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Passará!? Uma Eco-logia de Sentidos

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Academic year: 2021

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Uma Eco-logia de Sentidos

Hiran de Moura Possas Doutor em Comunicação e Semiótica Instituto de Ciências Humanas (FECAMPO/PDTSA)

Ninguém vai mostrar o que é direito, [...] porque nenhum kupẽ, desde 1968, 1972, 1983 [...] aí a FUNAI veio aqui e disse um cartucho; o último tiro tinha que dar, e lavava a mão. Fica difícil. Eu olhei quem ia resolver esse problema. Era difícil a situação1

Preâmbulo

O escrito, à guisa de introdução, responde a uma série de propósitos. Quais sejam: acompanha um percurso de estudos iniciados em 19902, considerado pelo pesquisador, um esforço de reflexão teórica sem abdicar de compromissos éticos; é resultado preliminar de um projeto de pesquisa fomentado pela Chamada Universal MCTI/CNPq Nº 01/2016, nascido da inquietude do jornal faz disseminar sentidos de históricos de políticas de subjetivação advindas do avanço sistemático do capitalismo cognitivo, aquele que, em linhas resumidas, além de fabricar o objeto de consumo, fabrica o culto, o desejo, as crenças e os valores para o “alcance” dos seus “deuses”. Maquinário social ditando o funcionamento dos maquinários tecnológicos (Deleuze, 2012), ao distribuir os papéis, as cenas, os valores e, acima de tudo, hierarquizações depreciativas. Os jornais seriam, em grande medida, reprodutores/(re)criadores/mantenedores de agenciamentos3, sobretudo aos povos indígenas nos artigos retratando os conflitos históricos com as ditas sociedades majoritárias. Concebido das relações mais discutíveis do Estado com o Capital, não poderia deixar de reproduzir e fortalecer projetos (des) civilizadores para as Amazônias, cujos “manejos” dessa gestão recolonizadora visa ao ordenamento do “espoliado”, na

1 Fala de Paiaré sobre os deslocamentos compulsórios do Povo Gavião, quando da presença do

antropólogo alemão Peter Kastner: “toda turma estava reunida”, na Aldeia do 30. (POSSAS, 1992).

2 Refiro-me ao período de graduação em Letras, na Universidade Federal do Pará, participando, na

condição de bolsista de iniciação científica, do Projeto “Bilinguismo e o Valor Funcional das línguas entre os Parkatêjê”, coordenado pela professora Leopoldina Maria Araújo.

3 Na perspectiva deleuziana, com suas leituras prévias de Nietsche e Foucault, o agenciamento poderia ser

compreendido como a unidade mínima significativa, antes de ser linguagem ou sentido. Só é possível existirem enunciados pelos agenciamentos. Ele não é propriedade de um enunciador em particular. Sempre é coletivo. Simbiose de multiplicidades. (DELEUZE, 1996)

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2 exploração e expropriação de suas riquezas incluindo seus conhecimentos e no cerceamento da liberdade de se auto representar. A pesquisa depois de farto levantamento e testemunho de texturas reveladoras dessa violência tipográfica, alcançou efeitos importantes, como o acesso a um significativo material crítico de falas indígenas, um filigrana em matérias jornalísticas etnocêntricas. Posteriormente, as informações foram objeto de diálogos com alguns sábios da floresta Mãe Maria, experiência semiótica pela intensidade dos encontros/afecções, forçando-nos a sentir e pensar por diferentes modos. Parte dos domínios desse processo comunicativo ou Semiose4 recebeu, para a melhor compreensão dos leitores, denominações temáticas. Nessa primeira escrita, destacaremos problemáticas territoriais imbricadas à vida do Povo Gavião. Não poderia deixar de mencionar que a “finalização” dessa pesquisa conviveu com as emergências impostas pelo COVID-19, “novo coronavírus”. O esgarçamento assustador dos sentidos dessa pandemia, proporcional aos seus colapsos, impôs perplexidades para além do desfile de corpos nos noticiários das mídias oportunistas. Isolamento com inércia moral e do pensamento acometeram, eu diria, milhões de vítimas. Assistimos anestesiados ao sequestro de direitos históricos; a teatralização de embates calorosos, por urgentes e risíveis problemas, entre alguns sujeitos pensando ser liberais, alguns fundamentalistas de esquerda, e sem cometer exclusões, os sujeitos perdidos. As pautas resumiam-se em acusações mútuas e a cansativa observância da discursividade nascida de seus manuais versados na reeducação da sensibilidade. Enquanto isso, a prolifera o incontrolável vírus tóxico-colonial-capitalista. Nossos ânimos são, já a algum tempo, o reconhecimento e a tentativa de se fazerem LÍNGUA os afectos, em especial com os pensamentos indígenas - “’objeto’ desse escrito” - e os do campesinato, detentores de uma potência capaz de descolonizar os inconscientes mais genocidas.

