R e v is t a d a S o c i e d a d e B r a s ile ir a d e M e d i c in a T r o p ic a l 2 3 ( 3 ) : 1 7 7 -1 8 0 , ju l - s e t , 1 9 9 0
C O M U N IC A Ç Ã O
D O E N Ç A D E LYME Fundação N acional de Saúde
S in o n ím ia : A rtr ite d e L y m e, B o rre lio s e d e L y m e , E rite m a M ig ra n s C rô n ic o (E M C ), M e n in g o p o lin e u r ite d o c a rra p a to .
1 . id e n tific a ç ã o
A doença de Lyme é uma infecção transmitida por artrópodes (Carrapatos Ixodes, sp.) é causada pela espiroqueta B o r r e l i a b u r g d o r fe r i. Clinicamente guar
da s e m e l h a n ç a c o m a sífilis devido a sua ocorrência em
três estágios e ao seu desenvolvimento multissistêmico. Apresenta uma lesão de pele característica, o eritema migrans crônico (EM C), sintomas sistêmicos, poliar- trite e comprometimento neurológico e cardíaco, que
podem ocorrer simultânea ou isoladamente. A doença tipicamente ocorre no verão e sua primeira manifes tação, o EM C, se apresenta como uma mácula ou pápula avermelhada que se expande de maneira anular, algumas vezes com lesões múltiplas semelhan tes. Embora o EMC seja o marco clínico característico da fase aguda da doença de Lyme, ele não está invariavelmente presente. As lesões podem ser acom panhadas por sintomas como mal-estar, fadiga, febre, cefaléia, rigidez de nuca, mialgia, artralgia migratória ou linfadenopatia, que geralmente duram várias sema nas; estes sintomas podem preceder o aparecimento de lesões na pele. H á registro da ocorrência de uma forma frusta, ou completamente assintomática, na fase aguda da doença de Lyme.
Semanas ou meses após a instalação do EMC podem se desenvolver alterações neurológicas (in cluindo o quadro clínico de meningite asséptica, encefalite, coréia, ataxia cerebelar, neurite cranial com paralisia facial, radiculoneurite motora ou senso- rial e mielite); os sintomas variam e podem se prolon gar durante meses. As alterações cardíacas (incluindo bloqueio atrioventricular, miopericardite aguda ou cardiomegalia) podem ocorrer dentro de poucas se manas após o início do EMC. Em períodos que podem variar de algumas semanas a alguns anos (geralmente 4 semanas), após o início do EMC, dor e edema em grandes articulações, especialmente dos joelhos, po dem se desenvolver e apresentar recorrência por vários anos,: resultando em artrite crônica. (N a Europa tem- se registrado uma variação de intensidade e freqüência dos sintomas diferentes do observado nos Estados Unidos).
Centro Nacional de Epidemiologia/Fundação Nacional de Saúde/ Ministério da Saúde.
2 . A g e n te E tio ló g ic o
A B o r r e l i a b u r g d o r f e r i é uma espiroqueta iden
tificada em 1982 pelo Dr. Willy Burgodorfer. A
B o r r e l i a s p . junto com as leptospiras e o treponema
pertencem ao filo eubacterial das espiroquetas. Como todas as espiroquetas a B o r r e l i a sp, tem um cilindro
protoplasmático circundado primeiro por uma mem brana celular, depois por um flagelo e finalmente por um a membrana externa que está frouxamente asso ciada com as estruturas básicas. Dentre as Borrelias, a
B . b u r g d o r f e r i è a mais longa (20 a 30 n ) e a mais fina
(0,2 a 0,3 f i ) e a que tem menos flagelos (7 a 11). É
G ram negativa, corando-se bem pelo Giemsa e pelo Warthin-Stary. As B . b u r g d o r f e r i não coradas são
invisíveis ao microscópio comum, mas são prontamen te perceptíveis em campo escuro e em iluminação por contraste de fase.
3 . V e to r e a n im a l h o s p e d e iro
A espiroqueta da doença de Lyme é transmitida por certos carrapatos Ixodes que são parte do com plexo I x o d e s r i c in u s . N o Nordeste e Centro-Oeste dos
Estados Unidos, o I . d a m m i n i é a espécie predomi
nante, enquanto que o I . p a c i f i c u s predomina no
Oeste. N a Europa se encontra o I . r i c i n u s e na Ásia o I . p e r s u l c a t u s . Os carrapatos existentes na Austrália
ainda não foram identificados como vetores. N a África também são encontrados carrapatos, porém não há ainda comprovação da transmissão da doença neste continente. N a América do Sul, só recentemente houve referência de detecção de casos, no Rio de Janeiro, Brasil.
