiça Earl Warren, Republicano, para dirigir a Suprema Corte e conduzir um dos períodos mais ativistas da Corte e Willian Brennan, juiz estadual indicado por Eisenhower para a Suprema Corte, e que se tornou um dos mais liberais e um dos mais explícitos aplicadores da leitura moral da Constituição.

Também os Presidentes Ronald Reagan e o Presidente George Bush, comprometeram-se a indicar componentes da Suprema Corte que respeitassem na visão dele, mais do que usurpassem os direitos e desejos das pessoas. Eles e a sua plataforma eleitoral prometerem reverter decisão da Suprema Corte 1973 Roe vs. Wade que protegia os direitos de aborto. Entretanto, quando se apresentou a oportunidade, três dos juízes indicados não somente mantiveram a decisão como providenciaram uma nova base legal adotada e baseada em uma leitura moral da Constituição, estendendo o direito assentado na decisão de 1973. Nem sempre a expectativa dos políticos que indicam membros da Suprema Corte é confirmada.

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No Brasil, Cite-se a Emenda Constitucional 19/1998, que inseriu as vantagens de caráter pessoal no teto remuneratório dos servidores públicos, em oposição a decisão proferida pelo STF na ADI 14. O STF, em nova reação, durante sessão administrativa, entendeu que o novo teto não seria autoaplicável por necessitar de lei ordinária de iniciativa conjunta dos Poderes. Em nova contra-reação (override), o Congresso aprovou a EC 41/2003, que além de incluir as vantagens de caráter pessoal no teto, previu a auto aplicabilidade e a rejeição do direito adquirido. Porém, no julgamento do MS 24.875, o STF, por seis votos a cinco, afirmou que a irredutibilidade de vencimentos consistia em modalidade qualificada de direito adquirido, de modo que os vencimentos que se consolidaram em valores nominais superiores ao teto anteriormente à EC 41/2003 não poderiam sofrer o corte correspondente. Aqui, identifica-se claramente uma leitura política, moral e até mesmo patrimonialista da Constituição, visto que a classe da magistratura era diretamente interessada na questão.

Alguns autores, céticos quanto à revisão judicial, consideram que quaisquer juízos morais feitos pelo Judiciário, notadamente acerca da política, acarretam em arbitrariedade, ainda que se cogite da existência de juízos morais objetivos, conforme defendemos em item anterior. Para Waldron, por exemplo10,

Mesmo que o ceticismo seja rejeitado, e ainda que haja fatos morais que resultem em verdadeiros julgamentos certos e falsos julgamentos errados, ainda assim o melhor que o magistrado pode fazer é impor sua opinião a respeito de tais fatos aos infelizes litigantes que se apresentam. Eles terão crenças e opiniões próprias sobre o problema, e mesmo que se tornem realistas morais de carteirinha, permanecerão questionando por que a visão moral adotada pelo juiz sobre os fatos deve prevalecer sobre outras visões. A verdade sobre o realismo moral (se é que ele vale) não corrobora qualquer convicção pessoal ou dos juízes acerca de crenças morais. Na melhor das hipóteses, pode modificar nossa compreensão sobre as características de um desacordo moral sem nos mover um centímetro para um entendimento sobre quem está certo e quem está errado.

3 A LEITURA MORAL E O NOVO PAPEL DAS CORTES CONSTITUCIONAIS 3.1 O PAPEL REPRESENTATIVO E O PAPEL ILUMINISTA

Dentro da denominada jurisdição constitucional, Luís Roberto Barroso elenca três grandes papéis exercidos pelas Cortes Constitucionais em uma democracia: o papel contramajoritário, em que uma Corte de Justiça, composta por juízes não eleitos, possa invalidar atos de outros poderes, em especial do Legislativo, sobrepondo a sua vontade.

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O papel representativo, exercido quando o Judiciário atende a determinadas demandas da sociedade que não foram atendidas a tempo e a hora pelo processo político majoritário. Segundo Barroso, as democracias contemporâneas são feitas de votos, direitos e razões, além de três dimensões: a dimensão representativa, decorrente do voto popular, e tem como protagonista o Parlamento; a democracia constitucional, fundada em direitos fundamentais, e tem como protagonista a Suprema Corte ou Tribunais Constitucionais; e a democracia deliberativa, fundada em razões, no debate público, na sociedade, em busca da prevalência do melhor argumento, mais racional, capaz de conquistar da melhor forma o auditório relevante. Portanto, o Judiciário apesar de não ter voto, deteria a legitimidade no oferecimento de direitos e na participação no debate público, ao oferecer razões que demonstrem a racionalidade e justeza das escolhas que faz.

