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Narrativa e imaginário na América Espanhola

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Academic year: 2020

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NA AMÉRICA ESPANHOLA

H e l o í s a Costa M I L T O N1

• RESUMO: Parte significativa da novelística hispano-americana é indagação estética sobre a história que, a partir de Colombo, começou a ser escrita no novo continente. Como se sabe, essa história apresenta contornos singulares na medida em que foi impulsionada, dentre outros fatores, tanto pela imaginação reinante na mentalidade européia da época quanto pelas fontes mitológicas que organizavam o saber indígena. Como conseqüência, na América Espanhola imaginação, história e narração constituem extratos culturais solidários, em permanente relação. É intuito deste trabalho abordar aspectos da história cultural hispano-americana em função dos tópicos narração e imaginação, considerados preponderantes na constituição do processo formador das identidades americanas.

• PALAVRAS-CHAVE: Ficção e História; mito e imaginação; narrativa hispano-america-na; conquista da América; Carlos Fuentes.

Este trabalho pretende ser um breve passeio por aspectos histórico-culturais relativos às origens da A m é r i c a Espanhola, em função de elementos que vitalizam o título proposto: i m a g i n a ç ã o / a ç ã o / n a r r a ç ã o , elementos cuja ordem, neste caso, é perfeitamente intercambiável na medida em que constituem "signos em rotação", nos termos do l i v r o de O c t á v i o Paz, no que diz respeito ao â m b i t o cultural focalizado.

Na América Espanhola, imaginação, história e narração mantiveram sempre estreita solidariedade. Se considerarmos os seus primórdios, veremos que um contigente expressivo de mitos, lendas, sonhos, desejos e emoções, chancelado pela fantasia e a imaginação européias, marcou os fatos dramáticos e decisivos que inscreveriam o continente, definitivamente, na civilização ocidental.

A propósito, vale assinalar que grande parte da novelística hispano-americana é resposta à crise historiográfica e literária inaugurada por C r i s t ó v ã o Colombo, no momento em que tomou posse das terras ignotas para a coroa espanhola, batizou-as imediatamente de índias, e recobriu-as com as excelências de modelos asiáticos imaginários oriundos da mentalidade de seu tempo, a despeito de u m mundo que primava pelo desajuste a esses mesmos modelos. O continente, no tocante ao primeiro gesto identificador referendado pela escritura de Colombo, começou sendo uma porção da Ásia, fator que i m p r i m i r á contornos surreais ao processo de hispanização, a ponto de se considerar que, como portador da idealização européia, Colombo trouxe para o continente uma identidade j á fabricada, inventada anteriormente por uma sucessão

1 Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Assis.

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de imaginários; aqui aplicou-a de forma intransigente e narrou-a com toda a convicção, gerando o trajeto histórico irreversível, que conhecemos de sobra.

Assim sendo, os documentos colombianos - protocolos narrativos e descritivos que constituem o

verbo

fundacional do que seria a A m é r i c a e g ê n e s e da sua

escritura

subseqüente - são decorrências de arquétipos míticos com que Colombo operou antes, durante e depois da façanha histórica de 1492 e que lhe serviram, quando postos em a ç ã o , como motores de

"un proceso de desconocimiento, instrumentalización y

destrucción de la nueva realidadamericana"'(Pastor, 1983, p.17), segundo palavras

de Beatriz Pastor.

Essa i n t e r p r e t a ç ã o g r a t u i t a e t e r g i v e r s a d a da r e a l i d a d e , r e p l e t a de c o n t r a d i ç õ e s , variedade de sentimentos e e q u í v o c o s , d á - s e , portanto, à r e v e l i a do Teferente, ainda que historicamente o registre e acabe pondo em e v i d ê n c i a a viabilidade do programa expansionista europeu. E i x o gerador de uma g a l á x i a de imagens sobrepostas ao meio e suficientemente á g e i s para favorecer o apocalipse do universo cultural i n d í g e n a , a i l u s ã o de ó t i c a h i s t ó r i c a colombiana (novamente as palavras s ã o de Paz), que se t r a n s f o r m o u em i n s t r u m e n t o p o l í t i c o de d o m i n a ç ã o , é t e n s ã o a t é hoje revirada pelas i n d a g a ç õ e s m i t o - p o é t i c a s que c o m p õ e m a

estrutura de busca

e a v o c a ç ã o h i s t ó r i c a que c a r a c t e r i z a m a n o v e l í s t i c a do continente.

