Vivien Lys Porto Ferreira da Silva
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
MESTRADO NA ÁREA DE DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS,
SUB-ÁREA DIREITO CIVIL
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Vivien Lys Porto Ferreira da Silva
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE na
área de Direito das Relações Sociais,
sub-área Direito Civil, sob a orientação do
Professor Doutor Giovanni Ettore Nanni.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
BANCA EXAMINADORA
1. _____________________________
2. _____________________________
“A razão forma o ser humano, o sentimento o
conduz”. Jean-Jacques Rousseau, filósofo
AGRADECIMENTOS
Ao orientador, mestre e amigo, Doutor Giovanni Ettore Nanni pela orientação conferida no
desenvolvimento do presente trabalho, bem como pelos ensinamentos vivenciados desde os
primórdios da minha carreira profissional.
Ao amigo, professor Antonio Carlos Malheiros, pelo exemplo de vida de humanidade por
estar sempre preocupado com o social, dedicando parte do seu exíguo tempo ao próximo com
toda compaixão.
A minha Mãe, exemplo de força, perseverança, retidão e companheirismo, que nunca poupou
esforços para apoiar-me na minha vida pessoal e na minha carreira jurídica, acreditando no
meu sucesso, mesmo nos momentos em que eu mesma desacreditava.
Ao meu Pai, exemplo de otimismo, que nunca deixou apagar em si a essência da criança que
existe em cada um de nós como forma de garantir a preservação dos princípios éticos de um
ser humano.
RESUMO
O presente trabalho, intitulado Adimplemento substancial, tem por escopo dissecar instituto jurídico advindo do sistema da common law na seara do Direito Contratual como caminho de abertura para valoração da real extensão da inexecução da obrigação, vista nos dias
contemporâneos a partir de critérios equânimes e mais próximos à realidade prática das
relações jurídicas advindas dos negócios jurídicos bilaterais ou plurilaterais. O trabalho de
pesquisa realizado teve como preocupação a transformação da constatação do
inadimplemento que sempre prestigiava a resolução contratual existente nos sistemas
jurídicos alienígenas e pátrios para uma visão mais positiva da conseqüência oriunda das
diversas formas de descumprimentos das obrigações, pautando o aspecto da escassa
importância causada em eventual inexecução de parte ínfima da prestação prometida. O
reconhecimento desse construto em países estrangeiros advém de um longo período, existindo
inclusive, em alguns países, a sua previsão legal nas codificações. Por sua vez, no sistema
jurídico pátrio, a sua adoção é um trabalho mais recente realizado pelo jurista Clóvis do Couto
e Silva como fruto iminente da revolução vivenciada no Direito Obrigacional, fase na qual
exige-se uma limitação da configuração do inadimplemento, ampliando-se as possibilidades
de manutenção do vínculo contratual diante da caracterização de inexecução de mínima
relevância. Nesse cenário, a construção e o desenvolvimento da Teoria do adimplemento
substancial justificou-se a partir da aplicação do princípio da boa-fé objetiva que valorava
com maior rigor e justiça a proporcionalidade da parte da prestação inexecutada em relação ao
todo do contrato já realizado pela parte inadimplente. Com esta valoração, houve a
flexibilidade do sistema para aceitar as hipóteses em que, mantido o interesse do credor na
maior proporção do contrato já ofertada, o benefício decorrente da maior parte da prestação
fundamentava a preservação do programa contratual, vedando, assim, a resolução contratual.
Essa alteração no desfecho da vida do contrato gerou resultados positivos na medida em que
permitiu a tutela jurídica do devedor em contrapartida preservou o equilíbrio e a
harmonização dos interesses contrapostos das partes mediante o preenchimento dos requisitos
do adimplemento substancial. Isso foi um fenômeno positivo exaltado na vivência das
diversas espécies contratuais, bem como pela atividade jurisdicional desenvolvida pelo Poder
ABSTRACT
The present thesis, entitled Substantial Performance aims at looking into the legal doctrine which stems from the Contracts Law within the Common Law, as an opening pathway for
valuing the real extent of nonperformance of duty, viewed nowadays with equal criteria and
closer to legal practice reality that arises from either bilateral or multilateral legal contracts.
The conducted research was concerned with the assumption that the fundamental breach that
always yielded the existing contract dissolution found in both foreign and national legal
systems could be changed into a more positive view of the result arising from different forms
of breaches, using as a reference the aspect of the resulted scarce importance of partial
nonperformances of duty. The recognition of this concept in foreign countries has come a
long way, also existing in some countries where it can be seen in their codifications. On the
other hand, its adoption by the Brazilian legal system has been the subject of jurist Clóvis do
Couto e Silva’s work as imminent fruit of the revolution experienced within Contracts Law, a
phase in which it is demanded that the fundamental breach configuration be limited,
broadening the possibilities of maintaining contract adherence before the nonperformance of
lesser significance. In this scenario, the construction and development of the substantial
performance Theory was justified when the objective principle of good faith that valued more
strictly and fairly the proportionate share of the nonperformed duty was applied in relation to
the whole of the contract already paid by the defaulter. With this valuing, the system became
flexible to accept the hypotheses in which, once the creditor’s interests were maintained at the
largest proportion of the contract already offered, the benefit arising from most of the
installment would deem the contract as good, thus voiding contract dissolution. This shift in
contract dissolution generated positive results at the same time it allowed for debtor’s court
protection and in return such shift maintained the equilibrium and the parties’ conflicting
interests by meeting the requirements of substantial performance. This was a positive
phenomenon highlighted in several contract species, as well as through jurisdictional activity
ÍNDICE
Introdução ... pág. 12
Capítulo I – Origem e raízes estrangeiras da Teoria do adimplemento substancial
1. Origem histórica do adimplemento substancial ... pág. 16
2. O adimplemento substancial no direito estrangeiro ... pág. 29
2.1. Inglaterra (common law) ... pág. 30 2.2. Estados Unidos da América (common law) ... pág. 37 2.3. Alemanha (civil law) ... pág. 43 2.4. Itália (civil law) ... pág. 47 2.5. Portugal (civil law) ... pág. 50 2.6. França (civil law) ... pág. 55 2.7. Espanha (civil law) ... pág. 56 2.8. Argentina (civil law) ... pág. 59 2.9. Costa Rica (civil law) ... pág. 60 2.10 Direito internacional ... pág. 64
2.10.1. O adimplemento substancial na Convenção de Viena ... pág. 65
2.10.2. O adimplemento substancial no Unidroit Principles of Internacional Commercial Contracts ... pág. 74
Capítulo II – O adimplemento substancial no sistema jurídico pátrio
1. O adimplemento substancial no Direito Brasileiro ... pág. 83
1.1. A recepção do adimplemento substancial (common law) pelo ordenamento jurídico brasileiro (civil law) ... pág. 87
1.2. O adimplemento substancial no Código Civil de 1916 ... pág. 89
1.4. A revolução do Direito obrigacional: uma nova visão dos limites do
inadimplemento dentro da ampliação do campo do adimplemento substancial ... pág. 99
Capítulo III – A estrutura do negócio jurídico diante do adimplemento substancial
1. O negócio jurídico diante do adimplemento substancial ... pág. 106
2. A autonomia privada reflexa na obrigação ... pág. 116
3. O sinalagma contratual ... pág. 126
4. Os efeitos das obrigações na satisfação dos interesses das obrigações
recíprocas... pág. 130
Capítulo IV – Noções básicas do inadimplemento e do adimplemento
1. O inadimplemento e oadimplemento ... pág. 133
2. O inadimplemento absoluto e relativo ... pág. 135