1 O Signo em Potência de Afectos

Ao inaugurar, no Collège de France, em 7 de janeiro de 1977, a cadeira de semiologia literária, Roland Barthes pronunciou aula magna extremamente irônica engendrando provocações a uma Instituição cujas práticas, a décadas, fazia reinar uma ciência, saber e rigor disciplinados. Ele, um intelectual “impuro”, por ater-se aos

4 Na perspectiva do Semioticista Charles Sanders, na concepção de sua ciência dos signos (Semiologia;

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3 movimentos de migrações conceituais em defesa da ocupação de conceitos em espaços inesperados fazia um convite ao pensamento de objetos de pesquisas fugidios/renovados e destituídos de propriedade intelectual a uma ciência em particular. Uma constatação preocupante de que os sentidos totalizadores sobre ciência são construídos, a partir da própria ideia da divisão do trabalho com suas devidas especialidades.

Precursor da Semiótica, Barthes não insulta a importância da especialização em certos contextos, mas as imprevisibilidades vivenciadas nos estudos sobre os signos fizeram reconhecer o pesquisador como aquele que ocasionalmente sabe daquilo desejando conhecer. Não há a voz da verdade. A verdade una inibe os sentidos.

A pesquisa, em voga, buscou a potência das afecções científicas em detrimento dos pensamentos encastelados. Entende os signos, especialmente aqueles que gravitam pelas páginas dos jornais, serem pensados por perspectivas plurívocas, em interrelações. O jornal, desse modo, não foi a mídia nos dada de imediato para análise, mas o espaço de abertura de “Alteridades”, em intensos fluxos de convergências/divergências de pensamentos/imaginários cristalizados/hierarquizadores aos povos indígenas por diversos suportes de comunicação: experiência transmidiática, por Scolari (2009), como estrutura narrativa acionando várias plataformas utilizadas de forma inteligente/astuciosa com alto poder persuasivo.

Por esses vieses, as teorias semióticas acionadas no começo da pesquisa5, até o limite de suas possibilidades, foram insuficientes aos exercícios interpretativos pretendidos. Tratavam-se de especulações a uma temática sem autoridades científicas. As (des)aprendizagens alcançadas desterritorializaram os “meus” propósitos para o que será chamado de, pela falta de melhor expressão, teoria semiótica com Deleuze. Pelo olhar dessas primeiras e iniciais leituras “impostas” pelos “objetos” da pesquisa, significava pensar o signo como o objeto promovendo encontros convocados/intensificados por afecções. Assim, foi o encontro com o “jornal” ou com a massa midiática incrustrada a partir dele. Da simples indignação com as autorias etnocêntrica de artigos, fora imposto à pesquisa o além do esperado ou o além da própria racionalidade de nosso campo de percepções. Foram desfeitas nossas perspectivas ordinárias para o que o filósofo francês, mencionado a pouco, chamaria de encontros intensivos: Nos artigos “jornalísticos” analisados, da mera expectativa de que indígenas seriam objetos de derrisão, pelo apuro da escuta ou pelas disjunções sígnicas

5 Na ocasião, 2016, o projeto aprovado junto ao CNPq ancorava reflexões exclusivamente às semióticas

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4 alcançadas, fomos apresentados a agências críticas, transcendendo as possibilidades familiares e preliminares de significação de fatos observados/testemunhados. Isso, para exercícios de análise e escritos posteriores, desencadeou a necessidade de estudarmos/ verificarmos/chegarmos a presença de “bolsões” capazes de liberar Outros enunciados/sentidos. Pensamos, desse modo, que o signo não se trata de uma unidade mínima significativa domesticável, mas se constituindo por variáveis, multiplicidades e choques de perspectivas. Todo o signo é e não é o signo de um Outro. Ele não se mede pela estabilidade e pelo esgotamento dos sentidos, mas justamente pelas diferenças, estranhezas e imprevisibilidades de seus alcances semânticos.