Roberto Gonzalez Echevarria assinala, no tocante ao d i l e m a da o r i g e m e à p r o d u ç ã o literária propriamente dita, aspectos bastante instigadores. D i z o c r í t i c o que a h i s t ó r i a da A m é r i c a c o m e ç o u a ser registrada nos moldes narrativos e de pensamento da Idade M é d i a , cujo t o m v i s i o n á r i o e o esquema providencialista acabaram marcando a narrativa posterior. Nesse sentido, o f e n ô m e n o chamado "descobrimento" significou uma ruptura d r á s t i c a , pois desencadeou uma crise na historiografia vigente ao trazer o

novo

e o

desconhecido

para u m mundo que, aparentemente, j á estava mais ou menos conceituado e d e l i m i t a d o , abrangendo as partes conhecidas que c o n s t i t u í a m o globo terrestre. Para que o saber da é p o c a explicasse o território novo e desconhecido, f o i n e c e s s á r i o recorrer à i m a g i n a ç ã o , como fizeram Colombo e os historiadores que o sucederam, os famosos "cronistas das í n d i a s " , que encenaram,

na

e

pela

linguagem, o ritual discursivo de tomada de posse das zonas que, convenientemente, consideraram "terra de n i n g u é m " .

A i n d a em suas f o r m u l a ç õ e s , Gonzalez E c h e v a r r i a aborda u m aspecto especialmente interessante para o nosso tema. E x p l i c a o c r í t i c o que "Los cantos

dei edifício histórico que los cronistas quisieron construir estaban unidos por

la argamasa mágica de la imaginación y fantasia. Sin proponérselo, estos

historiadores echaron los cimientos de lo que vendría a ser la gran narrativa

americana de nuestros dias."

(Gonzales Echeverria, 1984, p. 10). E completa o pensamento afirmando que todo

"esfuerzo narrativo que parta de una conciencia

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americana tiene que invocar la crisis, casi como una espécie de deidad propiciatória''(1984, p. 10).

A crise h i s t o r i o g r á f i c a do i n í c i o da A m é r i c a espanhola é, pois, o celeiro deflagrador de uma vasta cultura l i t e r á r i a , que transita do legado i n d í g e n a p r é -h i s p â n i c o , passa pelo acervo formado pelas " c r ô n i c a s das í n d i a s " e a l c a n ç a as obras dos autores c o n t e m p o r â n e o s , em f u n ç ã o de uma h i s t ó r i a transformada, desde o c o m e ç o , em anais do g ê n e r o f a n t á s t i c o ; uma h i s t ó r i a que congrega diversidades perfiladas em dois blocos a n t a g ô n i c o s , cada u m contendo suas p r ó p r i a s diversidades internas; uma h i s t ó r i a que é, em suma, u m conglomerado de multiculturalismos.

Mas no princípio de tudo foi a viagem. A A m é r i c a , como se sabe, foi, em algum momento l o n g í n q u o , um continente vazio, que progressivamente f o i ocupado por ondas de viajantes de origem asiática, através do M a r de Bering. Estima-se que o evento f o i d e c o r r ê n c i a de geleiras que acabaram formando uma plataforma de u n i ã o entre a A m é r i c a e a Ásia. A propósito da q u e s t ã o , Carlos Fuentes explica que:

Sobre este puente, a pie, nómadas en pequenos números comenzaron a entrar en el hemisfério occidental hace 65000 anos (acaso sólo 30000). Talladores, cazadores, cavernícolas cazaron al mamut antes de su extinción. Recorrieron vastos espacios, de las montahas a los desiertos, a los valles y a las selvas. (...) Pero entre 75000 y 2500 antes de Cristo, el descubrimiento de la agricultura los convirtió en cultivadores sedentários reunidos en aldeãs. (Fuentes, 1992, p. 99)

A aldeia, e s p a ç o primordial da agricultura, vitalizou-se como o ponto de aglutinação de i n ú m e r o s imigrantes, que foram ocupando territórios através dos processos que, notoriamente, engendraram o conjunto das civilizações: ê x o d o s , invasões, guerras, encontros, saques, piratarias, a c o m o d a ç õ e s , c o m é r c i o , conquista, c o l o n i z a ç ã o , etc. A essas formas de e x p a n s ã o acrescem-se outras, as viagens ao imaginário, viagens que, na A m é r i c a Hispânica, sedimentaram o mito como via de organização, na esfera do mágico, dos fenômenos naturais, sobrenaturais e humanos. Essa A m é r i c a dos desbravadores pioneiros deflagrou, portanto, uma história a l i c e r ç a d a no culto ao m i t o , à magia, à lenda. Tais componentes, de c a r á t e r essencialmente narrativo e cerimonial, tecem nos seus vestígios, ruínas, resíduos e monumentos, os fatos concretos que explicam, pelas ciências humanas, a p r e s e n ç a exuberante dos viajantes que, ao descobrirem a agricultura, agregaram-se, povoando o continente.