Capítulo V – Teoria do adimplemento substancial
1. A estruturação da Teoria do adimplemento substancial ... pág. 143
1.1. Regime jurídico ... pág. 152
1.2. O princípio da boa-fé ... pág. 156
1.2.1. A natureza jurídica da boa-fé ... pág. 157
1.2.2. Espécies de boa-fé ... pág. 159
1.2.3. Boa-fé: o substrato da Teoria do adimplemento substancial
... pág. 170
2. Requisitos da Teoria do adimplemento substancial ... pág. 174
2.2. Ausência de gravidade do descumprimento da obrigação no adimplemento
substancial ... pág. 175
2.3. Utilidade da prestação diante do adimplemento substancial
... pág. 178
2.4. Proporcionalidade razoável do adimplemento substancial em relação ao
programa contratual ... pág. 180
2.5. O interesse do credor como parâmetro do adimplemento substancial
... pág. 183
3. As relações entre credor e devedor no adimplemento substancial ... pág. 185
3.1. A tutela jurídica do devedor no adimplemento substancial ... pág. 185
3.2. O adimplemento substancial causado pelo credor ... pág. 190
4. O adimplemento substancial e figuras correlatas ... pág. 193
4.1. O adimplemento substancial e o adimplemento ruim ou defeituoso
... pág. 193
4.2. O adimplemento substancial e o inadimplemento absoluto ... pág. 198
4.3. O adimplemento substancial e o inadimplemento relativo ... pág. 200
4.4. O adimplemento substancial e o adimplemento parcial de obrigações
divisíveis e indivisíveis ... pág. 202
4.5. O adimplemento substancial e a impossibilidade parcial ... pág. 205
4.6. Exceção do contrato não cumprido diante do adimplemento substancial
... pág. 207
4.7. Enriquecimento sem causa e a Teoria do adimplemento substancial
... pág. 214
5. O adimplemento substancial diante da resolução do contrato ... pág. 216
5.1. Aplicabilidade da cláusula resolutória diante do adimplemento substancial
... pág. 221
5.2. Cláusula resolutiva expressa e tácita: efeitos diante do adimplemento substancial
6. Conseqüências do adimplemento substancial ... pág. 228
6.1. O equilíbrio contratual no adimplemento substancial ... pág. 228
6.2. Programa contratual: garantias contratuais diante do adimplemento substancial
... pág. 229
Capítulo VI – A aplicabilidade do adimplemento substancial
1. O adimplemento substancial aplicado nos contratos ... pág. 234
1.1. Contratos típicos ... pág. 236
1.1.1. Contrato de compra e venda ... pág. 237
1.1.2. Contrato de alienação fiduciária em garantia ... pág. 241
1.1.3. Contrato de arrendamento mercantil ... pág. 243
1.1.4. Contrato de seguro ... pág. 246
1.1.5. Contrato de empreitada ... pág. 251
1.2. Contratos atípicos ... pág. 254
1.2.1 Contrato de Engineering ... pág. 256
2. A atividade jurisdicional diante da valoração do adimplemento substancial
... pág. 258
Conclusão ... pág. 266
Introdução
A influência de princípios éticos e sociais que norteiam a Teoria moderna do direito
contratual, e conseqüentemente das obrigações, é determinante para revermos o contrato com
uma nova concepção, no sentido de interpretá-lo e de aplicá-lo de maneira a atingir o
equilíbrio contratual das prestações comutativas, bem como a encontrar uma fórmula de
minimizar os eventuais impactos oriundos da frustração da extinção anormal dos contratos.
Essa nova concepção não deve ser apenas exaltada pelos juristas nos livros acadêmicos, mas
devemos procurar a aplicação desta na celebração do contrato, considerado como negócio
jurídico bilateral ou plurilateral, que visa o cumprimento de obrigações recíprocas entre as
partes que convergem para o mesmo fim: a execução da prestação devida que exige a
satisfação do interesse do credor mediante o regular cumprimento da obrigação pelo devedor.
O contrato a ser submetido à normatização das legislações pátrias e aos princípios contratuais
(autonomia privada, consensualismo, obrigatoriedade, relatividade, irretratabilidade, função
social, boa-fé, equilíbrio) anseia pela aplicação exata do binômio interesse do credor e
proporcionalidade do adimplemento da obrigação pelo devedor.
Tal fenômeno não é despercebido pelo Direito Obrigacional moderno que ao acompanhar as
tendências contemporâneas, revigora a essência dos princípios contratuais aos descompassos
ocasionados pelos descumprimentos parciais e totais das obrigações assumidas entre as partes
em um determinado negócio jurídico.
Nessa nova concepção, ao iniciarmos o estudo da Teoria do adimplemento substancial, por
meio do método indutivo, procuramos no intróito do presente trabalho no capítulo I, buscar
em suas origens históricas do common law a formação primária desta Teoria para, posteriormente, apresentarmos a visão deste instituto pelos ordenamentos jurídicos de outros
países, até mesmo daqueles em que o sistema é oriundo da civil law, como o caso do sistema jurídico pátrio, a fim de identificarmos a estrutura deste negócio jurídico.
Ao passarmos pela visão histórica deste constructo em ordenamentos jurídicos alienígenas,
integrantes das obrigações sinalagmáticas são mais dinâmicas, executadas em um ambiente de
culturas distintas, no qual as partes contratantes carregam consigo princípios e normas de
sistemas jurídicos distintos, dificultando, em tese, a concretização de um regulamento padrão
para o programa contratual. No entanto, descobrimos que nesta seara internacional, a
exigência ao respeito aos princípios contratuais e especialmente às conseqüências do
adimplemento substancial é mais exaltada, estando seus critérios objetivamente definidos nas
convenções e tratados, facilitando a visão da aplicação e do regime jurídico deste negócio
jurídico.
Com as conceituações e constatações advindas da primeira parte do estudo deste trabalho,
adentramos na análise da Teoria do adimplemento substancial no ordenamento jurídico
brasileiro, procurando, ab initio, verificar a recepção de um fenômeno estruturado e iniciado no sistema de common law no nosso sistema civil law no capítulo II, observando a existência ou inexistência desta teoria no Código Civil de 1916 e no diploma civil pátrio de 2002.
Ao identificarmos a existência ou ausência desta Teoria no sistema legal brasileiro nos
diplomas civis mencionados, também realizamos uma pesquisa na jurisprudência pátria
proferida sob a influência destes dois Códigos Civis, com o intuito de constatar indícios ou
elementos concretos que demonstram o comportamento dos julgadores quanto à aferição dos
efeitos do contrato no tocante a este instituto jurídico.
Sem olvidar de situar a Teoria do adimplemento substancial na recente e revolucionária
modernização do direito obrigacional que estamos vivenciando, ainda no capítulo II,
projetamos a nova visão dos limites do inadimplemento diante do crescente reconhecimento,
ainda que prematuro, do regime jurídico do adimplemento substancial.
E a partir deste norte, foi possível dissecar no capítulo III a estrutura do negócio jurídico
diante do adimplemento substancial, o princípio da autonomia privada da obrigação, o
sinalagma contratual estruturado na conjugação da satisfação dos interesses das obrigações
equivalentes e recíprocas nos contratos, a fim de verificar a real abrangência destes conceitos
construir uma base de conceitos para discorrer a respeito deste tema tão intrigante e ao mesmo
tempo surpreendente.
Para evitar dúvidas a serem suscitadas no momento do desenvolvimento desta Teoria, antes
de discorrermos sobre seus aspectos, pontuamos algumas noções, no capítulo IV, do
inadimplemento (absoluto e relativo) e do adimplemento como forma de definir os critérios da
execução e inexecução contratual que diferem do adimplemento substancial.
No capítulo V, focamos o desenvolvimento da Teoria do adimplemento substancial,
analisando todos os seus elementos, reflexos e efeitos dentro do programa contratual. Para
alinhavar toda a construção doutrinária e jurisprudencial construída em torno da referida
Teoria inserida no sistema jurídico pátrio, concedemos especial atenção à análise do princípio
da boa-fé, o qual sustenta o equilíbrio das obrigações comutativas de um contrato, bem como
é o substrato do adimplemento substancial desde a vigência do Código Civil de 1916, período
no qual a exaltação desta Teoria era ainda muito tímida, para não dizer mínima.
