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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de autonomização do Direito das Contra-ordenações

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(1)

janeiro de 2015

Ana Marta Dias Crespo Pereira

Algumas considerações sobre o princípio da

culpa enquanto factor de autonomização do

Direito das Contra-ordenações

Ana Mar ta Dias Cr espo P er eir a

Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de autonomização do Direito das Contra-ordenações

UMinho|20

(2)

Ana Marta Dias Crespo Pereira

Dissertação de Mestrado

Mestrado em Direito Judiciário

Algumas considerações sobre o princípio da

culpa enquanto factor de autonomização do

Direito das Contra-ordenações

Trabalho realizado sob orientação do

(3)
(4)

RESUMO

“Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações”.

O Direito das contra-ordenações tem-se mantido, ao longo dos anos, um dos lugares jurídicos com maior relevância prática mas, também, um dos ramos cuja solidez mais tem fugido entre os dedos da doutrina e da

jurisprudência. Já se disse que “o direito de mera ordenação social constituiu

um dos ramos do direito mais rebeldes à categorização dogmática e que, por

isso mesmo, tem condenado a doutrina ao destino de Sisifo”1

.

Urge então densificar e autonomizar este ramo do Direito sancionatório. No presente escrito estamos esperançados em dar um pequeno contributo para a reflexão sobre tal autonomia, ainda que apenas no que tange ao princípio da culpa no Direito das contra-ordenações.

Para tanto, começaremos por fazer uma breve resenha sobre a origem e expansão do Direito das contra-ordenações e analisaremos os vários elementos do conceito de contra-ordenação. Passaremos, depois, à análise do estado actual da autonomia deste Direito.

Estes tópicos vindos de referir, embora de pendor mais teórico do que os seguintes, cumprem não apenas uma função de enquadramento, mas, mais importante, constituem premissas indispensáveis ao entendimento que depois advogaremos sobre o funcionamento do princípio da culpa quer como fundamento da coima e sanções acessórias, quer (como defendemos) como limite das mesmas.

Por fim, e pela relevância prática que assume tal questão, sobrevoaremos brevemente a questão da fundamentação da culpa na decisão administrativa e na sentença que versem sobre ilícitos de mera ordenação social.

Delineado o percurso, iniciemos a caminhada.

1

MANUEL DA COSTA ANDRADE, «Contributo para o conceito de contra-ordenação (a experiência alemã)», in AA. VV.,

Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Coimbra Editora, Coimbra,

(5)

A

BSTRACT

“A few ideas about the principle of guilt as anautonomy factor in regulatory law”.

The regulatory law has been, all over the years, and from a pratical perspective, one of the most relevant areas of law, but also one of the most fluid and unexplored areas to doctrine and jurisprudence. It has been said that “regulatory law is one of the most rebel areas of law concerning dogmatic

categorization, and it has condemned the doctrine to Sisifo´s destiny” 2

.

Therefore, we need to densify and to give more autonomy to this area of law.

In this study we hope to give a small contribution to the reflexion about the autonomy of regulatory law but only in what the principle of guilt concerns.

In order to that, we will start by doing a summarized description about the beginning and the expansion of the regulatory law and we will also focus on the elements of the concept of the ilicit of this type of law.

After that, we will also analyse the current state of autonomy of regulatory law.

These topics that we just mentioned, though they appear to be more theoretical than the next ones, they do play a role of being the background and the starting point to our conclusions about how the principle of guilt in regulatory law operates wether as the base of the principal and accessory sanctions and also (as we defend) as a limit to them. At the end of this study, due to the practical interest that this question assumes, we will make a brief reference about the obligation to state reasons in regulatory law’s decisions.

2

MANUEL DA COSTA ANDRADE, «A contribution for the concept of regulatory law´s ilicit (the german experience», in AA.

VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 76 (quoted: «Contributo»).

(6)

Í

NDICE

RESUMO ... II

ABSTRACT ... III

ABREVIATURAS MAIS UTILIZADAS ... VI

I. SURGIMENTO E EXPANSÃO DO DIREITO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES ... 1

II. O CONCEITO DE CONTRA-ORDENAÇÃO ... 10

1. A dificuldade na construção de uma delimitação material da contra-ordenação ... 10

2. A necessidade de construção de uma delimitação material da contra-ordenação ... 12

2.1.Noção legal de contra-ordenação: considerações gerais ... 12

2.2.A tipicidade nas contra-ordenações ... 15

2.3.A ilicitude nas contra-ordenações ... 16

2.3.1. As teses quantitativas... 17

2.3.2. As teses qualitativas ... 19

2.3.3. As teses mistas ou outras teses ... 27

2.4.A culpa nas contra-ordenações ... 33

2.5.A coima (sanção principal) ... 34

2.6.Outros elementos auxiliares na delimitação da figura da contra-ordenação: as especificidades processuais do Direito das Contra-ordenações ... 40

III. O ACTUAL DIREITO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES: A SUA (AINDA ALGO FRÁGIL) AUTONOMIA ... 44

1. Estado actual do Direito das contra-ordenações ... 44

2. As relações do Direito contra-ordenacional com o Direito Constitucional como alavanca no sentido da autonomização do Direito Contra-ordenacional ... 45

3. As relações do Direito contra-ordenacional com outros ramos do Direito (Direito Civil, Direito Administrativo e Direito Penal e seus processos); O Direito das contra-ordenações como ramo autónomo enquadrável no Direito Público sancionatório ... 51

IV.O PRINCÍPIO DA CULPA NAS CONTRA-ORDENAÇÕES ... 70

1. Princípio da culpa nas contra-ordenações: imposição constitucional ou opção do legislador ordinário? ... 70

(7)

3. Primeira vertente do princípio da culpa: A culpa como fundamento da coima e sanções

acessórias nas contra-ordenações ... 89

3.1.A culpa como fundamento da sanção contra-ordenacional ... 89

3.1.1. A negação da responsabilidade contra-ordenacional objectiva ... 89

3.1.2. A pessoalidade e intransmissibilidade da sanção contra-ordenacional ... 93

3.2.As causas de exclusão da culpa em sede contra-ordenacional ... 115

3.2.1. Causas de exclusão da culpa previstas no RGCO ... 116

3.2.1.1.A inimputabilidade em razão da idade e de anomalia psíquica (arts. 10.º e 11.º do RGCO) ... 116

3.2.1.2.O erro sobre a factualidade típica (em especial, o erro sobre as proibições) e o erro sobre a ilicitude ... 122

3.2.2. Causas de exclusão da culpa previstas no Código Penal aplicáveis subsidiariamente ao Direito das Contra-ordenações ... 131

3.3.Modalidades de imputação da culpa: a negligência e o dolo nas contra-ordenações 135 3.3.1. O dolo ... 135

3.3.2. A negligência ... 143

3.3.2.1.Noção de negligência nas contra-ordenações ... 143

3.3.2.2.O princípio da excepcionalidade da sancionabilidade por negligência nas contra-ordenações: perspectiva de iure constituto e de iure condendo ... 148

3.3.2.3.A admissibilidade ou inadmissibilidade de presunções de negligência nas contra-ordenações ... 155

4. Segunda vertente do princípio da culpa: A culpa como limite da coima e sanções acessórias nas contra-ordenações ... 161

4.1.A culpa na moldura da sanção aplicável ... 161

4.2.A culpa no quantum concreto de coima e sanção acessória ... 164

V. BREVES NOTAS SOBRE A FUNDAMENTAÇÃO DA CULPA NAS DECISÕES (ADMINISTRATIVA/JUDICIAL) RELATIVAS ÀS CONTRA-ORDENAÇÕES ... 171

CONCLUSÕES ... 187

(8)

