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II. O CONCEITO DE CONTRA ORDENAÇÃO

2. A necessidade de construção de uma delimitação material da contra-ordenação

2.3. A ilicitude nas contra-ordenações

2.3.3. As teses mistas ou outras teses

Não se pode esconder o facto de a tese da diferença qualitativa ter sofrido algum desgaste com as críticas advindas sobretudo das doutrinas alemã e espanhola, o que está essencialmente relacionado com a crescente proliferação, em número e heterogeneidade, do domínio contra-ordenacional.

Refere, elucidativamente, a este propósito NUNO B. M. LUMBRALES,

simpatizante das teses quantitativas, que “A heterogenidade das condutas

qualificadas pela lei como ilícito de mera ordenação social é de tal forma manifesta que acaba, conjugada com outros argumentos, por pôr em causa a sustentabilidade dos critérios de distinção substancial tradicionalmente avançados pela doutrina sobretudo os da tutela de bens jurídicos ou de meros bens ou interesses de natureza administrativa e da relevância ética da

infracção”50

. É neste contexto que se vêm erguendo teses que, por exemplo, transformam depois a quantidade em qualidade.

Entre nós, e pese embora inclinando-se para o critério da irrelevância

ética da conduta quando divorciada da proibição legal, JORGE DE FIGUEIREDO

DIAS não deixa de, em determinado momento do seu pensamento, referir que

tal «não obsta, naturalmente, a que em certos casos o legislador aceite

50 N

critérios adicionais de distinção; e mesmo critérios de pura “quantidade” – quando esta se converte em qualidade, isto é, quando seja condição da relevância axiológica de uma conduta o facto de que ela não constitua uma pura bagatela do ponto de vista quantitativo, antes assuma um mínimo de gravidade. E tanto mais me confirmo nesta via de distinção quanto é ela que

vejo mais próxima da necessária ligação de todo o Direito Penal –

diferentemente do que sucede com o direito de mera ordenação – aos bens

jurídicos e, por aí, à ordem axiológica constitucional»51.

Trata-se de um pensamento que vai beber as suas raízes a ROXIN que

vinha dando realce ao princípio da subsidiariedade da intervenção penal como premissa político-criminal importante da distinção a operar.

Parte-se então do princípio da subsidiariedade da intervenção penal, e, bem assim, da discricionariedade do legislador na opção entre crime e contra- ordenação, para depois se entender que «a ideia de transformação da quantidade em qualidade permite sustentar, relativamente às infracções mais graves, que as mesmas se possam incluir “En el campo nuclear del Derecho Penal”, já que “las exigências de la protección subsidiaria de bienes jurídicos requieren necesariamente un castigo penal en caso de delitos de un cierto peso, podendo igualmente, e por outro lado, através do recurso ao princípio da subsidiariedade, delimitar-se um campo em que só será admissível a punição

a título de contra-ordenação»52.

No entanto, novas críticas podem, ainda assim, ser erigidas a este raciocínio.

ALEXANDRA VILELA, por exemplo, não deixa de referir, a propósito desta

tese de ROXIN, seguida por FIGUEIREDO DIAS, que “é inconcebível aceitar que a

quantidade, uma vez atingido um certo grau, se transfigure em qualidade.

Comungando do pensamento de FARIA COSTA e de BOHNERT, diremos que a

adesão a um critério misto quantitativo-qualitativo, onde há espaço para a existência do Kernbereich privativo do Direito Penal, equivale a aceitar que,

51

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 27.

52 N

efectivamente, a diferenciação é feita através de um critério qualitativo. BOHNERT refere mesmo que as teorias mistas não são possíveis, As assim chamadas teorias mistas são, na verdade, qualitativas. (…) A estes

argumentos acrescenta-se ainda um outro de THIEΒ, que, no caso tem total

cabimento. Diz-nos este autor que este salto de quantidade para qualidade, peca por falta de nitidez e situa-se num determinado ponto que tolera

transições pouco claras (…) com recurso a critérios arbitrários” 53

.

