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5.2 Elites locais

5.2.2 Flâmines

Outros cargos de destaque nas elites locais seriam os sacerdócios, estando os sacerdotes encarregues dos cultos públicos e do culto imperial. Os municípios mais antigos da Hispânia seguiam a estrutura religiosa existente em Roma, onde se encontravam pontifices, oficiantes dos cultos públicos e supervisores de tudo o que

respeita à religião, augures e haruspices, que interpretavam a vontade dos deuses (Abascal e Espinosa, 1989, p. 148).

No que respeita aos sacerdócios de âmbito local, os mesmos poderão enquadrar- se em quatro categorias fundamentais: os sacerdotes de tradição romana, em que os mais características são os pontífices e os augures; os sacerdócios de tradição romana vinculados ao culto imperial, cujo título mais representativo é o de flamen e de flaminica, ainda que na Bética se encontrem também os títulos de pontifex e de sacerdos, exclusivamente aplicado a mulheres; os sacerdotes de tradição oriental, ligados ao culto de Cibele39, Ísis, ou Mitra, entre outros, organizados de forma distinta; e os sacerdotes de tradição indígena, associados aos cultos pré-romanos (Delgado Delgado, 2000b, pp. 50-54).

Os sacerdócios eram igualmente desempenhados por elementos das gens mais notáveis do município, muitas das vezes tendo já desempenhado magistraturas municipais. Dedicavam parte do seu tempo ao desempenho destas funções que lhes davam prestígio e notoriedade. Desde logo há que distinguir estas práticas religiosas das que vamos encontrar no âmbito da prática de tradição cristã ocidental, onde por exemplo o sacerdote é encarado como um líder espiritual e moral. No caso que aqui nos traz, o âmbito de actuação dos sacerdotes era público, actuando, em nome da comunidade, em questões relativas ao culto público, consistindo a prática religiosa na pratica comunitária dos cultos de cada cidade, desenvolvidos de acordo com regras definidas (Delgado Delgado, 2000b, pp. 12-13). Eram eleitos por um ano, sendo o processo de eleição semelhante ao dos magistrados (Abascal e Espinosa, 1989, p. 148).

No âmbito deste estudo, realçamos em Olisipo o registo de quatro flâmines e de duas flamínicas, uma municipal e uma provincial, pelo que, antes de passarmos à enumeração dos mesmos, abordaremos de forma resumida a implantação e evolução do culto imperial, ao qual estão associados.

39 Realçamos em Olisipo o registo de Flavia Tyche (CIL II 179, EO 25, ILER 376), apresentada com o título-

dignidade de cernófora. As cernóforas eram sacerdotisas, ministras ou acólitas que transportavam nas procissões e actos de culto os vasos sagrados com os frutos a oferecer aos deuses. Flavia Tyche consagra à grande mãe dos deuses da Frígia, na qual menciona também possivelmente um sacerdote e uma sacerdotisa do culto à deusa, respectivamente Marco Júlio Cassiano ( ?) e Cássia Severa (?). A consagração é feita em 108 d. C., no consulado de Marco Atílio e Ânio Galo. Como refere Delgado Delgado, o título desta liberta de origem oriental será extremamente raro na epigrafia do culto da deusa, apenas se conhecendo uma outra mulher relacionada com o culto de Cíbele com este título em CIL X, 1803 (Delgado Delgado, 2000a, p. 128.).

A implantação do culto imperial na Península Ibérica terá acontecido em época de Tibério. González Herrero salienta que o início da construção de templos para o culto imperial antes da morte e divinização de Augusto leva a pensar que seriam já eleitos flâmines para supervisionar o seu culto, no entanto, até ao momento, pelos dados epigráficos existentes, não é conhecido nenhum antes de 14 d.C. (González Herrero, 2002, p. 50. No mesmo sentido, Étienne, 1958, p. 200 e 378). Vespasiano será o responsável por uma reorganização do culto, passando a haver, para além dos flâmines, encarregues de supervisionar o culto imperial, flamínicas para o culto das Divae e das Augustae.