A

BREVIATURAS MAIS UTILIZADAS

 AA. – Autores

 AAFDL – Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa

 AA. VV. – Autores Vários

 Ac. – Acórdão

 AEDUM – Associação de Estudantes da Universidade do Minho

 Al. - Alínea

 Art. – Artigo

 Arts. – Artigos

 AUJ – Acórdão Uniformizador de Jurisprudência

 CC – Código Civil

 CEDAM – Casa Editrice Dott Antonio Milani

 CEDH – Convenção Europeia dos Direitos do Homem

 Cfr. – Confira

 CIVA – Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado

 CJ – Colectânea de Jurisprudência

 CMVM – Comissão do Mercado de Valores Mobiliários

 CP - Código Penal

 CPA – Código do Procedimento Administrativo

 CPC - Código de Processo Civil

 CPP - Código de Processo Penal

 CRP - Constituição da República Portuguesa

 D.R. – Diário da República

 FDUC – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

 IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

 INMC – Imprensa Nacional Casa da Moeda

(9)

 N.º - Número

 Ob. Cit. – Obra citada

Owig - Ordnungswidrigkeitengesetz

 P. – Página

 PIDCP – Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

 Pp. – Páginas

 Proc. – Processo

 RGCO – Regime Geral das Contra-ordenações

 RJIFNA – Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras

 RGIT – Regime Geral das Infracções Tributárias

 Ss. – Seguintes

 STA – Supremo Tribunal Administrativo

 STJ – Supremo Tribunal de Justiça

 TC – Tribunal Constitucional

 TCA – Tribunal Central Administrativo

 TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

 TJCE – Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias

 TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia

V.g. – Verbi gratia

(10)

I.

S

URGIMENTO E EXPANSÃO DO

D

IREITO DAS CONTRA

-ORDENAÇÕES

Cada momento histórico tem um ordenamento jurídico construído, por assim dizer, à sua imagem e semelhança dependendo o mesmo, desde logo, da conjuntura económica, social e política vivenciada em cada momento.

Tal afirmação, apesar de lapalissiana, não deixa de nos ajudar a

compreender o surgimento do ilícito de mera ordenação social3.

Como facilmente se entenderá, com a Administração estadual iluminista, em que o rei era a figura predominante e símbolo do Estado, emergiu uma Administração absoluta intensamente actuante e de mão forte.

Mas foi sobretudo após a Revolução francesa que a Administração intervencionista de um chamado Estado de Direito formal passou a estender o seu manto interventivo policial a áreas tão abrangentes como, entre outras, a economia, a concorrência, a saúde, o consumo, a educação, a cultura, a ecologia, a circulação rodoviária, sendo, de resto, áreas nas quais a Administração apostava numa protecção preventiva de perigos que se pudessem reflectir na vida e direitos dos cidadãos.

Tal intervenção intensificou-se ainda mais nos pós-guerras mundiais, com a transformação da Administração estadual numa Administração actuante agora dita de “bem-estar social”, preocupada com os direitos dos cidadãos.

Geradas estas amplas intervenções estaduais, importava dar-lhes aplicação prática, criando sanções para as injunções da Administração, sob pena de ineficácia da intervenção estadual e de violação do que viria a ser conhecido como “contrato social”.

3

Utilizaremos indistintamente os conceitos de contra-ordenação (resultante de uma tradução mais literal da figura germânica) e de ilícito de mera ordenação social. O próprio legislador o faz. Contudo, afigura-se-nos que a expressão contra-ordenação é mais completa do que a de ilícito de mera ordenação social já que esta última nomenclatura acentua apenas um dos elementos definidores da figura em causa: o facto ilícito típico e ainda porque, como mais à frente se verá, a expressão “mera” ordenação social dá a ideia errada quanto a um Direito que é, na sua essência, um Direito sancionatório.

(11)

Num primeiro momento, e sobretudo após a Revolução francesa, foi o próprio Direito Penal que respondeu a tais desígnios, designadamente por via do surgimento do denominado Direito Penal de polícia contravencional.

FEUERBACH, pioneiramente, arriscou uma distinção qualitativa entre ilícito criminal e ilícito de polícia, alicerçando-se na diferença entre Direito e Moral e referindo que o Estado deveria tutelar não apenas direitos do Homem que são originários e preexistentes ao Direito positivo (direitos esses que estão na base do conceito de crime), mas ainda condutas que, não sendo antijurídicas em si, ultrapassam os limites criados pelo Estado e que, por isso, devem ser alvo de prevenção. Nesta base veio a entender-se que, ao ilícito criminal estariam, assim, ligadas razões de justiça e ao ilícito de polícia razões de utilidade sendo certo que, neste último, existiria uma função preventiva da violação indeterminada dos direitos subjectivos determinados.

Todavia, continuaram a registar-se intervenções estaduais moralizantes,

sobretudo ao nível sexual e religioso, e a tese de FEUERBACH foi

paulatinamente sendo derrotada pela criação da ideia de um Direito Penal unitário ou total relacionado com a protecção de bens jurídicos.

É neste contexto que emerge e se passa a falar, no início do século XX, de Direito Penal Administrativo, proclamado pelas vozes de incontornáveis

autores alemães como JAMES GOLDSCHMIDT, ERIK WOLF e de EBERHARD

SCHMIDT4. Todos eles, sem prejuízo das suas teses individuais, tendiam a

4 Para mais desenvolvimentos sobre as doutrinas de J

AMES GOLDSCHMIDT e sua obra Verwaltunsstrafrecht (1902) e

ERIK WOLF e sua obra “O lugar do delito administrativo penal no sistema jurídico penal” (1930) cfr. entre outros,

EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação Social», Boletim da Faculdade de Direito, XLIX, FDUC,

Coimbra, 1973, pp. 257 a 281 (citado: «Direito Penal e de mera ordenação»), H.MATTES, “Untersuchung zur Lehre von

der Ordnungswidrigkeiten”, Band, 2./2, Duncker & Humbolt, Berlin, 1982, pp.. 251 e ss. e HELIANA MARIA DE AZEVEDO

COUTINHO, «O Direito de Mera Ordenação Social no sistema Jurídico-Penal alemão», Revista Brasileira de Ciências

Criminais, ano 2, n.º7, IBCCRIM, São Paulo, Julho-Setembro de 1994, pp. 91 e ss (citado: «O Direito de Mera

Ordenação»). Neste artigo, esta autora consigna que a nota comum aos três AA. é a “visão histórica, fenomenológica e

dogmática da divisão material (qualitativa) e também formal (quantitativa) da crescente independência do Direito Penal administrativo (Verwaltungsstrafrecht) do Direito Penal de Polícia ou clássico (Justiz-oder Kriminalstrafrecht)”. Não deixa, contudo, de assinalar as teses individuais de cada um dos incontornáveis AA. aludidos. Assim, GOLDSCHMIDT, na sua obra Vermaltungsstrafrecht, defende que a diferença entre as normas penais clássicas e as normas penais administrativas deve ser encontrada na maior ou menor ameaça ou lesão aos bens jurídicos tutelados por normas de Direito Penal ou por decretos penais administrativos. Entende, pois, que há uma autonomia muito relativa do Direito

(12)

caracterizar o Direito Penal Administrativo por oposição ao Direito Penal clássico através de um critério teleológico, afirmando que o Estado, para além de ter como função tutelar bens ou interesses essenciais à vida em sociedade, teria ainda a função de tutelar uma diversidade de interesses relacionados com o bem-estar social. Vale isto por dizer que, à luz do pensamento destes autores, só os específicos interesses sociais opunham o Direito Penal Administrativo ao Direito Penal clássico, razão pela qual toda a discussão era ainda travada no seio dos quadros formais do Direito Penal.

