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Bertolt Brecht - Santa Joana Dos Matadouros Comp

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Academic year: 2021

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(1)

I

O rei da carne, Pierpoint Mauler, recebe uma carta de seus amigos de Nova Iorque

CHICAGO. OS MATADOUROS

MAULER, lendo uma carta. – “Parece-nos evidente, caro Pierpoint,

que já há alguns dias o mercado da carne está saturado. E, no sul, as barreiras alfandegárias resistem a todas as nossas ofensivas. Acreditamos, portanto, ser prudente, querido Pierpoint, não mais envolver-se com este negócio...” Acabo de receber essas indicações de meus bons amigos de Nova Iorque. Lá vem meu sócio.

Ele esconde a carta.

CRIDLE – Por que esse ar tão sombrio, querido Pierpoint? MAULER:

Lembra-te, Cridle, daquela caminhada Que fizemos uma vez, pelos abatedouros? Era noite. Diante de nossa máquina nova, Cridle, lembra-te, nós vimos um touro

Claro e nobre, dirigindo aos céus seus grandes olhos vazios. Ele recebeu diante de nós o golpe que o abatia:

E tal golpe me atingiu até o fundo do coração! Há sangue demais, Cridle, em nosso negócio!

CRIDLE:

Amigo, vens outra vez com tua antiga fraqueza. Quem acreditaria, Pierpoint? Tu, o maior de todos, O rei dos abatedouros, dos açougueiros o terror, A morte de um touro louro te enche de dor! Não conte, eu te rogo, tal segredo a ninguém A não ser a mim!

MAULER:

Oh, meu fiel amigo,

Por que me levaste a visitar o abatedouro! Durante os sete anos em que estou no negócio

Eu evitei fazê-lo. Eu não posso suportar

Um comércio tão sangrento, não tenho mais forças: Eu me retiro de imediato... Cridle, queres a minha parte? A terias por muito pouco; a ti, a preferência:

Ninguém conhece o negócio como tu.

CRIDLE:

Muito pouco? Quanto?

MAULER:

Velhos amigos como nós dois

Não podem disputar muito por valores. Dez milhões!

CRIDLE:

Não seria caro, se não houvesse Lennox

Que, pela carne em conserva, lata a lata se bate, E estraga o mercado com seus preços baixos. Tirará nossa pele, se não tirarmos a dele.

Enquanto ele estiver em pé, e só tu podes abatê-lo, Não posso aceitar tua proposta.

Deverás, até lá, com tua mente fértil, Encontrar uma saída.

MAULER:

Não, Cridle,

Esse coração treme ainda com o grito do touro! É preciso então que Lennox caia rápido,

Pois quero, doravante, viver como homem de bem E não mais como açougueiro.

Saiamos, Cridle, e eu te direi A forma de abater Lennox.

Mas tu deverás então tirar esse peso do meu coração E tomar a frente de nosso negócio

CRIDLE:

Quando Lennox for derrubado Eles saem.

(2)

O desmoronamento das grandes indústrias da carne A - DIANTE DA FÁBRICA DE ENLATADOS DE LENNOX

OSOPERÁRIOS

Nós somos setenta mil

Nessas fábricas de conservas

E nossos salários são tão baixos que não podemos mais

[sobreviver. Ainda ontem, de surpresa, reduziram nosso pagamento

E hoje, um novo aviso:

“Os que não estão satisfeitos, sempre podem deixar a fábrica!” Saiamos então, e todos juntos.

Ao diabo esse salário que diminui todos os dias. Silêncio

Há muito tempo já esse trabalho nos nauseia: Esta fábrica é para nós um verdadeiro inferno E só pode nos manter aqui o medo,

O medo duplo, de Chicago e do inverno. Mas agora, doze horas de trabalho Já não garantem nem um pão seco Nem dão para comprar um trapo velho. Melhor partir

E morrer de uma vez. Silêncio

Pelo que nos tomam eles? Acreditam então Que nós somos gado, dispostos a tudo? Tomam-nos por jumentos?

Melhor morrer! Deixemos a fábrica Agora mesmo.

Silêncio

O que houve? São seis horas!

Por que não abrem, corja de esfoladores? Seus bois estão aqui, bando de açougueiros! Abram!

Batem no portão.

Terão eles nos esquecido? Risos.

Abram! Queremos entrar Em suas imundas pocilgas E suas cozinhas infectas

Para preparar guisados indigestos Para os que ainda podem pagar. Silêncio

No mínimo exigimos,

O salário anterior, que já não dá para nada. No mínimo

A jornada de dez horas e, no mínimo...

UMHOMEMQUEPASSA:

O que vocês estão esperando? Não sabem que Lennox fechou?

Gazeteiros de jornal aparecem na cena

GAZETEIRO – Lennox, o rei da carne, forçado a fechar suas fábricas!

Setenta mil operários na rua. Lennox vítima da concorrência feroz imposta por Pierpoint Mauler, rei da carne e da responsabilidade social!

OSOPERÁRIOS

Desgraça! O próprio inferno Diante de nós fecha suas portas!

Nós estamos perdidos. O impiedoso Mauler Aperta a garganta de nosso explorador E somos nós que sufocamos!

B - UMA RUA

GAZETEIRO – A Tribuna de Chicago, edição do meio-dia! O rei da

carne e da responsabilidade social, Pierpoint Mauler vai inaugurar os Hospitais Pierpoint Mauler, os maiores e mais caros do mundo! Dois transeuntes olham para o fundo do palco, “vendo” Mauler.

UMTRANSEUNTE, ao outro – Aquele é o Pierpoint Mauler. Mas quem

(3)

OOUTRO – Seguranças. Só anda escoltado, com medo de apanhar

de alguém.

Para levar consolo aos miseráveis dos matadouros, os Chapéus Negros deixam a sua sede. Joana empreende sua primeira descida

às profundezas.

C - EM FRENTE AO TEMPLO DOS CHAPÉUS NEGROS

JOANA, à frente de um comando dos Chapéus Negros:

Nesta noite de sangue e confusão, Nesse tempo de desordem organizada, De arbitrariedade consentida,

E de humanidade desumanizada,

Nesse tempo em que em nossas cidades Os problemas não têm fim;

Nesse mundo, imenso matadouro,

Em que nos chegam rumores de violência iminente; Para impedir que, em sua brutalidade,

O povo, ofuscado, quebre suas ferramentas E destrua assim seu ganha-pão,

Nós queremos reintegrar Deus

Pois aos lugares onde realmente vivem os homens Ele não mais tem acesso:

Sua glória anda pouca, Seu nome, já quase suspeito.

Dos mais humildes, entretanto, ele é a única salvação! Então nós resolvemos

Por ele bater nossos tambores nesses bairros; Para que ele penetre no coração da miséria E que sua voz retumbe pelos matadouros. Aos Chapéus Negros:

O que faremos agora é uma última tentativa. Pela derradeira vez, nos esforçaremos

Para levar Deus ao coração de um mundo que desaba E nele restaurá-Lo, pela ação dos mais humildes. Os Chapéus Negros andam. Toque de tambores.

Durante todo o dia os Chapéus Negros pregaram nos matadouros, mas, quando a noite chegou, os resultados eram quase nulos.

DIANTE DA FÁBRICA DE CONSERVAS LENNOX

UM OPERÁRIO – Dizem que eles estão preparando um grande golpe

sobre o mercado de carne. Para nós isso que dizer esperar e passar fome.

OUTRO OPERÁRIO – A luz está acesa nos escritórios. Estão lá,

calculando os lucros.

Chegam os chapéus Negros. Fixam no chão uma placa na qual se lê: “Hospedagem: 20 centavos por noite. Com café: 30 centavos.”

CHAPÉUSNEGROS cantando

Escutem todos, escutem bem! Tu que te afundas, nós te vemos, Teu apelo por ajuda, nós o escutamos, Teu sinal, nós o percebemos.

Parem os carros, detenham o trânsito

Vós que soçobrais, recobrai vossa coragem, Pois os soldados de Deus avançam – ei-los! Tu que te escondes, tu que duvidas,

Olha para nós! Olha,

Meu irmão, antes que sucumbas! Nós te damos o que comer E nós não esquecemos Que tu não tens abrigo.