A partir de uma experiência, em certo sentido, de elevação da sensibilidade, resumida, pelas expectativas primeiras a uma comunicação de “final de pesquisa”, o cenário que muitos dizem ser imposto/inesperado/imprevisível pelas pandemias precisa ser descrito e repensado em fuga do senso comum imposto pelas transmídias. Um caso emblemático merecendo rápida menção reside nas (des) informações da “partida” de Bep’kororoti Paiakan, também conhecido como Paulinho Paiakan, liderança do povo Kayapó-Mebengokré. Seu protagonismo na defesa das causas indígenas, nacional e internacionalmente, foi ofuscado pela “cortina de fumaça tóxica” da acusação de estrupo, em 1992. Esses obituários, capazes de fazer Paulinho Paiakan (re) morrer infinitamente, ganham, na proporção da sua leitura, argumentos jurisprudentes a partir Chauí (2000) dos mitos fundadores do imaginário social e político brasileiro, maquinaria mitológica/sociológica/política determinado o lugar dos indígenas. Pouco importa como morreu Paiakan....

Há, inclusive, “coincidências” históricas/sociológicas/políticas nas inúmeras experiências dos povos indígenas com as pandemias. Vinte por cento do povo etnologicamente chamado de Yanomami, morreu, a partir dos contatos com “as frentes de atração”6 e com a gripe, sarampo, mineração, sertanistas, viajantes e missões religiosas, SPI, dentre outros. Esse dado, a título de ilustração, demonstra pelo

6 “Técnicas’” realizadas pelo SPI sob normativas rondonianas de “pacificação”: intimidações,

ludibriações e violências.

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5 empréstimo das reflexões de Krenak (2020) que, esse confinamento (in) voluntário vivenciado pelo Covid-19 faz parte da história de uma mentalidade doentia pensando a vida de modo insustentável, nem que para isso faça extinguir tudo, inclusive humanos. Esse momento de reflexão e de autoanálise escolhido por algumas pessoas para enxergarem políticas hierarquizadas/hierarquizadoras significa para o pensador indígena um alento, para aprender algo nesse período de recolhimento e confinamento obrigatório: seria como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos o que realmente importa (KRENAK, 2020). A peste, a partir da lembrança do livro homônimo de Albert Camus – best seller inclusive de alguns “filósofos rotarianos” do covid-19 – certamente poderá ir embora sem levar com ela pensamentos cristalizados/cristalizadores. Informações atualizadas, dentre os mortos e àqueles, nesse momento sofrem sérios riscos de serem as próximas vítimas, nos revelam 825 mortes, 32. 990 indígenas infectados e 158 afetados7...

2 Contorcendo Perspectivas: Bolsões de sentidos nos Jornais e em Vozes Gavião

Os textos analisados nesta seção representam apenas um “recorte” do material compulsado no processo da pesquisa. Nesse escrito, objetiva-se apresentá-los e analisá-los à luz das propostas semióticas descritas outrora.

2.1 Territorialidades encurraladas

A matéria “ ‘Os Gaviões’ acossados pela civilização, atacam colonos nas margens da P A 70” publicada no jornal “O Marabá” em três de novembro de 1968 pode nos conduzir, pela indignação e resposta semântica açodada, a críticas ao léxico etnocêntrico empregado pela autoria: civilização, estado primitivo, “aborígenes”, saqueando e vitimando. Não nos resta dúvida disso, mas os signos que desconfiamos nos direcionam para um registro importante e comumente não analisados nas páginas dos jornais. Estamos nos referindo à territorialidade “concedida” pela União aos Grupos Gavião, após sucessivas remoções compulsórias e tentativas de agrupamentos no

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6 período ditatorial brasileiro, já em consonância com sintaxe política do desenvolvimentismo capitalista, em curso, para a região: liberalismo econômico tracejado por rodovias, linhas de transmissão de eletricidade e estradas de ferro desaguando minérios, encurralando/acossando/instigando os indígenas.

