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Contributo para o conhecimento das elites olisiponenses

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Departamento de História

CONTRIBUTO PARA O CONHECIMENTO DAS ELITES

OLISIPONENSES

Júlia Almeida

Mestrado em História Antiga

2011

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Departamento de História

CONTRIBUTO PARA O CONHECIMENTO DAS ELITES

OLISIPONENSES

Júlia Almeida

Orientada pelo Prof. Doutor Amílcar Guerra

Mestrado em História Antiga

2011

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Índice

1 Introdução ... 1

2 Metodologia ... 4

3 Revisão da Literatura sobre o tema ... 8

4 Instituições fundamentais do sistema de funcionamento dos municípios . 14 4.1 Populus ... 14

4.2 Senatus (ou ordo decurionum) ... 15

4.3 Magistratus ... 23

4.3.1 Duúnviros ... 26

4.3.2 Edis ... 28

4.3.3 Questores ... 29

5 Felicitas Iulia Olisipo e as suas elites ... 31

5.1 Municipium civium Romanorum ... 41

5.2 Elites locais ... 45

5.2.1 Magistrados municipais ... 50

5.2.2 Flâmines ... 62

5.2.3 Flamínicas ... 69

5.2.4 Augustais ... 71

6 Evergetismo em Felicitas Iulia Olisipo ... 81

7 Considerações finais ... 98 Bibliografia ... 101 Siglas e Abreviaturas ... 119 Índice de Figuras ... 120 Índice de Fotografias ... 120 ANEXOS ... 121 Anexo 1 ... 122 Anexo 2 ... 127

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1 Introdução

Lisboa, charneira entre o Atlântico e o Mediterrâneo, é possuidora de atractivos inquestionáveis e que a tornaram ponto de chegada desejado por muitos. O que Lisboa é hoje, uma cidade multicultural, é reflexo de uma passagem de povos, de culturas assimiladas ao longo de séculos. No percurso que aqui faremos, em que deambularemos entre os séculos I e IV d.C., e sobretudo entre os séculos I e II d.C., observaremos esta Olisipo como produto de um conjunto de marcas acumuladas ao longo dos tempos.

Integrada no Conventus Scallabitanus, um dos conventus da província da Hispania, Olisipo emerge como porto economicamente atractivo, activo e vivo, onde se cruzam romanos e indígenas.

A boa situação geográfica de Olisipo, no estuário do Tejo, conferia-lhe uma posição estratégica para o escoamento de produtos próprios, como o garum, ou para a redistribuição de produtos, como o azeite da Bética, actuando como porto de escala das rotas entre o Mediterrâneo e o Atlântico, fazendo dela, a partir do último quartel do século I a.C., uma verdadeira capital litoral da Lusitânia (Mantas, 1997, p. 22).

Em 197 a.C. a Hispânia é dividida em duas províncias, a província Hispania Ulterior e a província Hispania Citerior, designadas numa perspectiva desde Roma, governadas por praetores normalmente com o título de pro consules (D’Ors, 1953, p. 136).

Interpretando um passo de Díon Cássio (LIII, 12, 4-5), muitos autores consideram que em 27 a. C. a Hispania Ulterior é dividida em Hispania Ulterior Baetica, com capital em Corduba, e em Hispania Ulterior Lusitania, com capital em Emerita Augusta, constituindo o Guadiana o limite entre as duas províncias (Alarcão, 1988 a, p. 33). Ainda que seja consensual que esta divisão foi levada a cabo por Augusto, a data em que ocorre suscita contudo dúvidas, apontando a maioria dos autores para uma data entre 27 e 12 a.C. e mais provavelmente próxima de 12 a.C. (Guerra, 1995, p. 46).

A Lusitania e a Hispania Citerior ou Tarraconensis, com capital em Tarraco, ficam dependentes directamente do Imperador, governadas através dos seus enviados, legati Augusti propraetores, dependendo a Bética, dado o seu nível de pacificação e o facto de ser uma área mais romanizada, do Senado, através de um proconsul (Balil, 1975, p. 42).

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As fronteiras das províncias ter-se-ão apenas tornado fixas entre 7 e 2 a. C, com Augusto (Moita, 1994, p. 36). São assim então estabelecidos limites à província da Lusitânia, ocupando a região a sul do Douro, tendo grosso modo como fronteira oriental, a sul, o rio Anas (Guadiana) e avançando na região central pelas actuais regiões de Cáceres e Mérida (Moita, 1994, p. 37).

No âmbito de cada província surgem, logo desde a época de Augusto, demarcações de carácter jurisdicional para facilitar a sua administração, os conventus (D’Ors, 1953, p. 138). De acordo com Plínio (NH, 4, 117) a Lusitânia divide-se em três conventus, o Conventus Scallabitanus, com a capital Scallabis Praesidium Iulium, sede da circunscrição jurídica romana da qual Felicitas Iulia Olisipo depende, o Conventus Emeritensis, que tinha por capital Augusta Emerita, e o Conventus Pacensis, com a capital Pax Iulia ou Colonia Pax Iulia. Na capital do conventus, o governador da província julgava as causas que ultrapassavam a jurisdição dos magistrados municipais. O conventus tinha uma assembleia, com representantes das cidades que o integravam, e era um órgão consultivo do governador.

Nas províncias podem-se distinguir dois tipos de núcleos privilegiados, as colónias e os municípios. As colónias podiam ser tanto de cidadãos romanos, constituindo coloniae civium romanorum, como de cidadãos latinos, designadas coloniae civium latinorum. Tradicionalmente os municípios distinguem-se igualmente entre municipium civium romanorum, como é o caso de Olisipo, e os de direito latino, assunto tratado com maior detalhe no âmbito do capítulo referente a Felicitas Iulia Olisipo e as suas elites.

A vida provincial regulava-se essencialmente pelo edito provincial e pela Lex provinciae da Hispania, supondo que esta existiria. Regia-se ainda pelas decisões do governador, senado ou imperadores que a ela dissessem respeito, bem como pelas leis coloniais e municipais (Mentxaka, 1993, p. 34).

Desde o teatro às termas, desde o forum aos templos, o município de Olisipo receberá as marcas identificativas de uma urbs romana. Nesta Olisipo emergente, as elites movem-se ao estilo romano, constituindo o posto avançado de Roma neste município. São no fundo o garante da estabilidade e da romanização da cidade, assegurando o poder local. Duúnviros, edis, os ascendentes do que é hoje o corpo executivo da cidade, deles temos registos epigráficos que nos dão a conhecer um pouco do que era a vida social e política deste município.

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Na presente dissertação, pretendemos definir quem constituía a elite deste municipium e que por esse mesmo motivo fornecia os personagens da sua vida política. Desde logo haverá que analisar as grandes famílias aqui presentes, pois eram estas as que governavam a cidade. Porque tinham elevado poder económico e aliado a esta situação viria o poder. Não nos esqueçamos que inicialmente a vida política apenas estava aberta a quem tinha capacidade económica suficiente para a exercer.

Como materiais de apoio a este esforço de reconstituição de um pedaço da história, recorremos desde logo ao conjunto epigráfico referente a Olisipo, já objecto de análise por parte de vários investigadores. Se assim é, que interesse haverá então num novo trabalho que abordará temas e epígrafes já tratados? Pois a motivação surgiu-nos exactamente de nos termos deparado com uma dispersão e fragmentação da informação existente pelo que uma reconstituição que desse uma imagem de conjunto da elite política e social de Olisipo nos pareceu impor-se.

Para que este trabalho se tornasse possível, foi essencial o apoio de várias pessoas, às quais aqui agradeço. Desde logo, ao Prof. Doutor Amílcar Guerra, orientador desta dissertação, a quem agradeço as correcções, os comentários e a motivação transmitida que apoiaram no caminho até à conclusão desta dissertação. A montante, gostava de agradecer ao Prof. Doutor Nuno Simões Rodrigues e ao Prof. Doutor Luís Manuel de Araújo, que em cursos prévios ao mestrado me motivaram e solidificaram o meu interesse em frequentar o Mestrado em História Antiga.