No referido capítulo, ao apresentarmos os requisitos do adimplemento substancial,
comparando-o com outros institutos jurídicos a fim de contemplar o regime jurídico desta
Teoria no direito brasileiro, abordamos temas polêmicos como o interesse do credor diante da
tutela jurídica do devedor na hipótese do inadimplemento de pouca importância; os limites do
direito potestativo de resolução mediante a configuração da inexecução de parte ínfima do
contrato; o adimplemento substancial gerado pelo credor. Ao confrontar o direito do credor
em resolver o contrato e a tutela jurídica dispensada ao devedor medimos a exata extensão da
cláusula resolutória em relação às garantias do programa contratual à preservação do contrato,
sob o fundamento desta Teoria. Como se tratam de temas polêmicos não só no ordenamento
jurídico pátrio, mas também nos códigos estrangeiros, como meio de enriquecer o debate,
trouxemos à baila ensinamentos de insignes juristas de alguns dos países estrangeiros.
Houve ainda a preocupação de estabelecer as conseqüências geradas pelo adimplemento
substancial, o qual converge para a permanência do equilíbrio do sinalagma ao prestigiar a
manutenção do vínculo contratual, discorrendo acerca das garantias de ambas as partes
Por fim, com o intuito de aproveitar todo o desenvolvimento do trabalho de pesquisa, no
capítulo VI, abarcando toda a construção do pensamento construído em torno desta Teoria,
demonstramos o lado prático da mesma por meio da análise de algumas espécies contratuais
para concretizar o seu conceito bem como suas características e conseqüências, como prova
de que o adimplemento substancial já se incorporou definitivamente ao nosso ordenamento
jurídico. A incorporação desta exige, na prática, entre as relações interpessoais das partes
contratantes de um negócio jurídico bilateral ou plurilateral à obediência aos elementos do seu
regime jurídico próprio, enquanto que na atividade jurisdicional requer a identificação e
valoração dos elementos desta Teoria, como medida de alerta e salvaguarda do programa
contratual visto como instrumento de sustentação harmônica dos interesses opostos – mas não
antagônicos – das partes contratantes congruentes ao mesmo fim – a extinção normal da
obrigação por meio do adimplemento – expressados mediante a execução de obrigações
recíprocas que buscam a satisfação de seus fins.
Ao concluir o estudo da pesquisa em torno da Teoria do adimplemento substancial,
procuramos sintetizar as principais idéias, conceitos e teses desenvolvidos e fundamentados
ao longo do presente trabalho com o escopo de ratificar a real importância da concepção e
incorporação concreta e definitiva da referida Teoria para que assim seja possível transmudar
toda uma ideologia construída no sistema jurídico brasileiro por quase um século – desde o
Código Civil de 1916 – a qual apenas privilegiou, durante todo esse tempo, a satisfação
absoluta do direito do credor mesmo em detrimento da tutela jurídica do devedor nos casos
em que o adimplemento substancial era evidente, mas não foi considerado ou aplicado.
Com essa constatação que a priori parece negativa, mas, pelo contrário, é frutífera, na medida em que ao ser constada a falência de uma ideologia retrógrada e ultrapassada do sistema
jurídico que prestigiava, quase sempre, o inadimplemento ensejador da resolução do contrato,
houve a concretização, na Direito contratual moderno, do exato espaço do instituto do
adimplemento substancial como baluarte no equilíbrio do desenvolvimento do programa
contratual; comprovando a real necessidade de valorizarmos o adimplemento, mesmo que não
Capítulo I
Origens e raízes estrangeiras do adimplemento substancial
1. Origem histórica do adimplemento substancial
Conforme já mencionado, a Teoria do adimplemento substancial é oriunda do sistema da
common law. Esse sistema originou-se da tradição jurídica que se desenvolveu, primeiramente, na Inglaterra a partir do século XI e prevalece até os dias contemporâneos nos
países que incorporam este sistema, tais como Gales, Irlanda, nove estados dos Estados
Unidos da América, nove províncias canadenses; e na maioria dos países que receberam a
influência legislativa do Império Britânico como colônias (Guiana Francesa, Panamá, Flórida,
Califórnia, México, Arizona, Texas).
Este sistema é peculiar e dinâmico, pois se estruturou sob decisões judiciais, as quais serviam
de parâmetros para os próximos julgamentos, na medida em que os elementos de cada decisão
serviam de fundamento para os julgadores emitirem novas sentenças; valorando, assim, o
aspecto prático e fundamentado da Ciência do Direito.
Dessa forma, os princípios desse sistema aparecem e constroem-se, na maioria das vezes, a
partir dos julgamentos realizados pelos Tribunais, normalmente pelas Cortes Supremas, em
relação aos casos concretos específicos oriundos de conflitos já sentenciados anteriormente
pelas mesmas Cortes. Há, na verdade, uma constatação de similaridade de casos julgados a
partir dos quais os princípios e normas são aplicados, formando precedentes de decisões que
são formados e ficam arquivados, tendo referência de acordo com os nomes dos casos
julgados. Por exemplo, a menção dos precedentes é feita da seguinte forma: o princípio da
eqüidade utilizado no caso Boone v. Eyre (1779).
Este sistema foi desenhado de acordo com os movimentos exercidos dentro das Cortes da
Eqüidade – ou Cortes de Chancelaria, como eram denominadas nos Estados Unidos1–, que
decidiam os processos principalmente sob os princípios gerais de direito, especialmente o
1
princípio da eqüidade (equity). Esse princípio, calcado nos conceitos de negociação leal e honestidade, é de fundamental importância, posto que representou uma manifestação contrária
à legislação codificada no direito anglo-americano, que a priori aplicavam apenas a lei. Em virtude desse apego às leis, nas Cortes da Eqüidade, iniciou-se um movimento de equilibrar a
justiça a ser empregada nas ações judiciais, mesmo quando o sistema da common law não previa algum artigo específico à solução do caso concreto apresentado. Assim, de acordo com
o princípio da equity, que era baseado nos princípios gerais do Direito, as Cortes da Eqüidade criavam precedentes para temperar a legislação a ser aplicada ao caso concreto e, assim, obter
um julgamento mais próximo do ideal de justiça2.
Assim, as Cortes da Eqüidade surgiram como contraposição positiva às Cortes Supremas do
common law no período elizabetano3, como forma de suprimir as eventuais lacunas existentes na lei do direito anglo-americano, bem como para atenuar o formalismo empregado
inicialmente no sistema.
Em suma, o princípio da eqüidadeera efetivamente empregado pelos julgadores nas referidas
Cortes, perquirindo ao máximo os interesses das partes litigantes em cada caso concreto, não
se prendendo ao texto frio e estático das leis impostas em códigos ou regulamentos. Apenas
no reinado de James I que houve a unificação entre as Cortes da Eqüidade e as Cortes da
common law4 que até hoje se apresentam unidas.
A exaltação à eqüidade neste sistema ganha destaque que se estende até hoje, pois representa
um exemplo contra um rígido formalismo contido, no nosso sistema jurídico, no qual a
interpretação seca das leis, que por mais bem elaboradas que sejam, às vezes – na grande
maioria das vezes – não são eficazes para sanar o problema levado à apreciação dos
julgadores. Também representa um estandarte na estrutura de análise e decisão judicial, ao
passo que é permitindo ao julgador por meio de normas repletas de cláusulas abertas e
conceitos legais indeterminados a extração do problema trazido pelos litigantes que será
2
GIFS, Steven H. Law Dictionary. p. 95.
3
POWELL, E. A. A arbitragem e o direito na Inglaterra dos finais da Idade Média. Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. p. 123.
4
submetido ao espírito sensível do julgador que deverá aplicar a eqüidade no litígio enfrentado.