A matéria faz o registro da presença de colonos em Mãe Maria, mas após algumas décadas os registros sobre a questão serão mais intensos. O jornal Correio do Tocantins, entre os anos de 1985-1987 realizou uma série de reportagens sobre medidas explosivas de redistribuição de terras, no sul e sudeste do Pará, alcançando a então Reserva Mãe Maria, Território Gavião: “GETAT-índios reúnem para terminar o conflito”, Índios Gaviões ameaçam bloquear a rodovia”; “Consenso entre Posseiros e índios”. As manchetes relatavam ações do GETAT – Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins, criado pelo executivo federal pelo decreto-lei nº 1.767, de 1º de fevereiro de 1980, para coordenar, promover e executar medidas necessárias à regularização fundiária no Sudeste do Pará, Norte de Goiás e Oeste do Maranhão. Registro, do repertório de políticas dessa instituição, o assentamento de 38 famílias, na Reserva Mãe Maria ou como costumavam dizer os Gaviões: “os posseiros do GETAT”8.

Poderíamos nos deter à crítica dos “projetos” e suas consequências do órgão federal no trato da questão fundiária na região, especialmente nesse caso em particular, mas as linhas jornalísticas neblinam o protagonismo de Hõpryre Rõnôre Jõpikti, o Paiaré, principal liderança política do Povo Gavião Akrãtikatêjê, um dos Grupos Gavião reunidos em Mãe Maria. Um leitor e autor de sentidos da geopolítica instada à região. Em uma reunião com o GETAT para pensar saídas para esses conflitos, seu repertório memorialístico narrativizou aos presentes: indígenas, colonos e representantes do GETAT o seu território chamado de tradicional: “antigamente da região dos Frades/Imperatriz/MA até Tucuruí”. Ao acionar às dimensões territoriais, Paiaré não limita suas argumentações por questões meramente geográficas, comparando o ontem com os cerca de 62.000 hectares de Mãe Maria. Sua análise nos remete à compreensão de que o espaço é processual e um permanente “tornar-se”, seja por opções próprias ou por aquelas genocidas impostas ao seu Povo. Essa provocação nos impõe um manancial de sentidos e obviamente interpretações. Percebemos preocupações relacionadas ao Território, obviamente, porém há temáticas caras e fundamentais para a melhor leitura

8 A expressão é comumente usada entre os velhos ao rememorar o episódio e está registrada no relatório

realizado pela antropóloga Iara Ferraz à CVRD, 1984. Ver:

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7 da região, ao acionar, como ferramentas balizadoras de sua retórica, a desterritorialização e a reterritorialização.

Guatarri e Rolnik ampliam as compreensões sobre território e iluminam, para esse pesquisador, as observações sobre a questão pela perspectiva de Paiaré. Pensado como agenciamento coletivo de enunciações, o território supera suas delimitações restritas à etologia e à etnologia:

pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (GUATTARI e ROLNIK, 2010, p. 323)

Não há modo razoável de compreensão ao contexto da época e ao atual, no cerne dos debates sobre Território e Povos Indígenas, que não se conecte à visão de Paiaré. Estado e o capital, em simbioses, operam por processos de desterritorialização, enquanto os povos originários são efetivamente territoriais, pois a sua relação com a terra é umbilical e orgânica, superfície marcada pelos interstícios das paisagens físicas com as simbólicas/sensíveis. Tratavam-se, e isso Paiaré deixa claro, de duas relações muito distintas com a terra — enquanto para o Povo Gavião a terra-divindade era quase um “início e um fim” em si mesma, formando um corpus com o homem, nas sociedades estatais a terra se transforma gradativamente num simples mediador das relações humanas, significando consequentemente a imposição de um intenso processo de desterritorialização social e, por que não, psíquica de seus agentes.