Uma palavra de agradecimento igualmente aos meus colegas de mestrado, pela amizade e partilha durante estes quatro anos, em particular à Alda Delicado, a quem agradeço igualmente os comentários e a revisão deste trabalho, bem como à Aurora Mocho, à Maria Fernandes, ao Iúri Vieira Martins, ao André Silva e à Joaquina Carita.

Finalmente, um agradecimento especial à minha família, sobretudo ao Carlos, pelo incentivo e apoio na revisão deste trabalho, bem como à Dra. Cristina Rocha, pelo apoio e disponibilidade laboral, sempre que necessário.

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2 Metodologia

Como referido anteriormente, para a reconstituição das elites de Olisipo, recorremos desde logo ao conjunto epigráfico existente para Olisipo, que constitui a base dos trabalhos. Tratando-se de uma informação coetânea, torna-se por isso particularmente relevante para compreender a realidade social. Através dos registos epigráficos, podemos assim identificar estatutos, cargos públicos e conhecer manifestações de forte conteúdo político.

Para além dos registos epigráficos, são igualmente recolhidas informações sobre Olisipo em algumas fontes literárias antigas, como seja em Plínio e Estrabão, nomeadamente no que se refere a dados de natureza geográfica e económica, ou no Itinerário Antonino, particularmente no que às vias respeita. Tratam-se de importantes documentos que nos ajudam a compreender a relevância da posição estratégica da cidade no mundo antigo.

Constitui igualmente base do nosso trabalho a diversa literatura que sobre a Olisipo deste período existe e que será analisada em maior detalhe no capítulo 3, referente à Revisão da Literatura sobre o tema.

Já a numismática, importante referência para a reconstituição histórica, não será no presente caso, até ao momento, fonte a considerar, dado que não existem registos numismáticos referentes a Olisipo em qualquer moeda cunhada na Hispania. Para além disso, mesmo as moedas que se conhecem são poucas e pouco relevantes para o assunto que aqui tratamos.

Em termos cronológicos, o nosso trabalho acompanha as epígrafes a que temos acesso. Ainda que a datação das inscrições nem sempre seja fiável, são normalmente integradas num período correspondente aos séculos I e II d.C.. No entanto, alguns monumentos são mais tardios, chegando ao século IV d.C.. Com efeito, uma epígrafe datada de 336 d.C., de renovação das thermae Cassiorum, permite observar uma cidade em movimento num tempo de crise muito referida, dinamismo talvez justificável por se tratar de um município com inúmeros recursos económicos.

Pretendendo esta dissertação constituir um contributo para o conhecimento das elites deste município, convirá, antes de avançarmos, precisar o que consideramos como elite para efeitos do nosso trabalho. Será de salientar que a própria noção de elite está desde logo associada ao próprio facto de a sociedade romana, e por associação, as

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comunidades indígenas que, conquistadas, assumem os valores romanos, como é o caso de Olisipo, serem bastante hierarquizadas.

Nesta dissertação, incluímos na noção de elite todos os elementos pertencentes às camadas altas da sociedade, sobretudo a pertencente à elite política. Com efeito, o exercício de magistraturas conferia-lhe prestígio e notoriedade na sociedade, estando o desempenho de cargos públicos estreitamente relacionado com o poder económico que os indivíduos que a compunham detinham. Podemos igualmente estabelecer laços entre esta elite política e as funções ditas religiosas, em boa parte com cariz que hoje designaríamos como político.

Integramos desde logo a elite pré-romana, nem sempre fácil de identificar, ainda que em alguns casos a onomástica se revele clara. Esta elite, romanizada, será o condutor da romanização no município e o modelo a seguir. A sua fonte principal de riqueza deverá ter sido a agricultura, a propriedade fundiária, encontrando-se com efeito no ager Olisiponensis vestígios das suas villae. Na cidade, desempenhariam as funções associadas ao decurionato, às magistraturas e aos sacerdócios.

Consideramos assim todos os elementos do senado local ou ordo decurionum, os decuriões, no qual estariam representadas as famílias mais poderosas do município, que dominavam tanto a esfera da cidade como do campo. Incluímos igualmente os magistrados municipais, que de resto passavam a pertencer a este ordo a partir do momento em que eram designados para o desempenho das magistraturas. Os magistrados detinham um poder considerável, sobretudo os duúnviros, ainda que controlado pelo senado local, sendo olhados com respeito pela sociedade A sua função permitia um contacto privilegiado tanto com o populus, que os havia eleito, como com elementos de outras comunidades, com a administração provincial e central ou mesmo, em determinadas situações, com o imperador e a família imperial.

Os flâmines, bem como as flamínicas, estão igualmente inseridos neste conceito de elite. Estes sacerdotes do culto imperial são de resto da mesma extracção social que decuriões e magistrados municipais, assumindo, tanto por questões económicas, políticas e religiosas, um elevado estatuto na sociedade olisiponense.

Para além deste grupo de ingenui, incluímos igualmente os augustais, que ainda que tradicionalmente libertos, pela sua capacidade económica e acção evergética dão um relevante contributo para a vida da comunidade.

A elite considerada neste trabalho será a pertencente ao território olisiponense, pelo que haverá que defini-lo. A circunscrição territorial do município compreenderia a

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cidade propriamente dita (oppidum, urbs) e uma zona em torno, o ager Olisiponenis, cujos habitantes dependiam da cidade. Estes dois elementos formavam uma unidade: na cidade encontravam-se os edifícios públicos e nela se concentrava a actividade política, religiosa, e comercial; no ager encontravam-se os recursos agrícolas, onde as elites tinham as suas propriedades e villae, que constituíam o reflexo das cidades. As villae seriam o principal elemento da valorização económica do solo e vector essencial de transformações culturais enquanto modelo romano de habitação e de produção. Contribuíam para a romanização e para o desenvolvimento dos campos, tanto mais quanto maior fosse a distância face à cidade e às vias de comunicação, sendo que a sua relevância neste aspecto estaria também igualmente relacionada com a importância económica da villa (Gorges, 1990, pp. 92-93).

De acordo com Alarcão, o território do município de Olisipo abrangia uma área que ia, a norte, até ao paralelo de Torres Vedras e iria Tejo acima até Alenquer. A sul abrangia parte da península de Setúbal, que partilhava com Salacia, não sendo fácil, no entanto, determinar se a nascente a fronteira corria pelo Tejo ou integrava terras da margem esquerda do Tejo (Alarcão, 1994, p. 61). Cardim Ribeiro coloca algumas dúvidas relativamente ao limite avançado por Jorge de Alarcão, sobretudo no que respeita às fronteiras leste e sul, propondo que, no que respeita aos limites orientais, que toda a área da suposta civitas do Vale do Soraia, incluindo o lado ocidental do Tejo, ou pelo menos uma faixa abarcando a várzea do rio até à Póvoa de Santa Iria, pertenceria a Scallabis. Relativamente ao limite sul, crê que englobaria a faixa costeira hoje denominada «Outra Banda», prolongando-se desde a Costa da Caparica a Alcochete abrangendo a «Borda de Água»; o seu extremo iria talvez até Equabona e a leste alcançaria o esteiro de Alcochete, até Rio Frio (Ribeiro, J, 1994c, pp. 79-82).

Ao aproximar-nos do tema, resolvemos dar início a esta dissertação pela abordagem de quem já se debruçou sobre esta questão, seja sobre Olisipo no seu todo, seja da elite olisiponense propriamente dita.

No capítulo 4 passaremos em revista as instituições base do sistema de funcionamento dos municípios, nomeadamente o populus, o senatus ou ordo decurionum, e os magistratus, o que nos dará a base para a compreensão das funções desempenhadas por cada um destes grupos e da sua contribuição para a vida do município.

Como forma de enquadramento da actividade da elite no espaço urbano, faremos uma incursão, no capítulo dedicado a Felicitas Iulia Olisipo, nos vestígios

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arqueológicos romanos mais relevantes do município, procurando relacionar, sempre que possível, as elites com as marcas deixadas por elas na cidade. Focaremos igualmente a questão do título de municipium civium Romanorum atribuído a Olisipo, tema que provocou polémica entre os académicos e cujos contributos abordaremos.