Robert Étienne divide a evolução do conteúdo do culto imperial em três etapas: de 15 a 42, quando se regista o culto apenas do divus Augustus, praticado desde a criação do culto provincial, denominando-se o sacerdote flamen Augustalis; de 42 a 54, passando a existir o culto tanto do divus Augustus como da diva Augusta, quando Cláudio leva o Senado a declarar a defunta imperatriz Iulia Augusta, Lívia, esposa de Augusto, diva40; e sob os Flávios, registando-se o culto do imperador vivo e um culto discreto de Roma. Étienne realça que esta terceira evolução se dá quando o concilium faz acto de devoção a Tito, filho de Vespasiano, possivelmente em Julho de 77, sendo que nas procissões do culto imperial, um busto de cada um deles seria oferecido à veneração das massas de acordo com uma das claúsulas da Lex Narbonensis. A mudança de dinastia terá eclipsado o culto do divus Augustus e da diva Augusta (Étienne, 2002, pp. 99-100).

O cargo de flâmine era marcadamente urbano e atingia-se normalmente cerca dos 30 anos (Étienne, 1958, p. 217 e 238), tendo em conta que, como referimos, a idade mínima para alcançar a magistratura definida por Augusto era a de 25 anos. Os flâmines eram eleitos anualmente pelos decuriões, sendo que só os membros do ordo decurionum podiam ascender a este cargo (Mantas, 2005, p. 29), devendo ser cives romani, portanto. Existe contudo, até ao momento, um caso que foge a esta regra, nomeadamente Albinus, Albui f., cuja onomástica sugere um estatuto peregrino e não cidadão. A justificação para tal poderá ser ou o facto de que no início da organização do culto imperial e em

40 Javier del Hoyo salienta que se aceitar que a inscrição de Tucci, dedicada por uma mulher de que apenas se

conhece o seu cognome, Laeta, CIL II 1681, é a mesma Iulia. C. f. Laeta que está registada como flamínica em CIL II 1678, o inicio do sacerdócio feminino a nível local deverá entao ter começado ao mesmo tempo que o masculino, em época de Tibério Cf. Hoyo, 2003, p. 133

províncias com menor romanização, como é o caso da Lusitânia face à Bética, a necessidade de cidadania não fosse tão rigorosa, ou que apenas incluiu parte do seu nome na dedicatória (Delgado Delgado, 2000a, p. 116).

Será igualmente de salientar a existência do título de flamen perpetuus. Neste caso, ainda que os dados existentes permitam considerar que se trata de um cargo de carácter anual, a atribuição do título de perpétuo consistiria numa honra dada a alguns flâmines no final do desempenho da sua função (Delgado Delgado, 2000a, p. 123).

A obra de Robert Étienne de 1958, Le culte imperial dans la Péninsule Ibérique d’Auguste à Dioclétien, fundamental nesta temática, registava 12 testemunhos na Península, tendo José Delgado (2000a, pp. 113-114), mais recentemente, efectuado um estudo sobre os sacerdotes municipais na Lusitânia, registando 22 testemunhos.

Dadas as evidências epigráficas, o flaminato cívico poderá ser alcançado tanto antes como depois do duunvirato, a mais alta magistratura civil, ainda que seja mais frequente o desempenho de funções no âmbito civil antes do desempenho no âmbito religioso41.