E, sobretudo, não digas que tudo está perdido: Tudo será diferente, a injustiça nesse mundo Não poderá durar se todos se juntarem a nós, Marchando ao nosso lado

Com o único objetivo de ajudar o próximo. Nós faremos avançar os tanques e os canhões

(4)

Nós lançaremos ao mar os navios de guerra, E nos ares, os aviões

Para conquistar teu pão, meu irmão. Porque vós, os pobres, formais Nesse mundo um imenso exército. Vós que nos escutais

Não esperai o amanhã! Desde hoje ajudai, Ajudai ao próximo!

Avante! Ao assalto! Empunhai vossos fuzis! Vós que soçobrais, recobrai vossa coragem, Pois os soldados de Deus avançam – ei-los!

Cantando, os Chapéus Negros começam a distribuir seu jornal: Apelo às Armas, bem como colheres, pratos e sopa. Os operários agradecem e põem-se a escutar o discurso de Joana.

JOANA – Nós somos os soldados do bom Deus. Por causa dos

chapéus que usamos, somos também conhecidos como os Chapéus Negros. Nós dizemos que somos soldados, porque formamos um exército e porque, em todos os lugares em que vamos, precisamos lutar contra o crime e a miséria, contra as forças que tendem a nos aviltar. (Ela mesma começa a distribuir sopa) Bem, agora comam esta sopa quente e constatarão que depois vocês verão as coisas com um olhar diferente. Pensem agora qual esperança se pode fundar sobre a felicidade terrena. Nenhuma, absolutamente nenhuma. A desgraça vem como a chuva: ninguém a provoca, mas, entretanto, ela vem... Suas desgraças, digam-me de onde vem?

UMDOSQUECOMEM – De Lennox & Cia.

JOANA – O senhor Lennox tem talvez mais preocupações do que

vocês! O que vocês estão perdendo? Ele, suas perdas se contam por milhões.

UMOPERÁRIO – Carne não há nesta sopa, só uma aguinha clara, isso

sim. Mas quente, pelo menos, está.

OUTRO OPERÁRIO – Fiquem quietos, bando de glutões! Escutem a

palavra de Deus! Senão vão tomar o prato de água quente de vocês.

JOANA – Silêncio! Queridos amigos, digam-me: por que vocês são

pobres?

UMOPERÁRIO – Sei lá! Explique você!

JOANA – Eu lhes direi. Não é porque vocês não estão cheios de bens

materiais – que não chegam para todos – mas porque vocês não têm idéia dos valores mais elevados. É por isso que vocês são pobres. Esses gozos vulgares aos quais vocês aspiram, comer um pouco, ter um bom lugar para morar e ir ao cinema, não são mais do que prazeres frívolos, grosseiros. Enquanto que a palavra de Deus é um prazer mais delicado, mais profundo e muito mais refinado; talvez vocês não possam nem imaginar algo mais doce do que o chantili, mas a palavra de Deus é ainda mais doce. Homens de pouca fé, os pássaros no céu não têm carteira de trabalho, as açucenas do campo não têm emprego e, entretanto, como eles cantam Sua glória, Deus lhes dá alimento. Nós, os Chapéus Negros, fazemos então a vocês uma pergunta muito prática: de que um homem precisa para crescer na vida?

UMOPERÁRIO – Um colarinho engomado.

JOANA – Nada disso. Para progredir na terra talvez seja necessário

um bom colarinho, mas diante de Deus é preciso muito mais que isso, outras glórias. Vocês aos olhos Dele, nem mesmo um colarinho puído têm, pois deixaram suas almas no abandono. Mas então como vocês querem elevar-se, chegar ao que vocês, em sua ignorância, chamam de uma “situação melhor”? Pela força bruta, pela violência? Como se algum dia a violência tivesse trazido alguma coisa além da destruição. Vocês acham que mostrando os dentes conquistarão o paraíso na terra. Mas eu lhes digo, agindo dessa maneira o que se cria não é o paraíso, mas o caos!

Um operário chega correndo.

OOPERÁRIO:

Uma vaga, agora mesmo, acaba de abrir! Um trabalho, um salário, esperam por vocês, Na fábrica número cinco!

Que mais parece uma latrina. Corram, rápido.

(5)

JOANA – Ei, você, onde é que você vai? Quando se ocupará de

Deus? Vocês não querem nem ouvir falar, não é?

UMAMOÇADOSCHAPÉUSNEGROS – Acabou a sopa. OSOPERÁRIOS:

Acabou a sopa;

Era só um caldinho ralo Mas era melhor do que nada. Todos se viram e se levantam.

JOANA – Fiquem sentados; acabou, mas que importa, uma vez que a

grande sopa celeste não se esgota nunca.

OSOPERÁRIOS:

Quando, afinal, vocês

Abrirão as portas de seus porões,

Carniceiros, mercadores de carne humana?

UMOPERÁRIOS:

Com o quê, agora, pagarei

A casa pequena e úmida, onde vivemos doze? Eu já paguei dezessete prestações,

Mas a última, não conseguirei Seremos jogados na rua. E o chão de terra batida

E nosso pedaço de grama amarela, Nunca mais os veremos, nunca mais,

Nem tampouco respiraremos seu pestilento ar familiar.

UMOUTROOPERÁRIOS:

Aqui estamos, em pé, nossas mãos como pás, E nossos pescoços fortes como tratores.

Nossas mãos e nossos pescoços, queremos vendê-los Mas não há quem os compre.

OSOPERÁRIOS:

E nossas ferramentas

- Gigantesca montanha de prensas e gruas – Estão trancadas, detrás desses muros!

JOANA – E então, o que se passa? Quer dizer que já se vão? É

porque já terminaram de comer? Adeus e obrigado. Mas por que então vocês escutaram até agora?

UMOPERÁRIO – Pela sopa.

JOANA – Continuemos. Cantem! CHAPÉUSNEGROS cantando

Avante, entrai nessa luta! No coração da batalha lutai!

Cantai com louvor, que cante todo o mundo. Ainda é noite, mas logo virá o dia,

Raiando com todo o esplendor, E junto virá Jesus Nosso Senhor.

UMA VOZ, do fundo do palco – Estão contratando nas fábricas de

Mauler!

Os operários saem. Fica apenas uma mulher.

JOANA, com ar sombrio:

Parem a música!

Acabou a sopa, lá se vão eles!

Seus olhos são incapazes de elevar-se Mais alto do que a borda do prato.

Eles não crêem em nada além do que está Entre suas mãos. Acreditarão em suas mãos? Vivendo cada dia, cada minuto mesmo,

Na insegurança, eles não são capazes

De se esquecer das preocupações mais básicas.

Nada, a não ser a fome, tem sobre eles qualquer influência. Nenhuma canção os toca mais.

Nenhuma palavra pode

Descer até eles e penetrar seus corações. Aos que a cercam:

Parece que nós, os Chapéus Negros, temos por tarefa alimentar todo um continente com nossos poucos talheres.

Os trabalhadores voltam. Ao longe, ouvem-se gritos.

OSOPERÁRIOS, na frente do palco – Que gritos são esses? Um imenso

caudal humano emerge dos abatedouros.

UMAVOZ, do fundo:

Mauler e Cridle também fecharam. As indústrias Mauler optam pelo lock-out!

(6)

No meio do caminho encontramos, Enquanto corríamos atrás de trabalho, Uma multidão enorme e desesperada. Todos haviam perdido o emprego E perguntavam onde achar trabalho.

UMOPERÁRIO, na frente do palco:

Desgraça! De todos os lados chegam ainda Torrentes infindáveis de homens!

OS CHAPÉUS NEGROS, a Joana – Vamos agora. Estamos gelados e

molhados e precisamos comer.

JOANA – Quero saber, antes, quem é o responsável por tudo isso. OSCHAPÉUS NEGROS

Pare! Não te metas com essas questões; Eles encherão tuas orelhas com seus gritos, Eles têm apenas idéias vulgares na cabeça, São reles glutões

Preguiçosos, que fogem do trabalho.

Jamais seus corações, desde o dia em que nasceram, Abrigaram sentimentos nobres.

JOANA – Não! Eu quero saber (aos trabalhadores) Digam-me, por

favor, por que correm de um lado a outro e não encontram trabalho?

OSOPERÁRIOS:

O sanguessuga Mauler e o muquirana Lennox brigam entre si, Resultado para nós: barrigas vazias.