Esta aplicação será realizada por meio de precedentes judiciais semelhantes oriundos de
outras decisões judiciais, que serão o argumento para a emissão do novo julgamento, calcado,
por exemplo, no Princípio da eqüidade, da boa-fé, da probidade, permitindo a construção de
precedentes com decisões valorativas dos princípios jurídicos e sociais, como maneira de
facilitar a aproximação do lado prático e social da Ciência do Direito.
No desenvolvimento do sistema da common law, nem sempre existiam precedentes prontos para aplicar em novos julgamentos. Em razão dessa ausência, foi-se criando ajustes e
integrações das decisões judiciais permitindo aos julgadores aprimorarem-se para obter a
sapiência da temperatura exata do termômetro para medir cada caso concreto e encontrar a
solução mais indicada. Desde o início, na seara contratual, esse sistema por conter
instrumentos que facilitam a extração e valoração do problema levado a julgamento,
possibilitou o emprego de remédios específicos às obrigações assumidas e descumpridas total
ou parcialmente, visando limitar o impacto das cláusulas penais, tendo como objetivo
principal a preservação do contrato no limite equânime máximo permitido, atingindo
frontalmente o formalismo da regra do pacta sunt servanda.
Esse sistema atingiu o seu apogeu no início do século XVII, na Inglaterra, quando os
precedentes formatados serviam para todos os litígios levados à apreciação das Cortes, sendo
possível aos julgadores mesclarem os elementos e princípios das decisões anteriores e
emitirem uma decisão que atendia a eqüidade exigida em cada caso concreto.
Mas com a continuação desse movimento da quebra de formalismos na seara contratual, no
século XVIII, o sistema da common law passou a enfrentar certos impasses, diante da ausência de alguns precedentes em determinadas decisões. Nesta seara, houve o empecilho
enfrentado por falta de precedentes nos casos em que o devedor executou a prestação devida,
contudo descumpriu uma parte mínima da obrigação, a qual mesmo sem tanta importância,
impossibilitou o regular cumprimento do programa contratual assumido. Nestas situações os
devedor adimplido quase que totalmente o programa contratual, sem maiores prejuízos ao
credor?
Alguns julgadores, como o percusssor Lorde Mansfield, tentaram procurar uma alternativa
para evitar a aplicação da resolução do contrato, nos casos em que havia a execução da maior
e mais importante parte da prestação devida pelo devedor, mas era difícil evitar a aplicação da
resolução do contrato, mesmo se a subsunção deste direito potestativo ao caso concreto
refletisse uma injustiça, por estar-se diante de uma hipótese na qual o inadimplente executou
“quase” que totalmente a obrigação que lhe foi imposta; e o inadimplemento in casu não gerava prejuízos substanciais ao credor, nem afrontava a essência do interesse deste.
Com a criação desse impasse, as Cortes da Eqüidade foram obrigadas a criar uma alternativa
para que o contrato não fosse sacrificado pela resolução, se o fim principal do programa
contratual tivesse sido atingido de forma substancial, embora não cumprido totalmente.
Foi assim que surgiu a Teoria do adimplemento substancial, como forma de evitar a aplicação
da resolução do contrato, que nas hipóteses citadas acima, geraria mais injustiça a ambas as
partes contratantes do que se fosse permitida a preservação do contrato, condenando o
devedor a indenizar as perdas e danos advindos do inadimplemento desta parte mínima, sem
importância.
O próprio fundamento da criação do conceito de adimplemento substancial vincula-se à idéia
equânime de vedar ao contratante adimplente de postular a resolução do contrato, que mesmo
tendo tido proveito da prestação realizada pelo devedor em proporção maior e suficiente para
satisfazer seu interesse substancialmente, comprovando que neste caso não é válida a norma
da resolução que admite ao contratante adimplente a quebra do programa contratual pelo
desfazimento do contrato em razão do inadimplemento absoluto ou relativo. Trata-se em
ambos os casos da prevalência do princípio da eqüidade na exata extensão da parte da
prestação executada: se esta for maior atingindo quase o ideal do programa contratual
estabelecido, não há que se admitir a resolução do contrato, mas se esta for mínima, a
Por ser o sistema da common law construído por meio de análise de julgamentos que criam precedentes, também iremos estudar a origem da Teoria do adimplemento substancial pelo
mesmo método, ou seja, verificando o crescimento dessa Teoria ao longo dos julgamentos
realizados.
Esta doutrina do adimplemento substancial foi, pela primeira vez, estabelecida pelo julgador
Lorde Mansfield, em 1779, no caso Boone versus Eyre5, em que a prestação principal já havia sido adimplida substancialmente, razão pela qual não se admitiu o direito de resolução, com a
perda do que havia realizado o devedor; sendo devida a contraprestação por parte do credor
que consistia no pagamento do preço pela transação efetuada. Ao credor apenas coube apenas
o direito de indenização em relação à parte mínima descumprida, por ter sido considerado, no
caso, o direito de resolução como abusivo.
Esse caso consistiu no ajuizamento de um processo de cobrança, no qual Boone, na qualidade
de autor, demandou contra Eyre, pois este atrasou o pagamento estipulado no contrato. O
contrato firmado estabelecia a obrigação ao Eyre do pagamento de 500 libras e uma renda
anual de 160 libras ao Boone desde que este transferisse a propriedade de uma plantação nas
Antilhas, conjuntamente com os escravos trabalhadores naquela terra, garantindo seu domínio
e posse pacíficos durante todo o período em que Eyre fosse proprietário daquela propriedade.
Ocorre que Eyre atrasou o pagamento, sob o fundamento de existir um descumprimento da
obrigação por parte de Boone, uma vez que os escravos haviam se evadido do local. Esse
argumento foi refutado por Boone que estava cobrando, em juízo, o que tinha de direito: o
valor combinado pela renda anual.
Lorde Mansfield julgou procedente essa ação, entendendo que Eyre não estava dispensado de
pagar o preço convencionado no contrato, ao ponderar o exato peso das obrigações
interdependentes (denominadas de conditions que fundamentam a consideration, esta entendida como o liame das obrigações recíprocas existentes em um contrato, pela qual o
devedor obrigar-se-á a realizar determinada prestação sob a proposta concreta de que o credor
irá retribuir, de alguma forma, a execução daquela obrigação) e das obrigações acessórias
5
(warranties). Essa distinção foi o elemento propulsor da Teoria do adimplemento substancial, na medida em que segundo a tese do referido julgador, em um contrato havia as obrigações
dependentes – cláusulas essenciais – e as obrigações independentes, de importância
secundária ao programa contratual estabelecido. No caso em questão, a ação de Boone não
configurava descumprimento de uma obrigação dependente, passível de ensejar a resolução
do contrato, isto é, o descumprimento por parte de Boone não se encaixava nas cláusulas
essenciais ligadas às obrigações recíprocas e correspectivas do contrato, cujo cumprimento
era imprescindível.
Essa diferença é expressa com propriedade pelo julgador Lorde Mansfield nas seguintes
palavras originais: “... where mutual covenants go to the whole of the consideration on both
sides, they are mutual conditions, the one precedent to the other. But where they go only to a
part, where a breach may be paid for in damages, there the defendant has a remedy on his
covenant, and shall not plead it as a condition precedent”. (1 Hy. Bl. 273)6. Neste trecho, o
referido julgador demonstra que quando há duas obrigações recíprocas direcionadas à
totalidade da consideration de ambas as partes, elas são obrigações principais correspectivas, sendo que uma não subsiste sem a outra. Mas se elas constituem-se apenas uma parte da
prestação principal (obrigações independentes), o inadimplemento pode ensejar o pagamento
de perdas e danos, em razão do direito que a parte adimplente possui com base no contrato
celebrado, e não deve demandar pela resolução como se fosse o descumprimento de uma
obrigação principal.7
Com fundamento nos argumentos acima, o julgador considerou a infração cometida por
Boone como uma obrigação independente (warranty), proferindo decisão procedente ao pedido de cobrança deste, mas condicionando ao mesmo ao pagamento de perdas e danos. Por
conseguinte, coibiu-se a aplicação da resolução do contrato, na medida em que este, nas
condições do caso concreto acima, era avesso ao princípio da boa-fé que rege as relações
jurídicas, especialmente, os negócios jurídicos.