A B. b u r g d o r f e r i tem sido demonstrada em
outras espécies de carrapatos, mosquitos e moscas de veados, mas apenas os carrapatos parecem ter impor tância na transmissão das espiroquetas para os huma nos.
Os veados, roedores silvestres e outros animais mantêm o ciclo da doença. Os carrapatos também já foram encontrados em 49 espécies diferentes de pássaros, porém são os veados os animais preferidos para o desenvolvimento do estágio adulto dos carra patos.
Embora a doença de Lyme se distribua em focos endêmicos, é desconhecida a sua ocorrência entre animais selváticos; ao contrário, tem-se verificado a sua existência entre animais domésticos tais como cachorros, cavalos e vacas.
4 . E p id e m io lo g ia
De acordo com os Centros de Controle de Doenças (CDC), a doença de Lyme é atualmente a
C o m u n i c a ç ã o . F u n d a ç ã o N a c i o n a l d e S a ú d e . D o e n ç a d e L y m e . R e v i s t a d a S o c ie d a d e B r a s i le i r a d e M e d i c in a T r o p ic a l 2 3 : 1 7 7 - 1 8 0 , ju l - s e t , 1 9 9 0 .
infecção transmitida por carrapato mais comum nos Estados Unidos.
De 1980 a 1988 foram registrados 18.795 casos oriundos de 3 regiões do pais: Nordeste (Massa- chusetts e Maryland), Centro-Oeste (Wisconsin e Minnesota) e Oeste (Califórnia e Oregon). Casos esporádicos foram identificados em 43 estados.
Estima-se que na Europa centenas de novos casos ocorram a cada verão, particularmente na Alemanha, Áustria, Suíça, França e Suécia. N aU nião Soviética os casos têm sido reconhecidos desde as Repúblicas Bálticas até o Oceano Pacífico. Também já se tem diagnosticado a doença na China, Japão e
Austrália.
N o hemisfério norte a infecção geralmente é adquirida entre maio e julho, época em que as ninfas do carrapato fazem o seu repasto sangüíneo, mas apenas uma minoria dos pacientes recorda ter sido exposta aos carrapatos devido ao pequeno tamanho dos mes mos neste estágio.
5 . M o d o d e T ra n s m is s ã o
E uma doença de transmissão vetorial (carra patos do gênero Ioxodes). N ão há evidência de transmissão de pessoa a pessoa.
6 . P e río d o d e In c u b a ç ã o
É variável de 3 a 32 dias após a exposição ao carrapato.
7 . S u s c e tib ilid a d e e re s is tê n c ia
São afetadas todas as pessoas de ambos os sexos e de todas as idades. H á registro de recidiva da infecção.
8 . D ia g n ó s tic o
A doença de Lyme ocorre com diferentes mani festações clínicas para cada estágio do seu desenvol vimento. Asbrink propôs um plano de classificação análogo ao da sífilis, no qual a doença está dividida em infecção inicial e tardia. A infecção inicial consiste do
e s t á g i o 1 (eritemamigrans localizado) seguido em dias
ou semanas pelo e s t á g i o 2 (infecção disseminada) e
por sintomas intermitentes em semanas ou meses. A infecção tardia ou e s t á g i o 3 (infecção persistente),
começa geralmente 1 ano ou mais após a instalação da doença (Quadro 1).
A confirmação laboratorial pode ser realizada por isolamento das espiroquetas por cultura em líqui dos orgânicos (sangue, liquor e líquido sinovial) e visualização em exame histopatológico. Porém, este
método é de baixa sensibilidade. São os testes soroló- gicos, embora nem sempre específicos, os exames preferidos para o diagnóstico laboratorial.
Os anticorpos contra a B . b u r g d o r f e r i geral
mente são pesquisados por imunofluorescência indi reta ou mais comumente por ELISA. Nenhum dos dois testes são muito sensíveis durante os estágios iniciais da doença - apenas 1/3 dos pacientes têm níveis de anticorpos aumentados durante as primeiras semanas da infecção e ambos podem dar resultados falso-positivos quando os pacientes têm infecções por outras espiroquetas. Além disso, a insuficiência de padronização dos procedimentos sorológicos pode levar a uma significativa variabilidade nos resultados obtidos por diferentes laboratórios. Um progresso tem sido o uso de frações purificadas da B . b u r g d o r f e r i
para ELISA, mas esses antígenos ainda não são amplamente disponíveis.
O teste diagnóstico mais sensível na fase inicial da doença é o “ i m m u n o b l o t t i n g ”, mas a sua execução
é consideravelmente mais difícil e mesmo com este método cerca de 20% dos pacientes não apresentam anticorpos mensuráveis durante as primeiras semanas da doença. N a infecção por B . b u r g d o r f e r i na fase
aguda, o diagnóstico continuará a se basear numa manifestação clínica compatível, numa sorologia im precisa e numa evidência epidemiológica de exposição a carrapato. N ãoénecessário freqüentar florestas para se expor a carrapatos. Em áreas endêmicas, grande número de ninfas infectadas e carrapatos adultos podem ser encontrados, mesmo em gramados privados e bem cuidados.