Alguns exemplos de atuação representativa: nos EUA, a decisão em Cristfull vs. Connecticut, de 1965, em que a Suprema Corte declarou inconstitucional uma lei estadual que criminalizava a prescrição e o consumo de pílulas anticoncepcionais, em nome de um direito não expresso na Constituição. Também o caso Laurence x Texas, de 2003, que declarou inconstitucional uma lei que criminalizava o homossexualismo e as relações homossexuais. No Brasil, se enquadraria nessa categoria a decisão de inconstitucionalidade de financiamento eleitoral de empresas.

Já o papel iluminista estaria amparado em avanços sociais do processo civilizatório contra o “senso comum”, e por vezes até contra a vontade majoritária da sociedade, tendo sido assim com relação aos direitos das minorias, mulheres, negros, homossexuais. Exemplos americanos da visão iluminista incluem a festejada decisão em Brown x Board of Education, em 1954, que superou uma tradição de precedentes fundados na decisão Plessy vs. Ferguson, de 1896, a qual reconheceu ser conforme à 14ª Emenda11 a existência de “acomodações separadas mas iguais”, para trabalhadores brancos e negros em linhas de ferro. Referida doutrina do “separate but equal”, foi radicalmente alterada em Brown, e a reação, se não veio via backlash, mostrou-se através de manifestos da bancada sulista no Congresso, da massiva resistência de escolas do sul em implementar a decisão, até que dez anos depois o Civil Rights Act de 1964 outorgou ao Executivo o poder de cortar verbas federais de escolas que se recusassem a eliminar a segregação.

Outro exemplo, Lobby x Virgínia, de 1967, declarou inconstitucional a proibição de casamentos inter-raciais, e outra em que foi legitimada a união homoafetiva e o casamento de pessoas do mesmo sexo, assim como no Brasil (ADI 4.277/DF).

11 A Emenda 14, de 1866 dispunha sobre cidadania e igual proteção da lei, sem qualquer distinção, e sobre o direito de

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Mas por que o Poder Judiciário resolveria se arvorar em corte representativa ou em corte iluminista? Alguém poderia argumentar que os juízes, por mais bem-intencionados e ilustrados que sejam, vão se deparar com dissensos, incertezas e múltiplas possíveis interpretações ou lacunas constitucionais, que constituem desacordos razoáveis que seriam inerentes à discussão parlamentar. Nada mais correto. Entretanto, o que se observa amiúde nas Casas Parlamentares é que deputados e senadores andam apreensivos menos com as grandes questões nacionais, e mais com a arregimentação partidária, as possíveis alianças regionais e nacionais visando ao pleito eleitoral, as disputas de poder envolvidas na inclusão ou não inclusão de determinada matéria na agenda parlamentar, a sondagem das “bases”, as longas discussões polarizadoras e dos ritos intermináveis. Essa perda de eficiência mereceu atenção de alguns autores12.

3.2 A LEITURA MORAL EM FACE DOS NOVOS PAPÉIS DAS CORTES CONSTITUCIONAIS

A leitura moral e política da Constituição deita raízes igualmente em clivagens morais e culturais entre os próprios Ministros do Supremo, além de pressões da sociedade civil, de grupos religiosos, econômicos e políticos.

Nos autos da ADI 4.277/DF, na qual o Supremo afirma ter dado “interpretação conforme” à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil13, mas que na verdade incluiu implicitamente também uma verdadeira mutação constitucional do art. 226 da CF/1988. Essa interpretação foi dada ao Codex para excluir qualquer significado que impedisse o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família14. Em nenhum momento o constituinte cogitou de prever como unidade familiar a união de pessoas do mesmo sexo, limitando-se ao homem e à mulher ou a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Trata-se, sem dúvida, de uma leitura moral da

12Em interessante artigo resultante do Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, Edson Nunes aponta a dificuldade do Parlamento em exercer suas funções fiscalizadora e legiferante típicas: “Comparadas às iniciativas do executivo, as provindas dos parlamentares apresentam extrema morosidade no cumprimento de seus ritos. O número médio de dias de tramitação, até a votação, é de 964,6 para as de autoria do legislativo contra 271,4 do executivo resultando que nenhum de seus projetos é votado na mesma legislatura em que é apresentado. Consideradas as medianas a discrepância aumenta: 89,0 e 814,2 dias respectivamente. Parte da explicação está no peso proporcional das iniciativas tipo “administrativas” daquelas que propõem normas. (...). Como não há demanda para a mudança de hábito, os partidos eximem-se de carregar o ônus da agregação de interesses e da formulação de prioridades; o Congresso apresenta caráter reativo em seu funcionamento. (NUNES, Edson. Fragmentação de Interesses e Morosidade no Parlamento Brasileiro. In: O papel do Congresso Nacional no Presidencialismo de Coalizão. MOISÉS, José Álvaro (org.). Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer-Stifung, 2011, p. 30-41)

13 Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

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Constituição aderente à ideia de uma Carta aberta de intérpretes15. Em corajosa e iluminista decisão, assim se pronunciou o relator, Ayres Britto:

É como dizer: a correta aplicação das normas estaduais inerentes à união duradoura entre pessoas do mesmo sexo reclama, para a sua concretização, a incidência de institutos de Direito Constitucional e de Direito Civil, como, verbi gratia, os institutos da família, do casamento, da união estável e da adoção.