O cargo de flâmine é apresentado por académicos como J. Delgado Delgado como uma posição importante relativamente aos outros cargos públicos para determinar o prestígio e importância do sacerdócio. Constituía o cume da hierarquia religiosa do município, facultando o acesso à carreira equestre. Em regra, o exercício do cargo de flamen a nível local era exercido antes do desempenho de cargos superiores ao da ordem local, nomeadamente no que respeita ao flaminato provincial, ao desempenho do cargo de praefectus fabrum e ao de tribuno militar, sendo que, face aos outros cargos locais, o flaminato terá sido para Delgado Delgado provavelmente mais prestigiante que os outros cargos locais, nomeadamente o de duúnviro (Delgado Delgado, 2000a, p. 120). González Herrero comenta sobre este tema que cada cursus honorum constitui uma

trajectória única, sem que exista uma sucessão hierárquica de cargos comparável, por exemplo, à rigidez do cursus senatorius ou das militiae equestris, nada permitindo supor que as honras obtidas no âmbito cívico num determinado momento tinham maior prestígio e importância do que em altura anterior. González Herrero realça que poder- se-á identificar os percursos mais frequentes na recepção das honras civis e religiosas, mas não se poderá estabelecer uma hierarquia de prestígio entre eles (González Herrero, 2002, p. 56).

Não existem registos de flâmines provinciais de Olisipo42, havendo no entanto que salientar aqui o caso de L. Cornelius Bocchus, flamen provincial, que ainda que seja originário de Salacia, é homenageado por Olisipo.

Em Olisipo, registamos quatro flâmines, aqui apresentados por ordem cronológica de desempenho do cargo:

1. Q. Iulius Plotus, aedilis, IIvir, flamen Germanici Caesaris, flamen Iuliae Augustae in perpetu (u)m - Olisipo

Referimos aqui de novo Q. Iulius Plotus, que para além de edil e duúnviro foi também flamen Germanici Caesaris, flamen Iuliae Augustae, salientando-se aqui de novo o facto de, como a epígrafe o demonstra, nesta altura não haver ainda a separação de tarefas rituais entre flâmines e flamínicas.

De acordo com José Delgado, terá exercido o cargo de flamen entre 14-19 d.C. (Delgado Delgado, 2000a, p. 113). R. Étienne (1958, p. 222) coloca-o igualmente entre 14-19.

41

González Herrero, 2002, p. 55. Cardim Ribeiro realça que os cargos geralmente anteriores ao flaminato cívico, nomeadamente os cargos de Aedilis e de Duumvir, são normalmente indicados nas epígrafes quando se trata de inscrições mais longas (Ribeiro, J, 1974-1977, p. 299). J. Delgado Delgado avança por seu turno que ainda que o cargo de flâmine se apresente bastante vinculado ao exercício de outros cargos públicos, tal não permite concluir que o exercício de magistraturas locais fosse um requisito imprescindivel para o acesso ao sacerdócio, como outros académicos o fizeram, como seja Étienne (1958, p. 236) e Curchin (1990b, p.43). Realça que se conhecem carreiras em que todos os cargos desempenhados foram exercidos após o de flamen bem como casos de individuos cujo cursus apenas integra o cargo de flâmine, como é o caso de P. Staius Exoratus, sobre o qual afirma haver alguma segurança de apenas ter desempenhado um único cargo público na sua vida, nomeadamente o de flamen Divi Vespasiani. Cf. Delgado Delgado, 2000a, pp. 117-118.

2. L. Iulius Maelo Caudicus, flamen Divi Augusti - Armês

Figura 4: Fonte de Armês (in Ribeiro, J, 1982-1983, p. 169)

L. Iulius Maelo Caudicus, flamen Divi Augusti foi responsável pelo pagamento de uma fonte em Armês, Sintra, no ager Olisiponensis, figura estudada em particular detalhe por Cardim Ribeiro (1982-1983, pp. 151-476).