Após este enquadramento, passaremos então ao tema central deste nosso trabalho, apresentando os registos conhecidos de quem compunha a elite deste município. Haverá que abordar desde logo quais as gentes que integravam a elite olisiponense, que forneciam os decuriões, os magistrados e os sacerdotes. Será então a oportunidade para listar os magistrados conhecidos, bem como quem desempenhou cargos religiosos, não só os flâmines e as flamínicas, pois se o desempenho de cargos políticos estava vedado às mulheres, o mesmo não se passava no campo religioso, mas também os augustais, que com o seu poder económico sobressaíram na sociedade olisiponense.

Dados os diversos gastos a que o município estava sujeito, desde o funcionamento dos banhos públicos aos gastos com apparitores ou escravos públicos ao serviço da comunidade ou da administração municipal, o contributo das elites, através de actos de benemerência, era particularmente importante. Por este motivo, os principais actos evergéticos registados em Olisipo serão igualmente apresentados no capítulo 6 desta dissertação.

Realçamos aqui que não nos iremos debruçar sobre os documentos que apresentam os personagens da elite deste município com preocupações de carácter epigráfico, mas sim como documentos que permitem uma reconstituição histórica da elite.

Por último, gostaríamos de salientar que apesar do interesse de que se revestiria uma comparação dos dados sobre a elite de Olisipo com a de outros municípios, pela impossibilidade de, neste trabalho, abrangermos tão vasta documentação, cingir-nos-emos apenas a este município, ainda que se trate de estudo certamente interessante no futuro.

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3 Revisão da Literatura sobre o tema

Ao propormo-nos discorrer sobre as elites de Olisipo dedicamo-nos, certamente, a abordar um tema já por muitos analisado. Cabe-nos assim fazer referência a quem, quer a nível nacional, quer a nível internacional, se dedicou ao estudo, não só do tema que aqui em primeiro lugar nos traz, o dos notáveis deste município, mas também do município no seu conjunto, enquanto um todo feito de partes diversas: das gentes que frequentavam o fórum, dos que se moviam no agitado porto, dos que se dedicavam ao cultivo dos campos.

Cabe naturalmente fazer aqui desde já a ressalva sobre a impossibilidade de que esta abordagem seja exaustiva, visando tão só apresentar de forma sucinta nomes e obras que nos parecem essenciais.

Assim, um vasto conjunto de autores, desde o Renascimento aos nossos dias, debruçou-se sobre o tema. Os seus contributos tornam-se particularmente relevantes quando, como referido, as inscrições epigráficas constituem a base para a construção da imagem da Lisboa romana e foram base das nossas leituras e investigações. Ainda que não seja, como referido, nosso intuito fazer uma revisão intensiva de quem contribuiu para o conhecimento deste município romano no seu todo1, seja de uma forma específica sobre Olisipo ou integrado numa obra de maior amplitude espacial, alguns nomes se impõem desde logo.

André de Resende, estabelecido em Évora desde 1533, será o grande iniciador dos estudos arqueológicos em Portugal, inventariando e recolhendo os textos epigráficos romanos nos livros De antiquitatibus Lusitaniae (Lambrino, 1953, p. 25). Ainda que nesta obra André de Resende apenas refira uma inscrição de Lisboa (EO 13), que Hübner considera falsa (CIL II 25*), terá recolhido um número substancial de epígrafes de Olisipo num manuscrito perdido, Monumenta Romanorum in Lusitanis Urbibus.

Como avança Justino Mendes de Almeida (1992, p. 32), surgem já nos inícios do século XVI nomes de estrangeiros ligados ao conhecimento e transcrição de

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Sobre os contributos para o conhecimento do município romano de Olisipo, vide Justino Mendes de Almeida, 1992.

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inscrições do aro de Olisipo, nomeadamente o alemão Conrad Peutinger, o impressor Valentim Fernandes, da Morávia, o qual ainda que levante dúvidas sobre se efectivamente editou as inscrições, transmitiu-as a diversas pessoas, particularmente a Peutinger, e o italiano Mariangelo Accursio, ainda que sem a sistematização levada a cabo por André de Resende.

No século XVII vários autores produzem obras com interesse epigráfico, como seja António Coelho Gasco, com a sua obra Antiguidades da mui Nobre Cidade de Lisboa, Empório do Mundo e Princeza do Mar Occeano, de cerca de 1630, ou Luís Marinho de Azevedo, com a sua obra Fundação, Antiguidades e Grandezas de Lisboa, de 1652.

Realça-se igualmente o contributo do padre D. Thomaz Caetano de Bem, numa Carta a um seu amigo acerca de uns monumentos descobertos no sítio das Pedras Negras (Almeida, J, 1992, pp. 33-35).

De relevo para os estudos epigráficos foi a passagem pelo nosso país na altura de três estrangeiros, nomeadamente de Sebastián Sánchez Sobriño, que deixou informações sobre a primeira colecção organizada em Lisboa por Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas; Francisco Pérez Bayer, que copiou as inscrições que este deixou em Lisboa e outras que haviam sido adicionadas à colecção por Frei Vicente Salgado; e D. José Cornide, enviado a Portugal pela Academia Espanhola para estudar as antiguidades de Portugal (Almeida, J, 1992, p. 35).

Já no século XIX, em Instruções e Cautelas Práticas sobre a Natureza das Águas Minerais de Portugal, de Francisco Tavares, estão transcritas algumas inscrições de Olisipo, bem como na Dissertação Critico-Filologico-Historica (…) do Antigo Theatro Romano, de Luiz António de Azevedo, nas Dissertações Chronologicas e Criticas, de João Pedro Ribeiro, e no livro do Visconde Juromenha, Cintra Pituresca. Em Descripção Historica e Economica de Torres Vedras, Manuel Agostinho Madeira Torres integra por seu turno notícias de inscrições desta área. Em 1859, Levy Maria Jordão editou as Portugaliae inscriptiones Romanas, que traduz uma primeira tentativa de organização de um corpus inscriptionum Romanorum Lusitanum (Almeida, J, 1992, p. 36).

Como refere Justino Mendes de Almeida (1992, p. 36), da segunda metade do século XIX até aos nossos dias, intensificaram-se os estudos epigráficos, sendo de salientar, a nível de estudiosos estrangeiros, o alemão Emílio Hübner, ligado à publicação, em Berlim, em 1869, do Vol. II e Suplemento do Corpus Inscriptionum

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Latinarum (CIL), onde se reúnem as inscrições da Hispânia conhecidas na altura, que assinalam o início dos estudos modernos de Epigrafia, em moldes científicos, em Portugal (Almeida, J, 1992, p. 36) e Scarlat Lambrino, com contributos importantes por exemplo ao nível da análise das inscrições de São Miguel de Odrinhas (1953). Será com base no trabalho de Emílio Hübner, ao qual acrescenta novos dados arqueológicos, que Júlio de Castilho elabora uma descrição de Olisipo, no vol. I de Lisboa Antiga – Bairros Orientais (Moita, 1994, p. 42). Outro investigador estrangeiro a salientar será Robert Etienne, importante marco nomeadamente no que ao estudo do culto imperial diz respeito (1958, 2002).

Referência incontornável é José Leite de Vasconcelos, podendo destacar-se as Religiões da Lusitânia (1897-1913), os volumes da 1ª série de O Archeologo Português e o folheto Lisboa Arcaica (Moita, 1994, p. 42).

Muitos outros deram um importante contributo para o estudo da epigrafia lusitano-romana, contribuindo por associação para o melhor conhecimento da história de Olisipo. Tal é o caso de Mário Cardozo, com o seu importante contributo para o estudo das inscrições lapidares do Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas (Cardozo, 1956, 1958), D. Fernando de Almeida, com o seu contributo, por exemplo, para o conhecimento da barragem romana de Olisipo e seu aqueduto (Almeida, 1969), Jorge de Alarcão, notável pelas diversas obras sobre o domínio romano em Portugal (Alarcão, 1988, 1994, 2004), Justino Mendes de Almeida (1992), Irisalva Moita, incontornável pelo trabalho desenvolvido no âmbito do actual Museu da Cidade, pelo seu contributo para O Livro de Lisboa e pelos diversos trabalhos sobre os achados no subsolo de Lisboa que levou a cabo (Moita, 1968, 1994), e Clementino Amaro, com os seus contributos por exemplo a nível dos trabalhos arqueológicos no claustro da Sé de Lisboa (Amaro, 1996).