JOANA – Esse Mauler, mora aonde? OSOPERÁRIOS:

Lá, onde se compram e vendem animais; Em um grande edifício: A Bolsa de Carnes

JOANA:

Eu vou até lá: Eu preciso saber.

MARTA, dos Chapéus Negros:

Não vá te meter com estes problemas. Ao fazer mil perguntas,

Recebemos mil respostas.

JOANA – Não, eu quero vê-lo, esse Mauler, já que ele é a causa de

tamanha miséria.

OSCHAPÉUSNEGROS

Então teu destino nos parece bem negro,

Oh Joana! Não te metas nas querelas terrestres! Pois quem nelas se envolve, torna-se, pronto, presa, E vê esvanecer-se sua pureza original;

E o frio supremo

Rouba de seu coração todo o calor. Quem abandona o lar protetor, Sua bondade perde rápido;

Degrau após degrau, desce cada vez mais baixo, Na insana esperança de obter uma resposta Que jamais chegará,

Tu desaparecerás na lama! Pois a lama entope as bocas

Que fazem perguntas sem prudência

JOANA: Eu quero saber.

Os Chapéus Negros se afastam. III

Pierpoint Mauler é tocado pelo sopro de um outro mundo EM FRENTE À BOLSA DE CARNES

Em baixo, Joana e Marta esperam. No alto, os fabricantes de conservas Lennox e Graham discutem. Lennox está branco como algodão. Ao fundo, ruídos da Bolsa.

GRAHAM:

E então, meu velho Lennox, derrubou-te,

O selvagem Mauler! De um tal monstro a investida É inexorável! A natureza, para ele,

Torna-se mercadoria. Ele venderia o próprio ar. O que comeste, ele te revenderia.

(7)

De barracos miseráveis, ele extrai rendas, De carne podre, ele faz ouro;

E se lhe jogas pedras na cabeça, Em dinheiro ele as transformará.

O faro para o dinheiro é nele tão potente,

Tão natural, nele, esta arte contrária à natureza, Que ele não saberia jamais trair seu instinto. Saibas, no entanto, este homem não é duro E nem ama o dinheiro. Ele não pode suportar A visão da miséria, e dorme mal à noite. Vá, então, até ele e, com voz suave,

Diga-lhe: Mauler, olhe para mim e de meu pescoço, Tira esta mão que me aperta e me estrangula,

E pensa nos velhos tempos. Ele terá medo, eu garanto. E talvez chore...

JOANA, à Marta:

Tu somente, até aqui me acompanhastes. Todos me abandonaram,

Gritaram-me prudência:

Para eles, cruzei a última fronteira. Estranho conselho!

Eu te agradeço, Marta.

MARTA - Joana, eu também te recomendei prudência. JOANA – Mas tu vieste comigo.

MARTA – Joana, como vais reconhecê-lo? JOANA – Saberei bem reconhecê-lo.

Cridle sai da Bolsa e desce até o palco.

CRIDLE:

Muito bem, Lennox! Acabou a guerra de preços! Foste eliminado. Fecho minhas fábricas.

Espero que o mercado recobre a saúde. Agora vou limpar a minha fábrica,

Lubrificar meus cutelos; para economizar Uma agradável soma em salários,

Instalar duas ou três dessas máquinas novas. A nova técnica é muito engenhosa:

O porco é colocado em uma esteira rolante Até o alto da fábrica, no último andar. Começa então o seu retalhamento. Nas facas, sozinho, o porco se precipita.

Bem pensado, não achas? Ele se degola e logo, Por si mesmo, em salsicha se transforma, Pois caindo, a cada fase,

Primeiro perde a pele, que vira couro, Depois seus pelos, que viram escovas, Até chegar aos ossos, moídos como farinha. E assim, por conta de seu próprio peso, chega Na lata que o espera lá embaixo.

Bela invenção, não é verdade?

GRAHAM :

Muito bela! Mas e a lata,

O que fazer com ela? Ah, época maldita!

Um comércio estrangulado por montanhas de conservas, Um mercado aviltado, ainda ontem florescente!...

Batendo-se por sua conquista,

Quando ele não podia absorver mais nada, Vocês mesmos, com sua escalada,

Fizeram desabar os preços e destruíram seu negócio. Tal qual dois grandes búfalos, que, lutando,

Destroem com seus cascos o pasto que disputam.

Mauler, acompanhado de seu corretor, Slift, surge de um grupo de fabricantes de conserva.

OSFABRICANTESDECONSERVAS :

Trata-se de saber quem agüentará mais tempo.

MAULER :

Lennox está de joelhos. A Lennox:

Estás perdido, confessa. E agora, Cridle, ficarás com a fábrica

Conforme está previsto nos termos do contrato: “No dia em que Lennox for eliminado...”

(8)

Sim, Lennox acabou. Mas com ele acabaram Os bons dias do mercado. É preciso então, Mauler, Repensar os dez milhões de dólares

Que queres por tuas ações.

MAULER :

O quê? A soma está inscrita Claramente no contrato Tome, veja Lennox,

Isso não é um contrato? Com um preço fixado?

CRIDLE :

Sim, um contrato dos tempos de prosperidade! Mas e a crise? Ela não existe?

Que posso fazer eu com um grande matadouro Se ninguém mais compra carne em conserva? Agora sei bem porque não podias

Mais suportar a visão do gado morrendo: sua carne Não vende mais!

MAULER :

Não, é que meu coração se aperta Quando ouço mugir a criatura

CRAHAM :

Agora eu compreendo a grandeza de teus atos, Mauler, até teu coração sabe ver longe!

LENNOX :

Eu gostaria ainda, Mauler, de examinar Contigo...

CRAHAM :

Toque-lhe o coração, Lennox! Toque-o! É uma lata de lixo, mas... sensível! Ele soca Mauler no coração.

MAULER – Ai!

GRAHAM — Viu? Ele tem um coração! MAULER :

Então, Freddy! Quer dizer que tu me socas, Pois eu proibirei Cridle

De comprar-te uma única lata...

CRAHAM :

Pepê! Isso não é um jogo! Não podes misturar Questões pessoais aos negócios!

CRIDLE – Pois não, Pepê! Como quiseres. GRAHAM — Mauler, tenho dois mil empregados!

CRIDLE – Mande-os ao cinema! Mas Pepê, nosso contrato não é

mais viável. (faz contas em uma caderneta) Quando combinamos que tu sairias do negócio, as ações estavam a 390, e tu tinhas um terço, como eu. Tu me ofereceste a 320. Não estava caro. Hoje, isto é, devido à saturação do mercado, as ações caíram para 100. Para pagar o que te devo, eu precisaria jogar essas ações no mercado. Mas, se eu fizer isso, elas cairão a 70, e onde eu conseguiria dinheiro para pagar tua parte? Eu estaria arruinado!

MAULER :

Já que me dizes isso, Cridle, tu me forças, então, A exigir meu dinheiro, sem mais delongas,

Antes que quebres de uma vez! Creia-me,

Estou tão temeroso que chego a suar frio: seis dias, Nada além. É o máximo que posso fazer.

Seis dias? Não, cinco, se tu estás Realmente onde dizes.

LENNOX – Mauler, olhe para mim.

MAULER – Leia, então, Lennox. Veja se esse contrato diz uma só

palavra sobre a crise.

LENNOX – Não, nada.

Ele sai.

MAULER , seguindo-o com os olhos:

Tive a ligeira impressão de que algo o atormentava. E eu, mergulhado em meus negócios,

Não pude imaginar seu fado, Ah! Pudesse eu estar liberado De um comércio tão bestial!

Tenho, Cridle, o coração torturado!

Cridle se afasta. Joana fez um sinal a um segurança e lhe diz algumas palavras.

(9)

O SEGURANÇA — Senhor Mauler, há algumas pessoas que querem

lhe falar.

MAULER :

A escória em farrapos,

Com ar invejoso, sem dúvida? Prontos para a violência, hein? Não, diga que não estou.

O SEGURANÇA — São membros da Organização dos Chapéus

Negros.

MAULER :

O que é esta organização?

O SEGURANÇA — Eles têm muitas ramificações, são numerosos e

gozam de grande consideração nas camadas inferiores da população. São chamados de soldados do Bom Deus.

MAULER :

Já ouvi falar dessa gente.

Mas que nome curioso! Soldados do Bom Deus... Mas o que eles querem comigo?

