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A EQUAÇÃO ENTRE PODER POLÍTICO E VIOLÊNCIA: REPERCUSSÕES NA ESFERA PÚBLICA

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Academic year: 2021

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A EQUAÇÃO ENTRE PODER POLÍTICO E VIOLÊNCIA: REPERCUSSÕES NA ESFERA PÚBLICA

Ana Luiza de Morais Rodrigues Departamento de Direito - UFRN RESUMO

O presente trabalho objetiva explicitar de que modo a tradição do pensamento político ocidental operou uma equivocada equação entre poder político e violência. Tal identificação resultou no esquecimento do verdadeiro significado da política, a saber: espaço de liberdade no qual os homens plurais interagem entre si por meio da fala e da ação. Na tentativa de resgatar o verdadeiro sentido da política, Hannah Arendt procura retomar, sob novos paradigmas, conceitos essenciais como "poder" e "violência" - sobre os quais nos debruçaremos. O confronto à tradição política ocidental por meio da promoção das devidas distinções conceituais é, portanto, de importância ímpar para resgatar o sentido da política e, com ela, o significado do próprio "mundo".

Palavras-chave: Hannah Arendt. Política. Poder. Violência.

I. INTRODUÇÃO

“Qualquer discurso contra a política em nossa época deve começar pelos preconceitos que todos nós, que não somos políticos profissionais, temos contra a política”. É com essa afirmação que Hannah Arendt inicia o segundo tópico do seu ensaio “Introdução na Política”. Tal ensaio, diz Jerome Khon (no prefácio de “A Promessa da Política”), está inserido no projeto arendtiano - posterior a Origens do Totalitarismo - de resgatar a dignidade da política, analisando, respectivamente: a tradição do pensamento político ao seu fim; o verdadeiro sentido da política, separado dessa tradição, e a diferença entre a vida espiritual e a vida activa.

O presente trabalho se propõe justamente a perscrutar as causas do nosso preconceito atual à política e sua repercussão no “mundo”.

Antes prosseguir com o tema central deste trabalho faz-se necessário, portanto, explicitar o sentido de “mundo” na perspectiva arendtiana, já que, conforme Rodrigo Ribeiro, em seu livro Alienações do mundo:

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“Hannah Arendt não elaborou um conceito de „mundo‟ a partir do clássico recuo contemplativo do filósofo em relação ao cotidiano dos assuntos humanos, mas sim a partir da „concretude dos acontecimentos‟, dos „incidentes da experiência viva‟” (2009, p.17).

Sendo assim, pensar o sentido atribuído por Hannah Arendt ao mundo é ser reportado automaticamente à política, ou seja, ao espaço de liberdade em que os homens plurais interagem e coexistem, exatamente pelo fato de o “mundo” estar situado no centro da política.

Em sua obra, Arendt recupera a distinção entre natureza e mundo, estabelecendo a diferença entre a repetição inerente ao ciclo da vida biológica e o ambiente da política, no qual os homens livres detêm a capacidade de iniciar algo novo por meio da ação e do discurso. Na definição de Rodrigo Ribeiro: “O mundo é o espaço artificial entre o homem e a natureza, bem como o âmbito intermediário de relacionamento e distinção instaurado entre os homens por meio de suas interações e interesses comuns” (2009, p.19). O que não se pode deixar de destacar, contudo, é que o “mundo”, por ser formado através das interações e ações de seres que nascem e morrem, experimenta uma inegável perecibilidade, de modo que existe entre os homens “apenas potencialmente, nunca necessariamente” (2009, p.20), fato que revela a fragilidade de seu lado público.

Nesse sentido é a análise de Claude Lefort, em seu livro Pensando o político, no qual é alertado que Arendt entende a política partindo de uma alternativa radical, isto é: “a política, de algum modo, existe ou não existe; seu surgimento aqui e ali é inexplicável; é sinal de um começo radical; e, além disso, a política só surge aqui e ali para desaparecer sem deixar vestígio” (1991, p.74).

Tudo isso foi dito para que tenhamos em mente que ao nos afastarmos da política corremos o risco de nos distanciarmos, também, do “mundo”, isto é, “a própria condição da existência humana na Terra.” (RIBEIRO, 2009, p. 55).