Poderíamos findar o pensamento de Paiaré, para além da compreensão de que territorialidade do Estado se faz pela desterritorialização do Povo Gavião, porém na reunião realizada com o presidente do GETAT, há um momento importante quando a liderança Gavião faz a leitura de um documento desconfortável aos presentes Há, pelos agenciamentos com estruturas grafocêntricas, um processo que chamaremos de reterritorialização no episódio. Paiaré e seus pares de ontem e de hoje sabem que precisam desterritorializar o pensamento, pós contato, principalmente compreendendo que a garantia e a soberania de Mãe Maria, sem as temíveis ocupações, deveriam ser referendadas pelas “peles de papel”, como diria Davi Kopenawa9. A saída dos colonos só seria possível assim. A intermediação, na prática, seria factível se a CPT, o Sindicato dos trabalhadores rurais e Polícia federal recebessem comunicação escrita.

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8 Compreensão de que, pelas lógicas do mundo kupẽ e, agora Gavião, o “papel” é um bom fundamento para o exercício da “compatibilização” do direito com a justiça, ainda que, esse mesmo “papel” possa desestabilizar essa relação. Paiaré assume a necessidade de ser poliglota, o que não significava simplesmente falar Gavião e/ou português.

Relato, por escritos de campo, o testemunho de uma fala em uma das atividades fazendo parte de um ensaio de Cooperação Técnica entre a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), representada por um grupo de pesquisadores e a Associação Indígena Kỳikatêjê Amtati, objetivando-se a realização de um diagnóstico da situação Socioambiental e monitoramento da aldeia Kỳikatêjê da Terra Indígena Mãe Maria, em 2019. O intuito dessa revisita a anotações deve-se a necessidade de justificar um salto histórico. Saímos da reunião de Paiaré com o GETAT, de 1985, para nos encontrarmos, ao lado de um quadro branco, na área denominada pelos Kỳikatêjê de acampamento, com o Cacique Zeca Gavião - Pepkrakte Jakukreikapeiti Ronore Konxarti – nessa cena de memória do pesquisador, está realizando reflexões sobre o desenho de um corpo Gavião atravessado por cortes na cabeça, no peito e nas pernas. Contava a sua versão sobre a história do contato com os kupẽs, batizada de história dos impactos.

O corte da T I Mãe Maria, para construção pela PA 7010, foi cravado no peito do Gavião. Lugar dos corações acelerados pelas implicações causadas da passagem da rodovia: assaltos, sequestros, derrubadas da mata e atropelamentos de animais silvestres diminuindo a caça. Tudo, segundo o líder indígena, camuflado em nome de um tal “desenvolvimento”.

Ao passar para descrição do corte da cabeça, mencionou a construção e a passagem da rede de transmissão de alta tensão das Centrais Elétricas do Norte do Brasil/ ELETRONORTE”, na década de 1980. Episódio marcado de promessas e ludibriações sobre possíveis compensações aos indígenas, dentre elas a concessão de energia “gratuita” aos indígenas. Pesadelo para a liderança e seu Povo, fazendo rememorar a migração do Grupo Akrãtikatêjê à então Reserva Mãe Maria, em razão da construção da hidrelétrica de Tucuruí

Ao fazer menção ao corte das pernas, Zeca demonstrava maior indignação. Reportou que, em meados de 1968, fora descoberta reservas de minérios de Carajás significando, posteriormente, concessão para a construção da ferrovia, em 1977, pela

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9 então CVRD - Companhia Vale do Rio Doce. Na nossa intepretação, as pernas poderiam representar um interdito ao direito de ir e vir dos indígenas em seu próprio território. Zeca calcula cerca de 18 quilômetros de ferrovia atravessando Mãe Maria. Esse corte significou a assinatura do primeiro convênio – outra pele de papel – agora com a mineradora, época que o empreendimento era “bom”, segundo algumas audições a indígenas, mas sob rígidas regras, dentre as quais, a impossibilidade de aproximação e de obstrução da estrada de ferro Carajás.

O líder Gavião Kỳikatêjê não tracejou apenas mero infográfico autoral. Pelo contrário, o corpo atravessado por agressões, sinalizava relações espaciais associadas às questões de poder. Cada corte guardava ferimentos ou mecanismos de regulação da/para (i) mobilidade desse corpo-território-Gavião, uma tentativa em transformá-lo em mero servo adestrado à gestão “Estatal”. O recado do cacique não é predominantemente pessimista. Há compreensão da existência de múltiplas agressões a este corpo-território, mas a menção do seu ordenamento mecânico e simbólico significaria o reconhecimento do primeiro território de interdição e de exclusão: o corpo. Se simplesmente corpos sedados, consequentemente, as “faixas de terra” poderiam receber outros “cortes”. Alguns em anúncios...