OSEGURANÇA — Afirmam que têm algo a dizer ao senhor.

Durante esta cena, o rumor da Bolsa continua. Ouve-se: Bois, 43; Porcos, 55; Vitelos, 59, etc.

MAULER :

Está bem. Diga-lhes que eu os receberei

Mas que eles limitem-se a responder minhas perguntas. Nada de choros, nem desses versos sentimentais Que eles adoram cantar. O melhor para eles É causar em mim a impressão de gente honesta, Que não é acusada de nada

E que não espera o impossível de mim.

Mais uma coisa: não diga, em absoluto, que eu sou Mauler. O segurança vai ao encontro de Joana no outro lado do palco.

OSEGURANÇA:

Ele vai vê-los, mas vocês não devem Perguntar nada, respondam apenas Quando ele lhes perguntar.

JOANA, dirigindo-se direto a Mauler – O senhor é o Mauler!

MAULER – Não sou eu. (aponta para Slift) É ele!

JOANA, apontando para Mauler – O senhor é o Mauler! MAULER – Não, é ele.

JOANA, – É o senhor.

MAULER – Como me reconheceste? JOANA:

De todos, é o que tem a cara mais ensangüentada. Slift ri.

MAULER – Rindo, Slift? (Enquanto isso, Graham sai. Para Joana:)

Quanto recebes por dia?

JOANA, – Vinte centavos, além da comida e do uniforme. MAULER:

O tecido é bem fininho e, suponho, Slift, que a sopa seja rala.

Sim, o tecido não é grosso Nem é grossa a sopa.

JOANA:

Por que joga, Senhor Mauler, seus trabalhadores na rua?

MAULER, a Slift:

Que eles trabalhem por nada, não é notável? Já viste algo igual?

Que trabalhem por nada e sem se lamentar? Não vejo em seus olhos nem medo da miséria Nem de dormir sob as pontes alguma noite. A Joana:

Vós sois, Chapéus Negros, gente estranha. Pouco me importa o que esperam de mim. Dizem, eu sei, que o sangrento Mauler,

- É assim, na verdade, que a escória me chama – Despojou Lennox, e pôs em apuros

Cridle que, cá entre nós, não é homem de bem. Creiam-me: esses são assuntos profissionais Que não vos interessam.

Mas, sobre outra questão, adoraria vossa opinião. Pretendo renunciar a esse negócio sangrento Logo que eu possa: renunciar sem retorno.

(10)

Pois eu vi – e isso vos interessará –

Morrer, há pouco, um boi e fiquei tão comovido Que quis largar tudo;

A parte – doze milhões – que eu tinha na usina, Cedi por dez ao homem que vêem aqui.

Isso não é bom? E conforme vosso espírito?

SLIFT :

Vendo morrer o boi, ele decidiu abater O rico Cridle, no lugar do pobre animal. Isso não é bom?

Os fabricantes de conservas explodem em gargalhadas.

MAULER:

Riam todos. Seu riso não me atinge, Eu os verei chorar um dia.

JOANA:

Senhor Mauler, por que fechou os matadouros? Eu preciso saber.

MAULER:

Poderia eu ir mais longe? Porque ele é sangrento É que eu tirei as minhas mãos deste imenso negócio. Diga-me que está certo

E que isso te agrada. Não, não me digas nada.

Eu sei, confesso, que com tal decisão

As pessoas sofreram. Eles não têm mais trabalho, Eu sei. Mas este mal era inevitável.

São, de resto, pessoas extremamente más, A canalha. Melhor para ti que não os veja. Mas, diga, isso de se retirar do negócio, É bom, não é?

JOANA:

Não sei se o senhor fala sério.

MAULER:

É que adquiri o maldito hábito

De disfarçar a voz, mas não digas nada, eu sinto Que tu não gostas de mim.

Dirigindo-se aos outros:

Parece-me que fui tocado pelo sopro de um outro mundo.

Ele se aproxima dos industriais, tomando-lhes o dinheiro que trazem consigo e dando-o a Joana.

Dêem o dinheiro, dêem o dinheiro, vamos, dêem! Corja de carniceiros!

Ele continua mexendo nos bolsos deles para dar dinheiro à Joana. Tome para os pobres, minha filha.

Mas é uma gentileza, sem nenhuma obrigação: Eu não sofro de insônia... Seu rosto me agrada, Talvez por isso te ajude.

Tamanha inocência!...

Embora já tenhas vivido mais de vinte anos.

MARTA, a Joana:

Joana, não creias que seja de boa fé. Desculpe-me. Eu também vou embora. Deverias, tu também,

Abandonar esta empreitada. Marta sai.

JOANA – Isso é uma gota no oceano, Senhor Mauler. O senhor não

poderia realmente ajudá-los?

MAULER:

Repita por toda a parte: eu aprovo vossa ação, E desejaria que fossem mais numerosos.

Mas tendes consideração demais pelo destino dos pobres: Eles são maus. O homem, aliás, não me comove.

Nenhum é inocente. São todos carniceiros. Deixai disso.

JOANA – Senhor Mauler, nos matadouros dizem que o senhor é o

responsável pela miséria deles.

MAULER:

Eu tenho grande piedade pelos bois: o homem, ele é mau. Ele não é maduro ainda, para o que pretendes fazer,

O mundo não poderá mudar se antes não mudarem os homens. Um instante, por favor.

(11)

Chame ela de lado, dê dinheiro a ela, Diga “para seus pobres”; ela poderá Aceitar sem pudor; e depois a siga,

Veja então o que ela compra. Se isso falhar - E eu adoraria que não desse certo – Leve-a aos matadouros; e mostre a ela Como os pobres são maus e covardes, Semelhantes a bestas, cheios de traições, Responsáveis, enfim, por suas vidas miseráveis. Isso pode funcionar.

A Joana:

Aqui está meu corretor, Sullivan Slift; ele te fará ver algumas coisas.

A Slift:

Mal posso suportar a existência de seres Semelhantes a esta moça, que nada têm

Além de seus vinte centavos por dia e seu chapéu negro, E que não têm nenhum medo.

Ele sai.

SLIFT:

Em teu lugar não gostaria, De saber o que queres saber, Mas volte aqui amanhã, Se quiseres mesmo saber.

JOANA, vendo Mauler se afastar:

Este homem não é mau.

É o primeiro que nossos tambores desalojaram Das trevas da vilania;

Ele ouviu nosso chamado.

SLIFT, saindo – Um conselho: não te metas com as gentes dos

matadouros; é a escória, em uma palavra, é o lixo do mundo.

JOANA — Eu quero vê-los.

IV

O corretor Sullivan Slift mostra à Joana Dark como os pobres são maus: Joana desce às profundezas pela segunda vez

BAIRRO DOS MATADOUROS

SLIFT:

Joana, agora eu vou te mostrar Como eles são maus

Essa gente da qual tens piedade, E verás que tua piedade é descabida.

Slift e Joana contornam o muro de uma fábrica, sobre o qual se lê: “Fábrica de Conservas de Carne Mauler e Cridle”: O nome de Mauler aparece riscado. Dois homens saem por uma portinhola. Slift e Joana escutam.

UM CONTRAMESTRE, a um jovem operário – Um de nossos homens,

Luckerniddle, caiu, faz quatro dias, na caldeira; é pavoroso, mas não pudemos parar as máquinas a tempo, e ele entrou na faca e virou toicinho. Aqui estão seu casaco e seu boné: pegue-os e faça-os desaparecer. Estão ocupando inutilmente um cabide no vestiário, o que causa má impressão. É preciso queimá-los, o quanto antes melhor. Entrego a você porque sei que é de confiança: se alguém encontrá-los em algum lugar, perderei meu emprego. Quando a fábrica reabrir você, é claro, se quiser, ficará com a vaga de Luckerniddle.

OJOVEMOPERÁRIO – O senhor pode confiar em mim, senhor Smith. (O

contramestre volta para a fábrica pela portinhola.) É uma pena, este homem será mandado para os quatro cantos do mundo sob a forma de toicinho. Mas seu casaco ainda está bom e isso também é uma pena. O amigo Pedaço-de-Toicinho não precisa mais dele, já que agora ele está em embalado, vestido com uma lata, e para mim, ele cairá bem... Azar, peguei para mim.