Contudo, cedo se percebeu que a resposta por via do Direito Penal, mesmo que Contravencional ou Administrativo, era ainda insatisfatória já que

conduzia, como conduziu, a uma indesejável “hipertrofia do Direito Criminal”56

, quando o que se pretendia era precisamente a descriminalização de tais ilícitos administrativos, com apelo à competência de autoridades administrativas.

Tudo veio a desaguar, assim, no final do século passado, num claro movimento de descriminalização com consequente criação de um novo enquadramento jurídico para as novas áreas de intervenção da Administração, enquadramento esse com estruturas (substantiva e processual) diferentes,

Penal administrativo face ao Direito Penal de justiça, dizendo mesmo que aquele é “filho bastardo” deste. Tal tese,

pese embora não tenha logrado obter grande êxito na época, não deixou de ser apoiada por nomes como BELLING,

OTTO MAYER,FRANK e de se transformar em anteprojecto de Código de Direito Penal Administrativo. Por seu turno,

ERIK WOLF aprofundou a autonomia material do Direito Penal Administrativo (vide a sua obra O lugar do delito

administrativo penal no sistema jurídico penal). Para este doutrinador, a diferença dos dois Direitos já não é operada

apenas com apelo ao critério dos diferentes bens jurídicos em causa (penais e administrativos) mas ainda por referência à ilicitude da conduta relativamente ao dano individual ou social que produz no sistema jurídico, enunciando um critério axiológico de distinção do ilícito por ordem de valores: valores jurídicos, valores de autoridade executiva e valores de bem-estar social. WOLF teve ainda o mérito de contribuir para a delimitação dos delitos de mera ordenação social e para o conceito de delitos de bagatela. Já EBERHARD SCHMIDT esteve na base da positivação das doutrinas anteriores (Leis de Direito Penal Económico e Leis quadro de mera ordenação social de 1952 e 1968), tendo esclarecido que o Direito de mera ordenação social (Ordnungsstrafrecht) teria por base a imposição de coimas (Gelbusse), ou seja, uma censura sem mácula ética, ou, o mesmo é dizer, a mera advertência administrativa.

5

A expressão é de EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», p. 257.

6 Assim não ocorreu uniformemente em toda a Europa. J

OSÉ CEREZO MIR, «Sanções Penais e Administrativas no

Direito Espanhol», Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 1, n.º 2, IBCCRIM, São Paulo, Abril a Junho de 1993, p. 27 (citado: «Sanções Penais») v.g., dá conta que em Espanha “(…) o aumento da actividade administrativa não deu lugar a uma hipertrofia do Direito Penal, como nos demais países europeus (Alemanha, França, Itália) senão ao desenvolvimento de um desmesurado poder sancionatório da Administração.”

(13)

sublinhando-se, à data, o facto de a sanção ter uma finalidade de mera

advertência ou censura social, sem coloração ética7.

Por essa altura, era assim evidente a premência da retirada dos quadros penais das inúmeras infracções ditas sem relevância ética não só porque urgia criar quadros processuais distintos (v.g. quanto à competência para a aplicação da sanções) mas também porque importava recolocar o Direito Penal na sua função de última ratio sancionatória (embora não se possa olvidar que infracções houve - e ainda há - que se mantiveram pela sua natureza criminal, com acerto, no chamado Direito Penal secundário sobretudo ao nível económico).

É sob este pano de fundo, e sobretudo na esteira do pensamento de EBERHARD SCHMIDT (e da evolução da sua concepção de Direito Penal de

ordem), que, na República Federal Alemã, vieram a ser promulgadas as 1ª e 2ª Leis-Quadro do Direito de mera ordenação Social (OWIG) em 1952 e 1968, respectivamente.

Em Portugal, rompendo-se com a influência francesa, e bebendo-se a

influência da figura germânica da Ordnungswidrigkeit8, surge, pela mão de

EDUARDO CORREIA, então Ministro da Justiça, o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24

de Julho, ou seja, uma Lei-Quadro que introduziu a figura das contra-ordenações no nosso ordenamento jurídico e que, simultaneamente, pretendeu eliminar, em bloco, a figura das contravenções (art. 1.º, n.º 3 do citado diploma legal).

O nascimento de tal diploma revelou-se turbulento em virtude, por um lado, das dúvidas constitucionais que suscitou e, por outro lado, pelo facto de rapidamente ter sofrido alterações legislativas já que o tal ímpeto inicial no

7

Sobre a essencialidade do movimento de descriminalização no surgimento do ilícito de mera ordenação social cfr.

CARLO ENRICO PALIERO, Mínima no curat praetor: ipertrofia del dirrito penale e descriminalizzacione dei reati bagatelari,

Padova, CEDAM, 1985; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», in AA. VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Instituto de

Direito Penal Económico e Europeu, FDUC, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp.. 19-33 (citado: «O movimento»); JOSÉ

M.RICO, Las sanciones penales y la politica criminológica contemporânea, 4ª edição, Siglo Veintiuno Editores, México, 1987, pp. 128 e ss..

8

Com uma análise dos aspectos essenciais da Lei de Mera Ordenação Social alemã (OWIG de 1968), cfr HELIANA

(14)

sentido do desaparecimento das contravenções foi refreado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 01 de Outubro que revogou a norma que previa a revogação das contravenções em bloco.

Um novo fôlego legislativo (oxigenado sobretudo pela revisão constitucional e pelo Código Penal, ambos de 1982) foi aquele que se materializou no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que, revogando aqueloutro Decreto-Lei de 1979, instituiu definitiva e inovadoramente um “Regime Geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo” ou também designado de Regime Geral das Contra-ordenações (doravante apenas RGCO) e que foi sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 19 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro e pela Lei n. 109/2001, de 24 de Dezembro.

Os diplomas referidos aprofundaram a normativização das contra-ordenações ainda que sem curar de pôr o desejável fim total à figura das contravenções (que só veio a ocorrer mais tarde, sob o mote dos ilícitos rodoviários, com a Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho e, sobretudo, com a Lei n.º 30/2006, de 11 de Julho). Por outro lado, foi com a revisão constitucional de 1982 (Lei n.º 1/82, de 30 de Setembro) que a figura das contra-ordenações passou a assumir ressonância constitucional (cfr. actualmente os arts. 32.º, n.º 10, 37.º, n.º 3, 165.º, n.º 1 al. d), 227.º al. q), 282.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa).

De resto, entre nós, a área contra-ordenacional conheceu uma expansão difícil de imaginar aquando do seu surgimento. É o próprio legislador quem o confessa e dá conta disso mesmo referindo a este propósito que “consagrado a partir de 1979, o ilícito de mera ordenação social tem vindo a assumir uma importância antes dificilmente imaginável. Com efeito, a par do programa de descriminalização desde então gizado, com a inerente transformação em contra-ordenações de muitas infracções anteriormente qualificadas como contravenções ou como crimes, regista-se um crescente movimento de neopunição, com o alargamento notável das áreas de actividade que agora

(15)

são objecto de ilícito de mera ordenação social” – cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro que alterou o Decreto-Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

Após esta relevante expansão, chegámos em Portugal a um modelo que, no domínio contra-ordenacional, passa pela existência de um RGCO e de regimes sectoriais contra-ordenacionais (v.g. contra-ordenações laborais, fiscais, segurança social, etc.) de que aquele primeiro funciona, em regra,

como legislação subsidiária9.

Importa ainda sublinhar que, actualmente, não obstante a referida proliferação da previsão legislativa de contra-ordenações, assistiu-se à passagem de um modelo de Estado intervencionista para um Estado sobretudo regulador e de supervisão com o erigir, v.g., de novas entidades reguladoras independentes que suscitam novos desafios ao Direito contra-ordenacional.