Para a história epigráfica de Olisipo é documento de monta, sem dúvida, a obra de Augusto Vieira da Silva, Epigrafia de Olisipo, datada de 1944. Nesta obra apresenta os materiais epigráficos existentes na altura, encontrados na área do actual concelho de Lisboa, bem como os referidos a Olisipo ou a Olisiponenses, às quais se têm vindo a juntar outras encontradas em escavações posteriores em diversos locais, desde a Praça da Figueira à Igreja de São Vicente de Fora, desde o Castelo de São Jorge ao Convento de São Francisco de Xabregas.

Em particular para o tema que aqui nos traz, são importantes os contributos colhidos em vários autores. Destacamos desde logo o nome de Vasco Mantas, que

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desenvolveu diversos estudos de particular relevância para o conhecimento da Lisboa Romana. Dos seus trabalhos destacamos a análise dos «Magistrados Olisiponenses do Período Romano» (Mantas, 2005), das «Inscrições Romanas do Museu Municipal de Torres Vedras» (Mantas, 1982), «Olisipo e o Tejo» (Mantas, 1997), «A população da região de Torres Vedras na Época Romana» (Mantas, 2002) e «Olisiponenses: epigrafia e sociedade na Lisboa romana», que integra o catálogo da exposição Lisboa Subterrânea, (Mantas, 1994). Este catálogo integra de resto diversos contributos de grande relevância para o estudo da Lisboa romana, nomeadamente os de Jorge de Alarcão, Carlos Fabião, Clementino Amaro, Suzanne Daveau e Theodor Hauschild, sendo igualmente de realçar o trabalho produzido por José Cardim Ribeiro sobre o mesmo, «Felicitas Iulia Olisipo: Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea» (Ribeiro, J, 1994c).

Destacamos igualmente o contributo de Amílcar Guerra, nomeadamente o seu trabalho sobre achados epigráficos do Castelo de S. Jorge (Guerra, 2006), de José Cardim Ribeiro, com o seu contributo para a discussão sobre a datação da atribuição do estatuto de municipium civium Romanorum a Olisipo (Ribeiro, J, 1994c), com os seus comentários e propostas relativas ao «criptopórtico» de Olisipo, com as suas abordagens ao tema da consagração de aras a Soli et Lunae por legados e procuradores imperiais na Província da Lusitânia (Ribeiro, J, 2002), e com o relevante trabalho sobre um dos membros da elite da Lisboa romana, L. Iulius Maelo Caudicus, «Estudos histórico-epigráficos em torno da figura de L. Iulius Maelo Caudicus», (Ribeiro, J, 1982-1983), igualmente referido no seu trabalho de 1974-1977.

Importantes são também os contributos colhidos em Carlos Fabião, como seja no que respeita à questão do posicionamento da Lusitânia no quadro do Império Romano, e naturalmente de Olisipo no seu contexto (Fabião, 2009), e no contributo para o conhecimento do monumento romano da Rua da Prata (Fabião, 1994), em Luís da Silva Fernandes, que de entre os seus estudos destacamos a análise das inscrições romanas do termo de Loures (Fernandes, 1998 e 2003), os estudos sobre figuras relevantes de Olisipo como C. Heius Primus e Q. Iulius Maximus Nepos (Fernandes, 2005 e 2000, respectivamente), em António Marques de Faria, com a sua análise sobre a atribuição do estatuto de municipium civium Romanorum a Olisipo (Faria, 1995 e 2001) e em Guilherme Cardoso, sobretudo para a área de Cascais, em colaboração com José d’Encarnação (Cardoso; Encarnação, 1990; 1991). Dos trabalhos deste último autor realçamos a sua abordagem às «Termas dos Cássios» (Encarnação, 2009), o contributo

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para a análise do decreto decurionum (Encarnação, 1993), e o estudo de CIL II 182, em conjunto com Catarina Quinteira (2009 a e 2009b). Outro importante contributo para o estudo da população de Olisipo foi dado por Andreia Almeida (2006), na sua tese de mestrado sobre «A antroponímia na epigrafia romana de Felicitas Iulia Olisipo: contributo para o estudo social, político e económico do municipium na época imperial».

Para o estudo das elites deste município surgem-nos, por seu turno, nomes internacionais de relevo, desde logo com obras de enquadramento geral, como é o caso de Juan Manuel Abascal-Palazón, cuja obra La ciudad hispano-romana. Privilegio y poder é sem dúvida uma referência nesta matéria (1989), o de José Manuel Roldán Hervás (2001), com a sua obra Historia Antigua de España I, Ibéria prerromana, Hispânia republicana y alto imperial, o de Patrick Le Roux (1997) , com o seu estudo Romains d’Espagne, Cité & politique dans les provinces. IIème siècle av. J.C. – IIIème siècle ap. J.C.

Relativamente aos contributos de maior especificidade, realçamos nomes como o de Leonard Curchin, com a sua obra The local magistrates of Roman Spain, publicada em 1990, que elenca os magistrados locais da Hispânia Romana, o de Caballos Rufino, com o seu trabalho Los senadores hispano-romanos y la romanización de Hispania – siglos I-III, de 1990, e o de Julián de Francisco Martín, com o seu artigo «Los magistrados municipales en Lusitania durante el Alto Imperio», de 1997.

Por vezes estudaram-se de uma forma aprofundada algumas figuras relevantes em Felicitas Iulia Olisipo. Para além dos já referidos L. Iulius Maelo Caudicus, estudado por José Cardim Ribeiro (1982-1983 e 1974-1977), C. Heius Primus e Q. Iulius Maximus Nepos, analisados por Luís da Silva Fernandes (2005 e 2000, respectivamente), salientamos o trabalho de Marie-France Loyzance, «A propos de Marcus Cassius Sempronianus. Olisiponensis, Diffusor Olearius», de 1986.

Incontornáveis são também os nomes de Francisco Javier Andreu Pintado, nomeadamente no que respeita ao tema da munificência e promoção política das elites (Andreu, 1999, 2004), e o de Enrique Melchior Gil, também sobre este tema, salientando-se artigos como «Elites municipales y mecenazgo cívico en la Hispania Romana» (Melchior, 1999) ou «Summae honorariae y donaciones ob honorem en la Hispania Romana» (Melchior, 1994 c). Juán Francisco Rodríguez Neila será outro dos nomes a salientar, com as suas considerações sobre a vida municipal (Rodríguez Neila, 1989, 1996, 2003, 2009). Para as questões relacionadas com as magistraturas religiosas,

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realçamos os nomes de Marta González Herrero, de cujos trabalhos salientaríamos, pela sua pertinência, o artigo no qual coloca a questão sobre se o flaminato cívico poderá ser considerado o cargo de maior prestígio no quadro das carreiras municipais conhecidas na Lusitânia (González Herrero, 2002), e o estudo sobre «El abogado olisiponense Lucceius Albinus y familia» (González Herrero, 2005), e o de José Delgado Delgado (1999 e 2000 a e b).

Dos contributos de Milagros Navarro Caballero, destacaríamos os relacionados com a questão da emigração itálica na Lusitânia costeira (Navarro, 2006), realçando os nomes de Julián González, sobretudo no que às leis municipais flávias respeita (González, 1989; 2001), e de Julio Mangas Manjarrés, referência sobretudo ao nível da análise das leis coloniais e municipais da Hispânia Romana (Mangas, 1989; 1996 e 2001).

Uma menção em particular para Jose Carlos Saquete Chamizo, cuja obra Las elites sociales de Augusta Emerita (1997) nos serviu de pedra de toque para a realização desta dissertação.

Vários foram assim os autores que contribuíram para a criação de um vasto repertório de informação sobre a população de Olisipo, sobre a sua vida pública e sobre algumas das figuras de relevo desta sociedade, pelo que, tal como referido, o nosso intuito com este trabalho será o de sistematizar e analizar a diversa informação dispersa que sobre este município romano existe até ao momento.

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4 Instituições fundamentais do sistema de funcionamento dos municípios

As cidades eram o elemento fundamental da estrutura do Império Romano (D’Ors, 1953, p. 140). Ainda que as cidades tivessem estatutos diferentes2, constituíam comunidades unidas pela lei, com instituições próprias, com magistrados eleitos pelo povo a quem eram atribuídos poderes limitados pela lei.