De outra quadra, exemplo de atuação ativista e representativa do STF observou-se quando a Corte considerou inconstitucional o modelo de financiamento eleitoral por empresas, e que derrubou a lei em nome da moralidade administrativa, temas que iremos adentrar em capítulo mais adiante (ADI 4.650, rel. Luiz Fux, julgamento em 17/9/2015).

Exemplo de clivagem moral no âmbito do Supremo Tribunal Federal repousa na questão da possibilidade de cumprimento da pena privativa de liberdade após a decisão judicial em segunda instância. No julgamento do HC 68.72616, rel. Min. Néri da Silveira, em 28/6/1991, a Corte assentou que a presunção de inocência não impedia a prisão decorrente de acórdão recorrível, e que a ordem de prisão decorrente de órgão julgador de segundo grau, ainda que pendente julgamento de recurso especial ou extraordinário era concernente aos interesses de garantia da aplicação da lei penal e sua execução, não conflitando com o art. 5º, LVII, da Constituição17. Tal orientação foi reiterada em diversas oportunidades18.

No julgamento do HC 84.078/MG19, relator o Min. Eros Grau, realizado em 5/2/2009, por sete votos a quatro o STF assentou que o princípio da presunção de inocência se mostrava incompatível com a execução provisória da sentença antes do trânsito em julgado da condenação. Dentre as razões para a mudança de orientação, figuraram a adesão do Brasil a tratados internacionais de direitos humanos e a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assegurariam a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a eles inerentes20.

15 STRAUSS, David A. The Living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010.

16 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=71186. Acesso em:

25/3/2020.

17 Art. 5º, LVII, CF: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 18 HC 72.366/SP, rel. Min. Néri da Silveira, Dj 26/4/1/1999, HC 79.814, Rel. Min. Nelson Jobim, Segunda Turma, DJ

13/10/2000, HC 80.174, Rel. Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, DJ 12/4/2002, RHC 85.024, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ 10/12/2004; HC 91.675, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe de 7/12/2007

19 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=608531. Acesso em:

25/3/2020.

20 Cumpre ressaltar que os principais tratados nesse sentido (Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos) foram internalizados pelo Brasil em 1992, e nenhum deles menciona o “esgotamento de todas as instâncias judiciais”. Votaram nessa vertente os Ministros Eros Grau, Celso de Mello, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, sendo vencidos, pela manutenção da orientação anterior, os Ministros Menezes Direito, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia e Ellen Gracie.

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Em 17/2/2016, no julgamento do HC 126.292/SP21, rel. Min. Teori Zavascki, a Corte, por sete votos a quatro, tornou à orientação original, da possibilidade de execução da pena de prisão após a condenação por órgão colegiado, visto que, dentre outros fundamentos, nesta fase já houve demonstração de materialidade e autoria. Conforme já previra Patrícia Perrone, a superexposição à mídia, a preocupação com o desempenho individual, as convicções políticas e morais e mesmo características individuais de cada julgador podem interferir no posicionamento assumido por cada Ministro22.

A divergência de posicionamentos naquele julgado mostrou-se patente, vencendo a posição majoritária por apertada maioria. Em seu voto, o Ministro Roberto Barroso destacou, consciente ou inconscientemente, o caráter moral da decisão em apreço:

“Um sistema de justiça desmoralizado não serve ao Judiciário, à sociedade, aos réus e tampouco aos advogados. (...). Como escrevi em texto doutrinário: ‘“A integração de sentido dos conceitos jurídicos indeterminados e dos princípios deve ser feita, em primeiro lugar, com base nos valores éticos mais elevados da sociedade (leitura moral da Constituição). Observada essa premissa inarredável – porque assentada na ideia de justiça e na dignidade da pessoa humana - deve o intérprete atualizar o sentido das normas constitucionais (interpretação evolutiva) e produzir o melhor resultado possível para a sociedade (interpretação pragmática). ” (Grifos originais)

Entretanto, no julgamento das ações de controle abstrato ADC´s 43, 44 e 5423, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 7/11/2019, o Supremo promoveu o terceiro overruling jurisprudencial no tema em dez anos, retornando à posição adotada em 2009, pela impossibilidade da execução da pena após condenação por órgão colegiado em segunda instância, ao assentar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal24. Por apertada maioria de 6 a 5, votaram pela procedência das ADC’s os Ministros Gilmar Mendes e Dias Tóffoli (que retificaram seus anteriores posicionamentos), Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Celso de Mello, vencidos os Ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia.