Na antiga região que vai do M é x i c o à Nicarágua, a agricultura - prescreve certa versão da mitologia indígena - originou-se do primeiro grão de milho. Elemento sagrado da comunidade dos deuses, que era regida pela supremacia do Sol, o milho foi descoberto, em meio a inúmeras disputas, por um deus chamado Quetzalcóatl, a

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serpente emplumada, com a ajuda de uma formiga. Foi e n t ã o doado aos seres que viviam em estado brutal, para que constituíssem humanidade. Quetzalcóatl é, portanto, o deus da agricultura, da humanidade e da civilização na m e m ó r i a indígena. Como mito, vai ser decisivo na história da conquista do M é x i c o e a c o n s e q ü e n t e caída do poderoso império asteca, pois contribuirá para a c o n s o l i d a ç ã o , por parte dos astecas, de atitudes religiosas que supuseram o temor e a expectativa de uma grande tragédia cósmica: a chegada do tempo da destruição.

A visão de mundo asteca era orientada pelos ditames mágicos do chamado ciclo dos Cinco Sóis, que norteava a organização do seu calendário. Carlos Fuentes, que relata tal versão do mito, fornece-nos uma síntese dessa tradição:

A medida que evoluciono de la aldeã ao centro ceremonial, a la ciudad y al império, el mundo aborigen de Mesoamérica, la región que se extiende dei centro de México hasta Nicarágua, cultivo mentalmente un conjunto de creencias en cuyo centro se encontraba la idea de que el mundo había sido creado no una sino diversas veces. Esta creencia, desarrollada por los aztecas en la leyenda de los Cinco Soles, nos es relatada en el calendário solar, donde el centro dei disco lo ocupa la imagen dei sol, que nos muestra la lengua, significando que el sol brilla, y enmarcada por las cuatro direcciones que indican las cuatro creaciones previas dei mundo y las catástrofes que sufrieron. El primer sol fue destruído por un jaguar, el segundo, por los vientos feroces; el tercero, por la lluvia incesante; el cuarto por las aguas dei gran diluvio. (Fuentes, 1992, p. 101)

Quanto ao Quinto Sol, refere o tempo da c r i a ç ã o e p e r m a n ê n c i a dos homens, o tempo nascido do sacrifício dos deuses que d e m a n d a r á , para a p r e s e r v a ç ã o e o adiamento da "catástrofe solar", o sacrifício humano, nessas sociedades organizadas pelo teor sacrificial, conforme esclarece Fuentes.

O estigma c o s m o g ô n i c o do Quinto Sol, associado ao mito de Quetzalcóatl, constituem, assim, fundamentos imaginários que ensejam eventos marcantes da história do continente e do seu próprio legado narrativo. Esse legado predominantemente oral e pictográfíco, como se pode verificar, é anterior à p r e s e n ç a espanhola no N o v o Mundo e, tecendo-o, o mito de Quetzalcóatl revela-se estrutura modelar.

Reverenciado por inúmeras civilizações indígenas, antes mesmo do advento dos astecas, como o grande depositário das reservas morais da humanidade, organizador do caos, inventor das artes, das ciências e de tudo o que a habilidade humana origina, Quetzalcóatl é o princípio da criação. Invocado por meio de múltiplos relatos míticos, objeto de contraditórias metamorfoses e representações, s í m b o l o da vida em oposição ao sentido da morte, Quetzalcóatl é t a m b é m aquele que foi obrigado a abandonar os seus d o m í n i o s , mas que prometeu voltar para retomar o seu reinado de j u s t i ç a e paz. Semelhante configuração lendária será decisiva na história protagonizada por Cortês.