Ele veste o casaco, e enrola o seu, assim como o seu boné, em um jornal.

(12)

SLIFT: Aí está a vida como ela é. (Ele pára o jovem operário.) Onde

você conseguiu este casaco e este boné? Estes são os pertences de Luckerniddle, aquele que se acidentou?

O JOVEM OPERÁRIO – Por favor, senhor, não diga mais isso. Eu tiro

agora mesmo. Eu estou em uma situação muito ruim. No ano passado me deixei seduzir pelos vinte centavos a mais que se ganha na fábrica de adubo; fui trabalhar no moinho de ossos e adoeci dos pulmões e dos olhos e não consigo me curar. Já não posso mais trabalhar como antes e só consegui emprego duas vezes desde fevereiro.

SLIFT: Guarde essas coisas. Venha, ao meio-dia, à cantina número

7. Você poderá comer e lhe darei um dólar se disser à mulher de Luckerniddle onde conseguiu o casaco e o boné.

OJOVEMOPERÁRIO – Mas senhor, isso não lhe parece muito brutal? SLIFT: Bem, se você não está precisando disso!...

OJOVEMOPERÁRIO – Pode confiar em mim, senhor.

Joana e Slift seguem seu caminho.

DONA LUCKERNIDDLE está sentada em frente ao portão da fábrica,

lamentando-se:

Faz já quatro dias que, saindo para o trabalho, ele me dizia: “Espere-me à noite com uma sopa quente!” Desde então não

[voltou. Bando de açougueiros, que fizeram dele?

Há quatro dias que estou aqui,

No frio, mesmo à noite, esperando por ele

Mas ninguém diz nada; e meu marido não sai da fábrica. Eu, de qualquer modo, lhes digo, enquanto não o vir, Eu ficarei aqui. E malditos sejam vocês

Se lhe fizeram qualquer coisa! Slift caminha até ela.

SLIFT:

Senhora Luckerniddle, seu marido está viajando.

DONALUCKERNIDDLE:

Agora inventam que ele viajou!

SLIFT – Deixe-me dizer uma coisa, Senhora Luckerniddle: ele está

viajando e, para nós, na fábrica, é muito desagradável vê-la

sentada aí, todo o tempo, dizendo tolices. É por isso que lhe fazemos uma proposta: note bem que, legalmente, nósnão somos, de forma alguma, obrigados a fazê-la. Não procure mais saber o que se passou com seu marido e a senhora poderá almoçar, gratuitamente, em nossa cantina durante três semanas.

DONALUCKERNIDDLE – Quero saber o que aconteceu ao meu marido. SLIFT – Estamos dizendo que ele partiu para São Francisco.

DONA LUCKERNIDDLE – Não, ele não foi para São Francisco. Aconteceu

alguma coisa com ele aí, e vocês não querem que se saiba disso.

SLIFT – Se é esta a sua opinião, senhora Luckerniddle, então a

senhora não pode aceitar a refeição que a fábrica lhe oferece. Precisará nos processar. Mas reflita bem. Amanhã, se quiser me ver, me encontrará na cantina.

Slift volta para junto de Joana.

DONALUCKERNIDDLE:

Eu quero que me devolvam meu marido, Não tenho outro esteio, além dele.

JOANA:

Ela nunca aceitará.

Vinte refeições são muita coisa Para aquele que tem fome, Mas existem coisas

Que importam mais para ela.

Joana e Slift prosseguem seu caminho. Eles chegam a uma cantina da usina e vêem diante de uma janela dois homens que olham para o interior.

GLOOMB – O feitor está bem ali, pronto para encher a pança. Por

causa dele deixei minha mão na máquina de cortar chapas. Esse salafrário se empanturra às nossas custas. Vamos cuidar para que essa seja a última vez. Vamos, passe-me logo teu cassetete; é capaz de o meu quebrar já no primeiro golpe.

SLIFT, a Joana – Fique aqui, vou falar com ele. Quando ele se

aproximar, diga-lhe que procura trabalho. Verás então o que é essa gente. (Ele vai em direção a Gloomb). Tenho a impressão de que você está prestes a cometer um ato impensado. Antes eu gostaria de fazer-lhe uma proposição interessante.

(13)

GLOOMB – Não tenho tempo, meu senhor. SLIFT – Que pena. Seria vantajoso para você.

GLOOMB – Rápido então. Não podemos perder esse safado. É

preciso que ele pague hoje mesmo por esse sistema desumano do qual ele é o feitor.

SLIFT – Gostaria de propor um meio de tirar-lhe dessa jogada. Eu

sou inspetor nesta fábrica. O posto que você ocupava na sua máquina continua vago e isto é muito chato. A maior parte dos trabalhadores a considera muito perigosa, justamente porque você contou todas essas histórias a respeito de seus dedos. Naturalmente seria muito bom se nós encontrássemos alguém para esse posto. Se você, por exemplo, encontrasse alguém, estaríamos dispostos a reempregá-lo imediatamente, e lhe daríamos até um trabalho mais fácil e melhor remunerado do que o antigo. Talvez a vaga deste contramestre. Naturalmente você precisaria manter os ritmos de trabalho mesmo os dispositivos de segurança não sendo perfeitos. Ali adiante, por acaso, há uma moça que está procurando trabalho.

GLOOMB – Posso confiar no que você está me dizendo? SLIFT – Sim.

GLOOMB – Aquela moça ali? ... Ela não parece muito forte. O posto

não é feito para gente fraca. (Ao seu companheiro:) Pensei melhor, faremos isso amanhã à noite. Uma jogada dessas é melhor de se fazer à noite. Tchau. (Ele vai em direção a Joana.) Você está procurando trabalho?

JOANA – Sim.

GLOOMB – Você enxerga bem?

JOANA – Não. No ano passado fui trabalhar na fábrica de adubo, no

moinho de ossos. Adoeci dos pulmões e dos olhos e não consigo me curar. Desde fevereiro estou sem emprego. É um bom posto?

GLOOMB – É um ótimo posto. E é um trabalho que pode ser feito

mesmo por pessoas como você, não muito fortes.

JOANA – Não há realmente como me arranjar outro posto? Ouvi dizer

que o trabalho nesta máquina era perigoso para quem não resistisse ao trabalho muito pesado. Os movimentos ficam menos firmes e pode-se prender as mãos nas serras.

GLOOMB – Nada disso é verdade. Você se surpreenderá ao ver como

o trabalho é agradável. Vai se perguntar como alguém pode contar histórias tão ridículas sobre esta máquina.

Slift cai na gargalhada e arrasta Joana.

JOANA – Quase tenho medo de continuar. O que mais verei?

Eles entram na cantina. A senhora Luckerniddle está falando com a garçonete.

DONA LUCKERNIDDLE, calculando – Vinte refeições... e então eu

poderia... depois do que eu iria, e então eu teria... Ela senta-se em uma mesa.

AGARÇONETE – Se a senhora não for comer, tem que se retirar... DONALUCKERNIDDLE – Espero uma pessoa que deve vir hoje ou

amanhã. O que há para comer hoje?

AGARÇONETE – Ervilhas. JOANA:

Ela sentou-se ali.

Eu imaginava que ela iria resistir.

Apesar de tudo, temi que amanhã ela viesse, E eis que ela nos precedeu.

Ela correu até aqui e já nos espera.

SLIFT – Leve você mesmo a comida a ela, pode ser que mude de

idéia.

Joana procura um prato e leva à senhora Luckerniddle.

JOANA – A senhora já está aqui, desde hoje? DONALUCKERNIDDLE – Não como nada há dois dias.

JOANA – Mas a senhora nem sabia que nós viríamos hoje. DONALUCKERNIDDLE – É verdade, não sabia.

JOANA – Vindo para cá ouvi dizer que aconteceu alguma coisa com

o seu marido e que a fábrica é responsável.

DONA LUCKERNIDDLE – O que? Vocês pensaram melhor e estão

retirando a oferta? Então eu não terei mais as minhas vinte refeições?

JOANA – Me pareceu que a senhora se dava bem com seu marido.

Disseram-me que não tinha ninguém além dele.

(14)

JOANA – A senhora não quer esperar até amanhã? Se a senhora

desistir de procurar o seu marido, ninguém mais perguntará o que foi feito dele. (Dona Luckerniddle permanece em silêncio) Não pegue.

Dona Luckerniddle arranca o prato das mãos dela e começa a comer avidamente.

