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II. O CONCEITO DE CONTRA ORDENAÇÃO

2. A necessidade de construção de uma delimitação material da contra-ordenação

2.5. A coima (sanção principal)

De acordo com a noção legal, temos um último elemento definidor da contra-ordenação: a sanção principal que é a coima.

59

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 29.

60 E

É relativamente comum distinguir crime e contra-ordenação por referência à natureza das sanções de cada um, sobretudo quanto à sanção principal: a

coima61 por comparação com a pena, designadamente, de multa (de resto,

como vimos, o legislador parte desta diferença para o critério nominal formal legalmente estabelecido no art. 1.º do RGCO).

A coima vem sendo entendida, nas palavras de ANTÓNIO LEONES DANTAS,

como uma “sanção que não se apresenta, desta forma, como expressão de um juízo de reprovação dirigido pela colectividade a um dos seus membros que põe em causa através da sua conduta valores essenciais à normalidade da vida comum, mas apenas uma censura dirigida pela Administração a um dos membros dessa colectividade, fundada no incumprimento do dever de não

obstar à execução da ordem definida”62

.

Conforme já se referiu supra, existe uma corrente doutrinária que defende não existir qualquer diferença material entre crime e contra-ordenação. Tal doutrina, coerentemente, não pode deixar de entender que entre a pena de

multa e a coima não existem igualmente diferenças. MANUEL CAVALEIRO

FERREIRA, por exemplo entende que, a distinção entre coima e pena de multa é

meramente nominal já que ambas têm natureza penal e não civil ou

administrativa63.

Dizem outros que faltará na sanção principal contra-ordenacional – a

coima - o pathos ético que existe na censura penal com as consequências daí extraídas ao nível da personalidade do agente.

À distinção baseada na sanção não é alheio o carácter apriorísticamente mais drástico das sanções penais, quer aquelas que se aplicam a agentes com culpa (penas), quer aqueloutras que se aplicam aos agentes perigosos (medidas de segurança), sobretudo quando nos referimos às penas principais: pena de prisão e pena de multa. Já no ilícito de mera ordenação social, a

61

Isto porque, como é sabido, existem inúmeras sanções acessórias no domínio contra-ordenacional (v.g., desde logo, as elencadas no art. 21.º do RGCO).

62

ANTÓNIO LEONES DANTAS, Direito das Contra-ordenações – Questões Gerais, AEDUM, Braga, 2010, p. 75 (citado:

Direito das Contra-ordenações). 63 M

sanção principal (pois que existem ainda as acessórias e até as sanções

substitutivas) é, por princípio, apenas patrimonial – a coima64

.

De novo, ninguém duvidará da diferente natureza da sanção se comparar pena de prisão com coima. Já a comparação da pena de multa com coima faz- se de modo crescentemente difícil, desde logo porque ambas comungam da característica da patrimonialidade (cfr. art. 47.º do Código Penal e art. 17.º do RGCO) sendo ambas aplicadas pelo Estado (por via de Tribunais e das entidades administrativas e, mais recentemente, por entidades reguladoras que, ainda assim, são supervisionadas pelo Estado).

De todo o modo, existem diferenças assinaláveis entre ambas.

Enquanto a pena de multa, por regra, é averbada ao registo criminal, o mesmo não sucederá com a coima (o mesmo sucedendo, v.g., no caso da admoestação ser criminal ou contra-ordenacional – cfr. diferenças do art. 51.º do RGCO e 60.º do CP).

Por outro lado, é ainda comum assinalar a diferença por via da susceptibilidade de conversão da pena de multa em prisão subsidiária no caso de não pagamento da pena de multa (art. 49.º do Código Penal), ao contrário do que sucede em caso de incumprimento do pagamento da coima, que dará lugar à mera execução do montante da mesma (cfr. arts. 88.º e sobretudo 89.º

do RGCO)65.

64 A figura da coima tem já longa tradição no nosso Ordenamento Jurídico. Diz-se a este propósito que a coima “(…) é

tributária de uma tradição que remonta aos tempos de fundação da nacionalidade; coimas e calúnias eram penas pecuniárias que, no sistema penal da Idade Média, deviam ser pagas ao rei ou senhor da terra (às vezes também aos próprios ofendidos) pelo agente de determinados delitos, ao lado das penas a que esses delitos pudessem dar lugar (…) Posteriormente, e já no século passado, veio a novíssima Reforma Judiciária (1841) a tratar do processo das coimas, no seu artigo 241.º (v. tb. Referências nos artigos 81.º e 302.º). (…) Não se pense, porém, com estas referências de carácter histórico, que se tratou de “ressuscitar” uma designação; é talvez mais correcto falar de “reavivar”, já que a expressão “coima” nunca deixou de ter cabimento no Direito sancionatório português. Assim reza o artigo 485.º do Código Penal de 1886 que “as coimas continuarão a ser julgadas em todos os casos em que se acham determinadas pelas posturas e regulamentos municipais, actualmente em vigor e feitos na conformidade das leis.” – cfr.

MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo», p.162.

65

Com o Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro passou a prever-se a possibilidade de a coima ser substituída por trabalho a favor da comunidade nos termos previstos no art. 89.º-A do RGCO, passando ainda a prever-se a possibilidade de substituição da coima por admoestação nos termos do art. 51.º do RGCO

Ainda assim, não se olvide, como refere J. LOBO MOUTINHO que a velha distinção com base na convertibilidade ou não em prisão subsidiária está um pouco atenuada com a recente possibilidade de aplicação da multa a pessoas colectivas (cfr. art. 90.º-B, n.º 7, do Código Penal na versão alterada pela Lei

n.º 59/2007, de 04 de Setembro)66, o que, ainda assim, tem mais que ver com

o destinatário da sanção do que com a natureza da própria sanção.

São pois realidades diferentes, com finalidades igualmente diferentes, sobretudo nas designadas simples contra-ordenações em que apenas está em causa, não uma qualquer finalidade ressocializadora mas apenas o sancionar

da violação de proibições legais67.

De todo o modo, a diferenciação por via da sanção não deixa de suscitar um certo sentimento de perplexidade e ambiguidade… Por um lado, é certo que face aos traços distintivos aludidos, não deixa de nos ajudar a autonomizar a contra-ordenação do crime. Contudo, na prática, os elevados limites das molduras das coimas abstractamente puníveis e elevado quantum concreto de coima aplicado pelas autoridades administrativas e Tribunais por contraposição a uma alegada brandura dos Tribunais na aplicação da pena de multa conduz a uma aproximação do ponto de vista das consequências das contra- ordenações ao mundo penal.

Com efeito, bastará sobrevoar alguns tipos contra-ordenacionais (sobretudo em regimes sectoriais) para facilmente constatarmos a severidade de algumas molduras das coimas abstractamente previstas (a título meramente exemplificativo veja-se v.g. o art. 22.º, da Lei Quadro das Contra- ordenações Ambientais (Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto alterada pela Lei n.º

89/2009, de 31 de Agosto) que prevê que “1 - A cada escalão classificativo de

gravidade das contra-ordenações ambientais corresponde uma coima variável consoante seja aplicada a uma pessoa singular ou colectiva e em função do

66 J.L

OBO MOUTINHO, Direito das Contra-ordenações – ensinar e investigar, Universidade Católica Editora, Lisboa,

2008, p. 37 (citado: Direito das Contra-ordenações).

67

Sobre a inexistência de finalidade preventiva positiva de prevenção especial de socialização na sanção contra- ordenacional e ainda sobre as dúvidas sobre a existência de prevenção geral negativa da mesma cfr. MÁRIO FERREIRA

grau de culpa, salvo o disposto no artigo seguinte. 2 - Às contra-ordenações leves correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas singulares, de (euro) 200 a (euro) 1000 em caso de negligência e de (euro) 400 a (euro) 2000 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas, de (euro) 3000 a (euro) 13 000 em caso de negligência e de (euro) 6000 a (euro) 22 500 em caso de dolo. 3 - Às contra-ordenações graves correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas singulares, de (euro) 2000 a (euro) 10 000 em caso de negligência e de (euro) 6000 a (euro) 20 000 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas, de (euro) 15 000 a (euro) 30 000 em caso de negligência e de (euro) 30 000 a (euro) 48 000 em caso de dolo. 4 - Às contra-ordenações muito graves correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas singulares, de (euro) 20 000 a (euro) 30 000 em caso de negligência e de (euro) 30 000 a (euro) 37 500 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas, de (euro) 38 500 a (euro) 70 000 em caso de negligência e de (euro) 200 000 a (euro) 2 500 000 em caso de dolo.”