Também a maioria dos países europeus demorou algum tempo a adaptar-se à existência da nova área sancionatória a que se reconduzia o Direito das contra-ordenações, apenas com algumas excepções feitas à Suíça, e Itália ou o análogo Direito Administrativo sancionador espanhol (ressalvadao

o interesse da análise das diferenças10), sendo ainda hoje um ramo por

explorar em muitos ordenamentos jurídicos11.

9

Este modelo bicéfalo de existência de um RGCO e de regimes sectoriais é algo discutido. FREDERICO DE LACERDA DA

COSTA PINTO defende o referido modelo aduzindo que o mesmo é o mais consentâneo com o princípio da intervenção

penal mínima, o mais eficaz na articulação entre prevenção e repressão e o que mais estimula o desenvolvimento de

diferentes técnicas de construção dos tipos. - cfr. «As Codificações sectoriais e o papel das contra-ordenações na organização do

Direito Penal secundário», Themis, ano 3, n.º 5, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 87-99 (citado: «As Codificações»).

10

Para uma análise comparativa do modelo português e do modelo espanhol veja-se MÁRIO FERREIRA MONTE,

Lineamentos de Direito das Contraordenações, AEDUM, Braga, 2014, (edição inédita e no prelo, cedida pelo autor),

Capt. I, ponto 2 (citado: Lineamentos)

11

Refere a este propósito JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, que “a monumental investigação dedicada ao tema por HEINS

MATTES, em base histórica e comparatística, pôde concluir (…) que, até 1972, a criação de um ilícito de mera

ordenação social continuava a constituir uma decisão legislativa de carácter germânico exclusivo. Mas a situação modificou-se durante os últimos anos. Assim, a lei federal suíça sobre o Direito Penal administrativo, de 23-3-1974, aproxima-se em muitos pontos – sobretudo no que toca ao processamento das infracções – de um verdadeiro Direito das Contra-ordenações. Em Portugal o Decreto-lei n.º 232/79, de 24 de Julho, instituiu um autêntico ilícito de mera ordenação social. Em Itália, a Lei n.º 689, de 24-11-1981, introduz modificações no sistema penal que se traduzem, no

(16)

Ao nível da União Europeia existem ainda as dificuldades inerentes à inexistência de um chamado Direito sancionador comunitário (ao contrário do

Direito Penal europeu que tem já alguma consistência)12. Tal inexistência ou,

pelo menos, fraca densidade, são explicáveis. A propósito de um Direito

Administrativo sancionatório europeu, referem ANTÓNIO JORGE FERNANDES DE

OLIVEIRA MENDES e JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL que “O

primeiro obstáculo consiste no facto de não existir uma regulação normativa suficiente dado que as referências dos Tratados são escassas e dispersas. (…) Nestas condições não existe outra solução que não utilizar, num delicado processo de síntese, os princípios gerais comuns dos Estados Membros. Assim está a proceder o Tribunal de Justiça (…) A identificação dos princípios gerais comuns não é desde logo tarefa fácil. A esse propósito aceita-se pacificamente que não se trata de abstrair da regulação vigente na maioria dos Estados membros nem muito menos de aceitar um mínimo denominador comum, mas sim de fixar a atenção no que parece mais adequado às finalidades do ordenamento (advogado geral Sir Gordon Slynn no processo 115/79; A.M. y S. c/ Comissão: recurso 1892, p.1648) ou o princípio mais desenvolvimento (advogado geral Roemer no processo Wilhelm c. BundesKastellamt: recurso 1969, p. 26) ou o elemento do progresso jurídico ainda que extrapolando as concepções imperantes nalguns Estados membros (advogado geral Reischl no processo Hofman-La Roche, recurso 1979, p.

585-596)”13

.

São pois muitas as vozes que consideram não estar ainda erigido um Direito das contra-ordenações comunitário, embora não olvidem que existe um poder sancionatório da União Europeia sobre os estados membros e um poder

seu conjunto, na transformação de uma larga quantidade de ilícitos penais em ilícitos não penais, para os quais são cominadas sanções exclusivamente pecuniárias, de carácter não criminal.” – in «O movimento», p.22.

12

Sobre o Direito Penal Europeu e sua legitimação cfr. MÁRIO FERREIRA MONTE, O Direito Penal Europeu, de “Roma” a “Lisboa” – subsídios para a sua legitimação, Quid Iuris, Lisboa, 2009.

13

ANTÓNIO JORGE FERNANDES DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, Notas ao Regime

(17)

jurisdicional exercido pelo Tribunal Europeu, mas que não deu ainda origem a

um ramo autónomo e densificado do Direito Comunitário14.

De resto, também o Tribunal de Justiça da União Europeia foi já chamado a pronunciar-se em matéria contra-ordenacional. A título exemplificativo e de modo paradigmático, entendeu tal Tribunal ser aplicável ao processo contra-ordenacional o art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (processo equitativo) como elucida, v.g., o Acórdão Oztürk de 21 de Fevereiro

de 198415.

No âmbito do panorama internacional descrito (sobretudo ao nível europeu), e exposto o surgimento e expansão das contra-ordenações, não se pode dizer que Portugal, nesta matéria, esteja numa situação legislativa, doutrinal ou jurisprudencial incipiente. Ao invés, e malgrado todo o caminho ainda por percorrer (que é ainda, sem dúvida, longo), em termos comparativos, Portugal é um dos países onde se vem aprofundando com maior afinco esta

área do Direito. JOSÉ DE FARIA COSTA, após participar no 14.º Congresso da

Associacion Internationale de Droit Penal (1989) subordinado ao tema das

diferenças entre Direito Criminal e Direito Administrativo Penal, e no âmbito do qual foram formuladas recomendações acerca de tais diferenças, afirmou

mesmo que “Portugal perante tais recomendações e ainda face à discussão

teórica entretecida ao longo dos vários debates não só está munido da indispensável, a tantos títulos louvável, lei-quadro do direito de mera ordenação social, como se perfila no âmbito doutrinal em perfeita mas

14 Nesse sentido, veja-se a posição defendida por M

ARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA na sua obra O poder sancionatório

da União e das Comunidades Europeias sobre os Estados Membros, Almedina, Coimbra, 2006; MAITÉNA POELEMANS,

La sanction dans lórdre juridique communautaire; contribution à l´étude du systéme répressif de l´Únion Européennne,

Bruxelles, Bruylant, 2004 e TIEDMANN, Lecciones de derecho penal económico: comunitário, español, aléman, Barcelona; PPU, 1993, pp. 76 e ss., todos citados por ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera ordenação Social, entre a

ideia de recorrência e a de erosão de um Direito Penal clássico, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pp. 190 e 191

(citado: O Direito de Mera Ordenação Social).

15 I

(18)

autónoma sintonia com as linhas mais marcantes do actual pensamento

jurídico penal”16

.

Trilhado, ainda que brevemente, o percurso do surgimento e expansão internacional e nacional da figura das contra-ordenações, vejamos, no capítulo seguinte, quais os elementos caracterizadores da mesma.

16

JOSE DE FARIA COSTA em adenda ao seu «Les problémes juridiques et pratiques poses par la différence entre le droit

criminel et le droit administratif-pénal», Boletim da Faculdade de Direito, Vol LXII, FDUC, Coimbra, 1986, pp. 181 e 182 (citado : «Les problémes juridiques»).