II. PODER POLÍTICO E VIOLÊNCIA: UMA EQUAÇÃO INAPROPRIADA

A questão a ser respondida agora é: de que maneira a equação entre poder e violência foi capaz obscurecer conceitos essenciais à política e qual sua repercussão no domínio público? Precisamos, antes de qualquer coisa, empreender um esforço

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conceitual no sentido de diferenciar poder e violência para, então, explicitar de que modo a tradição do pensamento político ocidental equacionou seus sentidos, ocasionando um verdadeiro descrédito à política. Pode-se dizer, inclusive, que a inclinação liberal em aproximar totalitarismo e autoritarismo, deturpando o próprio conceito de autoridade, tem suas raízes na antiga confusão entre poder legítimo e violência.

Aliás, a atenção que Arendt debruça sobre os conceitos em toda a sua obra resultam de sua “convicção na importância de se fazer distinções” (ARENDT, 2007, p. 132). A autora acredita na existência de um consenso implícito, presente em numerosas teorias nas Ciências Sociais, Políticas e Históricas, no sentido de que

“podemos ignorar as distinções e proceder baseados no pressuposto de que qualquer coisa pode, eventualmente, ser chamada de qualquer outra coisa, e de que as distinções somente têm significado na medida em que cada um de nós tem o direito de „definir seus termos‟” (2007, p.132).

Arendt percebeu que desde a gênese da tradição do pensamento político ocidental – que vai de Platão a Marx – há uma infeliz equação entre os conceitos de poder e violência. Sua busca é, portanto, retomar tais conceitos em seus sentidos originais por meio de uma “interpretação crítica do passado” e da própria tradição.

A identificação entre poder e violência teria gerado, como diz André Duarte, uma constante tradução das relações de poder em termos de submissão e dominação, por meio das quais a “obediência” é garantida com a violência (2000, p. 239). De acordo com essa tradição, a própria violência seria, portanto, nada mais que a “mais flagrante manifestação do poder (ARENDT apud. DUARTE, 2000, p. 240),” não merecendo, nesse sentido, análise específica. Tal concepção assenta-se, claramente, na ideia de governo enquanto “dominação do homem pelo homem” (ARENDT, 1994, p.36).

Desde a antiguidade grega, a concepção de governo esteve ligada à figura do governante e do governado, este subordinado pelo primeiro pelo uso da violência. Em virtude da ausência de uma experiência política da qual pudesse ser retirado o exemplo da Autoridade – entendida, por Arendt, em linhas gerais, como poder institucionalizado, - Platão e Aristóteles, cada um a sua maneira, utilizaram-se de

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exemplos da esfera doméstica e da vida familiar para forjar um modelo de governo autoritário. O chefe de família, que governava como um “déspota”, dominava indiscutivelmente sua família e seus escravos. Ora, onde quer que ele governasse, haveria sempre uma única relação de submissão, de modo que ele nunca conviveria entre iguais e, portanto, nunca seria livre, pois “o senhor (conforme a opinião grega corrente), não era livre quando se movia entre seus escravos” (ARENDT, 2007, p. 144).

Fica claro, portanto, que onde houver um modelo de governo em que Um domina contra Todos por meio da “coação física, a tortura ou a privação de alimentos” (ARENDT, 1985) a liberdade é tolhida e a própria faculdade de agir é perdida. Tal forma de governo, baseado na utilização de instrumentos e na submissão e Todos por Um é o que constitui a violência.

A relação que se estabelece entre poder e violência é inversamente proporcional, isto é, onde um se sobressai, ou outro tem sua utilização reduzida, já que Poder é definido repetidamente por Hannah Arendt como “capacidade do homem para agir e agir de forma concertada”, ou, nas palavras de André Duarte: “a ação em concerto levada a cabo por muitos no espaço público”, não sendo, por isso, “propriedade de um indivíduo” (2000, p.240) . O poder só poderá ser exercido pelos homens plurais, na esfera política, na qual está presente, de maneira inerente, a ação e o discurso. Esse conceito de poder foi retirado por Arendt das experiências políticas da “isonomia” da cidade-estado ateniense e da civitas romana, esquecidas diante da predominância da tradição ocidental. Para Arendt, portanto, o poder também é dotado da fragilidade com a qual nos referimos ao lado público do mundo, já que deixa de existir no momento em que os homens se dispersam ou encontram-se impedidos de reunir-se livremente.