6
GILSON, Bernard. Inexécutión et Résolution en Droit Anglais, p. 87.
7
Véra Fradera ao escrever o artigo O conceito de inadimplemento fundamental do contrato no
artigo 25 da Lei Internacional sobre Vendas, da Convenção de Viena de 19808 e comentar
sobre a origem histórica da Teoria do adimplemento substancial, especificamente com base no
precedente criado no julgamento do caso Boone versus Eyre valorou com grande maestria o substrato desta teoria ao afirmar que “a doutrina do ‘substancial performance’ pode ser
explicada como resultante da aplicação do princípio da boa-fé em sua atuação mais moderna,
criando deveres, possibilitando restringir a regra de o cumprimento ser completo ou integral,
admitindo solução diversa”.
De fato, não é admissível aplicar a fórmula da resolução do contrato para toda e qualquer
espécie de inadimplemento. A maleabilidade do princípio da boa-fé consiste exatamente em
garantir ao julgador escapar desta fórmula rígida e criar uma abertura no sistema quando
houver a configuração de um adimplemento substancial, admitindo uma solução diversa da
resolução do contrato.
No entanto, esta Teoria não foi estabelecida desde o início com total clareza e firmeza dos
seus conceitos. A sua solidificação dentro do sistema da common law dependeu de uma mudança de conceitos enraizados nos julgadores que, ab initio, apenas vislumbravam a resolução como remédio aplicado em todos os casos de descumprimentos, sejam estes parciais
ou mínimos.
É importante fazer essa ressalva para desmistificar a idéia de que se possa ter ao imaginar que
desde os primórdios houve o reconhecimento e a construção crescente desta Teoria. Pelo rigor
oriundo do princípio do pacta sunt servanda, nem sempre o princípio da boa-fé foi respeitado e aplicado nos seus exatos termos que justificam o adimplemento substancial. A prova
concreta das afirmações ponderadas nos dois últimos parágrafos consiste no julgamento do
caso Cutter versus Powell, o segundo processo que circundou em torno da valoração dos limites do direito potestativo de resolução em face do adimplemento substancial que,
infelizmente, optou pela exaltação da resolução do contrato criando um desequilíbrio
contratual até hoje concretizado, na medida em que houve o transito em julgado dessa decisão
8
e, mesmo se assim não fosse, as partes litigantes não estão presentes entre nós para serem
beneficiadas da reforma do julgamento por meio da aplicação correta da Teoria do
adimplemento substancial.
O referido caso foi julgado em 17959, seis anos após o precedente criado com o caso Boone versus Eyre. Contudo, o precedente criado por este primeiro julgamento não foi utilizado neste caso, no qual a Corte não obedeceu ao princípio da boa-fé ao julgar improcedente o
pedido da viúva de Cutter de receber, proporcionalmente, o valor combinado pelo serviço
prestado pelo seu marido ao longo de uma travessia de navio que saiu da Jamaica, da cidade
de Kingston, com destino ao porto de Liverpool.
O formalismo contido no julgamento da Corte foi vultuoso e paradoxal em relação ao
surgimento da Teoria do adimplemento substancial em 1779 ao passo que julgou
improcedente o pedido da viúva consistente ao recebimento de uma quantia proporcional em
razão dos serviços prestados por seu marido marinheiro, cuja contraprestação era devida pelo
contratante, Powell, que se beneficiou dos dias – de 02 de agosto a 20 de setembro – em que o
falecido trabalhou. O cerne envolvido neste julgamento consistiu no fato de que o marinheiro
faleceu antes de chegar ao destino do navio e por tal razão houve o impedimento de ressarcir
sua viúva pelo contrato acordado que estipulava a obrigação do marinheiro em completar a
viagem integralmente. Por esta cláusula, os julgadores entenderam que era condição de
pagamento a prestação de serviços até a chegada no navio no seu destino, não sendo cabível
qualquer pagamento à viúva.
Não se considerou o fato de que ele havia atingido o principal objetivo do contrato, ou seja,
prestou seu serviço adequado durante toda a viagem até que o evento de força maior
impossibilitou-o de continuar. O contratante não poderia ter sido isento de sua
responsabilidade de dar a contraprestação acordada, proporcionalmente, ou seja, pagar a viúva
pelos 49 (quarenta e nove) dias trabalhados pelo seu marido, sob o fundamento frágil de que o
marinheiro, inadvertidamente, falhou em sua obrigação causando danos à embarcação em
razão da sua ausência.
9
Diante desse panorama, a Corte aplicou o princípio básico aplicado nos contratos de
transporte de mercadorias, segundo o qual o dono do navio não pode reclamar pelo
pagamento do contratante até que as mercadorias sejam entregues no destino acordado. Por
sua vez, se ocorrer a entrega normal das mercadorias, apenas com alguns estragos causados
nas mercadorias, o contratante não tem a prerrogativa de abster-se do pagamento, sob o
fundamento de inadimplemento contratual do dono do navio que não executou sua obrigação
com diligência. O único remédio jurídico existente ao seu favor é pleitear as perdas e danos
oriundos do prejuízo causado por meio de uma ação de ressarcimento, como ocorreu no caso
Dakin versus Oxley (1864)10.
Em outras palavras, a Corte valorou o caso Cutter versus Powell com o mesmo princípio utilizado no caso Dakin versus Oxley, no qual a condição da efetiva chegada ao destino era
sine qua non para o contratado ter direito ao recebimento do valor acordado no contrato, em razão da ausência do valor e pagamento do frete devido ao dono do navio. No entanto, nesta
aplicação há um erro crasso nos conceitos envolvidos na medida em que no primeiro caso
houve a efetiva prestação de serviços pelo contratado enquanto que no segundo caso antes de
ocorrer a chegada ao destino acordado não se configura a execução da obrigação por parte do
contratado posto que o ponto de chegada é marco inicial e final do cumprimento da prestação
pactuada. O que não ocorre no primeiro caso em que o ponto de chegada não é fator decisivo
para a apuração da prestação realizada, se esta iniciou desde o primeiro dia da saída do navio
de Kingston e foi devidamente prestada durante 49 (quarenta e nove dias) até que sobreveio a
morte involuntária do contratado marinheiro, ou seja, o marinheiro desempenhou sua
obrigação satisfatoriamente ainda que não totalmente.
Na verdade, Cutter não descumpriu com o contrato porque morreu no meio do Atlântico, o
que enseja a preservação do seu direito de receber o pagamento, por meio dos herdeiros – in casu a viúva – independentemente da conclusão da viagem.
É evidente que houve uma decisão iníqua e que de imediato foi observado pelas Cortes da
10
Eqüidade que estabeleceram a doutrina da “substantial performance”, possibilitando decisões
mais adequadas às ordenações do princípio da boa-fé11. O movimento de eqüidade criado
pelas Cortes foi no sentido de reformulação da concepção imposta pelo instituto da resolução,
invariavelmente, a fim de abrir possibilidades para se recepcionar a Teoria que estava se
solidificando e clamava pelo seu espaço, a fim de evitar injustiças como concretamente
ocorreu no caso acima, cujas conseqüências negativas estende-se até os dias contemporâneos,
em razão da impossibilidade da reforma de tal julgamento.
A Teoria do adimplemento substancial no sistema da common law ganhou maior relevância na fase histórica na qual houve a preocupação de emissão de julgamentos que impedissem
efeitos negativos a uma parte em benefício de outra – como o caso Cutter versus Powell; visando tutelar o equilíbrio contratual das obrigações correspectivas.