(19)

II. O

CONCEITO DE CONTRA

-

ORDENAÇÃO

1. A dificuldade na construção de uma delimitação material da contra-ordenação

Após o esforçado (e ainda inacabado) caminho percorrido na expansão do Direito das contra-ordenações nos termos anteriormente referidos, tudo levaria a crer estar já estabilizada e cristalizada a noção material de contra-ordenação (designadamente por contraposição à noção de crime já que esse é o referencial comummente utilizado).

Contudo, a realidade é distinta.

Na verdade, hoje, como ontem, continua a discussão em torno de tal noção e tal diferença com grande actualidade e pertinência. Estamos, pois,

como sublinha FARIA COSTA, perante um daqueles casos de recorrência do

pensamento jurídico17.

A dificuldade vai ao ponto de não serem poucas as vozes que se erguem no sentido de ser impossível delimitar materialmente o ilícito penal do ilícito de mera ordenação social.

Diz quem assim entende que, sintomático disso mesmo, é o facto de o próprio legislador entender que, em determinados momentos históricos, uma conduta deve ser crime e noutra altura a passar a qualificar a mesma conduta como contra-ordenação e vice-versa. Esta metamorfose, por via legislativa, de

17

Refere pois JOSÉ DE FARIA COSTA a este propósito, em «A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social», AA. VV., Direito Penal Económico: textos

Doutrinários, Vol. I, Problemas Gerais, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 143: “Assim, a recorrência outra coisa não é do que a atitude metódica mais operatória para se conseguir aquele objectivo, porque, por um lado, fornece o objecto tão delimitado quanto possível e, por outro, arrasta consigo o produto acumulado das compreensões teóricas anteriores a que se tem, finalmente, de acrescentar - e aqui deparamos com outro ponto essencial – a necessidade de reflectir acerca daquilo que está para trás. (…) Todavia, o que se tentou mostrar, principalmente nesta última fase do trabalho, foi o sentido jurídico da própria recorrência, utilizando-se para isso um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social”.

(20)

crime em contra-ordenação e de contra-ordenação em crime é, pois, na

opinião de alguns (v.g. MIGUEL PEDROSA MACHADO18), um sintoma da

inexistência de distinção material entre os dois tipos de infracção.

Outros ainda, como MANUEL CAVALEIRO FERREIRA19, entendem que o

surgimento e expansão do Direito das contra-ordenações não ficou a dever-se a uma qualquer diferença material entre crime e contra-ordenação, mas sim a puras razões de oportunidade de descongestionamento dos Tribunais, assim se inclinando para a inexistência essencial de diferenciação entre tais ilícitos.

A tarefa não é de facto simples, e não se atingiu, por ora, consenso doutrinal ou jurisprudencial sobre o critério material distintivo entre crime e contra-ordenação.

Ainda assim, apunhalada a ideia de simplicidade da tarefa, não seja a dificuldade da mesma motivo para não empreendermos uma breve síntese sobre os vários critérios distintivos entre crime e contra-ordenação elencados ao longo do tempo (sendo que se pretende a delimitação da figura geral da contra-ordenação e já não das suas sub modalidades, v.g., contra-ordenação comum; contra-ordenação específica própria ou imprópria; contra-ordenação de resultado; contra-ordenação de mera actividade; contra-ordenação de dano; contra-ordenação de perigo; contra-ordenação de execução instantânea; contra-ordenação permanente; contra-ordenação omissiva seja pura ou

impura20).

Para tanto, partiremos da noção legal de contra-ordenação e faremos uma decomposição da mesma, assim explorando as diferenças que existem ao nível do ilícito típico, da culpa e da sanção, acrescentando ainda um último

18

MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo da legislação portuguesa sobre contra-ordenações», in AA.

VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Instituto de Direito Penal

Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1998 (citado: «Elementos para o estudo»).

19 M

ANUEL CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal – Parte Geral, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 107 e ss. (citado:

Lições). 20

Sobre tais submodalidades e suas noções cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das

Contra-ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,

(21)

elemento (especificidades processuais) que tem ajudado a individualizar a figura jurídica em estudo.

2. A necessidade de construção de uma delimitação material da contra-ordenação

2.1. Noção legal de contra-ordenação: considerações gerais

Antes de mais, importa dizer que, no ordenamento jurídico nacional, é o próprio legislador quem define o que se deverá ter como contra-ordenação (art.

1º do RGCO) e como crime (art. 1º, al. a), do Código de Processo Penal)21.

Com nítida inspiração na lei alemã (OWIG), previu-se no art. 1.º do RGCO que “Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”. Assim, o legislador português, à

semelhança do alemão22, estabeleceu uma noção nominal formal de

contra-ordenação, deixando de lado uma definição material da mesma.

No fundo, no nosso sistema jurídico o critério de diferenciação do que seja contra-ordenação por reporte ao crime, passa por um critério nominativo e formal (art. 1.º do RGCO), que interliga o ilícito à sua sanção principal específica.

Um tal critério tem a relevante virtualidade prática de não deixar dúvida ao aplicador e intérprete da lei quanto ao que seja em concreto a contra-ordenação, mas não resolve o problema de saber, a montante, o que levou o legislador a optar pelo sancionamento de uma conduta como contra-ordenação ou como crime. Subsistirá, assim, em rigor, a questão de saber o que é

21 Não cuidaremos aqui de desenvolver o conceito de crime, atenta a parcimónia que dissemos pretender usar nestas

notas de cariz mais introdutório e de enquadramento.

22

Sobre o conceito formal de contra-ordenação no sistema alemão, ver GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal – Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputación (tradução de Joaquin Cuello Contreras e José Luís Serrano Gonzalez

(22)

materialmente uma contra-ordenação, sem o que, a tarefa do legislador seria puramente arbitrária.

Não se censura o legislador por ter optado por tal solução nominal face às águas agitadas que ainda se movem em torno de tal noção. Traz, sem dúvida,

segurança jurídica. A noção legal é, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,

“a única praticamente exequível” dada a “natureza altamente questionável, no

plano doutrinal, dos critérios substanciais avançados para a distinção”23

.

Em semelhante sentido e explicitando a razão de ser dos conceitos

formais legais, refere JOSÉ DE FARIA COSTA “Os critérios formais existem (…)

para que se resolvam questões que impliquem uma clara definição de fronteiras normativas. Existem, sobretudo, para afirmação dos princípios de certeza e segurança que são, se bem virmos, uma outra face da ideia de garantia. Mas não são nem podem ser considerados como a panaceia para se atingir a certeza e segurança. De certa maneira só é dogmaticamente legítima a sua utilização quando for, de todo em todo, impossível estabelecer uma nítida fronteira material entre as realidades normativas que se querem, justamente, destrinçar ou ainda sempre que os princípios da certeza e da segurança jurídicas se imponham como valores proeminentes e indiscutíveis

dentro do quadro normativo que se quer regular”24

.

O que já não se mostra desejável nem aceitável é a falta de coerência legislativa, uma vez que se constata que, não obstante a clareza do critério adoptado no art. 1.º do RGCO, acabam por existir contra-ordenações que não aludem ao sancionamento com coima, antes importando acriticamente sanções penais para o domínio contra-ordenacional.

Veja-se, por exemplo o art. 15.º da Lei n.º 30/2000, de 02 de Novembro, relativa ao regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes quando

dispõe que “1 - Aos consumidores não toxicodependentes poderá ser aplicada

uma coima ou, em alternativa, sanção não pecuniária. 2 - Aos consumidores

23

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime,

Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp.161 e 162 (citado: Direito Penal, Parte Geral).

24

JOSÉ DE FARIA COSTA, Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta Iuris Poenalis) Introdução, Coimbra

(23)

toxicodependentes são aplicáveis sanções não pecuniárias. 3 - A comissão determina a sanção em função da necessidade de prevenir o consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (…)”.