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Fuentes sintetiza uma das versões desse mito, transmitida por informantes indígenas ao padre Bernardino de S a h a g ú n no M é x i c o . O relato contempla em seu interior uma lógica que se harmoniza perfeitamente, ou melhor, de maneira trágica, com a narrativa dos fatos históricos da conquista do M é x i c o . Estabelece a versão que o deus, que v i v i a na cidade imperial de Tula, recebeu u m dia a visita de d e m ô n i o s , deuses menores do panteão indígena capitaneados por um membro diabólico condenado a ser eternamente j o v e m , denominado Tezcatlipoca, nome que significa "Espelho Fumegante". Entregaram então a Quetzalcóatl, na forma de presente, u m espelho. O deus, ao ver-se refletido no objeto, gritou de pavor. Ele, que se acreditava dotado só de integridade divina, acabara de contemplar u m rosto humano, o seu próprio rosto, imagem que lhe deu a consciência vir a ser vítima de u m destino t a m b é m humano.

A l é m disso, a imagem traduziu-se num signo nefasto, pois o rosto refletido revelou, premonitoriamente, os traços de um homem barbado, aloirado e de olhos claros. Cumprido o ataque, folgaram-se os d e m ô n i o s . Nessa noite, Quetzalcóatl se embebedou e cometeu incesto com sua irmã. Na m a n h ã seguinte, envergonhado de sua fraqueza, partiu em fuga, navegando em d i r e ç ã o ao oriente, numa e m b a r c a ç ã o formada por serpentes revestidas de plumas. Todavia, conclamou sua volta para o ano Ce Ácatl, o A n o da Cana, que no calendário asteca coincidiria com 1519, ano em que Cortês desembarcou na costa mexicana fazendo ressoar, com toda a intensidade, os maus presságios que ao longo de anos vinham anunciando, para a visão indígena, o cumprimento da profecia temida, isto é, o regresso do mito.

A c r e n ç a no retorno do m i t o e na i m i n ê n c i a de c o n s u m a ç ã o dos d e s í g n i o s do Q u i n t o S o l , assim c o m o a chegada da armada de C o r t ê s , o u a j u n ç ã o de i m a g i n á r i o e e v e n t o c o n c r e t o , s ã o f a t o r e s que o c a s i o n a r a m o que se c o n v e n c i o n o u chamar eufemisticamente de "o s a c r i f í c i o asteca", o gesto de auto-entrega aos antagonistas da n a ç ã o , u m gesto d e c i s i v o que encerra o c i c l o das c i v i l i z a ç õ e s i n d í g e n a s na r e g i ã o central do c o n t i n e n t e . C o m o se nota, os fatos h i s t ó r i c o s e m í t i c o s do passado p r é - h i s p â n i c o ensejam as o c o r r ê n c i a s cruciais da conquista do M é x i c o .

Neste ponto vale a pena recordar a h i s t ó r i a dos astecas. N o c o m e ç o do s é c u l o X I V , esses guerreiros, provenientes dos desertos da A m é r i c a do Norte, chegaram ao vale do M é x i c o e, por meio de sucessivas lutas, submeteram as n a ç õ e s existentes nesse t e r r i t ó r i o , especialmente a dos toltecas, que h a v i a m a l c a n ç a d o um elevado grau de c i v i l i z a ç ã o inclusive pela c o n d i ç ã o de herdeiros do i d e á r i o moral, p o l í t i c o e religioso representado por Q u e t z a l c ó a t l . N o t e r r i t ó r i o hoje ocupado pela cidade do M é x i c o , fundaram em 1325 a cidade i m p e r i a l de Tenochtitlan, urbe p i r a m i d a l c o n s t r u í d a sobre as á g u a s do lago Texcoco, para, a partir dali, reinarem de forma absoluta e tirânica. A o nome da cidade acrescentaram um prefixo, México, que em l í n g u a nahuatl significa simbolicamente " u m b i g o da lua".

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N o entanto, os astecas n ã o apenas f o r a m vistos pelas t r i b o s subjugadas c o m o os invasores que " c a r e c i a m de r o s t o " , p o r n ã o p o s s u í r e m l a s t r o e t r a d i ç ã o , c o m o eles t a m b é m c u l t i v a r a m a c o n s c i ê n c i a de que n ã o e r a m o c u p a n t e s l e g í t i m o s d o s t e r r i t ó r i o s s o b sua a d m i n i s t r a ç ã o . C o m o c o n s e q ü ê n c i a , c o n c o m i t a n t e m e n t e à a ç ã o b é l i c a i m p u s e r a m a si mesmos a busca de u m legado m o r a l que lhes conferisse r e s p a l d o aos i m p u l s o s de d o m i n a ç ã o e poder. A s s i m , encontraram no u n i v e r s o d o u t r i n á r i o e r e l i g i o s o s que e n v o l v i a a n a r r a t i v a sobre o deus e x i l a d o a s o l u ç ã o para o impasse, e se apossaram do m i t o p a u l a t i n a m e n t e , no a f ã de o r g a n i z a r a n o v a o r d e m i m p e r i a l .