N o último estágio da doença de Lyme, a resposta sorológica tem sido até o momento vista como muito mais previsível. A progressão da doença, tanto em pacientes não tratados quanto naqueles que não respondem à antibioticoterapia oral, é associada com uma expansão gradual da resposta imune, presumi velmente pela persistência da B . b u r g d o r f e r i. Ao
contrário, o tratamento com antibiótico oral dos pacientes na fase inicial da doença previne a progres são da mesma, e o desaparecimento gradual da resposta imunológica indica que a B . b u r g d o r f e r i foi
eliminada.
9 . M é to d o s d e C o n tr o le
a ) M e d i d a s p r e v e n t i v a s
- Evitar áreas possíveis de estarem infestadas por carrapatos. Sendo necessária a permanência numa área infestada, por razões de trabalho ou de lazer, é preciso observar o corpo a cada 3 ou 4 horas para localizar qualquer carrapato, o qual, sendo detectado, deverá ser retirado movendo-o
C o m u n i c a ç ã o . F u n d a ç ã o N a c i o n a l d e S a ú d e . D o e n ç a d e L y m e . R e v i s t a d a S o c i e d a d e B r a s i le i r a d e M e d i c i n a T r o p ic a l 2 3 : 1 7 7 - 1 8 0 , ju l - s e t , 1 9 9 0 .
Q ua d ro 1 - M a n ife sta ç õ e s d a doença d e L y m e p o r estágio.
L o ca l*
L im itad a (E stá g io 1) In fe c ç ã o in icia lD iss e m in a d a (E stá g io 2 ) I n fe c ç ã o T ard iaP er siste n te (E s tá g io 3 )
P e le E r ite m a m igran s - L e s õ e s an u la res secu n d á ria s, rash m alar, eritem a o u urticária, le s õ e s e v a n a sc e n te s, lin fo cito m a .
- A c ro d erm a tite a tró fica crô n ic a , le s õ e s tip o e sc le ro d er m a lo ca liz a d a s.
S iste m a M ú sc u lo E sq u e lé tic o
- D o r m ig rató ria n a s a r tic u la çõ e s, ten d õ e s, b o lsa s sin o v ia is, m ú scu lo s, o sso s, su rto s d e artrites, m io site + + , o ste o m ie -lite + + , pa n icu -lite + + .
- A rtrite p rolongad a, artrite crôn ica, p e r io stite o u s u b lu x a ç õ es articu la res.
S iste m a N e r v o s o M en in g ite , neurite cran ial, p a r a lisia d e B e ll, ra dicu lon eu rite m o to ra o u se n so -rial, e n c e fa lite im p r ec isa , m o n o n eu rite m últipla, m ielite + + , co re a + + , a ta xia cereb ela r + + .
E n c e fa lo m ie lite , pa ra p a resia es-p a stic a , m a rch a a tá x ica , es-p ertu rb ação m en ta l im p r ec isa , p o lira d ic u lite a x o n a l crô n ica , d e m ê n c ia + + .
S iste m a lin f á t ic o R e g io n a l - L infad en opatia regional o u generalizada, e sp len o m eg a lia .
C o r a ç ã o — B lo q u eio átrio-ventricular nod al, m iop erica rdite, pa n ca rdite.
O lh o s C on ju n tiv ite, i r i t e + + , c o r o id it e + + , hem or ra gia o u q u ed a d e r e t in a + + , p a n o fta h n ite + + .
- C era tite
F íg a d o - H ep a tite le v e o u recid ivante.
A p a re lh o R esp ir a tó rio - T o ss e se c a , dor d e garganta, sínd rom e de d e sc o n fo r to resp ira tó rio a d u lt o + + .
R in s - H em a tu ria o u protein uria m icr o sc ó p ica
S iste m a G e n ito - -U n ir á rio
O rquite.
S in to m a s G e r a is M ín im o s - M a l esta r e fadiga. - F a d ig a
* A classificação por estágio fornece um guia p/o tempo das n.anifestações da doença. + Comumente os locais afetados são listados em ordem decrescente de importância. -+ + A inclusão destas manifestações está baseada em 1 ou em poucos casos.