Apesar da existência de diferenças entre colónia e município, os dois regiam-se pelo mesmo modelo de instituições, magistraturas, cargos e ordem social, sendo o reflexo da ordem romana (Abascal e Espinosa, 1989, p. 42). Relativamente à diferenciação entre colónia e município, realça-se principalmente o facto de no primeiro caso se tratar de uma fundação romana, ou pelo menos de um aglomerado urbano em que a maior parte dos que aí passavam a residir serem cidadãos romanos que aí se instalam como colonos, com frequência na condição de veteranos legionários, e de no segundo caso se tratar de elevar a município um núcleo de povoamento pré-existente, conquistado pelos romanos. Os municípios regiam-se pelo direito romano, mas mantinham usos e especificidades herdados da tradição indígena (Le Roux, 2006, p. 120)3.

Assim, tanto num caso como no outro, os elementos fundamentais seriam o populus, o senatus e os magistratus.

4.1 Populus

O conjunto de habitantes da cidade estava organizado em dez ou mais cúrias, circunscrições com fins eleitorais, tal como na organização itálica inicial (D’Ors, 1953, p. 148). Esta distribuição em curiae está presente, por exemplo, na Lei de Urso, 101 (Mangas, 2001, p. 50). Tendo em conta o que se conhece do caso de Urso, é viável considerar que em Felicitas Iulia Olisipo existissem realidades idênticas.

Formalmente o populus estava acima do senado e dos magistrados, mas de facto estava à margem do governo efectivo das comunidades locais. Elegia os magistrados

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Sobre o assunto vide 5.1.

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Sobre as diferenças entre colónias e municípios vide Abascal e Espinosa, 1989, pp.40- 42 e Roldán Hervás, 2001, p. 402-404

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(Abbot e Johnson, 1926, p. 85) e tinha o direito a ser informado sobre todas as decisões relevantes tomadas pelos decuriões. Sujeitavam-se a taxas públicas (munera) (Roldán Hervas, 2001, pp. 411-412, Abascal e Espinosa, 1989, p. 113) e os indivíduos que tivessem entre quinze e sessenta anos de idade deveriam prestar à cidade onde residiam cinco dias de trabalho por ano (Abascal, 1998, p. 204).

Nem todos os habitantes da comunidade pertenciam ao populus. Com efeito, apenas a ele pertenceriam os que estavam incluídos no censo de cidadãos, que detêm direitos políticos.

Para além dos cidadãos de pleno direito, os cives, a comunidade envolvia igualmente os residentes ou incolae, alguns deles libertos, outros forasteiros com estatuto de ingenuitas, que detinham residência na cidade e aos quais era permitido participar na vida pública do município apenas para efeitos de eleições (Abascal e Espinosa, 1989, p. 112). Tal como os cives, os incolae do município devem obedecer à lei, como referido na Lei de Irni, 94 (Mangas, 2001, p. 51).

Para ser considerado civis ou municeps de uma comunidade haveria que preencher os requisitos de naturalidade, origo nessa cidade, dada automaticamente a filhos nascidos de pais que fossem cidadãos legítimos, ou por adopção (adlectio inter cives), manumissão e de residência (domicilium) (Roldán Hervás, 2001, p. 411).

4.2 Senatus (ou ordo decurionum)

Era composto por decuriões, sendo que o seu número num determinado município dependeria da quantidade de famílias que pudessem fazer face aos encargos e obrigações inerentes à pertença a este órgão. Alguns autores apontam um número de 100 membros para os senados locais, ainda que não exista uma norma quanto a este aspecto4. Não é conhecido o número de decuriões que compunha a curia de Felicitas Iulia Olisipo, sabendo-se, no entanto, pela Lex Irnitana, que um município pequeno como Irni, que Júlio Mangas crê que não ultrapassasse os 10000 habitantes, incluindo os habitantes da cidade e do seu território, contava com 63 membros, o que significaria um elevado número de representantes no senado local (Mangas, 2001, p. 46). Atendendo a que Olisipo tinha uma dimensão superior a Irni, poder-se-á supor que a composição da cúria fosse superior a Irni, eventualmente próximo dos 100 membros.

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O ordo decurionum constitui uma ordem própria da esfera política local à qual pertenciam as elites de uma cidade e desta podiam ascender à ordem equestre, normalmente depois de alcançar o flaminato provincial.

As competências das assembleias de decuriões eram vastas. Entre elas encontravam-se a confirmação do resultado de eleições, a nomeação e o sancionamento das iniciativas e decisões dos magistrados, a designação de escravos públicos para diferentes tarefas, a atribuição de honras e privilégios, a designação dos sacerdotes municipais e dos responsáveis pelo culto imperial, a atribuição dos locais no teatro, a administração da defesa da cidade, a ordenação do calendário das festas e a celebração dos ludi. Para além disso, fiscalizavam as obras públicas, a alteração dos limites do território e as alterações urbanísticas (Abascal e Espinosa, 1989, pp. 123-127, D’Ors, 1953, p. 146).

Fiscalizavam igualmente as finanças locais e atendendo a que muitas vezes nem os decuriões nem os magistrados tinham conhecimentos específicos sobre este tema, apesar dos conhecimentos adquiridos ao longo do desempenho dos seus cargos, contavam com o apoio de funcionários, nomeadamente apparitores, entre os quais os scribae, que seriam os mais relevantes destes funcionários. De acordo com a Lex Ursonensis, 62, estes últimos receberiam um pagamento superior (Rodríguez Neila, 2003a, p. 143).

É de entre os membros do senado local que são escolhidos os representantes da cidade ao governador provincial, ao concilium provinciae ou ao imperador. Seria também do senado local que sairiam as embaixadas ao imperador, como a embaixada de olisiponenses enviada ao Imperador Tibério, relatada por Plínio-o-Velho. Esta embaixada ter-lhe-á dado conta de que tinha sido visto e ouvido, numa gruta, tocando búzio, um Tritão, bem como uma Nereide, avistada na costa em agonia e cujo canto triste os habitantes ouviram ao longe5, talvez um expediente para chamar a atenção deste Imperador pelo litoral atlântico, como salienta Vasco Mantas (2005, p. 28).

Durante o Império, as embaixadas seriam actividades políticas que poderiam trazer benefícios para a cidade e honras para quem as integrava, podendo ter vários fins. Entre eles se encontram os de apresentar petições ao imperador ou ao governador provincial, como seja de carácter fiscal ou administrativo, obter arbitragem para

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conflitos de comunidades sobre limites fronteiriços, participar como testemunhas nas nomeações de patronos e nos pactos de hospitalidade, homenagear imperadores e transmitir-lhes a lealdade da comunidade que representam. Estas embaixadas representavam um custo para as cidades, dado que os que a integravam tinham uma diária estabelecida pelo senado local, tal como consta na Lex Irnitana, 46, ainda que em determinadas ocasiões os participantes tenham assumido os seus custos (Melchior, 1999, pp. 248-249).

Como referem Abascal e Espinosa (1989, p. 176), em princípio todas as embaixadas eram uma necessidade para as cidades dado que quase todas pretendiam obter benefícios fiscais. No entanto, com o passar do tempo tornaram-se um privilégio dado que quem as integrava podia tirar partido de tal, ao contactar com outras elites ou até mesmo com o imperador, como seria aqui o caso, o que poderia levar a que determinados notáveis quisessem assumir os custos dessa embaixada, contando como acto evergético.

Durante a época júlio-claúdia, as embaixadas integravam vários indivíduos. No período de Nero as embaixadas são interrompidas e com Vespasiano passam a integrar até três pessoas (Dig. 50.7.5.6). Era usual que a cidade que recebia a embaixada assumisse os custos de manutenção enquanto estivesse na cidade, o que seria um custo significativo para Roma, dado que recebia continuamente embaixadores de vários pontos do império. Nos três primeiros séculos d.C., a maior parte das embaixadas viriam da Grécia e do próximo Oriente, ainda que viessem também do Ocidente (Abascal e Espinosa, 1989, p. 176).