O mesmo se diga quanto à gravidade de algumas das sanções acessórias previstas. Basta pensar na, frequentemente sentida como gravosa, sanção acessória de inibição de conduzir de um mês a um ano (art. 147.º do Código da Estrada) ou na inibição do exercício de funções que se exerciam profissionalmente (v.g. art. 404.º do Código de Valores Mobiliários).

Bastarão, assim cremos, estes exemplos, para ilustrar que as contra- ordenações não podem ser olhadas como meras “bagatelas”.

Na prática estamos pois perante sanções gravosas para o arguido. Não será, de resto, despropositado afirmar que com a aplicação de uma ou duas coimas ficará não raras vezes em causa a continuação e viabilidade financeira das pequenas e médias empresas que abundam em Portugal. No que tange às sanções acessórias há até autores que referem que as actualmente previstas são tão vastas e tão gravosas que “faz o leitor espantar-se com a afirmação

(verdadeira) de que a contra-ordenação é um ilícito menos grave do que o

ilícito criminal”68

.

E se, em regra, as sanções são bastante gravosas, tal poderá demandar

direitos e garantias tendencialmente maiores69.

De resto, os próprios preâmbulos dos Decretos-Lei na área contra- ordenacional confessam isso mesmo. Assim, no Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, que introduziu alterações ao RGCO na versão do Decreto-Lei n.º

433/82, de 27 de Outubro refere-se “Passados que foram seis anos sobre a

entrada em vigor do referido diploma, importa introduzir-lhe alterações ditadas pela experiência da sua aplicação e, ainda, pelas transformações entretanto operadas, quer na realidade social e económica, quer no ordenamento jurídico português. Revela-se necessário o reforço das garantias dos particulares”. Ainda mais sintomático do referido, menciona o Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, que introduziu novamente alterações ao Decreto-Lei n.º 433/82,

de 27 de Outubro, que “regista-se um crescente movimento de neopunição,

com o alargamento notável das áreas de actividade que agora são objecto de ilícito de mera ordenação social e, do mesmo passo, com a fixação de coimas de montantes muito elevados e a cominação de sanções acessórias especialmente severas. Compreensivelmente, não pode o direito de mera ordenação continuar a ser olhado como um direito de bagatelas penais. É nesta perspectiva que deve entender-se a presente reforma do Regime Geral das Contra-ordenações, especialmente orientada para o efectivo reforço das

68

Neste sentido AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal- Parte Geral, pp. 132 e 133.

69 Chegam mesmo a suscitar-se questões de constitucionalidade junto dos nossos Tribunais em virtude da

perplexidade de se sancionar mais severamente o ilícito contra-ordenacional do que o ilícito criminal. Sobre tal questão veja-se o interessante Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.10.2007, Proc. n.º 3470/06.0TBVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt (como todos doravante sem indicação de outra fonte), e em que se decidiu que “1- Nada obsta a que o legislador puna com maior gravidade um ilícito de natureza contra-ordenacional do que um outro de natureza criminal. Basta que a perspectiva politico-criminal que justifica a adopção de um ilícito contra-ordenacional punido com um nível de gravidade superior a qualquer ilícito de natureza criminal, com o séquito de sanções acessórias que se lhe acrescentem, se prefigure, em determinado momento histórico, como aquelas que de forma mais eficiente satisfaz as necessidades de segurança e tranquilidade da comunidade jurídica. 2- Não fere o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa o facto de o legislador punir com maior gravame um ilícito de natureza contra-ordenacional do que um ilícito criminal.”

garantias dos arguidos perante o crescente poder sancionatório da Administração.”

A doutrina tem estado atenta a tais aparentes paradoxos práticos, sublinhando que esta severidade na aplicação das sanções contra- ordenacionais importa algum beliscar da pretendida autonomia do Direito das

contra-ordenações. Neste sentido veja-se FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO

quando refere que “No plano sancionatório a gravidade das sanções criadas desde 1982 põe igualmente em causa a desejável autonomia e diferenciação entre os sistemas penal e contra-ordenacional. Nesta matéria interessa reter fundamentalmente o alargamento excepcional das coimas em certos sectores de actividade e o progressivo alargamento das sanções acessórias

estabelecidas em diplomas avulsos”70

. Pese embora a ambiguidade referida, a análise das diferentes sanções não deixa de ser útil no trilhar da delimitação

material possível de contra-ordenação71.

De todo o modo, não deixa a coima de ser, a nosso ver, um relevante factor distintivo e de autonomização da figura do ilícito contra-ordenacional.

2.6. Outros elementos auxiliares na delimitação da figura da contra-