Percebe-se que os três overruling promovidos pelo Supremo, não se deram em razão de mudanças ou atualizações no ambiente político ou social, mas das apreciações individuais de cada Ministro acerca do alcance do princípio da presunção de inocência.

21 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246. Acesso em

25/3/2020.

22 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Nos Bastidores do STF. Rio de Janeiro: Forense. 2015.

23 Acórdão pendente de publicação. Notícia veiculada em:

http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=429359&ori=1. Acesso em 29/3/2020.

24 Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade

judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

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Fora de dúvida que a decisão do Supremo adotada no HC 126.292 e depois superada, poderia ser catalogada como “representativa” de um sentimento majoritário de morosidade, desprestígio e impunidade do sistema penal pátrio, o que foi reconhecido inclusive pelo Min. Marco Aurélio, em seu voto:

Reconheço, mais, que a Justiça é morosa, que o Estado, em termos de persecução criminal, é moroso. Reconheço, ainda, que, no campo do Direito Penal, o tempo é precioso, e o é para o Estado-acusador e para o próprio acusado, implicando a prescrição da pretensão punitiva, muito embora existam diversos fatores interruptivos do prazo prescricional.

4CONDICIONANTES DA LEITURA MORAL

4.1 A LEGITIMIDADE SOCIAL E JURÍDICA DA LEITURA MORAL

Thomas Bustamante, em obra basilar, destaca a importância da moralidade para a interpretação e aplicação do direito, diante de sua mútua interdependência: afirma que a moral precisa do Direito para superar sua indeterminação cognitiva; o Direito precisa da moral para legitimar suas decisões25.

É possível cogitar de elementos éticos e morais objetivos, a serem perseguidos pela jurisdição constitucional? O dever mostra-se como ponto cardeal da ética kantiana, algo definido a priori, algo que não se pode prescindir na ação moralmente correta. Em interessante monografia26, Olivia Maria Klem Dias faz um comparativo entre a ética de Kant e a ética material dos valores de Max Scheler, para demonstrar que enquanto para Kant existe uma tensão eterna entre o aprimoramento moral do indivíduo e aquilo que o dever ordena e o caráter atrativo do valor percebido como correto, e que é capaz de levar o ser humano à felicidade:

O sujeito kantiano é aquele que está sempre dividido entre suas inclinações e aquilo que a lei moral ordena. É o sujeito que deve estar sempre atento para suas inclinações naturais com o objetivo de controlá-las. Este sujeito nunca será plenamente virtuoso, no sentido de aprimorar-se a ponto de poder prescindir da noção de dever e, ainda assim, ser capaz de agir de maneira plenamente moral. Já segundo a visão de homem scheleriana é possível haver aprimoramento moral a ponto do sujeito poder prescindir do dever e ainda assim ser capaz de realizar os valores positivos mais elevados da hierarquia dos valores. (...). Os valores, para Scheler, são o conteúdo da nossa experiência emocional com o mundo. Scheler afirma que nossa relação com o mundo não se limita ao contato racional com o mundo ou ao contato ingênuo da experiência natural. Estes contatos só acontecem depois que ocorre uma abertura do espírito humano para o mundo. Scheler chama esse movimento essencial do espírito humano em direção ao mundo de amor. No amor estão enraizados todos os atos emocionais de conhecimento dos valores.

25 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial – A Justificação e a Aplicação de Regras

Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 251.

26 DIAS, Olivia Maria Klem. A Crítica de Max Scheler ao Formalismo na Ética de I. Kant. Dissertação de Mestrado

apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2017.

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A busca da felicidade e ao afeto (amor) foi erigida pelo Eminente Ministro Ayres Britto, no julgamento do RE 477.55427, ao se tratar da legitimidade constitucional do reconhecimento e qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar:

O afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: a valorização desse novo paradigma como núcleo conformador do conceito de família. O direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito e expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Princípios de yogyakarta (2006): direito de qualquer pessoa de constituir família, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Direito do companheiro, na união estável homoafetiva, à percepção do benefício da pensão por morte de seu parceiro, desde que observados os requisitos do art. 1.723 do código civil.

Razoável concluir-se, destarte, na possibilidade da existência de valores universais, baseados ou na racionalidade kantiana do dever ou na sensibilidade afetiva de Max Scheler, capazes de orientar em maior ou menor medida a busca por um sentimento de justiça ou do que é correto ou o “certo a se fazer”. Mas nem sempre essa fronteira é bastante nítida. E quando essa área cinzenta se apresenta, a legitimidade da jurisdição constitucional é posta em xeque, possivelmente ainda mais do que se a decisão, aparentemente errada, vier da Casa Legislativa.