Evidentemente, a reflexão sobre um biopoder atuando sobre corpos, como os “primeiros” territórios de dominação, faz parte de uma farta e importante literatura foucaultiana, dentre outras. Não se trata de Zeca ou Foucault apresentarem aproximações ou primazias de reflexão, mas sim observamos percepções sobre controle territorial dos corpos, exercido pelo Estado e suas instituições de ordenamento e de coerção socio-psico-espacial, impondo a sujeitos díspares ou parecidos, século após século, independente de quais lugares ocupem, a necessidade de reações. Na vida de uma multidão diversa há a “coincidência” de que as sociedades, “arcaicas ou não, são políticas, mesmo se o político [assim como o Ser] se diz em muitos sentidos, mesmo se esse sentido não é imediatamente decifrável e se devemos desvendar o enigma de um “poder impotente” (CLASTRES, 2014 p.37). Testemunhamos a narração de um corpo-utensílio Gavião, jugo do trabalho capitalista, desejando fuga da sujeição para tornar-se sujeito de sua ação. Recado de que o espaço da desalienação começava pelo reconhecimento da exploração do corpo. Agenciamentos sendo feitos, (re) feitos e (des) feitos. “Corpo” em desejos de autonomia.

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Entre Placebos e lavagens das mãos: Eco-logia de Outros sentidos

O conjunto de eventos pandêmicos na vida do Povo Gavião não pode ser mensurado apenas pela atual crise sanitária, mas paradoxalmente esse momento parece ser oportuno para a descolonização do feitio de certas lógicas, seus sentidos e seus incalculáveis sujeitos de enunciações. Isso foi/é fundamental para essa pesquisa.

Essas enunciações experimentam um poder histórico de domação da sociedade. Motes pertencentes ao repertório conceitual dos movimentos de resistência, como “homem do campo”, desenvolvimento sustentável” e “movimento social” foram apropriados com intencionalidades semânticas peculiares.

Os mistérios da idolatria desmedida a essa fé foram objeto de importantes pensadores: Benjamin11 e Weber12 e, claro, nossa13 explicação pela teoria dos signos é modesta e incomparável. Mas, não resta dúvida de que os efeitos placebo, em curso na sociedade, estão sedando as insurgências do “Sul”. “Sedar”, etimologicamente, significa acalmar, vindo das mesmas raízes latinas do verbo sentar. Na perspectiva do semioticista Norval Baitello (2005, p. 35, p. 36), seria “botar alguém sentado para (se) acalmar [...] o processo educacional é um processo de “sentação”. Domesticação inclusive de sentidos, “Pensamento sentado” é igual a “homo sedens”.

As humanidades doentes por essa fé podem fazer o “lavar as mãos” ou mesmo o

“ficar em casa” experimentar os sentidos mais nefastos, dando profusão ao “vírus” de preocupações urgentes e suas incontroláveis mutações: ódio, passividade e intolerância.

Para essas sedações, os intelectuais indígenas nesse texto guardam em comum vivências antecipadas de um final de mundo extrapolando o que chamaremos de pensamento dérmico ou a falência das mesmidades de sentidos, graças a um movimento simples da pesquisa ao destronizar um império de significantes com deslocamentos para os Outros regimes de sentidos, seja pelos jornais ou pelas escutas.

O signo se redefine por esses giros em busca de pensamentos por outras racionalidades diferidas de um paradigma cognitivo-instrumental, ligada ao mercado.

11 BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião.Org. Michael Löwy. Trad. Nélio Schneider. 1ed. São

Paulo: Boitempo, 2013.