A partir do momento em que se assumem c o m o herdeiros de Q u e t z a l c ó a t l , a t r a j e t ó r i a h i s t ó r i c a dos astecas s e r á marcada pela a n g ú s t i a do c u m p r i m e n t o da p r o f e c i a de d e s t r u i ç ã o e a l i m e n t a d a p o r u m sistema de poder feroz e i m p l a c á v e l , cuja plataforma p o l í t i c o - r e l i g i o s a se a l i c e r ç a v a na e s c r a v i d ã o e no r i t u a l do s a c r i f í c i o humano, em b e n e f í c i o do adiamento da " t r a g é d i a do Q u i n t o S o l " . C o n t u d o , sabendo-se i l e g í t i m o s , n ã o r e a g i r a m quando f o r a m atacados pelos "homens loiros, barbados e de olhos claros", aqueles que, eles supuseram, haviam chegado do oriente para a i n t e g r a ç ã o de posse d a q u i l o que, por d i r e i t o , lhes pertencia. Sendo assim, consumaram o ato da entrega.

C o r t ê s relata no acervo documental conhecido c o m o "Cartas de R e l a c i ó n " , cinco extensas e p í s t o l a s a t r a v é s das quais ele d á testemunho, c o m o a r t í f i c e e narrador, da h i s t ó r i a da conquista do M é x i c o , o discurso c o m que M o n t e z u m a , detentor da fala no universo s i m b ó l i c o , recebeu-o em Tenochtitlan, u m discurso que se fez acompanhar pela entrega r i t u a l de presentes em ouro, prata, plumas e outros bens:

Muchos dias ha que por nuestras escrituras tenemos de nuestros antepasados noticia de que yo ni todos los que en esta tierra habitamos no somos naturales de ella sino extranjeros y venidos a ella de partes muy extrahas y tenemos asimismo que a estas partes trajo nuestra generación un seiior cuyos vasallos todos eran, el cual se volvia a su naturaleza ... y siempre hemos tenido que los que de él descendiesen habían de venir a sojuzgar estas tierras y a nosotros como a sus vasallos y según de la parte que vos decís que venís, que es a donde sale el sol y las cosas que decís de ese gran seiior que acá os envio, creemos y tenemos por cierto que él sea nuestro seiior natural ... y por tanto vos sed cierto que os obedeceremos ... y no recibáis pena alguna, pites estais en vuestra casa y naturaleza.(Cortês, 1988, p. 116-7)

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Como se constata, o discurso de acolhimento ao exército espanhol, cuja expansão o m a n d a t á r i o asteca não conseguiu frear nem com o trabalho dos seus magos e bruxos, reflete a entrega de um povo ao poder do rei conclamado pelos e s p a n h ó i s que, embora fosse recebido como uma imagem difusa, j á estava perpetuado, em forma de símbolo nos anais do sagrado, como o legítimo senhor do reino. Aproveitando-se da situação, habilmente Cortês estabelece a c o n e x ã o entre o imperador Carlos V, na c o n d i ç ã o de representante do deus verdadeiro (o católico), e o deus legitimado pela crença indígena, identificando ambos personagens em benefício de seus propósitos guerreiros. Quando os astecas percebem que aqueles enviados n ã o s ã o propriamente os vassalos de Quetzalcóatl e consumam a r e a ç ã o aos invasores, a batalha j á está perdida e o i m p é r i o , subjugado, será irreversivelmente destruído.

Os signos perpetrados pela m e m ó r i a oral dos nativos favoreceram C o r t ê s2,

fazendo história e mito se entrelaçarem de forma a m b í g u a mas definitiva. Quanto a C o r t ê s , homem típico de seu tempo, meio e mentalidade, nesse capítulo decisivo da hispanização da América, consagrou-se como o protótipo do conquistador. Seu principal legado jurídico-narrativo, as cinco cartas que reportam, com detalhes, a visão européia das e x c e l ê n c i a s do N o v o Mundo e a a ç ã o de expoliar e destruir essas mesmas excelências, é discurso centralizado na figura imbatível dele próprio, fato que enseja o aparecimento de novo cabedal de imaginação ligado aos caminhos seguidos pela história da A m é r i c a : o mito do conquistador.