Em 1916, observamos mais um julgamento atinente à construção desta Teoria. O processo
entre H. Dakin & Co., Ltd. versus Lee12, no qual consagrou-se uma solução demasiadamente a favor à Teoria do adimplemento substancial, ultrapassando em excesso o seu conceito, o que
também reputou-se prejudicial posteriormente. Neste caso, diante de reduzidíssima
divergência entre a reforma de uma casa, sob o conceito entre trabalho terminado ou realizado
– nem todas as colunas se ergueram conforme o previsto –, entendeu-se suficiente a prestação,
fazendo jus o empreiteiro à totalidade do pagamento. Neste momento, o movimento
intelectual da época já permitia o exato enquadramento da verificação da gravidade do
inadimplemento que diante do princípio da boa-fé objetiva poderia reputar pela preservação
do contrato diante do adimplemento substancial. Contudo, houve o excesso da aplicação desta
Teoria, pelo fato de que não é possível premiar o inadimplente, mesmo sendo este mínimo,
pelo recebimento do preço integral. Alguma dedução deve ser feita para restabelecer o
equilíbrio contratual, sob pena de enriquecimento sem causa.
Além disso, a análise deste caso é fundamental, para advertir que é preciso tomar cuidado
com a dimensão dada ao adimplemento substancial, para que não se volte totalmente a favor
11
BECKER, Anelise. Op. cit. p. 62-63.
12
do inadimplente em desfavor à parte adimplente, pois nesta hipótese estar-se-ia retrocedendo
aos primórdios do formalismo consistente da aplicação incondicional do direito resolutório
com grandes riscos de cometer-se uma atrocidade maior ainda e, após 3 (três) séculos do
surgimento da Teoria do adimplemento substancial matar, definitivamente, o equilíbrio
buscado nas obrigações comutativas estabelecidas dentro do programa contratual.
O julgador desse processo, Lorde Cozens-Hardy, ao decidir pelo pagamento integral ao
executor das obras, pautou-se no seguinte princípio: “The work was finished -- and when I
say this I do not wish to prejudice matters, but I cannot think of a better word to use at the
moment13.”
A questão neste caso era detectar se diante de um contrato executado, embora em dissonância
em alguns aspectos do contrato, o trabalho concluído foi terminado satisfatoriamente ou
simplesmente realizado, a fim de mensurar se o contratante poderia ser isento de sua
responsabilidade de efetuar o pagamento com base na distinção destes conceitos.
No caso H. Dakin & Co., Ltd. versus Lee, houve a celebração de um contrato entre as partes litigantes, no qual o autor obrigou-se a prestar os serviços de reforma na casa da ré, mas ao
final não recebeu o preço combinado. O advogado da ré apresentou a tese de que era uma
exceção à regra geral aplicada aos contratos de que o mérito desta questão deveria ser
restringido dentro de alguns limites, na medida em que a prestação realizada distinguiu-se das
bases acordadas pelas partes. O juiz monocrático entendeu que o trabalho foi completado, mas
não de acordo com alguns aspectos determinados no contrato. A sentença foi proferida no
sentido de que o autor, executor do trabalho, não poderia receber nenhuma parte do preço
combinado nem nenhuma soma em relação ao serviço prestado. No entanto, essa decisão foi
reformada pela Corte, para determinar a obrigatoriedade da contratante efetuar o pagamento
integral do preço, embora algumas colunas estivessem distintas do projeto inicial, sob o
argumento de que a ré continuava morando na casa dela, obtendo benefícios pelo trabalho
executado pelo autor.
13
A decisão mais equânime a ser proferida neste caso, com fundamento das bases do
adimplemento substancial, seria o reconhecimento de que onde o trabalho tivesse sido
terminado, em sentido estrito, embora com uma parte mínima descumprida em razão das
pequenas irregularidades nas colunas erguidas, é direito do contratado receber alguma
contraprestação em razão de ter cumprido substancialmente sua obrigação, descontando-se
proporcionalmente as perdas e danos advindos deste descumprimento de parte mínima da
obrigação. A procedência deste pagamento é complementada com base no precedente
incluído no Ato de Venda de Mercadorias de 1893 (“Sale of Goods Act”), o qual assevera que
o comprador, que aceita a mercadoria, usufruindo-se dela, não pode se recusar de efetuar o
pagamento se há a constatação de descumprimento (breach) de apenas uma parte secundária da obrigação principal. Por este simples argumento, qualquer argumento da ré não prospera,
posto que se colocá-la na mesma posição do comprador, ela aceitou o trabalho executado,
sendo que o descumprimento de parte mínima de obrigação secundária não a exime do
pagamento.
Por esta constatação, concluímos que o caso ora em comento independe da análise e distinção
dos conceitos de trabalho terminado ou realizado, o cerne envolvido aqui se trata de
mensuração exata do adimplemento substancial, sendo este visto como descumprimento de
uma parte mínima que não pode desnaturar a satisfação do interesse principal do credor, no
caso vertente, o uso, gozo e fruição da contratante da casa reformada.
Em julgamento mais recente, em 1952, vislumbramos a aplicação madura da Teoria do
adimplemento substancial no processo em que litigavam Hoenig versus Isaacs14. O julgamento final primou pela recusa da aplicação do direito potestativo da resolução do
contrato em razão da verificação da extensão exata do inadimplemento; a qual in casu foi mínima.
Essa extensão foi medida sob à análise paralela se o adimplemento total é condição prévia
para o pagamento; o que se verificou, ao final, que não se constitui.
14
O caso foi o seguinte: o autor, Hoenig, era decorador de interiores, e foi contratado pelo réu,
Isaacs, para decorar e fornecer toda mobília para o apartamento do réu. O valor total do
contrato foi estabelecido em 750 libras a ser pago mediante um sinal, e o saldo restante
conforme ocorresse a complementação do desenvolvimento do trabalho. O réu pagou 400
libras e começou a ocupar e a usar a mobília instalada em seu apartamento. No entanto, ele
recusou-se a efetuar o pagamento do valor restante sob o argumento de parte do trabalho de
decoração e alguns artigos de mobília fornecidos estavam com defeito. Por esta razão, o
decorador ajuizou este processo para receber o saldo residual pendente conforme o valor total
do contrato acordado entre as partes.
O argumento utilizado pelo réu para não efetuar o pagamento do saldo remanescente foi que,
embora o trabalho do decorador (autor) tenha sido substancialmente cumprido, havia ainda
alguns itens que não foram executados conforme as especificações do contrato. No entanto, a
corte inglesa rejeitou esse argumento, posto que o réu é obrigado a realizar prontamente o
valor total do preço acordado no contrato, pois se o adimplemento total do trabalho é
condição prévia para pagamento, o réu perde o seu direito de exigir essa condição, no
momento em que foi residir no imóvel, recebendo benefícios pela utilização do mesmo e das
mobílias, ora reclamadas como defeituosas. A partir deste momento, o réu é obrigado a pagar
o valor total do contrato, perdendo o direito de postular a resolução do contrato, sob o
argumento frágil de que a decoração contratada, foi realizada diversa da projetada,
mostrando-se insatisfatória, por apresentar apenas algumas partes mínimas do projeto a serem
executadas.
O único direito que ainda subsiste ao réu é deduzir do valor pendente a pagar, o custo
necessário para consertar os mínimos defeitos apresentados no trabalho executado pelo autor
(decorador).
Com esses julgamentos, depreendemos que o construto histórico do adimplemento substancial
foi formado a partir da valoração da gravidade do inadimplemento em relação à razoabilidade
das penalidades aplicadas, cujo ponto de equilíbrio seria a constatação do atendimento ao
verificação da necessidade da aplicação da tutela jurídica devida ao devedor que não poderia
perder todo o seu trabalho, sem a respectiva e proporcional contraprestação do credor em
razão de descumprimento mínimo da obrigação. Foi crucial a conscientização do movimento
ocorrido dentro das Cortes da Eqüidade de que se atendido o principal interesse do credor
satisfatoriamente, a resolução do contrato não se adaptava dentro da razoabilidade, sendo esta
inserida no princípio da boa-fé.