12 WEBER, Max. A ética protestante e o Espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo.

São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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11 Uma ecologia, aos moldes de sua etimologia - “eco”14 - não se sustenta no simples reconhecimento de um conhecimento plural e diverso. Pela necessidade de uma certa (in) definição, pois a ciência é incerta, mas as recepções de pesquisas estão longe de serem, o signo insurgente (selvagem na perspectiva lévistraussiana) desterritorializa os sentidos mais “habituais” quando contorce os mecanismos dos paradigmas cognitivos-instrumentais fazendo de suas estruturas fluxos para o acesso a Outros modos de vida: meu corpo é o meu território, não necessariamente nessa ordem. Pensamento levado a Outros limites, talvez daqueles que estejam ou nasceram sempre a um palmo da morte ou da (re) maturação de táticas de sobrevivência , o que vem despertando nossa necessidade e esforço de acompanhar as lógicas disparatadas de conexões nos encontros com Paiaré, no TCC e nos jornais, além daqueles com Zeca Gavião, pelas entrevistas, observações e preocupações, em comum, como as problemáticas sociais imbricadas em devir às ambientais: Eco-logia ou Marxismo Eco-lógico para às recepções mais exigentes, sejam àquelas intelectualmente relevantes ou apenas as niilistas.

A questão não se restringe à mera reflexão teórico-metodológica, nem ao fato de um desejo paternal de dar voz ou eco a intelectualidades indígenas, mas sim compreendendo que o pensamento e as linguagens e os seus múltiplos sentidos devem trabalhar a serviço da potência criadora de Outras vidas e os seus/nossos problemas: variabilidade e derrisão de obviedades sobre/para as violências, racismos e as desigualdades.

Desse modo, Deleuze nesse esforço de pensamento, não recebe olhares menores: filósofo ou “poderoso para alguns e tão obscuro e até delirante, para outros”15. Ele implode o drama fáustico do cientista comum, no labirinto da verdade, sendo também semioticista, pois o signo foi temática basilar de seus escritos, na reflexão sobre diferença como transcendência das possibilidades familiares de significação. Estabelecemos isso na tentativa das desconstruções semânticas do jornal, do território, do corpo e da pandemia em curso.

Eco-logias, na perspectiva de se fazer ciência com compromissos éticos e com o exercício de uma liberdade responsável pelas associações (in) esperadas e (im) previsíveis se deterão sobre temáticas, como os Planos ambientais de vida-morte; Educação Escolar em Território indígena e estudos sobre a reedição, em amostras

14 Da mitologia para a etimologia, personificação de um rochedo repercutindo literalmente ruídos.

15Ver “Ninguém é deleuziano”:

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12 rejuvenescidas, dos manuais do capitalismo cognitivo. Isso ficará a cargo das intensas, ESPERO, afecções por vir...

Referências

ACERVO INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Relatório de Viagem à comunidade

Indígena Parkatêjê (P I Mãe Maria) e Suruí (P I Sororó). Disponível em: <

https://documentacao.socioambiental.org/documentos/0JD00003.pdf./>. Acesso em: 20 de jun. de 2019.

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Covid-19 e Povos Indígenas. Disponível em < http://apib.info/>. Acesso em 23 de set. 2020.

ALBERTO SCOLARI, Carlos. Transmedia storytelling: implicit consumers, narrative worlds, and branding in contemporary media production. International Journal of

Communication, v. 3, p. 586-606, 2009.

BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia: reflexões sobre imagem,

comunicação, mídia e cultura. Paulus, 2014.

BARTHES, Roland. Aula. Editora Cultrix, 2004.

CHAUÍ, Marilena. O mito fundador do Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, v. 26, 2000.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Editora Cosac Naify, 2014. DELEUZE, Gilles. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 5. Editora 34, 2012. _________, Gilles et al. Lógica del sentido. Barcelona: Paidós, 1994.

_________, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Paris: Flammarion, 1996.

GUATTARI Félix; RONILK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 10ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do "fim dos territórios" à

multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

POSSAS, Hiran de Moura. Escola para kupẽ ou para Parkatêjê? 1992. 36 f. Trabalho de Conclusão de Curso – Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará. Belém, 1992.

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Periódicos

OS GAVIÕES ACOSSADOS PELA CIVILIZAÇÃO, ATACAM COLONOS NAS MARGENS DA P A 70. Jornal O Marabá. Marabá, Ano V, nº 182, 03 de novembro de 1968.

CONSENSO ENTRE POSSEIROS E ÍNDIOS GAVIÃO. Jornal Correio Do Tocantins. 06 a 11.12.1985. Ano III. Nº 92.

GETAT – ÍNDIOS REUNEM PARA ACABAR CONFLITO. Jornal Correio Do Tocantins. 06 a 11.12.1985. Ano III. Nº 92.

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