O discurso de Cortês é uma arquitetura verbal articulada sobre duplo eixo, no que se refere à i n t e n ç ã o verbal: conferir legitimidade à sanha conquistadora e "conquistar" o destinatário imediato da mensagem, o imperador Carlos V, de quem o guerreiro espanhol esperava reconhecimento e glória, após a conquista do i m p é r i o indígena. Cortês pertencia a uma família de fidalgos pobres. Nascido em 1485 em Medellín, Extremadura, sofreu influência de sua r e g i ã o de origem, marcada por uma longa tradição de lutas (guerra contra os m u ç u l m a n o s ; antagonismo castelhano-p o r t u g u ê s ; sucessão de Enrique I V ) , que i m castelhano-p r i m i u nos seus homens um sentido de cruzada, do qual o espírito cavaleiresco foi uma marca notável. Tinha 33 anos quando foi nomeado chefe da expedição que saiu de Cuba para conquistar o M é x i c o , façanha realizada no curto e s p a ç o de 1519 a 1521. No entanto, vale ressaltar que o feito de Cortês n ã o lhe garantiu a ascensão social pretendida à esfera nobre, embora lhe tenha granjeado o a c ú m u l o de considerável riqueza. A p ó s consumar a ação bélica, C o r t ê s tornou-se o conquistador conquistado, uma espécie de desafeto da coroa espanhola, fato que o impediu de ser senhor do reino que granjeara.

Sob a a p a r ê n c i a de documento s ó l i d o e verdadeiro, sua escritura é uma c r i a ç ã o peculiar, j á que, como "cronista das í n d i a s " , C o r t ê s é, sobretudo, cronista

Cf. TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro.

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das suas p r ó p r i a s f a ç a n h a s , fator preponderante na e d i f i c a ç ã o da figura do conquistador, aquela que sai da ficção para ingressar na h i s t ó r i a .

Esse super-herói de carne e osso, i m b u í d o do afã guerreiro e impulsionado pelo lema hispânico do ouro, a glória e o evangelho, nutre-se não apenas das circunstâncias bélicas de seu meio e seu tempo, mas t a m b é m (ou principalmente) de leituras de i m a g i n a ç ã o . A energia e o dinamismo p s í q u i c o que o caracterizam instruem-se num antecedente literário dos mais significativos para a mentalidade reinante. Trata-se dos romances de cavalaria, que contabilizam u m r o l de feitos notáveis e v ã o de encontro, como a r c a b o u ç o escriturai, ao conjunto de lendas, mitos e fabulações que, desde a Antigüidade, povoaram os sonhos dos europeus e que, no Novo Mundo, representaram a materialização do desejo e a d i s s e m i n a ç ã o da certeza da posse de u m território de maravilhas.

Os livros de cavalaria, conhecidos como "livros mentirosos" pelo caráter fantástico do seu c o n t e ú d o , que eclipsava nos leitores a p e r c e p ç ã o da linha divisória entre i m a g i n a ç ã o e realidade, foram alvo de verdadeira febre de leitura na Espanha, transformando-se em uma sorte de loucura nacional. E m virtude da r e s s o n â n c i a extrema de tais livros, o Estado viu-se obrigado a ditar normas, em meados do século X V I , com o f i m de coibir a sua leitura, embora o consumo só tenha declinado a partir do momento em que, por excesso de r e c e p ç ã o e pela repetição da forma narrativa exaustivamente calcada na imaginação, as obras esgotaram-se como literatura atraente junto ao público-leitor.

Primeiros livros realmente populares, consumidos desde os palácios e monastérios até a praça pública (monarcas, religiosos, estadistas, santos, e n ã o t ã o santos assim, formavam uma massa de leitores), os romances de cavalaria s ã o os s u c e d â n e o s de uma notável tradição oral e manuscrita, as c a n ç õ e s de gesta, a poesia dos trovadores e menestréis errantes, os romanceiros e outras modalidades artísticas correlatas, que configuravam a experiência coletiva em feitos de caráter extraordinário, r o m â n t i c o , místico, idealista, ou mesmo mundano, transmitidos t a m b é m de forma coletiva. Entretanto, o aparecimento na Espanha, em torno de 1473, desse meio multiplicador que foi a imprensa trouxe à baila a experiência individual e solitária da leitura, abrindo um campo mais amplo de fertilização do i m a g i n á r i o , j á que, no r e c ô n d i t o das idiossincrasias individuais, a imaginação desconhece fronteiras.