A partir da Lex Irnitana, 45, pode-se igualmente verificar quem não poderia actuar como legado, nomeadamente quem tivesse sido duúnviro, edil ou questor no ano anterior ou que o fosse na altura de enviar representantes; os magistrados que geriam fundos públicos e que ainda não tivessem prestado contas da sua gestão; todo o munícipe que tivesse sido encarregado pelo senado de efectuar negócios públicos e que ainda não tivesse prestado contas dessa gestão e finalmente todo o munícipe que tivesse dinheiro público, não tendo ainda prestado contas dessa gestão (Mentxaka, 1993, p. 125).

O senado local reunia várias vezes por ano na cúria, sendo que, tal como consta na Lei de Irni, 40, nem todos os decuriões seriam do mesmo nível, prevendo as leis uma ordem de intervenção dos decuriões nas sessões (Mangas, 2001, p. 48).

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A assembleia era convocada pelos duúnviros, como veremos adiante, presumindo-se que o que presidia a assembleia tivesse elaborado a agenda da reunião, procedendo-se ao tratamento e debate dos temas que eram submetidos ou pelos magistrados, ou pelos decuriões. Para que os temas pudessem ser tratados, era necessário que estivesse presente um determinado número de decuriões, consoante o tema, sendo o número exigido pela lei consoante a matéria tratada. Com base na análise das leis Irnitana, Malacitana e Salpensana, Rosa Mentxaka avança que o quórum mais repetido nas mesmas seria a de dois terços da assembleia (Mentxaka, 1993, p. 103), seguindo os decuriões uma ordem própria na votação.

Algumas das suas decisões têm reflexo público na epigrafia, nomeadamente no que respeita à referida atribuição de honras e privilégios em prol de notáveis, assumindo nesse caso a designação de decretum ordinis ou decretum decurionum. São exemplo disso a concessão de honras a ex-magistrados municipais, a membros da família imperial ou ao próprio imperador.

Tal ocorreu em Olisipo, existindo registos de diversas homenagens aos imperadores romanos e a elementos da sua família neste município. Estas são levadas a cabo pelos duúnviros que desempenhavam o cargo na altura, por augustais, ou pelo município.

Destacamos assim as dedicatórias em Olisipo, no século I d.C., ao Divino Augusto pelos augustais C. Arrius Optatus e C. Iulius Eutichus (CIL II 182 e EO 74), ao Imperador Nero e ao Imperador Vespasiano, por Felicitas Iulia (CIL II 184/EO 79 e CIL II 185/CIL II 5.217 e EO 80 e ILER1078, respectivamente).

Já na transição para, ou no século II d.C., encontramos homenagens à sobrinha do Imperador Trajano, Matidia Augusta, por Felicitas Iulia Olisipo através dos duúnviros Q. Antonius Gallus e T. Marcius Marcianus (CIL II 4.993 e EO 82, ILER 1265), ao Imperador Adriano e à sua mulher Sabina Augusta, por Felicitas Iulia Olisipo através dos duúnviros M. Gellius Rutilianus e L. Iulius Avitus (CIL II 186 e EO 91, ILER 1104 e CIL II 4.992 e CIL II 5.221 e EO 72, ILER 1268, respectivamente). Salienta-se igualmente a homenagem ao Imperador Cómodo, por Felicitas Iulia Olisipo através dos duúnviros Q. Coelius Cassianus e M. Fulvius Tuscus6 (CIL II 187 e EO 23, ILER 1144).

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Pertencendo ao século II - século III, existe igualmente referência, no ager Olisiponensis, à homenagem ao Imperador Septímio Severo (CIL II 259).

No século III d.C. Felicitas Iulia Olisipo homenageia igualmente o Imperador Marco Júlio Filipe (EO 93, ILER 1181).

Salienta-se igualmente a epígrafe de homenagem da cidade, no século I d.C., a L. Cornelius L. f. Gal. Bocchus, notável Salaciensis, encontrada nas escavações realizadas no edifício situado no Palácio do Correio-Mor, onde se situariam as Termas dos Cássios7.

L. Caecilius Celer Rectus é outra figura particularmente notável que é igualmente homenageado por Felicitas Iulia Olisipo (CIL II 190, EO 28), tendo esta figura sido questor, pretor e tribuno da Província da Bética. Quanto à datação desta inscrição, Alarcão considera-a dos inícios do séc. II d. C.8 (Alarcão, 1994, p. 62). Vieira da Silva, com base em Emílio Hübner, avança o ano de 108 d. C. No estudo que Ángel Jordán Lorenzo desenvolve (2002) sobre as homenagens senatoriais na Península Ibérica, coloca a homenagem na época de Trajano, possivelmente após ocupar o posto de questor da Bética. Considera que o senador é originário de Olisipo, sendo possível que se trate do Cecilius Celer amigo de Plínio citado numa das suas cartas, Ep., I, 5,8. (Jordán Lorenzo, 2002, p. 158).

Salienta-se ainda o comentário deste autor de que o ordo decurionum, ao eleger o momento inicial da carreira dos senadores para o homenagearem, dá a impressão de que das poucas vezes em que opta por erigir uma estátua a um senador do século II d.C. se dirige a indivíduos que ainda não se haviam desligado delas, situação que parece voltar a desaparecer no século III d.C., quando se retoma a tendência do século I d.C., de honrar legados imperiais como patronos das cidades, ainda que com maior concentração nas capitais de província (Jordán Lorenzo, 2002, pp. 162-163).

Ainda que não haja confirmação que L. Caecilius Celer Rectus tenha sido patrono desta cidade, poder-se-á, no entanto, supor que actuasse na defesa dos interesses deste município em instâncias superiores, nomeadamente a nível senatorial e da administração romana.

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Inscrição nº 275 do Ficheiro Epigráfico, 60, 1999. Sobre L. Cornelius Bocchus, vide Fernandes, Luís, 2002, pp. 155-171

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A designação do patrono da cidade caberia assim igualmente ao senado, situação expressa, por exemplo, na Lex Malacitana, 61, que refere expressamente que apenas por decreto da maioria dos decuriões será eleito publicamente patrono para os munícipes do Município Flávio Malacitano (Pino Roldán, 2001, p. 58).

O patrono seria recompensado com honras, com a cidadania local honorífica, com um lugar de destaque nas cerimónias e espectáculos, com a oferta de uma tabula patronatus que continha o compromisso entre o patrono e a cidade, bem como com estátuas e inscrições honoríficas (Roldán Hervás, 1989, p. 422).

Das decisões tomadas pelo Senado eram elaboradas actas que deviam ser lidas em público e posteriormente arquivadas. De acordo com a Lex Irnitana, 41, os duúnviros tinham a obrigação de as depositar até ao 10º dia seguinte no arquivo comum dos munícipes (Mangas, 2001, p. 47).

O ordo decurionum era assim a classe governante dos municípios e das colónias, nela se integrando os grandes proprietários de terras e de escravos destas cidades, mantendo uma relação próxima entre o campo, onde detinham as suas villae, e as cidades, onde participavam nas sessões da curia ou exerciam a sua magistratura.

Depois do seu contributo para a vida política da cidade, o magistrado regressaria possivelmente ao campo, à sua villa no ager Olisiponensis, conceito introduzido pelos romanos. Delas temos notícia através dos resultados das campanhas arqueológicas. As villae de Freiria, do Alto do Cidreira e dos Casais Velhos, em Cascais, e as villae de Frielas e das Almoinhas em Loures, entre outras, serão marcas da vida da elite nos campos, onde o gosto romano se poderia vislumbrar sob diversas formas, fosse por exemplo a nível dos mosaicos nelas empregues, fosse a nível das importações de produtos requintados. A fertilidade dos solos permitiria boas condições para a exploração agrícola, uma ocupação digna da elite, ficando as actividades comerciais entregues aos libertos. A este propósito refere Cícero que nihil est agricultura melius, nihil uberius, nihil dulcius, nihil homine libero dignius (De off. I, XLII). Este solo fértil permitiria a produção de cereais, vinho e azeite, para consumo próprio, mas também para consumo, em parte, pela população da cidade, fomentando o comércio, actividade que em muito impulsionará a riqueza da cidade9.