O caso Hoenig versus Isaacs representou a maturidade desta Teoria e serviu de fator balizador para os julgamentos proferidos nos séculos XX e XXI, os quais utilizaram os precedentes
formados para aplicar, com segurança, o exato conceito do adimplemento substancial que
apenas se aprimorou diante do aumento da complexidade das relações sociais ocorridas na
seara contratual após a do referido caso.
O panorama atual desta Teoria será visto no capítulo I, no qual há a análise do adimplemento
substancial no sistema inglês, na medida em que sua origem e desenvolvimento ocorreram na
Inglaterra.
2. O adimplemento substancial no direito estrangeiro
Além da origem histórica, insta delinear os traços e extensões do surgimento e incorporação
da Teoria do adimplemento substancial em alguns países do sistema jurídico da common law
e outros do sistema jurídico da civil law, com o escopo de enriquecer e clarear todos os aspectos deste construto.
É enriquecedor ao presente estudo trazer à baila os ditames das legislações alienígenas no
tema do adimplemento substancial, na medida em que diante de diferentes origens de sistemas
jurídicos, verificar-se-á a necessidade de todas as sociedades em clamar por instrumentos
mais justos e equilibrados quando se tratar do inadimplemento ocorrido em proporção mínima
Assim, objetivamos extrair dos ordenamentos jurídicos estrangeiros, a riqueza existente em
alguns elementos construídos apenas em determinados sistemas; e outros elementos comuns
aos sistemas, balizando as semelhanças e diferenças que se apresenta, globalmente, no tema
escolhido.
2.1. Inglaterra (common law)
Conforme se verifica no capítulo anterior, a origem histórica e a construção primária da
Teoria do adimplemento substancial advêm da Inglaterra, calcada no sistema da common law.
Também já é cediço que esta Teoria começou a ser formatada a partir do desenvolvimento da
diferença existente entre as cláusulas contratuais que expressam obrigações envolvendo uma
condition ou uma warranty abordada por Lorde Mansfield no julgamento do caso Boone versus Eyre.
A tradução literal do termo condition não deve ser empregada, pois consiste, a grosso modo, na condição de uma obrigação, como utilizada pelo sistema da civil law. O emprego correto deste termo significa obrigação essencial do programa contratual integrante das obrigações
correspectivas e recíprocas estabelecidas em um determinado negócio jurídico bilateral ou
plurilateral. Essa correlação e reciprocidade são denominadas por Anelise Becker como
obrigações interdependentes15, como expressão da vinculação existente entre as obrigações
principais que representam a integração necessária entre as obrigações dispostas tanto para o
credor como para o devedor. Essa interdependência acaba por vincular uma obrigação na
outra, formando a essencialidade do contrato que se completa na consideration, sendo esta vista como o caráter oneroso do programa contratual que cria obrigações recíprocas e
correspectivas entre as partes16, a partir do liame existente na interligação pela qual o devedor
obrigar-se-á a realizar determinada prestação sob a proposta concreta de que o credor irá
retribuir, de alguma forma, a execução daquela obrigação.
15
BECKER, Anelise. Op. cit., p. 61.
16
Na verdade, a consideration é causa motivadora, expressa pelo carater econômico, nos contratos onerosos, como por exemplo, o locatário paga o aluguel em contrapartida ao direito
de posse a ser exercido em determinado imóvel.
O motivo exigido pela consideration pode ser uma causa ou um motivo de mérito exigido em uma recompensa mútua oriunda da convenção das partes ou decorrente da lei. Qualquer título
executivo representa, por si só, uma consideration, embora se, às vezes, esta não esteja expressamente mencionada. Títulos negociáveis, como por exemplo as notas promissórias
trazem consigo evidentes características da consideration, por conterem uma promessa de pagamento ao credor que se beneficiará caso o pagamento seja realizado pelo devedor que,
em contrapartida, se isentará da promessa realizada, cumprindo com sua obrigação.
Em suma, a consideration deve representar algum benefício para parte à qual a promessa foi feita ou para a terceira pessoa, em nome daquela. A consideration é sempre lícita para justificar um programa contratual, pois caso seja ilegal, o contrato será nulo. Uma obrigação
moral representa uma espécie de consideration, embora não enseje nenhuma responsabilidade jurídica em relação à promessa realizada.
Quanto ao tempo, a consideration pode ser executável ou estar submetida à alguma condição realizada antes da execução da obrigação pelo devedor, ou ainda concorrente, na hipótese de
obrigações mútuas a serem executadas concomitantemente. Em regra, uma obrigação
executável é insuficiente para suportar um contrato mas uma obrigação cumprida sob uma
previsão contratual ou de acordo com alguma norma positivada é suficiente para justificar a
prestação.
No caso Broom versus Davis, o julgador J. Buller decidiu sobre a valoração da gravidade da inexecução do contrato vista sob o ângulo da consideration. O processo consistiu no fato de que o construtor foi contratado para construir uma cabine por uma determinada soma de
dinheiro. A cabine foi construída, mas houve desmoronamento de uma parte em razão de uma
falha no trabalho humano. O construtor poderia reclamar a soma contratada, e o réu poderia
ajuizar uma ação de ressarcimento por prejuízos. O julgador entendeu que os defeitos foram
princípio do precedente do julgamento do caso H. Dakin & Co., Ltd. versus Lee, segundo o qual o construtor deveria receber pelo preço ajustado no contrato. Pela visão do julgador, se a
subsunção do conceito da consideration fosse corretamente aplicada neste caso, constataria que a reciprocidade das obrigações foi quebrada, a partir do momento em que os defeitos
apresentados foram de tal monta, atingindo a condition, o que deveria levar a resolução.
Em conseqüência, tendo em vista que a consideration traduz a cláusula obrigatória de um contrato, em que uma das partes promete à outra uma remuneração, lucro, benefício,
monetariamente quantificável, em troca do que a outra prometeu fazer, quando a outra parte
contratante executar a prestação combinada, representando, assim, a reciprocidade exigida nas
obrigações dispostas em um contrato oneroso. Assim, a consideration apresenta-se na relação existente entre a obrigação do devedor prestada com o único intuito de receber a
contraprestação do credor. Nos termos acordados, o vínculo que une os contratantes
concretiza-se nesta expectativa de troca de cumprimento de prestações certas que contêm o
condão de desnaturar a consideration se a inexecução atingir uma condition, sendo esta uma obrigação essencial do contrato.
Essa é a tese de Bernard Gilson que pontua estar a onerosidade do contrato ligada à
reciprocidade das obrigações, sendo a condition a cláusula que afeta diretamente a
consideration, destruindo a correlação existente no início do programa contratual17. Como a existência do contrato depende da reciprocidade entre as obrigações correspectivas, essa
dependência enseja a onerosidade do vínculo, e assim, considerando que a inexecução de uma
condition quebra a consideration completamente, esse descumprimento exclui a reciprocidade, ocasionando um desequilíbrio fatal no contrato descumprido por aquela espécie
de obrigação.
Por sua vez, neste contexto, a warranty ocupa o lugar de obrigação dependente ou secundária, ao passo que “in the law of contracts, a warranty is an agreement which refers to the subject
matter of the contract, but which is collateral to its main purpose, not being an essencial part
17
of it, either from the nature of the case or the agreement of the parties, as stated in
contracts18”.
Na doutrina inglesa, a definição do conceito de warranty insere-se no campo das obrigações laterais ou acessórias porquanto que ao estar ligada colateralmente à obrigação principal,
consiste apenas em um suporte à obrigação principal, mas não atinge a essencialidade do
contrato.