Diferentemente da violência, que se utiliza de instrumentos para alcançar um fim racionalmente previsto, o poder é um fim em si mesmo, já que a política, além de imprevisível, é infindável. Assim, nada mais claro que a constatação de que a violência se instaura na medida em que o poder está em fase de destruição, cuja maior evidência é o “isolamento” entre os homens.

Mesmo tendo constatado as disparidades entre poder e violência, Hannah Arendt não enxergou esses conceitos de forma estanque, mas, pelo contrário, percebeu suas profundas relações no cotidiano político, chegando, inclusive, a afirmar que “nada é mais comum que a combinação da violência com o poder” (ARENDT apud.

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DUARTE, 2000, p.245). Como bem refletiu André Duarte: “Não se encontram em seu pensamento, portanto, nenhuma esperança utópica por uma sociedade enfim pacificada e liberta de toda e qualquer violência, nem uma recusa estrita e absoluta de seu emprego, pois ela não é nem „irracional‟ nem „bestial‟” (2000, p. 246) e quase sempre é justificável.

O exemplo mais célebre dessa imbricação entre poder e violência está nas revoluções. Por seu caráter instrumental, a violência desses movimentos serviu ao escopo da “liberação”, isto é, da ruptura de um status quo que está nas raízes da opressão entre os homens. Entretanto, uma revolução só obtém sucesso – isto é, poderá ser considerada mais que uma rebelião - se for capaz de fundar um espaço de liberdade, capaz de instaurar uma verdadeira autoridade, o que só será possível através do poder, ou seja, “da ação em concerto”. A esse respeito, Arendt, em seu livro “Sobre a revolução”, diz o seguinte:

“Se tivermos em mente que a finalidade da rebelião é a libertação, ao passo que a finalidade da revolução é a instituição da liberdade, o cientista político saberá, ao menos, como evitar o logro do historiador, que tende a colocar sua ênfase no primeiro e violento estágio de rebelião e libertação [...] em detrimento do segundo e mais silencioso estágio de revolução e constituição” (ARENDT, 1988, p. 114 ) Em seu ensaio Introdução na Política, Arendt inicia uma explicação sobre o que é o preconceito e por que ele é tão prejudicial à política. Para Arendt, o preconceito não se confunde com o juízo. Diferentemente deste, o preconceito não está atado a experiências pessoais e, por isso, convencem facilmente. Os juízos, por sua vez, decorrem da percepção e da inteligência diante dos fatos aos quais os homens são submetidos ao longo de sua vida. A despeito de desempenhar um importante papel na vida social, o preconceito é nefasto ao domínio da política, pois antecipa e bloqueia o juízo.

Ora, quando Lord Acton, citado por Arendt, diz: “o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”, o que se está fazendo é impondo preconceito à esfera pública, os quais têm origem ainda no início da tradição política ocidental. Desconfiar tanto do poder, ou seja, da política, sem fazer nenhum juízo desvinculado do

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passado é dar vazão a “um desejo desesperado de exonerar-se da capacidade de agir” (ARENDT, 2008, p. 151).

III. A CONFUSÃO ENTRE TOTALITARISMO, AUTORITARISMO E TIRANIA

Outra consequência da identificação entre poder e violência é, como a própria Hannah Arendt explicita, uma confusão entre totalitarismo, autoritarismo e tirania e, portanto, a própria deturpação da ideia de Autoridade.

Autoridade é, talvez, um dos conceitos mais obscuros para aqueles que se debruçam sobre o estudo de Arendt. Isso porque conceber uma obediência desvinculada da coerção e da persuasão – definição de autoridade para Arendt - é dificílimo para nós, acostumados a conceber as relações de poder enquanto violência. No ensaio “O que é Autoridade?”, Arendt faz uma análise acurada sobre perda da ideia originária de Autoridade ao longo da trajetória política ocidental, além de procurar em fenômenos modernos resquícios de tal noção, tão importante à manutenção da estabilidade pública.