9

Para além do comércio, emerge em Olisipo uma indústria de monta, a da preparação do garum (molho de peixe) e de conservas, como o comprovam as várias cetárias encontradas neste município (Alarcão, 1994, p. 61), como abordado no capítulo 5.

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Os decuriões deveriam ter certamente elevadas posses económicas. Num sistema em que a riqueza e notoriedade se mediam pela quantidade de terra que um indivíduo possuía e onde os lucros do comércio eram investidos na terra, poder-se-á assumir que grande parte do território próximo das cidades pertenceria aos membros do senado local. Um exemplo significativo surge na Lex Irnitana, K, que menciona que os duúnviros e decuriões podiam adiar por sessenta dias os assuntos públicos por causa de colheitas ou vindimas, o que traduz a ideia de que haveria tantos membros envolvidos nestas actividades agrícolas que impediria a realização das reuniões do ordo decurionum (Curchin, 1990a, p. 275). Outro exemplo interessante encontra-se na Lex Malacitana, LX, que determina que apenas os cidadãos proprietários de terras poderiam aceder a magistraturas locais (Mantas, 1990, p. 152, nota 14).

Apesar da possibilidade de ascensão, o carácter local do ordo normalmente mantém-se através dos munera, dos actos de benemerência em prol da cidade e das redes clientelares locais, à semelhança do que acontecia em Roma, promovendo a romanização ao impulsionar a imitação pelas classes inferiores das suas condutas religiosas e a adesão à casa imperial (Salina de Frias e Rodríguez Cortés, 2000, p. 17).

Existiam vários requisitos de ingresso no ordo decurionum. Um deles seria ser ingenuus, ou seja, ter nascido de pais livres e nunca ter sido escravo. Salienta-se, no entanto, que em meados do séc. I a.C, na Lex Coloniae Genetivae Iuliae (Lex Ursonensis), 105, o facto de ser liberto não constituía um caso de indignidade susceptível de impedir o acesso à condição de decurião. Deverá ser com Tibério que os libertos são afastados dos senados locais, através da Lex Visellia de 24 d.C. (Fabre, 1976, pp. 421-422).

Outros requisitos seriam a dignidade, prestígio social e nunca ter cumprido uma pena infamante. Relacionado com este requisito estaria o facto de existirem algumas profissões que estariam desde logo associadas ou que impediam a entrada no senado; era por exemplo o caso dos gladiadores, dos lanistas, dos comediantes, dos coveiros ou dos que se dedicavam ao lenocínio (Mentxaka, 1993, p. 91).

Era também requisito ter um nível mínimo de rendimento e possuir património, sendo pedido em algumas cidades a summa honoraria, montante entregue pelos que obtinham um cargo nos municípios ou colónias, nomeadamente magistrados, sacerdotes e membros da cúria, utilizado para gastos em prol da comunidade. De todo o modo, não é claro que este montante revestisse obrigatoriamente a forma de numerário. É possível que inicialmente fosse paga através da realização de jogos e que a partir do século I d.C.

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fosse entregue em numerário para os cofres municipais (dado que a fórmula pro ludis desaparece por essa altura), ou através de construções/edifícios necessários para a cidade (Melchior, 1994c, pp. 193-212). É assim que José d’Encarnação interpreta, por exemplo, uma epígrafe de Myrtilis (CIL II 5178) que terá sido parte de um edifício construído por M. Bruttius Marcellus (?), e que teria assim constituído a summa honoraria (Encarnação, 1984, p. 166).

O pagamento deste montante pelos decuriões está atestado em Itália desde os finais da República, ainda que, segundo Melchior (1994c, p. 195), não se deverá ter generalizado nas províncias até ao século II d.C., altura em que temos confirmação desse acto, tanto para a Hispania (CIL II 5232), em Collippo, como para a África (CIL, VIII, 7963 de Rusicade, por exemplo), parecendo a sua implantação avançar em paralelo com a municipalização. O mesmo autor realça ainda que os montantes entregues seriam diferentes consoante o cargo desempenhado, pagando os flâmines mais do que quem desempenhava as magistraturas municipais, à excepção do duúnvirato quinquenal, pagando os seviros sensivelmente o mesmo que magistrados e decuriões (Melchior, 1994c, p. 199). Aparentemente a importância exigida a um decurião representaria apenas uma décima parte da sua fortuna (Andreu Pintado, 2004, p. 35).

A entrada no ordo decurionum decorria de cinco em cinco anos, mediante uma lectio ordinis, levada a cabo pelos duumviri quinquennales iure dicundo, após a qual os duúnviros apresentavam a nova lista de conselheiros, o album decurionum, apresentada nas tabulae publicae (Roldán Hervás, 2001, p. 419). Apesar de o povo constituir a maior parte da população de um município, não intervinha na eleição dos novos decuriões, como o fazia para os magistrados; eram os membros do senado local que elegiam os novos decuriões (Rodríguez Neila, 2003b, pp. 167).

No que respeita à sua idade, estariam entre os 25, a partir de Augusto (González, 1989, p. 140), e os 50 ou 60 anos, devendo viver na cidade ou num raio de uma milha. A condição de decurião era vitalícia, salvo se o indivíduo fosse acusado de indignidade.

Os membros do senado local ostentavam vestes diferentes, os ornamenta decurionalia, marca de dignidade bastante pretendida pelos libertos endinheirados, e contavam com vários privilégios, entre eles, com um lugar reservado nos jogos circenses e no teatro. Tinham igualmente precedência nos actos solenes e detinham vantagens na repartição dos sportulae (distribuição de dinheiro) e no aproveitamento gratuito do serviço municipal de águas (D’Ors, 1953, p. 146).

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Com a perda progressiva de poder por parte dos magistrados ao longo do século II d. C., a administração municipal tendeu a concentrar-se no ordo decurionum, acabando por anular as assembleias populares até chegar a nomear directamente os magistrados da cidade.

4.3 Magistratus

Os magistrados são eleitos anualmente pelo corpo de cidadãos votando em comitia (Curchin, 1990b. p. 28). Estes indivíduos são elementos destacados da cidade e ao assumir as suas funções passam a representar o povo e a deter os direitos de soberania durante o desempenho da sua magistratura. Funcionam de forma colegial e devem realizar o desejo do povo e tomar as medidas necessárias para o desenvolvimento da cidade e para o bem estar dos cidadãos (Roldán Hervás, 2001, p. 413).

Algumas cidades elegeram por vezes o imperador ou membros da família imperial como duúnviros, contendo claros fins políticos, sendo que neste caso o eleito desempenharia as funções através de um suplente, o praefectus, situação prevista, por exemplo, na Lei de Irni, 24 (Mangas, 2001, p. 34).

Ainda que os magistrados pertencessem ao ordo decurionum, possuíam funções diferentes das dos restantes decuriões durante o exercício da magistratura. Enquanto representantes do povo, possuíam direitos e privilégios honoríficos, que iam desde sinais de respeito por parte dos seus concidadãos, como por exemplo levantarem-se na sua presença, dar-lhes passagem nas ruas ou destapar a cabeça na sua presença. Possuíam também atributos externos, como o direito a usar a toga praetexta, ou manto com uma faixa de púrpura, cujo uso na Hispânia, segundo Estrabão (III.2.15), foi a prova do triunfo da romanização, ou a sella curulis, cadeira de marfim utilizada na cúria ou no teatro.

Estes cargos não eram remunerados, como os seus similares actualmente são; a recompensa que os magistrados tinham pelo desempenho do seu cargo era de carácter honorífico, sendo que a principal honra para os magistrados municipais, no que respeita às comunidades de direito latino, seria a recepção da cidadania romana, extensível aos pais, mulher e filhos, no termo do mandato.

Para que fosse possível a candidatura a uma magistratura municipal, à semelhança do que acontecia para a entrada no ordo decurionum, a que pertenciam a partir do momento da sua designação, haveria que cumprir determinados requisitos, entre eles o nascimento livre, o correspondente direito de cidadania, possessão de

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capacidade jurídica e de todos os direitos de cidadania e uma boa situação económica, dadas as contribuições que os magistrados deveriam fazer. Deviam igualmente ter uma idade mínima para o desempenho das magistraturas, fixada com Pompeio nos 30 anos e que com Augusto passou a 25 anos (Abascal e Espinosa, 1989, p. 130). Deveriam igualmente ter um domicílio dentro da cidade ou até uma milha de distância, como já referido, obrigatoriedade presente, por exemplo, na Lex Ursonensis, 92 (Mangas, 2001, p. 35).