MÁRIO FERREIRA MONTE, avança também com um critério material, que

parte das finalidades das contra-ordenações (critério teleológico) a que adita

um novo factor atendível: a política criminal. Tal autor propõe o seguinte “é hoje

possível sustentar uma distinção que, sendo na sua base qualitativa – natureza da conduta que subjaz ao ilícito, - sobretudo em alguns casos vem a ser

refinada por razões quantitativas – maior ou menos necessidade penal – e

consequentemente maior ou menor necessidade de sanção, por sua vez também mais ou menos severa, e que vá ao encontro de maiores ou menores exigências de preveção ou de simples advertência. Tudo isto, no entanto, feito à luz de considerações indispensavelmente político-criminais: o direito penal rege-se por critérios de lesividade ou perigosidade e de imputação pessoal do ilícito, sendo este determiunado na sua base por condutas com relevância ético-social; o direito de mera ordenação social, embora proteja bens jurídicos, pauta-se por critérios de ordenação, em geral, de sectores de actividade, mediante sanções, um determinado modelo de gestão sectorial, gestaão essa que vem a ser determinada por normas que proíbem ou impõem comportamentos e de cuja violação resulta o ilícito (…) Para as condutas que se situam numa área indistinta, isto é, que teriam dignidade penal mas não justificam a utilização do direito penal, continua a ser um juízo criminal de necessidade que resolve o problema, ou seja, uma solução de política criminal,

53 A

e não através de um critério material qualitativo que não chega a distinguir tais ilícitos””54

.

Já FARIA COSTA havia também introduzido, por seu turno, o que se ainda se afigura ser um importante elemento auxiliar à distinção material entre crime e contra-ordenação: o da dignidade penal entendida como algo fluído no tempo, como marcado pela valoração do que seja o mínimo ético de cada

momento histórico, social e antropológico 55.

ALEXANDRA VILELA, alicerçando as bases da sua posição nesta premissa

dada por FARIA COSTA, refere que a dignidade penal é um elemento importante

mas não pode ser o que, em última análise, e por si só, delimitar crime e contra-ordenação.

É que, como a mesma sublinha, sendo (também para nós) indiscutível que o Direito de mera ordenação social protege bens jurídicos, há ainda que constatar que por vezes protege bens jurídicos com dignidade penal (veja-se

v.g. a condução em estado de embriaguez, seja a sancionável com contra-

ordenação nos termos do art. 81.º do Código da Estrada seja a punível nos termos do art. 292º do Código Penal; vejam-se as contra-ordenações e crimes contra a economia; os crimes e as contra-ordenações ambientais, etc.).

54

MÁRIO FERREIRA MONTE, Lineamentos, Capt II, ponto 4 e Capt. III. Ponto 1. Note-se que com base no critério

distintivo proposto, na referida obra, o Autor formula uma síntese de hipóteses enquadrando cada uma no ilícito penal ou no ilícito de mera ordenação social. Assim, sintetiza o seguinte:

“- condutas com relevância ética que põem em causa bens jurídicos que merecem e necessitam de tutela penal (ilícito penal (IP) (o normal dos crimes);

- condutas com relevância ética, que põem em causa bens jurídicos que merecem tutela penal, mas não necessitam dessa tutela, - ilícito de mera ordenação social (IMOS) ou outra tutela (p. ex., crimes que, pela natureza fragmentária do Direito Penal, não necessitam de tutela penal em certas situações;

- condutas que isoladamente não chegam a ter relevância ética mas que, consideradas pelo seu potencial dano cumulativo, põem em causa a convivência social – IP – ou apenas colocam em causa normas de ordenação social – IMOS (p. ex., os crimes e as contra-ordenações ambientais);

- condutas com relevância ética que merecem e necessitam de pena a partir de um certo grau de lesão ou de perigo do bem jurídico – IP (p. ex., condução sob efeito do álcool a partir de uma certa taxa de alcoolemia);

- condutas com relevância ética que merecem pena, mas não a necessitam abaixo de um certo grau de lesão ou de perigo do bem jurídico – IMOS (p. ex., a condução sob efeito de álcool abaixo de uma taxa de alcoolemia);

- condutas sem relevância ética, que iolam normas que visam a ordenação social – IMOS (o normal das contra- ordenações).”

55

Por isso mesmo, ao critério distintivo da dignidade penal a referida autora acrescenta outro: o da falta de necessidade de pena, referindo que “Daí que se revele também necessário que a conduta violadora do bem jurídico constitua, para este, um ataque absolutamente intolerável que a faça dever ser sancionada com uma pena. Logo, ao cânone metodológico da dignidade penal, há-de juntar-se o da necessidade ou merecimento de pena. De outro modo, a conduta só será sancionada no âmbito do Direito Penal se, ao juízo de dignidade penal – ao qual anda adrede “um limiar qualificado de danosidade ou de perturbação ou abalo sociais – se juntar a necessidade de tutela penal, esta entendida enquanto expressão do princípio de subsidiariedade e de ultima ratio”.