DONALUCKERNIDDLE – Ele foi para São Francisco. JOANA:

Porões e armazéns abarrotados de carne, Mercadoria invendável, e que já apodrece, Pois não há mais compradores!

Do fundo do palco chega o jovem operário com seu casaco e seu boné.

OJOVEMOPERÁRIO – Bom dia, posso comer aqui?

SLIFT – Você só precisa sentar-se ali, ao lado daquela mulher. (Ele

senta-se. Atrás dele:) Você tem um belo boné. (O jovem operário o esconde) De onde ele vem?

OJOVEMOPERÁRIO – Eu comprei. SLIFT – E onde você comprou?

OJOVEMOPERÁRIO – Eu comprei, mas não em uma loja. SLIFT – E onde você conseguiu, então?

OJOVEMOPERÁRIO – De um homem que caiu dentro de uma caldeira.

A senhora Luckerniddle sente náuseas. Ela se levanta e sai.

DONA LUCKERNIDDLE, saindo, ao garçom – Deixe meu prato, eu volto.

Eu virei todos os dias. Você só precisa perguntar a esse senhor. Ela sai.

SLIFT – Durante três semanas ela virá, e comerá sem levantar os

olhos do prato, como um animal. Você a viu, Joana? A imoralidade dela não tem limites!

JOANA:

E tu, com que habilidade torna-te mestre dela! Esta imoralidade, como vós a explorais! Não vês que nem teto eles têm, para colocar Ao abrigo da chuva, a imoralidade deles? Ela teria, esta mulher, preferido, como muitas, Continuar fiel à memória de seu marido,

E procurar por ele, como manda o costume, Um certo tempo ainda. Era seu único esteio. Mas vinte refeições, o preço era muito alto. E este jovem – em quem botaria fé

Qualquer malandro -, acreditas que ele teria mostrado À mulher do morto a roupa que usava

Se tivesse tido a chance de escolher? O maneta, certamente teria me prevenido

Não fosse o preço a pagar por seu pequeno escrúpulo, Ele foi obrigado a vender sua cólera,

Tão cara a ele, e por mais justa que fosse. Sua imoralidade é sem limites, tu me dizes? Sua pobreza também é incomensurável. O que tu me mostraste

Não é a imoralidade

Dos pobres: é a pobreza deles.

Desejas mostrar-me a sua imoralidade,

Mostrar-te-ei, eu, os sofrimentos que suportam Esses pobres sem moralidade.

Que sua miséria, a vossos olhos contradiga

Esta depravação que injustamente se lhes imputa. V

Joana apresenta os pobres à Bolsa de Carnes A BOLSA DE CARNES

OSFABRICANTESDECONSERVAS :

Nós todos, estamos vendendo carne! Compradores, comprem nossas latas! Carne fresca e suculenta.

Fatias de toicinho Cridle-Mauler!

Carne de filé Graham, verdadeira manteiga! Banha fresca do Kentucky!

(15)

E sobre as águas fez-se um grande silêncio De todos os compradores, nenhum tinha dinheiro.

OSFABRICANTES:

Graças aos avanços da técnica, ao trabalho de nossos

[engenheiros, E graças aos perspicazes planos dos industriais da carne Nós conseguimos reduzir em um terço

O preço do toicinho Cridle-Mauler, Do filé Graham, verdadeira manteiga, E da banha de Kentucky, quase de graça. Aproveitem então, compradores,

Comprem, comprem nossas latas!

OSCOMPRADORES:

E sobre as montanhas fez-se um grande silêncio E as cozinhas dos hotéis escondem a face E as lojas se desviam com horror

Os atacadistas mudam de cor.

A nós, compradores, a visão da carne enlatada Causa náuseas. O estômago do país,

Saturado de carne em conserva, Não a agüenta mais.

SLIFT:

E teus amigos de Nova Iorque, o que te escrevem?

MAULER:

Teorias. A dar-se-lhes ouvidos

Seria necessário agora deitar por terra Todo o cartel da carne

E deixá-lo estagnado durante muitas semanas, Esperando até ninguém poder

Mexer nem o mindinho! E eu,

Eu teria sobre as costas toda a carne! Idiotas.

SLIFT:

Eu riria se, em Nova Iorque, eles conseguissem Fazer cair de uma vez as taxas de importação, E abrissem assim o Sul aos nossos produtos.

O que provocaria um movimento de alta. Nós iríamos perder o bonde!

MAULER:

E quando isso ocorresse! Terias a imprudência De tirar tua parte de tamanha miséria,

Quando todos te seguem com olhos de lince Para ver o que fazes? Eu não teria cara.

OSCOMPRADORES:

Nós compradores,

Temos diante de nós montanhas de latas, Frigoríficos entupidos de carne congelada. Nós queremos vender a carne em conserva E ninguém a quer!

E todos os nossos clientes, cozinhas e lojas Estão cheios até as bordas.

Clamamos aos berros por um consumidor que não existe. Nós não compramos mais nada!

OSFABRICANTES:

E nós, fabricantes, com nossos matadouros?

Nossas fábricas estão cheias de bois, dia e noite nossas máquinas Ligadas no máximo: salgadeiras, cubas, caldeirões

Convertem sem parar em latas de conserva As manadas mugidouras que pastam nos prados. Mas ninguém quer comprar carne enlatada. Nós estamos perdidos!

OSCRIADORES:

E nós, os criadores,

Quem comprará agora nosso gado? Os estábulos estão cheios

De porcos e bois devoradores de milho

Que eles devoram ainda nos trens que os transportam, Nas estações e nos pátios,

Engolindo nosso ouro junto com nosso grão.

MAULER:

E mesmo a faca os recusa. A morte Despreza esse gado e fecha-lhe a porta.

(16)

OSFABRICANTES - investindo contra Mauler que lê o jornal:

Traidor, ave de agouro, que conspurca nosso ninho! Nós sabemos bem quem fez os preços caírem sem cessar Vendendo gado por baixo do pano.

Não é de hoje que fazes tais manobras.

MAULER:

Açougueiros insolentes é o que sois! O animal torturado parou de mugir,

E vós soluçais nas saias de vossas mães. Voltai para casa. Falai que um dentre os vossos Não pode mais suportar o grito dos bois morrendo E aos mugidos deles, preferiu o vosso.

Quero apenas meu dinheiro e a paz de minh’alma

UMCORRETOR – urrando, ao fundo, na entrada da bolsa:

Queda gigantesca das cotações na Bolsa!

Venda maciça de ações. Cridle, antigamente Mauler, Carrega em sua queda as cotações de todo o cartel!...

Tumulto entre os fabricantes, que se lançam sobre Cridle, pálido como algodão.

OSFABRICANTES:

O que significa isso, Cridle? Levanta os olhos, olha para nós! Assim, nesta conjuntura,

Tu te desfazes de tuas ações?

UMCORRETOR:

A cento e quinze!

OSFABRICANTES:

Ficaste louco?

Tua morte, Cridle, provoca muitas outras! Lixo! Assassino!

CRIDLE - apontando para Mauler:

Falem com ele!

CRAHAM – colocando-se diante de Cridle:

Não é Cridle, mas um outro

Quem joga a rede; nós somos os peixes! O que querem arruinar, é o cartel da carne.

Essa gente não faz as coisas pela metade. Mauler! Fala, então!

OSFABRICANTES – a Mauler:

Corre o boato que teu capital, tu o retiras Do negócio e Cridle, que já se arrasta, Cala-se e aponta para o dedo para ti.

MAULER – O próprio Cridle me confessou que está insolvente: se eu

deixasse meu dinheiro com ele, nem que fosse por mais uma hora, quem de vocês continuaria a me levar a sério nos negócios? Ora, o que desejo, antes de qualquer coisa, é que me levem a sério.

CRIDLE – dirigindo-se aos que o cercam:- Há quatro semanas apenas

eu assinei um contrato com Mauler. Ele queria me vender a sua parte, por dez milhões de dólares. Isso representava um terço do total das ações. Desde aquele dia, eu acabo de saber, ele vem realizando secretamente vultosas vendas de gado a preços baixos e provocou a queda das cotações que, de toda a maneira, já vinham caindo. Ele poderia exigir seu dinheiro quando quisesse, estava acordado. Eu me propunha pagar-lhe vendendo uma parte das ações dele mesmo, que estavam valorizadas, e ficando com as outras. Veio a baixa. Hoje os papéis de Mauler não valem mais dez, mas três milhões, e o conjunto das fábricas vale dez, ao invés de trinta. Esses dez milhões são exatamente a soma que devo a Mauler – e ele a exige em vinte e quatro horas.