É factível que os custos políticos relacionados à superação de jurisprudência possam ser mais elevados que os custos de um ato legislativo, originário, de mesmo teor. Eduardo Mendonça recorda a possibilidade de o Legislativo desautorizar, mediante emenda à Constituição, o reconhecimento das uniões homoafetivas28. O mesmo se poderia afirmar em relação a uma reação em override do legislativo que proibisse a pesquisa com células-tronco ou que legitimasse o financiamento de campanhas políticas por empresas.

Não se questiona, em absoluto, a legitimidade da Suprema Corte em dizer o Direito, face à Constituição, inclusive derrogando as normas tidas por inválidas. Hamilton já advogava, no Federalista nº 78, o direito da Suprema Corte em ajuizar sobre a constitucionalidade das leis, sejam elas criadas pelos legislativos estaduais quanto pelo legislativo federal29.

Não se afirma, de outra borda, a superioridade do Poder Judiciário face ao Legislativo, eleito democraticamente. O poder do povo será sempre soberano. Entretanto, nos espaços vazios deixados pelos poderes eleitos, o Judiciário tem ocupado posição, muitas vezes se lançando mão de

27 ADI 477.554, rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º/7/2011.

28 MENDONÇA, Eduardo. A jurisdição constitucional como canal de processamento do autogoverno democrático. In:

Daniel Sarmento (coord.), Jurisdição constitucional e política, 2015, p. 133-176.

29 MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

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ferramentas para reproduzir o debate plural, tal como amicus curiae, as audiências públicas ou o convite de autoridades em assuntos específicos para participar das sessões plenárias.

Afirmar que o Supremo Tribunal Federal é uma Corte política e não apenas legal, resolveria uma série de problemas não solucionados pelos demais poderes, ao preço de criar outro. Significa dizer que ao escolher alternativas controvertidas de políticas públicas a Corte estaria lançando mão de critérios de fato e de valor que não podem ser deduzidos dos precedentes, dos estatutos e da Constituição30.

Registre-se caso em que o Supremo Tribunal Federal, na Reclamação 29.508, em 22/1/2018, suspendeu decisão do Superior Tribunal de Justiça que havia liberado a posse da deputada federal Cristiane Brasil (PTB- RJ) como Ministra do Trabalho, indicada livremente pelo Presidente Michel Temer, com base no art. 87 da Constituição da República, no aguardo de informações relativas a eventual usurpação da competência do STF pelo STJ, e em cujo caso estava em jogo o princípio da moralidade administrativa versus a presunção de inocência.

4.2 LIMITES À LEITURA MORAL

Nos casos de desacordos morais razoáveis, em que não existe consenso em qualquer lugar do planeta sobre a conveniência ou não de determinada medida, talvez seja prudente a deferência aos poderes eleitos como caixa de ressonância do sentimento popular majoritário. Isso não significa que em determinadas ocasiões esse sentimento popular contrarie outros princípios de maior envergadura, ligados à dignidade da pessoa humana ou do Direito das Gentes.

Otto Bachoff considera por exemplo que mesmo uma norma constitucional originária que viole um princípio de direito supranacional material pode ser considerada inconstitucional – tese não acolhida pelo nosso STF - em vista do caráter impositivo daquelas normas de caráter moral ou do direito das gentes31:

“Esta obrigatoriedade só existirá, em primeiro lugar, se e na medida em que o legislador tome em conta “os princípios constitutivos de toda e qualquer ordem jurídica” e, nomeadamente, se deixe guiar pela aspiração à justiça e evite regulamentações arbitrárias". Mas, além disso, só existirá ainda – e nesta medida vou além do limite antes mencionado, traçado por E.v. Hippel - se o legislador atender aos mandamentos cardeais da lei moral, possivelmente diferente segundo o tempo e o lugar, reconhecida pela comunidade jurídica, ou, pelo menos, não os renegar conscientemente”.

30 DAHL, Robert. Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policymaker in

http://epstein.wustl.edu/research/courses.judpol.Dahl.pdf. Acesso em 20/8/2018.

31 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra:

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Exemplo de desacordo razoável é o caso da descriminalização do aborto, que polariza discussões e posicionamentos. Para aqueles contrários à tese da descriminalização, a narrativa da proteção da vida da mulher hipossuficiente, sustentada por dados e números torturados ao alvedrio dos interesses em jogo, camuflam o desejo de emancipação e liberdade feminina para rejeitar qualquer “intruso indesejado”. Para os defensores da causa, a manutenção da criminalização criaria um estigma para as mulheres pobres, condenadas a perecer em clínicas clandestinas, e violaria direitos fundamentais das mulheres para dispor sobre seu corpo e sua vida.