Como se vê, pode haver contra-ordenação relativa a consumo de estupefacientes não sancionada, a título principal, com coima mas antes com sanção não pecuniária, sendo que é a referida Lei que depois elenca no seu art. 17.º quais serão essas sanções, no fundo, ao arrepio do art. 1.º do RGCO.

Com efeito, estatui o art. 17.º, n.ºs 2, 3 e 4 da referida Lei que “2 - Sem

prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 15.º, a comissão pode aplicar as seguintes sanções, em alternativa à coima ou a título principal: a) Proibição de exercer profissão ou actividade, designadamente as sujeitas a regime de licenciamento, quando daí resulte risco para a integridade do próprio ou de terceiros; b) Interdição de frequência de certos lugares; c) Proibição de acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; d) Interdição de ausência para o estrangeiro sem autorização; e) Apresentação periódica em local a designar pela comissão; f) Cassação, proibição da concessão ou renovação de licença de uso e porte de arma de defesa, caça, precisão ou recreio; g) Apreensão de objectos que pertençam ao próprio e representem um risco para este ou para a comunidade ou favoreçam a prática de um crime ou de outra contra-ordenação; h) Privação da gestão de subsídio ou benefício atribuído a título pessoal por entidades ou serviços públicos, que será confiada à entidade que conduz o processo ou àquela que acompanha o processo de tratamento, quando aceite. 3 - Em alternativa às sanções previstas nos números anteriores, pode a comissão, mediante aceitação do consumidor, determinar a entrega a instituições públicas ou particulares de solidariedade social de uma contribuição monetária ou a prestação de serviços gratuitos a favor da comunidade, em conformidade com o regime dos n.os 3 e 4 do artigo4 - Na aplicação das sanções, a comissão terá em conta a situação do consumidor e a natureza e as circunstâncias do consumo, ponderando, designadamente: a) A gravidade do acto; b) A culpa do agente; c) O tipo de plantas, substâncias ou preparados consumidos; d) A natureza pública ou privada do consumo; e)

(24)

Tratando-se de consumo público, o local do consumo; f) Em caso de consumidor não toxicodependente, o carácter ocasional ou habitual do consumo; g) A situação pessoal, nomeadamente económica e financeira, do consumidor”.

Salvaguardadas estas indesejáveis incoerências do sistema legal, é ponto assente que existe um critério nominal formal de contra-ordenação feita por referência à sanção principal que é a coima.

Contudo, e sem deixar cair por terra a utilidade que tem uma noção legal formal de contra-ordenação, só um olhar apressado nos levaria a pensar que estaria assim encerrada a discussão sobre o conceito material de contra-ordenação.

Com efeito, como já fomos sublinhando, o critério de distinção baseado num nomen iuris que o legislador atribua (é contra-ordenação se a lei se referir à coima), não resolve a questão de saber a essência do que se tenha por contra-ordenação já que este ponto de vista só resolve o problema, como já referimos, a jusante da opção legistativa. Assim, a existência de uma noção legal não desvenda a diferença a fazer em termos legislativos e de política criminal sobre a opção de uma conduta, em termos sancionatórios, como crime ou como contra-ordenação.

Quais então os critérios que o legislador poderá e deverá mobilizar na opção que tem que fazer?

Centremo-nos, pois, nos três elementos da noção legal supra enunciada (1. facto típico ilícito; 2. censurável; 3. punível com coima) analisando os vários critérios distintivos elencados no sentido de delimitar a figura da contra-ordenação, a que acrescentaremos ainda um quarto elemento mais lateral referente às especificidades processuais.

2.2. A tipicidade nas contra-ordenações

Vejamos o primeiro elemento da noção de contra-ordenação: o facto típico.

(25)

Na noção avançada por GERMANO MARQUES DA SILVA, “Diz-se que há

tipicidade quando o facto se ajusta ao tipo, ou seja, quando corresponde às características objectivas e subjectivas do modelo legal, abstractamente

formulado pelo legislador”25

.

Ora, à semelhança do que sucede na área criminal, também na área das contra-ordenações vigora o princípio da tipicidade como corolário do princípio da legalidade – cfr. arts. 1.º e 2.º do RGCO.

De resto, estando-se perante Direito sancionatório, dificilmente se compreenderia que não se norteasse por um tal princípio atento o imperativo

constitucional ínsito no art. 29.º da CRP para o Direito Criminal26.

Com efeito, todas aquelas normas vão no mesmo sentido, ou seja, a de que a contra-ordenação há-de estar prevista em lei e que a referida previsão há-de ser anterior à prática do facto que se adequará e subsumirá ao tipo (lei anterior e ainda lei certa e precisa quer quanto ao tipo objectivo quer subjectivo do ilícito).

Cabe pois à lei em cada momento, e só a ela, de forma tão clara quanto possível, especificar as condutas que constituem contra-ordenação, o que, sendo nota importante, não é nota que nos permita uma concretização material do que é a contra-ordenação, tanto mais que a questão se coloca sobretudo no momento legislativo (embora a compreensão da noção e a sua autonomização seja relevante depois, naturalmente, em termos interpretativos).

2.3. A ilicitude nas contra-ordenações

Coisa diferente se dirá quanto à ilicitude. Efectivamente, no que respeita à ilicitude, é travada uma longa discussão, sobretudo doutrinal, ao nível das diferenças entre ilícito penal e ilícito de mera ordenação social.

25

GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, parte geral II, teoria do crime, Verbo, Lisboa, 1998, p. 18.

26

Neste sentido veja-se JOSE FARIA COSTA quando refere “qu´on ne pas omettre, le droit de mera ordenação social est un droit sanctionnateur, et de plus, et par détermination légale, subordonné au príncipe de la légalité.” – in «Les

(26)

Mas serão tais diferenças, quantitativas, qualitativas, um misto de ambas?

2.3.1. As teses quantitativas

Entendem alguns autores que entre ilícito penal e o ilícito

contra-ordenacional intercedem diferenças quantitativas27.

Quem assim entende põe o crime e a contra-ordenação a caminhar muito mais próximos do que quem os olha com os olhos da diferença qualitativa.

Esta doutrina assenta na ideia de que ambos os tipos de infracção se situam no âmbito do Direito sancionatório e, nessa medida, tutelam verdadeiros bens jurídicos, pelo que a pedra de toque distintiva passará pelo tipo de bem jurídico violado e pela gravidade/quantidade de tal violação. No horizonte de um tal entendimento está sempre presente o princípio da subsidiariedade da intervenção penal.

Vejam-se, a este propósito, alguns autores defensores de teses

quantitativas enumerados por ALEXANDRA VILELA quando refere v.g., “Defensor

de um critério quantitaitvo é MITSCH, para quem a relação entre o Direito Penal

e o direito de mera ordenação social é uma relação de plus-minus, em que este último se apresenta como minus e onde a contra-ordenação se mostra como um ilícito penal mais leve, continuando todavia a ser ofendidos bens jurídicos. Esse minus de que nos fala o autor pode revelar-se no menor valor

do bem jurídico e na forma de ofensa àquele. (…) de CEREZO MIR surge-nos a

ideia segundo a qual a diferença entre Direito Penal e Direito Administrativo sancionador, entre pena e sanção administrativa, deve ser vista a partir de un critério quantitativo, sendo certo que o limite deve ser traçado pelo legislador,

27

Defendendo a tese quantitativa cfr., entre outros, HANS-HENRICH JESCHECK,Tratado de Derecho Penal – Parte General, Vol. I (tradução e aditamentos de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde), Bosch. Casa Editorial S.A., Barcelona, 1981

(citado: Tratado de Derecho Penal); GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal, JOSÉ CEREZO MIR, «Sanções Penais», SANTIAGO

MIR PUIG, Derecho Penal – Parte General (Fundamentos y teoria del delito), Promociones Publicaciones Universitarias,

Barcelona, 1984; MÁRIO GOMES DIAS, «Breves reflexões sobre o processo de contra-ordenação», Revista do Ministério

Público, ano 5.º, vol. 20, 1984 (citado: «Breves reflexões»);NUNO B.M.LUMBRALES, Sobre o conceito de

(27)

levando em linha de conta a gravidade das infracções, aferida em função do respectivo desvalor ético-social e cultural, bem como considerações de política

criminal, nomeadamente a rapidez e a eficácia da sanção”28

.