OSFABRICANTES:

Quando ages assim com Cridle,

E exiges dele o pagamento sem demora, É bom que ele seja nosso adversário,

Mas somos atingidos pelo que lhe acontece. Foste tu mesmo quem provocou o marasmo! Nossas latas agora não saem mais caro Que a areia dos mares. Pois tu liquidaste,

Para acabar com Lennox, a preço vil, todo teu estoque.

MAULER:

E por que matastes tanto gado? Açougueiros alucinados sois vós! Agora, eu quero o meu dinheiro.

(17)

Mesmo que tivésseis todos que mendigar,

Eu quero meu dinheiro, pois tenho outros projetos.

OSCRIADORES:

Lennox já caiu! E Cridle balança! E Mauler, ele retira o seu dinheiro!

OSFABRICANTES:

Oitenta mil latas a cinqüenta, mas rápido!

OSCOMPRADORES - Nenhuma sequer!

Silêncio. Ouvem-se os tambores dos Chapéus Negros e a voz de Joana.

JOANA - Pierpoint Mauler! Onde está Mauler? MAULER:

O que é esse barulho de tambores que de súbito me envolve? E quem chama pelo meu nome

Nesse lugar, onde cada um revela Sua boca desnuda, suja de sangue?

Joana e Marta avançam e cantam o seu hino de guerra.

OSCHAPÉUS NEGROS cantando:

Escutem todos, escutem bem!

Um homem afunda sob os nossos olhos! Escutamos lá no fundo seu apelo por salvação, Uma mulher nos faz sinais de aflição.

Parem os carros, detenham todo o tráfego Em torno de vós os seres naufragam, E ninguém se preocupa

Não tendes, então, olhos para ver? Ele é vosso irmão, seja quem for! Levantai o nariz de vosso prato. Haveis então esquecido

Os que esperam diante da porta E que esperam, para comer?

Pensai convosco mesmo: sempre será assim, Nesse mundo sempre reinará a injustiça. E nós dizemos: é preciso ir sempre adiante, Com o único objetivo de ajudar o próximo. Fazer avançar os tanques e os canhões,

Lançar ao mar os navios de guerra E nos ares, os aviões

Para conquistar o pão dos pobres. Os que nos escutam,

Não esperem o amanhã! Cada um deve nos ajudar. Pois os bons nesse mundo Não formam um grande exército.

Avante! Ao assalto! Empunhem os fuzis!

Diante de nossos olhos os homens naufragam, E ninguém se preocupa.

Durante esse período a batalha na bolsa continua. Uma explosão de gargalhadas toma a frente da cena, acompanhada de

exclamações.

OSFABRICANTES:

Oitenta e sete mil latas pela metade do preço, mas rápido!

OSCOMPRADORES - Nenhuma sequer!

OSFABRICANTES – Então, Mauler, nós estamos perdidos! JOANA – Onde está Mauler?

MAULER:

Slift, não saia!

Graham, Meyers, fiquem diante de mim. Eu não quero que me vejam aqui.

OSCRIADORES:

Impossível vender um boi em Chicago, Para Illinois esse dia é um desastre!

Vocês fizeram os preços subirem. E, com isso, Estimularam-nos a criar bois,

Ei-nos aqui, com nossos bois Que hoje ninguém mais quer.

És tu, Mauler, seu cão, o responsável Por esta catástrofe.

MAULER:

Por hoje basta. Não falemos mais de negócios. Ei, Graham, meu chapéu, pois preciso partir. Meu chapéu, cem dólares pelo meu chapéu.

(18)

CRIDLE – Maldito sejas!

Cridle sai.

JOANA, atrás de mauler – Fique senhor Mauler, e escute o que eu

tenho a lhe dizer. Silêncio! Não lhes agrada muito, eu bem sei, ver surgir a nós, os Chapéus Negros, nesses lugares sombrios e secretos onde os senhores tratam de seu comércio. Já me disseram o que os senhores fazem: manobras, engodos e combinações para aumentar o preço da carne. Mas se os senhores acreditaram que seus procedimentos permaneceriam ignorados, tanto hoje quanto no dia do juízo final, os senhores se enganaram. Se os senhores continuarem tergiversando, buscando desculpas, como fazem em seus jornais, então em suas costas os bois começarão a mugir contra os senhores, e diante de Deus Todo-Poderoso, seus mugidos serão testemunhos.

Risos

OS CRIADORES – Nós criadores não encontramos nestas palavras

motivo para o riso. Inverno e verão nós dependemos do tempo: nós também estamos mais próximos do Deus de nossos pais do que os senhores.

JOANA – Um homem de negócios também pode ser um bandido –

dependendo do ponto de vista. Mas nós lhes dissemos que é um imbecil. E os senhores, que fazem subir o preço do pão e que fazem da vida um inferno onde os homens viram demônios, são todos uns imbecis, pobres e deploráveis imbecis, nada além disso.

COMPRADOR, gritando:

Por vossa especulação desenfreada, Vossa imunda cobiça,

Causais vossa própria queda! Bando de imbecis!

OSFABRICANTES, replicando:

Imbecis são vocês!

Ninguém pode nada contra as crises! Bem acima de nós, destinos inelutáveis,

Traçam essas desconhecidas, as leis econômicas. As crises são catástrofes naturais,

Cujo ciclo pavoroso sempre recomeça.

OSCRIADORES:

Como? Somos asfixiados e ninguém pode fazer nada? A causa de nossos males é a imoralidade

De vossas armações escusas.

JOANA – E qual a causa desta imoralidade no mundo? Poderia ser

diferente? Se cada um é obrigado a rachar com um machado a cabeça de seu próximo para fazê-lo ceder seu pequeno pedaço de presunto e sua migalha de pão, como não seriam os valores mais elevados esmagados em seu coração? Sempre ouço dizer, Senhores, que os pobres não têm muita moral, e é verdade. Nos baixios, nas favelas, é lá que mora a imoralidade no estado puro e, em conseqüência, a Revolução. Mas então eu lhes pergunto: de onde tirariam eles alguma moralidade, eles que nada têm? Senhores, existe também um poder de compra moral: o dinheiro, o salário. Aumentem-no, tereis a moralidade. Se continuarem a agir assim, acabarão tendo de comer sozinhos a carne que produzem, pois os que estão lá fora já não têm como comprar.

OSCRIADORES, em tom de reprovação

Aqui estamos com nossos bois Que hoje em dia ninguém quer.

JOANA – Mas os senhores, todo-poderosos, que sentam nesse

palácio, imaginando que não virão à tona suas manobras, nada querem saber da miséria que existe fora deste recinto, aí pelo mundo. Reparem então nestas gentes, a quem os senhores transformaram no que são, e a quem não querem reconhecer como irmãos; vocês, que se dobram sob o fardo de suas penas, avancem à luz do dia. Não tenham vergonha.

Joana mostra aos negociantes os pobres (Luckerniddle e Gloomb) que ela trouxe,

MAULER, gritando – Afastem-nos!

Ele desmaia.

UMAVOZ, ao fundo – Pierpoint Mauler passou mal. OSPOBRES – Ele é o responsável por tudo!

Os fabricantes de conservas correm para socorrer Mauler.

OSFABRICANTES:

(19)

Um médico para Mauler!

JOANA:

Mauler, vós me mostrastes a imoralidade deles, Eu vos mostro agora a pobreza dos pobres. Eles, que mantendes longe de vós,

E lá, afastados dos bens indispensáveis, Invisíveis para vós, e por vós mantidos Nesta pobreza, estão tão enfraquecidos, A tal ponto dependentes de alguma comida E de um pouco de calor, para eles inacessíveis, Que viver assim pode mesmo afastá-los

Da necessidade de um ideal, e reduzi-los À voracidade, ao instinto animal.

MAULER, voltando a si – Eles ainda estão aí? Eu suplico que os

afastem.

OS FABRICANTES – Quem? Os Chapéus Negros? Quer que eles

saiam?

MAULER – Não, eles não. Os que estão atrás.