O exemplo de L. Iulius Maelo Caudicus constitui um bom exemplo da associação entre as elites urbanas e o ager Olisiponensis. O flâmine parece ter estabelecido uma villa própria próximo de Armês, provavelmente por volta de 15 a 25 d.C. periodo durante o qual terá erigido igualmente o fontanário (Ribeiro, J, 1982-1983, pp. 400). José Cardim Ribeiro sugere que o nome da actual povoação Godigana esteja ainda ao cognomen Caudicus (Ribeiro, J, 1982-1983, pp. 400-402). De acordo com Mantas (2005, p. 41), a gravação desta epígrafe será do principado de Tibério, nos primeiros tempos do culto imperial, situando-o na mesma época e ambiente social que Q. Iulius Plotus (CIL II 194). R. Étienne situa-o igualmente na época de Tibério, 14-37 (Étienne, 2002, p. 100), tal como Andreu Pintado (2004, p. 86). De acordo com José

42 No que respeita ao cargo de flamen provincial, os indivíduos atingiriam então este cargo a partir dos 30 anos, sendo

eleitos possivelmente pela assembleia provincial, com sede em Emerita Augusta, formada pelos representantes das diversas cidades da província, por um período de um ano. Sobre os flâmines da Província da Lusitânia, vide Delgado Delgado, 1999, pp. 433-461.

Delgado, terá exercido o cargo de flamen em época de Tibério ou Cláudio (Delgado Delgado, 2000a, p. 113).

Encontramos aqui mais um indivíduo de uma família indígena romanizada, com o nome Iulius, e com origem indígena, como o denuncia o seu cognome Maelo (Ribeiro, J,1982-1983, p. pp. 218-226). No que respeita a Caudicus, seu segundo cognome, existem propostas de origem itálica e de uma origem céltica (Ribeiro, J,1982-1983, pp. 211-214).

O seu nome consta igualmente de uma epígrafe achada na Granja dos Serrões (ILER 127), em que consagra a Júpiter. Esta epígrafe permitiu a leitura correcta da epígrafe, permitindo ler CAUDIC não como abreviatura de cauducarius, armador de embarcações fluviais, mas como Caudicus.

Atendendo a ter desempenhado o cargo de flamen será muito provavelmente de nascimento livre, dado que se fosse liberto deveria estar entre os seviri augustales, ainda que existam excepções de seviri de nascimento livre e mesmo de um caso de possível admissão de um destes sacerdotes, [Iu]nius Cornelianus, no ordo decurionum de Carissa, na Bética (Curchin, 1990b, nº 39).

3. Flamen augustalis (não identificado) - Faião

Realça-se igualmente a epígrafe de Faião, estudada por José Cardim Ribeiro, que menciona igualmente um flamen augustalis, não permitindo, no entanto, a sua identificação. É contudo avançado que a datação desta construção funerária do ager Olisiponensis será da primeira metade do terceiro quartel do séc. I d. C., tendo por isso exercido as suas funções sob o domínio de Nero (Ribeiro, J, 1974-1977, p. 302). José Delgado coloca igualmente a hipótese de ter exercido o cargo de flamen na segunda metade do século I (Delgado Delgado, 2000a, p. 114).

4. P. Staius Exoratus, flamen Divi Vespasiani - Lourel

Encontramos igualmente como flamen P. Staius Exoratus, estudado por Cardim Ribeiro (1982-1983, pp. 226-234). A ara funerária onde se encontram registados o seu nome e cargos está no Museu de S. Miguel de Odrinhas, tendo sido utilizada por muito tempo como suporte da pedra de altar da capela de S. Romão, em Lourel.

O seu praenomen não é frequente em Olisipo, sendo o seu gentilício, Staius, muito raro, o que leva José Cardim Ribeiro (1982-1983, p. 232) a relacionar este flâmen com o liberto P. Staius P. lib. Meridianus (CIL II 120; IRCP 406), sepultado em Évora.

Quanto ao cognome, Exoratus, é possível que denuncie alguma relação com África, como igualmente sucede com o cognome Meridianus do seu possível liberto (Ribeiro, J, 1982-1983, p. pp. 232-234, 295-297).

José Cardim Ribeiro (1982-1983, p. 231) data a inscrição do período flaviano, provavelmente do imperialato de Domiciano. Étienne e Delgado delgado colocam igualmente o exercício do cargo de flamen em época de Tito ou Domiciano (Étienne, 2002, p. 101; Delgado Delgado, 2000a, p. 114).

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