De todo o modo, importa sublinhar que mesmo para quem defende um critério distintivo meramente quantitativo não deixa de reconhecer que tal diferença será suficiente para justificar um ramo de Direito com regras

sancionadoras diferentes29.

Embora o critério quantitativo seja um critério relevante designadamente nos sistemas jurídicos alemão e na distinção que a doutrina espanhola faz entre crime e sanções administrativas, o mesmo não é, contudo, isento de críticas.

A doutrina tem estado atenta a tais teses pondo em relevo as suas insuficiências.

Neste sentido veja-se, v.g., JORGE DE FIGUEIREDO DIAS quando refere «Já

se pensou – e continua a pensar-se, na Alemanha até predominantemente –

em negar a possibilidade de delimitação material dos dois ilícitos, na base de não poder reconhecer-se a existência de um ilícito eticamente indiferente, mesmo que ele seja de “mera” ordenação social. Quem sustentar esta impossibilidade tem, do meu ver inteira razão. Mas já a não tem quando daqui pretenda concluir pela impossibilidade de delimitação material entre ilícito penal e ilícito de ordenação, ou pela possibilidade de entre eles interceder apenas uma diferença “quantitativa”, que levaria à identificação do ilícito de

ordenação com um ilícito de “bagatelas”»30

.

Afirma também JOSÉ DE FARIA COSTA “Entre o Direito Penal e o direito de

mera ordenação social intercede uma diferença qualitativa e não meramente quantitativa (…) Na verdade, o fundamento que encontrámos para o Direito Penal e as funções que lhe vão conexas não podem, sem erro de perspectiva, ser coincidentes com o que fundamenta e sustenta, ainda que só funcionalmente, o direito de mera ordenação social. Se, na verdade, o Direito

28

ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera Ordenação Social, p. 219 e ss..

29

V.g. HANS HENRICH JESCHECK ao longo do seu Tratado de Derecho Penal.

30 J

(28)

Penal se estrutura e vive, enquanto sua razão e modo-de-ser, através de dois elementos essenciais, o crime e a pena, o direito de mera ordenação social

constrói-se por meio da contra-ordenação e da coima”31

.

Contudo, temos para nós que, se é certo que o desvalor da ilicitude penal será, em regra, maior do que o da ilicitude contra-ordenacional, tal nem sempre corresponde a uma sanção penal mais gravosa (bastará atentar, v.g., nas molduras das coimas nas contra-ordenações ambientais no nosso ordenamento jurídico para se compreender que, ao nível da sanção, não se pode falar na prática, em bom rigor, de “bagatelas”).

Parece-nos assim que partir da tese quantitativa equivale a afirmar que crime e contra-ordenação são a mesma realidade ainda que com gradação diferente, o que não se nos afigura rigoroso. A autonomia deve existir, são ilícitos diferentes entre si, não sendo apenas uma mera diferença de grau ou quantidade.

2.3.2. As teses qualitativas

Face às referidas fragilidades das teses quantitativas, outros autores

realçam diferenças qualitativas (um “aliud”) entre o ilícito criminal e o ilícito

contra-ordenacional32. AUGUSTO SILVA DIAS chega mesmo a afirmar que o

critério qualitativo de distinção é “o único racionalmente defensável” e possui

grande relevância prática na hora da criação legislativa33.

De resto, é o próprio legislador quem, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, aponta no sentido da distinção qualitativa (com critérios com que podemos ou não concordar) ao dizer “Manteve-se, outrossim,

31

JOSÉ DE FARIA COSTA, Noções Fundamentais, pp. 35 e 36.

32 No sentido da existência de diferenças qualitativas entre crime e contra-ordenação, cfr., entre outros, A

UGUSTO SILVA

DIAS, «Crimes e Contra-ordenações Fiscais», in AA. VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume II: Problemas especiais, Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da

Universidade de Coimbra, Coimbra editora, Coimbra, 1999, p. 441 (citado: «Crimes e Contra-ordenações; EDUARDO

CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», pp. 257 e ss.; GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português,

Parte Geral I, introdução e teoria da lei penal, Verbo, Lisboa, 2001, pp. 155 e ss. (citado: Direito Penal, Parte Geral I);

HELIANA MARIA DE AZEVEDO COUTINHO, «O Direito de Mera Ordenação», p. 116.

33 A

(29)

a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre crime e contra-ordenação. Uma distinção que não esquece que aquelas duas categorias de ilícito tendem a extremar-se quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética. Mas uma distinção que terá, em última instância, de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal”.

Quem opta pelas teses qualitativas entende que o critério quantitativo contribui para a errónea perspectiva de que o Direito das contra-ordenações incide sobre bagatelas penais. Por outro lado, afirma que o critério quantitativo não traz qualquer vantagem prática relativamente aos critérios qualitativos no momento legislativo de definir uma infracção como criminal ou ordenacional, pelo que importa delimitar qualitativamente o ilícito contra-ordenacional do criminal.

Mas quais então as diferenças de qualidade?

Têm-se aduzido vários critérios distintivos, entre os quais, pela frequência com que são invocados (aliás, como vimos, pelo próprio legislador no preâmbulo vindo de referir), se destacam os critérios relativos ao bem jurídico tutelado e à relevância ou irrelevância ética das condutas.

Vejamos assim o critério qualitativo da tutela de bens jurídicos.

Com efeito, de acordo com este critério, as contra-ordenações não tutelam verdadeiros bens jurídicos, mas antes meros bens ou interesses administrativos caso exista violação ou desobediência a comandos ou ordens da Administração.

Invoca-se, a este propósito a necessidade de apelar à ordem constitucional já que a mesma funcionará como referência da actividade punitiva do Estado. Consequentemente, não deverão caber ao Direito Penal clássico as ofensas de bens jurídicos não individualizáveis nem, outrossim, as ofensas a bens jurídicos individualizáveis mas em que não se revele necessária a intervenção penal (dada a sua veste de última ratio). Um tal critério passa ainda pela assunção de que o Direito Penal tutela bens jurídicos

(30)

com dignidade penal34 de forma directa e imediata e que o Direito das contra-ordenações tutela meros bens ou interesses de natureza administrativa e, por vezes, de forma indirecta ou mediata.

O Direito Penal dito clássico ou de justiça estará, assim, reservado às ofensas ligadas ao livre desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo ou ser humano enquanto tal, ou seja, ligado à axiologia pressuposta

constitucionalmente35.

Trata-se de um critério que, bebendo as suas origens no pensamento de GOLDSCHMIDT e de SCHIMIDT veio a ser retomado e desenvolvido por outros

autores como LANGE e MICHELS que enquadram e interligam elementos das

várias teses de diferenciação qualitativa.

No fundo, de acordo com tais autores, há que diferenciar os delicta in se

(ilicitudes que se baseiam em violação de bens jurídicos e a que está ínsito um

desvalor ético-social) e os delicta mere prohibita (ilicitudes que apenas existem como mera desobediência a um comando legal e a que não era ínsito qualquer desvalor jurídico à partida), aqueles próprios do Direito Penal e estes próprios do Direito contra-ordenacional.