Por meio da imprensa, torrentes de l i v r o s c o m narrativas pretensamente a u t ê n t i c a s , mas plenas de feitos p r o d i g i o s o s , encantamentos, lugares ermos habitados por monstros, riquezas i n c a l c u l á v e i s escondidas e à espera de u m herói tributário, foram assimilados como obras portadoras de c o n t e ú d o s h i s t ó r i c o s por leitores que, ainda que pertencentes às elites intelectuais, mostraram-se receptores emotivos e a t é pueris, que acreditaram piamente na verdade e na n o v i d a d e daquelas "letras de m o l d e " , o u , n u m a c o n c e p ç ã o mais p o p u l a r , daquelas "letras que f a l a v a m " a p a r t i r do papel.

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Os romances de cavalaria funcionaram, portanto, c o m o provedores de i m a g i n a ç ã o e elevaram à esfera m í t i c a a figura do guerreiro merecedor de fama, fortuna e nobreza por seu e s f o r ç o i n d i v i d u a l , resultado da c o n j u n ç ã o de valores tais como honra, r o m a n t i s m o , coragem, e x a l t a ç ã o m í s t i c a , a m b i ç ã o e p a i x ã o pela aventura. Esse ideal de guerreiro, c o n s t r u í d o na esfera f i c c i o n a l e na gesta h i s t ó r i c a , f o i assumido plenamente pelo aventureiro espanhol, aquele que, sentindo-se conveniado c o m Deus, n ã o hesitou em concretizar os seus modelos i m a g i n á r i o s no N o v o M u n d o . O choque diante da nova realidade a g u ç o u a a ç ã o e a fantasia e, como c o n s e q ü ê n c i a , transformou-as em i m p o r t a n t e acervo de narrativas h i s t o r i o g r á f i c a s . Trata-se das c r ô n i c a s do N o v o M u n d o , que s ã o , em ú l t i m a i n s t â n c i a , u m i n v e n t á r i o de exotismo que assinala, desde os escritos de C o l o m b o , a t r a n s g r e s s ã o discursiva da realidade.

E m f u n ç ã o disso, a A m é r i c a , circunscrita constantemente à i d e o l o g i a da " m a r a v i l h a " , torna-se o e s p a ç o do que é e x t r a o r d i n á r i o , pela possibilidade de escoamento desse imenso cabedal m i t o l ó g i c o propulsor da a ç ã o da conquista. O bravo guerreiro, dessa f o r m a , i m p õ e ao continente os seus anseios, exerce d o m i n a ç ã o e relata, mesmo que por uma ó t i c a enviesada e à sua maneira, os dotes e os eventos da terra, moldando-a d e f i n i t i v a m e n t e .

E m tal contexto, a A m é r i c a de portentos torna-se o foco de projeções a m b í g u a s , equivocadas e contraditórias, oscilando da figuração do paraíso terrenal e seu correlato imediato, o lugar da utopia, o lugar que não é, até a caracterização inversa, a do e s p a ç o da materialização do inferno, p o r é m , um inferno atraente j á que repleto de ouro, índias e bens de natureza diversa. A l é m disso, para alívio da consciência católica e equilíbrio da balança comercial espanhola, a A m é r i c a é vislumbrada como u m espaço pagão, com enorme contingente humano carente de evangelho e freqüentemente retratado como desejoso de se entregar à "verdadeira religião".

Assim, diante dos seres e das coisas da terra, o conquistador m a n t é m atitudes diversas: exalta-os, admira-os, emociona-se com êxtase místico ao contemplar a realidade inédita, mas ao mesmo tempo toma posse, renomeia, batiza, tortura, mata, transgride, destrói. E mais: registra discursivamente as o c o r r ê n c i a s , estimulado por sua fantasia liberada.