De fato, “na Inglaterra, a cláusula de irresponsabilidade só pode cobrir uma ‘warranty’, e não
a inexecução fundamental, que atinja a essência do contrato19”. Em outras palavras, o
fundamento de irresponsabilidade expresso pela parte inadimplente só é admitido se não
violar a obrigação fundamental (condition), sendo que o descumprimento de uma warranty
possibilita apenas o ressarcimento pela parte inadimplente das perdas e danos à parte
adimplente. Com esta construção, os julgadores passaram a valorar mais o adimplemento em
si, do que o inadimplemento.
Corroborando com o pensamento acima, Ruy Rosado Aguiar20 expõe a diferença entre essas
cláusulas, asseverando que “... a questão do incumprimento a partir da distinção das cláusulas
contratuais entre ‘condition’, de importância fundamental na economia do contrato, e
‘warranty’, cláusula meramente acessória: cabe resolução apenas quando não é cumprida a
prestação correspondente à ‘condition’; a desatenção à ‘warranty’ permite a indenização”.
De acordo com essa diferenciação, portanto, o prejudicado teria direito à resolução
exclusivamente em casos em que uma condition estivesse em jogo, e pela sua inexecução causar o desequilíbrio do programa contratual. Por este sistema, a violação de uma condition
quebra a interdependência das obrigações correspectivas, impedindo que o inadimplente tenha
direito a receber qualquer coisa em razão da resolução do contrato, perdendo o que
eventualmente já tenha executado ou as eventuais despesas de elaboração e preparação do
cumprimento da obrigação.
18
M. Will. Commentary on the International Sales law. p. 342.
19
GILSON, Bernard. Idem, p. 173 e ss.
20
No caso C. x J., o julgador Lorde Kenyon, aprofundando as idéias de Lorde Mansfield,
julgador do primeiro caso inglês propulsor dessa Teoria (Boone versus Eyre) a respeito da
condition, apreciou o caso em que o autor havia permitido a exploração de um brevê de invenção e também se comprometido a instruir o comprador no uso dessa invenção.
Descumprida a segunda parte do contrato, o vendedor obteve sentença favorável, sob o
seguinte fundamento: “A parte mais importante da ‘consideration’ era constituída do direito
de utilizar a carta e não da ajuda do inventor, pois uma vez que Campbell (autor) havia
fornecido essa parte essencial, Jones (réu) devia pagar a totalidade do preço global, com o
direito de demandar indenização em reparação da inexecução da parte secundária da
‘consideration’21”.
Por esse julgamento, que forma mais um precedente da Teoria do adimplemento substancial,
na jurisprudência inglesa, observamos que o liame existente na considerantion entre a
condition (in casu, o direito de uso do brevê de invenção) e a warranty (in casu, o dever de instruir o comprador no uso daquela) é individualmente tratado, na medida em que a
inexecução da primeira enseja a resolução, mas o descumprimento da segunda ocasiona
apenas uma indenização por perdas e danos.
Contudo, com o desenvolvimento desta Teoria e o aumento da complexidade nas relações
formadas nos contratos, começou-se a ficar mais difícil identificar a importância que a
condition deveria assumir para formar a obrigação principal do contrato, a qual ensejava a resolução se fosse descumprida; e a warranty por ser obrigação secundária, apenas ocasionaria uma indenização, iniciando-se um período no qual questionamentos surgiram no
sentido de que, às vezes, uma obrigação secundária (warranty) pode provocar a quebra da obrigação principal, por ser tão importante a esta e estar intimamente ligada à mesma.
Esses questionamentos levaram a remodelação da estrutura do instituto no sistema inglês, a
partir do momento que se descartou o sistema da distinção entre cláusulas condition e
warranty para apurar a existência do adimplemento substancial, e com a nova conceituação de
21
inadimplemento fundamental (fundamental breach) que se apresenta como o único passível de resolução do contrato, por ocasionar um prejuízo substancial imprevisível e dentro dos
limites de razoabilidade da conduta da parte inadimplente. Assim, por exclusão, as hipóteses
que não ventilam violação à obrigação fundamental ensejam a caracterização do
adimplemento substancial (substancial performance) ao se verificar objetivamente a maior proporção da parte cumprida da prestação, a ausência de importância da obrigação
descumprida e da pouca, quase nula, gravidade do inadimplemento.
Assim, no atual sistema anglo-saxão, apesar de admitida a extinção extrajudicial da relação
obrigacional de um negócio jurídico, ela somente é cabível quando há inexecução total ou
parcial de cláusula essencial, ou inexecução substancial, características essas que têm levado
aos aplicadores do direito a considerar a opção pela resolução como subsidiária, pois se não
houver a configuração da quebra da essência da obrigação principal, não há que se falar em
resolução, mas sim em manutenção do contrato, com a conseqüente indenização à parte
inocente por meio do pagamento das perdas e danos causados pela inexecução da parte
mínima, não essencial, do contrato.
No direito inglês, como o remédio resolutivo pode ser aplicado, sem a necessidade do
ajuizamento de uma ação, isso enseja mais cautela ainda na configuração da existência de um
inadimplemento fundamental ou não, a fim de evitar o abuso de direitos ou desequilíbrio
contratual. É fato que o inadimplemento do contratante enseja o desfazimento do vínculo
contratual ou possibilita a parte adimplente ajuizar a ação para compelir o cumprimento
cumulado com indenização por perdas e danos. Todavia, enquanto a resolução legal –
originária de cláusula contratual expressa que se opera de modo automático – é efetivada,
obrigatoriamente, mediante a ação constitutiva promovida pela parte adimplente no sistema
pátrio, no sistema inglês, a parte adimplente goza de um poder inerente à esfera privada, como
uma autotutela, ao exercer seu exercício privado de resolver o contrato.
Na jurisprudência inglesa, em casos mais recentes de aplicação da Teoria do aimplemento
substancial, vislumbramos o parâmetro da configuração deste instituto pela verificação da
ausência da violação de obrigação fundamental, bem como a coibição de agravamento do
No caso Mondel versus Steel, o cerne do julgamento envolveu questão processual, mas a passagem freqüentemente citada pelo julgador B. Parke refere-se à inexecução do contrato
diante da valoração da importância e gravidade do inadimplemento de obrigação não
essencial. Neste processo, Mondel contratou a construção de um navio para Steel, o qual não
suportou nem a primeira viagem, em razão do mau tempo. Diante desse prejuízo, Mondel
ajuizou ação, cobrando o ressarcimento deste. No julgamento, vislumbrou-se que o
descumprimento de obrigação não fundamental ensejou a manutenção do contrato, bem como
o recebimento pelo contratado do preço ajustado no contrato de trabalho, mas, em
contrapartida, considerou legítimo o pedido de Mondel de ser ressarcimento pelas despesas
despendidas para consertar o navio, nos seguintes termos: (8 M. & W. 870): “... the law
appears to have constructed the contract as not importing that the performance of every
portion of the work should be a condition precedent to the payment of the stipulated price,
otherwise the least deviation would have deprived the plaintiff of the whole price; and
therefore the defendant was obliged to pay it, and recover for any breach of contract on the
other side.22”
Por este precedente, a codificação inglesa demonstra ter concretizado no sistema da common law a vedação de que qualquer parte da prestação descumprida deve ser uma condição precedente para a realização do pagamento do preço estipulado. Por outro lado, um mínimo
desvio insignificante do cumprimento da prestação priva o contratado de receber o preço
integral, e portanto, o contratante está obrigado a pagá-lo diante do adimplemento substancial,
mas descontando-se as perdas e danos pela quebra mínima e sem importância do programa
contratual; ou caso o pagamento já tenha sido realizado, postular pelo recebimento da
indenização por perdas e danos.
Com esse delineamento concreto formado a partir de precedentes semelhantes ao julgamento
retro mencionado, concluímos que na atual estruturação do sistema inglês o adimplemento
substancial existe, é aplicável, diante da execução da maior e mais importante parte da
prestação em contrapartida ao descumprimento de parte mínima da obrigação, satisfazendo
22