Também AMELUNG distinguia o Direito Penal protector de bens jurídicos

do Direito Penal Administrativo protector de interesses administrativos, sem contudo deixar de revelar que havia que equacionar a incorrecção do enquadramento das contra-ordenações no seio do Direito Penal Administrativo. AMELUNG, de resto, acrescentou um outro elemento útil de diferenciação ao fazer assentar a distinção entre crime e contra-ordenação no que seja o seu substracto cultural e social de cada momento histórico.

Conforme refere ALEXANDRA VILELA36 a propósito do pensamento de

AMELUNG “O autor em análise, segundo o nosso ponto de vista, volta a revelar

34

Sobre a distinção entre dignidade penal e carência de tutela penal, cfr. MANUEL DA COSTA ANDRADE, «A dignidade penal e a carência de tutela penal como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime», Revista

Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, Fasc. 2, Aequitas – editorial notícias, Abril-Junho de 1992, pp. 173-205.

35

Cfr. AUGUSTO SILVA DIAS, «Crimes e Contra-ordenações», pp. 441 e ss. e JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», pp 23 e 24.

36

ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera Ordenação Social, pp. 190 e 203, que expõe o pensamento de AMELUNG e

(31)

grande lucidez quando discreteia que é efectivamente inegável a existência de especificidades sociológicas das contra-ordenações que, por sua vez, conduzem a implicações nos planos dogmático e da política criminal. Logo, por aqui, é visível a diferença qualitativa entre os dois ilícitos: o ilícito penal, por mais bagatelar que ele seja, apesar de o grau de ilicitude de alguns tipos legais de crime ser igual ao das contra-ordenações, dada a existência daquelas especificidades, é impossível ser reconduzido ao mesmo plano qualitativo daquelas. (…) O que equivale a dizer que os tipos legais do Direito Penal se ligam às normas que a pessoa interiorizou no estádio da sua Gewissenbildung, da sua socialização primária e na sua formação enquanto pessoa, sendo certo que o horizonte dessas normas interiorizadas é determinado pela tradição cultural. No direito de mera ordenação social, pelo contrário, o legislador não pode pressupor que os destinatários das suas normas tenham consciência do seu conteúdo ilícito”.

Este critério não fica, porém, a salvo de críticas.

Como lembra TERESA PIZARRO BELEZA, há por um lado crimes de perigo

(portanto, com uma tutela mais mediata) e, por outro, crimes de desobediência, pelo que a mera ideia de se estar a infringir uma injunção administrativa não é suficientemente caracterizadora das contra-ordenações por oposição ao crime37.

Alguns autores consideram mesmo artificial a distinção entre o bem jurídico justiça e o bem jurídico do bem-estar social ou público, dizendo que “el ordenamiento jurídico solo puede prestar protección a un bienestar comuún que sea justo (…) La realidad legislativa muestra que muchos de los bienes jurídicos que las normas penales protegen son interesses pertenecientes de

modo inmediato a la Administración”38

.

Não obstante tais críticas, há quem veja neste critério um efeito útil de delimitação negativa de tal caracterização material.

37

TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, 1.º vol, Lisboa, AAFDL editora, Lisboa, 1998, pp.102 e 103 (citado: Direito

Penal). 38

ROBERTO GOLDSCHMIDT, «La teoria del derecho penal administrativo y sus críticos», Estúdios de derecho comparado,

(32)

Com efeito, autores como W. HASSEMER39e GÜNTHER JAKOBS40 entendem que o critério da tutela do bem jurídico pode, nalguns casos, ser útil numa legitimação negativa, isto é, o critério permite pelo menos afirmar algumas condutas que jamais poderiam ser sancionadas com uma coima dada a natureza dos bens jurídicos em causa bem como as condutas que, por falta de dignidade penal, jamais poderiam ser qualificadas como crime.

Trata-se ainda assim de uma delimitação nos extremos mas que não resolve as “zonas cinzentas” bastando pensar nas dificuldades que suscitaria o Direito Penal secundário.

Mas vejamos outro dos critérios aduzidos.

Conforme se havia referido, a par do critério relacionado com os bens jurídicos, destaca-se ainda um outro critério: o critério qualitativo da irrelevância ética da conduta contra-ordenacional por contraposição à conduta ético-penalmente relevante por referência à ordem axiológica constitucional.

Era com base num tal critério, importado da doutrina do Direito Penal

Administrativo e agora aprofundado, que EDUARDO CORREIA dizia que as

contra-ordenações deveriam ser objecto não de penas propriamente ditas, mas

de “outro tipo de medidas que exprimam apenas uma censura de natureza

social e se traduzam num mal com o sentido de mera advertência despido de

toda a mácula ético-jurídica”41

. Note-se que, já em sede de contravenções (e portanto, ainda no domínio penal), se referia que as mesmas eram

independentes de “toda a intenção maléfica” - cfr. art. 3.º do Código Penal de

1886.

Mas existirão ilícitos axiologicamente neutros?

Face a tal questão, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, explicita que não são tanto

os ilícitos, mas as condutas que lhes subjazem que, sem a proibição legal, são eticamente neutras, explicando «necessário é sim que a perspectiva da “indiferença ética” se dirija, não imediatamente aos ilícitos – que supõem já

39

W.HASSEMER, Theorie und Soziologie des Verbrechens, Atheäum Verlag, Frankfurt, 1973, pp. 216 e ss. citado por

MANUEL DA COSTA ANDRADE, «Contributo» , p. 76.

40

GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal, pp. 68 e 69.

41 E

(33)

realizada a valoração legal, mas às condutas que os integram. Nada tolhe o passo à distinção entre condutas a que, antes e independentemente do desvalor da ilicitude, corresponde, e condutas a que não corresponde mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta em si mesma, independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiologicamente

relevante, no segundo, axiologicamente neutra»42.

No fundo, os tributários desta tese distintiva, entendendo que em ambos os ilícitos está em causa a protecção de bens jurídicos (pelo que a distinção não pode ter essa “pedra de toque”), defendem, contudo, que as condutas integradoras de contra-ordenações, ao contrário das penas, sem a proibição legal, seriam axiologicamente neutras.

AUGUSTO SILVA DIAS também separa os ilícitos como “delicta in se” e os

“delicta mere prohibita”. Refere que o “delicta in se”, com dignidade penal,

“encerra desvalor ético, danosidade e reprovação sociais, resultantes, em primeira mão, do dano que produz em estruturas de reconhecimento recíproco constituídas, entre outros elementos, por bens ou valores de referente pessoal e, portanto, de perda efectiva para alguém”. Já os “delicta mere prohibita”

traduzem-se em “perturbações funcionais, que impedem o regular

funcionamento de subsistemas de economia de mercado, e provêm de consequências (…) que se não produzem imediatamente sobre pessoas e escapam por isso à experiência do dano”, embora entenda que nesta zona podem já haver condutas que integrem crime e condutas que integrem

contra-ordenações43.

As críticas a um tal critério distintivo são já antigas.

Com efeito, ninguém duvidará que o ilícito penal é axiologicamente relevante. Já do que duvidam alguns autores é que o ilícito de mera ordenação social o não seja igualmente, trazendo à colação o argumento que nenhum ilícito ou conduta é, na totalidade, axiologicamente neutro.

42

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 26.

43

AUGUSTO SILVA DIAS,“Delicta in se” e “Delicta mere proihbita”: uma análise de descontinuidade do ilícito penal

moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 578 e ss. (citado: Delicta in se).

Referências

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