S ã o famosos, nesse sentido, os constituintes d a q u i l o que comumente se i n t i t u l a o " B e s t i á r i o das í n d i a s " . Fontes da juventude, ilhas resplandecentes em ouro, sereias, monstros de todos os tipos, amazonas guerreiras, elixires da vida, bons selvagens, bestas humanas, o Eldorado e uma i n f i n i d a d e de insumos do i m a g i n á r i o c o i n c i d e m , nessa "terra de n i n g u é m " , c o m uma natureza gigantesca e esplendorosa; plantas e frutos j a m a i s vistos; rios que parecem oceanos; c o r d i l h e i r a s que t o c a m o c é u ; selvas i n d o m á v e i s ; culturas absolutamente desconhecidas; gente de c o m p l e i ç ã o física e comportamento i n d e s c r i t í v e i s ; a l é m disso, c o i n c i d e m com as minas de prata do Potosi; u m j a r d i m de ouro no Cuzco;

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a o p u l ê n c i a e grandiosidade de Tenochtitlan, configurando-se, assim, u m universo i l i m i t a d o para o e x e r c í c i o da i m a g i n a ç ã o , a a m b i ç ã o e a a ç ã o c o l e t i v a do mundo europeu.

Os relatos dos cronistas d e i x a m patente essa c o n j u n ç ã o de f i c ç ã o e h i s t ó r i a que define a A m é r i c a h i s p â n i c a e que r e c r i a / c o n s t r ó i sua m e m ó r i a , arte, cultura, t r a j e t ó r i a l i t e r á r i a . Quando C o l o m b o d á a entender, no seu Diário de bordo do descobrimento, que os m a g n í f i c o s í n d i o s andam nus como suas m ã e s os pariram porque s ã o pobres; quando afirma que s ã o jovens e n ã o t ê m mais de 30 anos; quando Bernal Diaz dei Castillo s ó consegue descrever Tenochtitlan comparando-a comparando-aos portentos relcomparando-atcomparando-ados no l i v r o de A m comparando-a d i s e expresscomparando-ando comparando-a d m i r comparando-a ç ã o pelcomparando-as coisas "nunca ouvidas, nem vistas, ou sonhadas"; ou quando o historiador Gonzalo de Oviedo, em sua Historia general y natural de índias caracteriza a e s m e r a l d a nestes t e r m o s : "Restrine los movimientos deleitables de los Injuriosos, y restituye la memoria perdida, y vale contra los fantasmas y las ilusiones dei demónio; apacigua las tempestades y estanca la sangre, y vale a los adivinos, como se dice en el 'Lapidario'"; e n f i m , quando esses cronistas produzem tantos disparates, e de forma a t é p o é t i c a , e s t ã o fazendo h i s t ó r i a , ainda que h i s t ó r i a repleta de i n v e n ç ã o f i c c i o n a l .

E, para concluir esta síntese de fatos e fontes que a l i c e r ç a m a cultura e os processos referentes às identidades da A m é r i c a , vale a pena retomar determinadas " p r o v o c a ç õ e s " de Carlos Fuentes, a respeito dos bravos conquistadores renascentistas, seus feitos, sua ressonância:

Estos hombres, llenos de la confianza que les daba saberse actores de su propia historia, aunque ello signifique también ser víctimas de sus propias pasiones, no llegaron solos. La Pinta, la Nina y la Santa Maria fueron seguidas por la nave de los locos, la navis stultorum dei famoso grabado de Brandt. El vigia se llamaba Maquiavelo, Tomas Moro era el piloto en nuestra embarcación de los necios y el cartógrafo era el encorvado y vigilante Erasmo de Rotterdam. Sus respectivas consignas, los estandartes de su nave eran, respectivamente, esto es, esto debe ser y esto puede ser (Fuentes, 199, p. 55). Isto é a A m é r i c a . Contra a m a r é da ortodoxia p r e d a t ó r i a católica, Maquiavel, Morus e Erasmo chegaram ao N o v o Mundo para aqui misturarem-se e ensejarem novas batalhas. Batalhas que vivemos até hoje, nestes tempos de p ó s t u d o ou p ó s -nada.

MILTON, H. C. Narrative and collective imagination in Spanish-America. Itinerários, Araraquara, n. 15/16, p. 151-161, 2000.

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• ABSTRACT: A significant ammount of the Spanish-American narrative production constitutes an aesthetic questioning of the history that has been written in the new continent since Columbus. As it is known, such history presents specific features which reflect the influence of both the European collective imagination at the time and local mythological sources. These sources served as a catalyst for the local native knowledge. Imagination, history and narrative in Spanish-America constitute, therefore, cultural scopes in constant and close relation. Taking into account relevant aspects of the Spanish-American cultural history, this paper aims at discussing a few elements that belong to American history, grounded on concepts such as narration and imagination, fundamental in the shaping of American identities.

• KEYWORDS: Fiction and history; myth and imagination; Spanish-American narrative; the conquest of America; Carlos Fuentes.

Referências Bibliográficas

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