O risco de assimetria ou ausência de informação suficiente entre agente-principal, considerado aqui como agentes os representantes do Poder Judiciário que decidem questões inerentes aos interesses do principal (o cidadão eleitor), pode influenciar negativamente em decisões açodadas ou temporãs acerca de temas capitais de moralidade, política ou economia, por exemplo. A teoria da agência objetiva lidar originalmente com os problemas de governança corporativa, com a separação entre propriedade e gestão, mas sua utilização tem permeado inúmeros outros setores, em especial o setor público e suas relações internas e externas, como nos processos de terceirizações e parcerias público-privadas, e no caso em apreço, entre jurisdição e jurisdicionados32. Sua premissa básica é que, se ambas as partes em um relacionamento principal-agente buscam maximizar sua função utilidade, nem sempre o principal-agente vai agir no melhor interesse do principal. O principal pode limitar interesses divergentes aos seus estabelecendo incentivos apropriados para o agente e incorrendo em custos de monitoramento delineados para limitar extravagâncias ou atividades anômalas do agente.

Daí a importância de o Poder Judiciário lançar mão de instrumentos de auscultação da sociedade, em penhor se sua própria legitimidade como instância democrática e intérprete última da Carta Política, como as audiências públicas e a intervenção dos amici curiae, verbi gratia as audiências acerca da pesquisa com células tronco (ADI 3.510, rel. min. Carlos Ayres Britto) e a relativa à descriminalização do aborto (ADPF 442, rel. Min. Rosa Weber).

Artigo do Professor Peter Hogg e do Professor Allison Bushell33 procura dar uma resposta plausível ao argumento de que a revisão judicial da Carta Canadense de Direitos e Liberdades é

32 A premissa básica do conflito de agência é a de que “se ambas as partes em um relacionamento principal-agente

buscam maximizar sua função utilidade, nem sempre o agente vai agir no melhor interesse do principal. O principal pode limitar interesses divergentes aos seus estabelecendo incentivos apropriados para o agente e incorrendo em custos de monitoramento delineados para limitar extravagâncias ou atividades anômalas do agente” (FILHO Joaquim Rubens Fontes Filho e OLIVEIRA Clara Brando de. Problemas de agência no setor público: o papel dos intermediadores da relação entre poder central e unidades executoras. In: Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV-EBAPE, 2017, p. 597).

33 HOGG, Peter W. & BUSHELL, Alison A. The charter dialogue between courts and legislatures (or perhaps the charter

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ilegítima porque não seria democrática. Os autores procuram demonstrar que os julgamentos acerca da Carta de Direitos são muitas vezes sucedidos por uma nova legislação que atinge os mesmos objetivos da legislação derrubada pelo Judiciário.

Os autores sugerem que quando uma decisão judicial é aberta a uma mudança legislativa, é significativo considerar a relação entre a Corte e a legislatura como um diálogo. O Tribunal pode ter forçado um tópico na agenda legislativa que o corpo legislativo teria preferido não lidar. O corpo legislativo pode ser forçado a outorgar maior peso aos valores da Constituição identificados pelo Tribunal em sua decisão. São restrições ao processo democrático, mas a decisão final é democrática. Elencam quatro recursos da Carta Constitucional que facilitam o diálogo: (1) o poder de sobreposição do Legislativo (override), seção 3334; (2) limites razoáveis aos direitos garantidos na Constituição, na Seção 1; (3) os “direitos qualificados”, que permitem ações que atendam a padrões de justiça e razoabilidade, na Seção 7; (4) garantia dos direitos à igualdade que pode ser satisfeita por uma variedade de medidas corretivas, na Seção 15 da Carta Canadense.

Segundo Rodrigo Brandão35, a supremacia judicial admite que o Poder Legislativo tenha a primeira palavra, conferindo, ao Poder Judiciário a última. Segundo Brandão, há casos em que a dinâmica das relações entre Suprema Corte e Parlamento não se pautou por uma conversa deliberativa, mas por uma lógica de conflito. Exemplo das “Law in your face” canadenses, assim compreendidas as leis destinadas simplesmente a reverter uma orientação da Suprema Corte anteriormente decidida36.

34 No primeiro recurso, o poder de override encontra-se na seção 33 da Carta Canadense de Direitos e Garantias: “33.

(1) O Parlamento ou a legislatura de uma província poderá promulgar uma lei onde se declare expressamente que a lei ou uma das suas disposições terá vigor independentemente de qualquer disposição incluída no artigo 2 ou nos artigos 7 a 15 da presente Carta. (2) A lei ou disposição da lei que esteja em vigor sob a declaração de que trata este artigo terá o efeito que teria, exceto pela referência à disposição desta Carta referida na declaração. (3) A declaração feita ao abrigo do parágrafo (1) cessará de ter validade cinco anos após ter entrado em vigor ou em uma data anterior especificada na declaração. (4) O Parlamento ou a legislatura provincial poderá promulgar novamente a declaração feita ao abrigo do parágrafo (1). (5) O parágrafo (3) será válido para todas as promulgações repetidas adotadas ao abrigo da parágrafo (4)”

35 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a quem cabe dar a última palavra sobre o

sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 273-279.