O Governo Autoritário é limitado por um fator externo a ele – as leis, o direito natural e os mandamentos divinos, por exemplo -, capaz de lhe conferir legitimidade, a saber: respeito independentemente de coerção. Diferentemente da Tirania, em que o governante administra a partir de seu livre arbítrio, impondo sua vontade sobre os demais por meio da força, no Governo Autoritário o que temos é uma limitação do poder central através das leis. Assim, nas palavras de André Duarte:

“as leis têm por função erigir fronteiras e estabelecer canais de comunicação entre os homens‟, proporcionando „estabilidade‟ a um mundo essencialmente marcado pela mudança que os novos seres humanos trazem consigo potencialmente” (DUARTE, 2000, p.247).

Notemos, contudo, que com essa referência às leis não buscamos defender a supremacia do poder constituído sobre o poder constituinte (a ação e o discurso), como se os homens agissem em concerto simplesmente para institucionalizar seu poder, de modo estanque e imutável. O que temos, na verdade, é que as leis e o direito têm a função essencial de garantir o espaço de liberdade no qual surgirão outras manifestações de poder e, posteriormente, uma nova fundação. Ao mesmo tempo, é inegável que as leis limitam a criatividade humana, impondo modelos pré-estabelecidos sobre fatos

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muitas vezes inéditos. Configura-se, então, uma relação bastante controversa, para a qual Arendt não busca dar respostas, já que seu maior esforço é compreensivo.

O Totalitarismo, por fim, mostra-se ainda mais perigoso que a Tirania. Enquanto esta tolhe a liberdade dos homens por meio de uma coerção externa, visível, o Totalitarismo tem seu poderio crescente na medida em que se torna invisível. O espaço da ação e do discurso deixa de existir não pela ausência de leis que garantam sua liberdade, mas pelo fato de os homens passarem a viver numa onipresente “ficção de um mundo normal”, de tal modo, diz Arendt, “que eles jamais precisam estar conscientes do abismo que separa seu próprio mundo daquele que de fato os rodeia” (2007, p. 137).

Nesse mesmo sentido, abrir mão do poder e considerar a política “uma teia de mentiras e ardis tecida por interesses escusos e ideologias ainda mais escusas” (ARENDT, 2008, p.150), é partir para um estado de profundo isolamento e, portanto, alienação do mundo. O perigo é, então, esquecer completamente os conceitos que tornam a política espaço de pluralidade humana e, por obra de tantas ideias equivocadas, esquecermos de que pertencemos ao mundo, não ao “deserto”.

IV. CONCLUSÃO

Todo o esforço de Arendt concentra-se, portanto, na recuperação de concepções políticas esquecidas no passado. A retirada de sentido das próprias palavras-chave da linguagem política – tais como autoridade, poder, liberdade e ação – deixaram para trás formas ocas, responsáveis por orientar toda a tradição do pensamento ocidental sobre a política.

A obra de Hannah Arendt, neste sentido, retoma, sob uma nova ótica, conceitos fundamentais tais como “poder”, “esfera pública”, “igualdade”, “liberdade”, “ação”, “autoridade”, etc. a fim de elucidar de que modo as fortes tendências apolíticas e antipluralistas das reflexões tradicionais promoveram uma profunda alienação do mundo comum e humano e um obscurecimento da dignidade própria da política.

Por sua vez, o esgotamento das bases da convivência humana que marcaram a tradição ocidental - tradição, autoridade e religião- foi iluminado pela ruptura totalitária no século XX, que tornou explícito o colapso moral e espiritual da tradição. Nesse sentido, Arendt tem em vista recuperar uma “outra tradição” do pensamento

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político ocidental, qual seja: a greco-romana, que dispõe de experiências e conceitos fundamentais que nos permitem repensar o real significado da confiança dos homens no mundo, sobretudo em seu lado público, instaurado e mantido pela pluralidade humana, ou seja, pelo envolvimento dos cidadãos em atos e palavras concertados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES NETO, Rodrigo Ribeiro. Alienações do mundo: uma interpretação da obra de Hannah Arendt. 1ª ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio. São Paulo: Ed. Loyola, 2009.

ARENDT, Hannah. A Promessa da Política. 1ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2008.

_______________. Da Revolução. São Paulo: Ática, Brasília: UnB, 1988.

_______________. Entre o Passado e o Futuro. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. _______________. Sobre a Violência. 1ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará 1994.

DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt. 1ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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