Mas não fica ainda por aqui o auxílio distintivo. Importa ainda analisar a diferenciação à luz de outra ideia avançada pela mesma autora: o da carência da sanção contra-ordenacional.

Efectivamente, na eventual falta de dignidade penal e de necessidade de pena, para estarmos perante a tipificação de uma contra-ordenação, há ainda que aferir, se existe carência de sanção contra-ordenacional. Situando este elemento como relevante sobretudo (e compreensivelmente) na distinção do Direito contra-ordenacional por confronto com o Direito Penal secundário, há que aferir, igualmente dentro da fluidez de cada momento histórico-social, se uma conduta carece ou não de sanção contra-ordenacional. Refere assim a tal

propósito: “Diríamos amparados em AMELUNG e FARIA COSTA, que a essência

do direito de mera ordenação social “não” é. Apontamos, tão-somente, que ela acontece, vai sendo (…) E como se vê, por aqui, neste preciso ponto, é impensável não chamar à colação o princípio da subsidiariedade, para que

apela ROXIN e usá-lo, porém, não do jeito aludido por este autor, mas da forma

defendida por ULRICH WEBER, segundo o qual é necessário o uso de contenção

na tarefa legislativa de criação de contra-ordenações, tarefa essa sujeita aos apertados princípios reitores do Estado de Direito Material, como, por exemplo, o da necessidade de sanção contra-ordenacional. (…) Portanto, o correcto talvez seja afirmarmos que o critério distintivo é dado pelo produto do “material”

social, encontrado num plano pré-jurídico – social, por consequência – depois

de trabalhado pela criminologia e política criminal”56

.

É por causa deste critério assim definido pelos múltiplos vectores somados (protecção de bens jurídicos com ou sem dignidade penal a que se adicionar a necessidade ou não de pena e ainda a carência ou não de sanção contra-ordenacional) que a autora distingue e categoriza dois tipos de contra- ordenação: por um lado, relativamente às contra-ordenações que constituem infracção às ordens da autoridade e Administração ou simples contra- ordenações” que serão as que não têm a si subjacente um conteúdo ético social, não protegendo assim bens jurídico-penais (sendo que aí bastará o critério distintivo da falta de dignidade penal). Por outro lado, as contra- ordenações, que protegem bens jurídicos com dignidade penal ou contra- ordenações com conteúdo ético-social em que já é necessário lançar mão do critério da carência da sanção contra-ordenacional ou da pena para perceber se a conduta deve ser legislada como contra-ordenação ou como crime

(podendo acrescentar-se, na esteira de MÁRIO FERREIRA MONTE, que tal sucede

à luz de considerações de política criminal de cada momento histórico-social e cientes, ainda assim, que este segundo tipo de contra-ordenações são a excepção).

Tal perspectiva poderá parecer uma arrumação artificial na medida em que o legislador teria desde logo que classificar as contra-ordenações como sendo de um ou de outro tipo (já que tal distinção levaria a que passasse a existir aquilo que a autora em causa denomina de “direito de mera ordenação social a duas velocidades”, do qual se teria que expurgar, em coerência, a

palavra “mera”)57

.

Contudo, e ante as virtualidades da distinção proposta e das teses mistas às quais aderimos nos termos referidos, não vemos que tal fosse um problema insuperável já que tal artificialidade não anda muito longe de outras

56

ALEXANDRA VILELA,O Direito de mera ordenação social, pp. 237-239.

57

tarefas legislativas já existentes como, v.g., de classificação de contra- ordenações como leves, graves ou muito graves.

O problema, esse sim, seria o de proceder a uma revisão profunda do regime legal, com a criação de regimes distintos para cada um dos tipos de contra-ordenação, podendo dizer-se, grosso modo, que o RGCO actualmente existente seria adequado apenas para as que designaremos de simples contra- ordenações e já não para aquele segundo tipo de contra-ordenações protectoras de bens jurídicos com dignidade penal.

Estes são alguns dos principais critérios distintivos elencados ao nível do tipo de ilícito (com relevância no regime jurídico a definir e ainda com relevância para a concepção de culpa a traçar) sendo as referidas teses sintomáticas do caminho feito e do caminho ainda por trilhar neste domínio das contra-ordenações e ainda o sintoma da dificuldade da concretização de tal tarefa em termos de consagração normativa.