36 Brandão cita como exemplo de “law in your face”, de forte conteúdo moral, o caso O’Connor. O Bispo Hubert

O’Connor era acusado de estuprar quatro estudantes aborígenes em uma escola por ele dirigida. Em sua defesa, o bispo solicitou acesso a registros dos tratamentos médico e psicológico das vítimas, cabendo à Suprema Corte sopesar os direitos à ampla defesa do acusado e à privacidade das vítimas, para decidir se esses elementos seriam ou não disponibilizados à defesa. Reduzida maioria de cinco juízes afirmou que não se poderia exigir do acusado comprovação da relevância dos dados antes que ele tomasse ciência de seu teor, sob risco de condenação de inocentes. Esses dados, inclusive aqueles em poder de terceiros (médicos, psicólogos), também deveriam ser repassados, caso o juiz do caso considerasse imprescindíveis à defesa. A minoria (4 juízes), mostrou-se cética quanto à utilidade dessas informações para a defesa, alertando para o desestímulo de denúncia de crimes sexuais e a perpetuação da vulnerabilidade das mulheres à violência sexual. Prevaleceu, portanto, o direito do acusado à ampla defesa, em detrimento do direito das vítimas à privacidade e o interesse social de punir eficazmente os crimes sexuais. Dois anos após a decisão da Corte Canadense, o Parlamento reagiu aprovando uma lei destinada a fazer prevalecer a solução acolhida pela minoria da Suprema Corte, precisamente para dificultar o uso em juízo das informações, estimulando a denúncia de crimes sexuais

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Parece ter razão o autor ao afirmar que a principal influência dos juízes ao decidirem questões morais controvertidas é a sua própria ideologia e não os textos normativos, precedentes ou doutrina. Ao se analisar a jurisprudência contemporânea do STF, percebe-se a Corte envia sinais contraditórios, talvez pela pouca tradição de vinculação aos precedentes, existente no direito norte-americano. De toda sorte, a circunstância de o Supremo ter assistido a transições de coalizões partidárias majoritárias (PSDB-PT-PMDB), sem que se alterasse significativamente a sua forma de atuação em função dessas coalizações, depõe favoravelmente a algum caráter de independência da Corte, ainda que crescentemente vinculada a princípios e valores, mais do que a regras.

No que se refere à deferência aos poderes eleitos, o Supremo Tribunal Federal tem se demonstrado reverente ao princípio da separação dos Poderes. Em boa parte das vezes, a Corte atua com autocontenção. Quando se questionou, nos autos da ADI 3.510/DF, rel. Min. Ayres Britto, a constitucionalidade de dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), o STF adotou uma posição não-ativista, mantendo a validade da referida norma, autorizando a pesquisa com células-tronco embrionárias, utilizando embriões in vitro37.

Atuou na mesma linha o Pretório Supremo ao analisar a constitucionalidade da Lei 11.096/2005, ao assentar a constitucionalidade das ações afirmativas no âmbito do Programa Universidade para Todos (Prouni), julgando improcedente a ADI 3.330, também de relatoria do Ministro Ayres Britto38.

Igual vertente adotou o Supremo, quando declarou constitucional a política afirmativa instituída pela Lei 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas em concursos públicos39.

pelas vítimas. Mais ainda, a lei se utilizou dos termos contidos no voto minoritário da Juíza L’HereauDubeau, superando, item a item, a solução acolhida pela maioria do Órgão Judicial.

37 “O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano.

Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição”. Voto condutor do Min. Ayres Britto.

38 “Ações afirmativas do Estado. Cumprimento do princípio constitucional da isonomia. (...) A educação, notadamente

a escolar ou formal, é direito social que a todos deve alcançar. Por isso mesmo, dever do Estado e uma de suas políticas públicas de primeiríssima prioridade. A Lei 11.096/2005 não laborou no campo material reservado à lei complementar. Tratou, tão somente, de erigir um critério objetivo de contabilidade compensatória da aplicação financeira em gratuidade por parte das instituições educacionais”. Voto condutor do Min. Ayres Britto.

39 “É constitucional a Lei 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos

para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. (...) (ADC 41, rel. min. Roberto Barroso, julgamento 8/6/2017).

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Noutro julgado, o Pretório Excelso assentou a constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades, com a utilização de critérios étnico-raciais na seleção para ingresso no ensino superior, alinhando-se à política instituída pelo Poder Executivo40.