C o m u n ic a ç ã o . F u n d a ç ã o N a c i o n a l d e S a ú d e . D o e n ç a d e L y m e . R e v i s t a d a S o c ie d a d e B r a s i le i r a d e M e d i c in a T r o p ic a l 2 3 : 1 7 7 - 1 8 0 , ju l - s e t , 1 9 9 0 .
delicadamente para que não fique na pele nenhuma parte da boca do mesmo. As mãos de quem retira carrapatos de pessoas ou de animais devem estar protegidas. O uso de roupas prote toras, bem como a aplicação de certos repelen tes, pode ser eficaz contra os carrapatos. - As medidas destinadas a reduzir o número de
carrapatos geralmente não dão resultados prá ticos.
- Educação em sáude sobre a maneira de trans missão e os meios de proteção pessoal.
b ) C o n t r o l e d o p a c i e n t e , d o s c o n t a t o s e d o m e i o a m b ie n t e .
- Notificação à autoridade de saúde.
- Eliminação cuidadosa de todos os carrapatos
q u e s e e n c o n t r e m n o s p a c i e n t e s .
- Investigação dos contatos e da fonte de infecção. - Tratamento específico:
Adultos: l.Tetraciclina, 250 mg, v.o., 6/6 horas, de 10 a 30 dias.
ou 2. Doxiciclina, 100 mg, v.o., 12/12
horas, de 10 a 30 dias.
ou 3. Amoxicilina, 5ÜU mg, v.o., 6/6
horas, de 10 a 30 dias.
Crianças: (8 anos) Amoxicilina ou Penicilina V-20 mg/kg de peso, por dia, dividida em 4 tomadas, de 10 a 30 dias. v.o. Em caso de alergia à Penicilina, Eritromicina, 30 mg/kg de peso, v.o., por dia, dividida em 4 tomadas, de 10 a 30 dias.
Outros antibióticos podem ser utili zados nas fases tardias, entre eles, Cloranfenicol, Penicilina G cristali
na e Cefitriaxone.
R E F E R Ê N C I A S B IB L I O G R Á F I C A S
1. B arb our A G . T h e d ia g n o sis o f L y m e D is e a s e : rew ards and perils. A n n a ls o f Internal M ed ic in e 1 10 : 5 0 1 - 5 0 2 , 1 9 8 9 .
2 . B e n e n so n A S (e d ) C o n tro l o f co m m u n ica b le d ise a se s in m an. 1 4 n d ed itio n , T h e A m e r ic a n P u b lic H ea lth A s s o cia tio n , W a sh in g to n , 4 8 5 p , 1 9 8 5 .
3. B erardi V P , W e e k s K E , S te e re A C . S e r o d ia g n o sis o f ea rly L y m e D is e a s e : a n a ly sis o f Ig M an d Ig G an tib o d y r esp o n ses b y u sin g an d a ntib od y-cap tu re e n z y m e im m u n o a ssa y . T h e Jo u rn a l o f In fec tio u s D is e a s e s 158 : 7 5 4 -7 6 0 , 1 9 8 8 .
4 . B la a u w A A , V a n der L in d en SJ , K uiper H . L y m e carditis in the N e th e rla n d s. A n n a ls o f In ternal M e d ic in e 111: 2 6 1 - 2 6 2 , 1 9 8 9 .
5 . C o s te llo C M , S te e re A C , P in k erto n R E , F ed er JR , H e n r y M . A p r o sp ec tiv e stu d y o f tick s b ite s in an en d e m ic area for L y m e D is e a s e . T h e J ourna l o f In fec tio u s D is e a s e s 1 59: 1 3 6 - 1 3 9 , 1 9 8 9 .
6 . D a m m in G J . L y m e d isea se: its tr a n sm issio n and diag n o stic featu res. L ab or ato ry M a n a g e m en t, ja n , 1 9 8 6 .
7. D ia g n o s is o f L y m e D is e a s e . T h e L a n c e t 8 6 5 6 : 1 9 8 -1 9 9 , -1 9 8 9 .
8 . L y m e D is e a s e - U n ite d S ta te s, 1 9 8 7 a n d 1 9 8 8 . M orb i dity and M o rta lity W e e k ly R ep o rt 38: 6 6 8 - 6 8 0 , 1 9 8 9 .
9 . S teere A C . L y m e D e s e a s e . T h e N e w E n g la n d Journ al o f M e d ic in e 3 2 1 : 5 8 6 - 5 9 6 , 1 9 8 9 .
1 0 . T rea tm en t o f L y m e D is e a s e . T h e M e d ic a l L etter on D r u g s and T h e r a p e u tics 30 : 6 5 - 6 6 , 1 9 8 8 .
1 1 . Y o sh in a ri N H , S teere A C , C o sse r m e lli W . R e v isã o d a B o rrelio se d e L y m e . R e v ista da A s s o c ia ç ã o M é d ic a B r a sile ira 35: 3 4 - 3 8 , 1 9 8 9 .