Na busca por uma magistratura, os candidatos poderiam prometer uma soma para benefício da comunidade, fosse para jogos, obras públicas ou outros fins. Sendo eleitos para um cargo municipal, era habitual, como referido para a entrada no senado local, contribuírem com a summa honoraria, que variava de acordo com a magistratura e a cidade (Abbot e Johnson, 1926, p. 87).

A Lex Ursonensis, 70, por exemplo, é clara quanto a esta matéria, referindo que cada um dos duúnviros contribuirá com 2000 sestércios, podendo gastar outros 2000 sestércios dos dinheiros públicos para os jogos de quatro dias em honra de Júpiter, Juno e Minerva, deuses e deusas (Mangas, 2001, pp. 34-35).

De todo o modo, a questão de os decuriões terem ou não de pagar a summa honoraria tem vindo a ser debatida, dado que, por exemplo, em Collipo, existe uma inscrição em que a assembleia de decuriões liberta o decurião Q. Talotius Allius Silonianus do pagamento dos honorários relacionados com a sua condição de decurião (Andreu Pintado, 2004, p. 43).

Para Melchior, o facto de algumas assembleias populares concederem a gratuitidade indica que o pagamento da summa honoraria seria obrigatório para magistrados, sacerdotes e decuriões, mas que as normas poderiam ser variáveis de cidade para cidade (Melchior, 1994b, p. 43). Para Rosa Mentxaka (1993, p. 95), apenas deveriam pagar esta quantia os decuriões que tivessem acedido ao conselho por adlectio, dado que os que tinham acedido à ordo decurionum após terem desempenhado outras magistraturas já teriam entregado essa soma. Segundo Andreu Pintado, Q. Talotius Allius Silonianus, de Collipo, seria um membro do ordo adlectus, dado que fora isento de entregar a soma (Andreu Pintado, 2004, p. 44).

Pela informação que nos chega das leis flávias, é possível saber que eram organizadas duas eleições diferentes: uma para entrada no senado, para manutenção de um determinado número de decuriões nesta assembleia, outra para obtenção das magistraturas, promovida anualmente (Abascal e Espinosa, 1989, p. 139). No que

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respeita ao procedimento de eleição, a convocatória era feita pelo duúnviro mais velho, o qual fixava por edital o dia da convocatória e dava-a a conhecer publicamente através de arautos. Os cidadãos interessados na magistratura apresentavam ao duúnviro a sua declaração de candidatura. Comprovada a possibilidade de os candidatos serem eleitos, o duúnviro organizava a lista oficial de candidatos, transcrita para tábuas afixadas em locais públicos (Roldán Hervás, 2001, p. 414).

Se o número de candidatos fosse igual ou superior ao número de lugares vagos no senado local, o procedimento prosseguia, os nomes eram anunciados e o dia das eleições era fixado; nos casos, porém, em que não existia um número suficiente de candidatos, ou em que não existia qualquer candidato, cabia ao duúnviro nomear automaticamente o número de indivíduos necessários para o desempenho das magistraturas, mesmo que estes não o pretendessem. Ainda que estes pudessem nomear outro indivíduo para o desempenho do cargo, que por sua vez podia ainda nomear outro, este último indivíduo teria de o desempenhar efectivamente (Abascal e Espinosa, 1989, p. 139).

Após a publicação do edital e até à convocatória efectiva decorria o período de propaganda eleitoral (ambitus). Nesse período, os candidatos, in toga candida (de onde deriva a palavra candidato), i.e., com uma toga branca, tentavam atrair os eleitores, acompanhados pelos amigos, clientes e partidários (Roldán Hervás, 2001, p. 414).

A propaganda seria também escrita nas paredes das casas, a «epigrafia do momento», como lhe chama José d’Encarnação (2009b, p. 15), mencionando o nome do candidato e o cargo que pretendiam obter, muitas vezes acompanhada de contra-propaganda. Havia, no entanto, limites à propaganda, como era o caso, patente na Lex Ursonenis, 132, sobre a proibição de o candidato dar banquetes públicos, dinheiro, presentes e festas desde dois anos antes de apresentar a candidatura.

No dia das eleições, o magistrado que presidia a assembleia chamava o povo à votação através do arauto, tendo, antes disso, confirmado que os augúrios eram favoráveis. Depois de solicitar o favor dos deuses, o presidente lia a lista de candidatos e convidava as secções ou cúrias em que os eleitores estavam divididos a votar. As mesas deveriam estar localizadas num local privilegiado da cidade, possivelmente na basílica ou perto do forum (Roldán Hervás, 2001, p. 414, Abascal e Espinosa, 1989, p. 143). Os magistrados eram, como referido anteriormente, eleitos pelo populus. Para poder votar, o indivíduo deveria então ser cidadão livre, aqui incluindo tanto os cives, possuidores da cidadania local, como os incolae, cuja integração jurídica tinha sido efectuada noutra

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localidade, mas que residiam, por razões comerciais ou de posse de terra, no município. No que respeita à idade, o indivíduo teria provavelmente de igualmente ter 25 anos (Abascal e Espinosa, 1989, p. 142).

Salienta-se que ao aceder ao cargo, os magistrados deviam proceder a uma declaração completa dos seus bens, devendo informar sobre o eventual aumento patrimonial ao deixar o cargo. Não podiam mudar de domicílio nos cinco anos seguintes ao desempenho do cargo, dado que só após esse período prescreviam eventuais delitos que tivessem cometido no exercício da magistratura (Mangas, 1996, p. 74).

No topo da comunidade de cidadãos surgem então em regra quatro magistrados em dois colégios, nomeadamente os duúnviros, em alguns textos designados duumvri iure dicundo, e os edis, também designados duumviri aediles, por vezes reunidos num só colégio de quattorviri, aos que em algumas cidades se juntavam dois questores.

O conjunto destas magistraturas constituiria uma carreira, o cursus honorum, normalmente de questor, edil e duúnviro, que culminava no duúnvirato quinquenal. Com efeito, a cada cinco anos os duúnviros contavam com o poder especial para elaborar as listas do census dos cidadãos, recebendo a designação de duumviri quinquennales (Abascal e Espinosa, 1989, p. 129, D’Ors, 1953, p. 143). Salienta-se, no entanto, a opinião de Leonard Curchin que realça que ainda que se tenha pensado que existia uma progressão fixa dos cargos municipais no Ocidente Romano, nomeadamente de questor para edil e de edil para duúnviro, o número de cursus municipais que não cumprem esta norma é suficientemente substancial para lançar a dúvida sobre este esquema (Curchin, 1990b, p. 29).

4.3.1 Duúnviros

Os duúnviros eram os magistrados municipais de mais alto cargo. O duúnvirato representava o culminar da magistratura municipal, tendo superioridade sobre os questores e os edis, na medida em que teriam poder de veto (intercessio) sobre as decisões por eles tomadas, como se verifica na Lex Irnitana, 27 (Mangas, 2001, p. 39; Rodríguez Neila, 2003b, p. 173). Desenvolviam a administração municipal em conjunto com os outros magistrados e com a cúria municipal.

Os primeiros duúnviros do município teriam algumas tarefas iniciais quando a lei era recebida no município, nomeadamente, de acordo com a Lex Irnitana, distribuir os membros do senado local em três grupos ou cúrias, dos quais sairiam os legados que fariam a representação sucessiva do município (44); fazer a distribuição do populus por

Imagem

Figura 1: Felicitas Iulia Olisipo (in Mantas, 1990, p. 166, Fig. 2)
Figura  2:  Levantamento  das  ruínas  do  teatro  romano  de  Lisboa,  de  Francisco  Xavier, c
Figura  3:  Inscrição  publicada  por  Vieira  da  Silva  na  sua  Epigrafia  de  Lisboa,  correspondente a “copia dum desenho da pasta s/n.o de inscrições lapidares de Cenáculo  (Biblioteca regional de evora)” (Silva, A
Figura 4: Fonte de Armês (in Ribeiro, J, 1982-1983, p. 169)
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Referências

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