De outra quadra, exemplo de atuação ativista do STF observou-se quando a Corte considerou inconstitucional o modelo de financiamento eleitoral por empresas, e que derrubou a lei em nome da moralidade administrativa41 .

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão acerca da correção da leitura moral da Constituição, seja ela, representativa, iluminista ou de outra classe, parece rocear o dilema com o qual Neil McCormick se deparou, em sua “Argumentação Jurídica e Teoria do Direito”42:

Naturalmente, se a decisão anterior tiver sido por algum motivo significativamente injusta, ou indesejável por alguma outra razão, há pelo menos um ponto passível de discussão: se é melhor perpetuar uma injustiça substantiva para satisfazer a justiça formal ou garantir uma justiça substantiva no caso em foco ao custo de sacrificar a justiça formal conforme aplicada às partes desse caso e às partes do outro caso. Não há nenhuma resposta simples e fácil para essa questão.

Dworkin, ao fim e ao cabo, reconhece que a leitura moral não serve a todo o conteúdo constitucional. Consiste em estratégia interpretativa correta para juristas e juízes que, agindo de boa-fé, asseguram que os governos tratem todos os sujeitos sob seu domínio como possuindo igual status político e moral, e devem assegurar o respeito a todas as liberdades individuais indispensáveis à condição de igualdade, não somente aquelas ligadas à liberdade de expressão e de religião43.

Allan Tourraine44 reivindica o uso da moral, enriquecida pela noção de ética, já que os princípios da moral devem ser aplicados às relações particulares. O exercício do direito deve melhorar o máximo possível a situação dos dominados, dentre do respeito à função dos dominadores, conquanto não atente contra os direitos de todos.

A leitura moral exige dos juízes encontrar a melhor concepção dos princípios morais da Constituição, ou seja, a melhor compreensão do que realmente requer o status moral de igualdade

40 Ademais, embora não exista lei específica tratando do sistema de cotas, há toda uma base normativa legal que autoriza

o uso de ações afirmativas, como a utilização de critério étnico-racial na seleção para ingresso no ensino superior, conforme ressaltei na ADPF 186/DF, de minha relatoria. (...). No mais, os outros argumentos levantados pelo recorrido foram analisados na ADPF 186/DF, em que considerei a constitucionalidade: (i) das políticas de ação afirmativa, (RE 597.285, voto do rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento 9/5/2012)

41 ADI 4.650, rel. Luiz Fux, julgamento em 17/9/2015.

42 MACCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 95. 43 DWORKIN, Ronald. Idem, p. 13-16.

44 TOURAINE, Alain. Após a Crise. A decomposição da vida social e o surgimento de atores não sociais. Petrópolis:

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de homens e mulheres e que se compatibiliza com o seu recorte histórico. Ela não requer que magistrados sigam os sussurros de suas próprias consciências ou tradições de sua classe se elas não puderem ser incorporadas naqueles valores históricos. Nesse sentido, a superação dos precedentes do STF por meio de uma leitura moral e política da Constituição é legítima e apropriada, desde que assegurada a deferência aos demais poderes constituídos, ainda que aparentemente inertes.

Entretanto, o poder normativo do Parlamento está dado. Nunca lhe foi retirado. O parlamento sempre teve e permanece tendo, plena independência em face das incursões da Suprema Corte e dos Juízes em sua leitura moral ou principiológica da Constituição.

A reação ou superação de precedentes ocorre tanto em relação ao próprio Supremo ou em relação ao parlamento, e deste em relação ao STF (backlash), sendo este um sintoma da leitura política e moral da Constituição.

Portanto, a leitura moral e política da Constituição é possível, e retira sua legitimidade: a) da inação dos poderes eleitos e de uma condescendência, até certo ponto, desses mesmos poderes; b) da possibilidade de aplicação, de institutos como o distinguishing e do overruling, mas para tanto, é necessário que seja extraída a priori, de forma clara, a ratio decidendi da decisão; c) de um mandato não explícito conferido pelos jurisdicionados e do reconhecimento da legitimidade do Poder Judiciário para essa tarefa; d) do discurso racional jurídico; e) da possibilidade de utilização de critérios morais e éticos tidos como universais.

De outra quadra, a leitura moral da Constituição deve encontrar limites: a) em algumas questões relevantes onde se discutam desacordos morais razoáveis; b) nas hipóteses em que se observem assimetria ou ausência de informação e no conflito agente-principal subjacente; c) nos princípios constitucionais e de Direito Internacional; d) na lógica e coerência do sistema jurídico, bem como nos objetivos finais da prestação jurisdicional; e) no diálogo e na deferência aos poderes eleitos, sempre que estes atuem, ainda que por meio do override ou backlash.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 7, p.52418-52438 jul. 2020. ISSN 2525-8761 REFERÊNCIAS

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Referências

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