SLIFT – Ele não abrirá os olhos enquanto não os fizerem sair. CRAHAM:

Então! Não podes vê-los? No entanto foste tu, Tu quem os reduziu à tamanha miséria. E não basta que cerres as pálpebras Para que eles desapareçam.

MAULER:

Afastem-nos, vos rogo, eu compro! Escutai todos: Pierpoint Mauler compra!

Que estas gentes tenham trabalho e que se afastem.

Compro, eu, Mauler, tudo o que em oito semanas conseguirdes [fabricar.

OSFABRICANTES – Ele comprou! Mauler comprou! MAULER – Ao preço do dia!

CRAHAM, levantando-lhe a cabeça – E os estoques? MAULER, deitado no chão – Eu compro.

CRAHAM – A cinqüenta? MAULER – A cinqüenta!

CRAHAM:

Ele comprou tudo! Vocês ouviram: Comprou tudo!

CORRETOR, ao fundo, gritando em um megafone – Pierpoint Mauler

reanima o mercado da carne. Torna-se comprador, ao preço do dia, de todos os estoques do cartel. Além disso, assume compromisso sobre a produção de dois meses, a contar de hoje, também ao preço de cinqüenta. O cartel entregará a Pierpoint Mauler, em 15 de novembro, pelo menos cinqüenta mil toneladas de conservas.

MAULER – Agora, meus amigos, levantai-me, por favor.

Eles o levantam.

JOANA:

É isso, levai-o agora.

Nós, qual burros de carga, cumprimos nosso trabalho de

[missionários, E vós, aí em cima, o que fazeis?

Vós me ordenastes não dizer uma palavra, Mas quem sois vós, então

Para querer fechar a boca do Bom Deus? Não se deve calar a boca de ninguém,

Nem mesmo do boi que esmaga espigas com seu casco! Em todo o caso, eu vou falar.

Aos pobres:

Segunda-feira vocês terão novamente trabalho.

OS POBRES – Gente como essa, nós nunca tínhamos visto. Mas os

dois que estavam ao lado dele, como eles sim, nós conhecemos. Eles parecem bem piores.

JOANA – E agora, antes de partirmos, cantemos: “Nunca faltará o

pão...”

OSCHAPÉUSNEGROS cantando:

Nunca faltará o pão

Ao que dedica a Deus sua alma. Quem em seu seio habita

Jamais será infeliz.

No seio de Deus não há frio, E fome nunca se passa.

(20)

OSCOMPRADORES:

Este homem está ruim da cabeça.

O estômago do país, saturado de conservas, Recusa-se a engolir mais.

E ele faz meter carne em latas Que ninguém comprará. Podem esquecer seu nome.

OSCRIADORES:

Agora os preços subirão, açougueiros infames! Enquanto vocês não dobrarem o preço do gado Não entregaremos um só grama de carne, E vocês precisam dela.

OSFABRICANTES:

Podem guardar sua carniça podre! Não estamos interessados em comprar, Pois o contrato que acabam de ver firmado É apenas um pedaço de papel.

O homem que o assinou não estava em seu juízo. Para tal negócio, ele não encontrará

Um centavo, nenhum, de São Francisco a Nova Iorque. Os fabricantes de conserva saem.

JOANA – Todos aqueles que se interessam realmente pela palavra

de Deus e que querem saber o que ele diz e não apenas a cotação da Bolsa podem vir domingo à tarde assistir nosso ofício, na Rua Lincoln, às duas horas. Música a partir das 3 horas, entrada gratuita.

SLIFT, ao criador:

O que Mauler promete,

Ele cumpre. Agora os senhores podem respirar. Nesse momento o mercado recobra a saúde. Aqueles que dão o pão, aqueles que o recebem, Escutem: saímos, enfim do ponto morto!

Confiança e concórdia estavam fortemente abaladas, Os patrões vão reabrir, os operários entrarão.

Sábia decisão, sabiamente acatada, Contra a desrazão, a sabedoria triunfa.

As fábricas reabrem e as chaminés fumegam! Pois efetivamente é de trabalho, não é,

Que carecem tanto uns como os outros?

CRIADOR, dirigindo-se à Joana

Aquilo que disseste e tua intervenção Causou-nos forte impressão.

Muitos criadores se transtornaram, pois nós também, Nós estamos sob uma miséria atroz.

JOANA:

Saibam todos: estou de olhos em Mauler. Sua consciência já despertou.

Se estiverem muito necessitados, Venham comigo procurá-lo

Para que ele os tire do embaraço. Não o deixaremos descansar

Enquanto um homem precisar de ajuda; Pois ele pode vir em auxílio.

É preciso, então, cutucá-lo.

Joana e os Chapéus Negros saem, seguidos dos criadores. VI

A Captura dos grilos NA CIDADE

CASA DO CORRETOR SULLIVAN SLIFT, PEQUENO IMÓVEL COM DUAS SAÍDAS

MAULER, dentro da casa, discute com Slift – Fecha a porta, liga as

luzes e agora repara em mim, Slift, e diga se realmente todos podem ler em meu rosto?

SLIFT – Ler o quê?

MAULER – Ora! A minha profissão!

SLIFT – Teu ofício de açougueiro? Diga-me, Mauler, por que te

impressionas com os discursos dela?

(21)

O que ela disse? Eu não ouvi nada. Por trás havia rostos selvagens,

Máscaras da aflição, de onde se eleva uma cólera Que nos varrerá a todos,

Tão forte, que mais não vi.

Agora, meu caro Slift, irei confessar-te

Minha verdadeira opinião sobre nossos negócios: Comprar, vender e lutar sem parar,

Esfolarmos uns aos outros friamente, Esquecer todo o resto...

Isso não pode mais perdurar.

A urrar de aflição, eles são muito numerosos, Seu número aumenta a cada dia.

Para estes que caem em nossos porões sangrentos, Não há mais consolo;

Se nos apanharem um dia, lançar-nos-ão Ao chão como um peixe podre.

Nós que aqui estamos,

Não conheceremos a morte em nossas camas. Para limpar esse mundo,

Seremos colados ao muro, um após o outro, Nós e nossa corja.

SLIFT – O discurso deles te perturbou. (À parte:) Farei com que ele

coma um filé muito mal passado. É sua antiga fraqueza que retorna. Talvez depois de comer carne crua ele retome seus instintos.

Ele se afasta e começa a grelhar um bife no fogão.

MAULER:

Sempre me pergunto por que essas tolices me afetam: Discursos plenos de utopias,

Fórmulas tomadas ao coração, Tagarelice vazia e fácil...

Certamente porque essa gente trabalha a troco de nada, E dezoito horas por dia,

Sob a chuva e de barriga vazia.

SLIFT:

Em cidades como as nossas, Onde o fogo arde embaixo Enquanto congela-se em cima, Há sempre boquirrotos que acham

Que as coisas não andam como deveriam.

MAULER:

Mas que dizem eles? Essas cidades São um braseiro jamais extinto

Onde, qual onda, retorna, urrando, a humanidade; E quando da onda emana uma voz

Que nada tem de bestial, por mais louca que seja, Então creio sentir

Como um peixe aprisionado entre duas águas Pauladas na espinha...

Não, Slift. Tudo isso são ainda meras desculpas O que temo não é Deus,

É outra coisa.

SLIFT – E o que é, então? MAULER:

O que vive abaixo e não acima

De mim! Esses seres reunidos nos matadouros,

Que não sabem como passarão a noite mas, no entanto, Levantar-se-ão com a aurora e por-se-ão em marcha.

SLIFT – Não queres comer um pouco de carne, caro Pierpoint?

Pense que agora podes fazê-lo sem peso na consciência, pois desde essa manhã tu nada tens a ver com a morte dos bois.

MAULER:

Tu crês que eu deveria? Eu poderia, talvez. Eu deveria podê-lo de novo, não é?

SLIFT – Come. E pense em tua situação: ela não é muito boa. Sabias

que tu compraste hoje tudo aquilo que pode ser colocado dentro de uma lata de alumínio?

Meu caro Mauler, vejo-te mergulhado na contemplação de teu ser grandioso, mas permita que eu te exponha simplesmente a situação, por mais externa e sem importância que ela seja.

(22)

Primeiro compraste ao Cartel um estoque de vinte mil toneladas de conservas. Nas semanas vindouras, deverás escoá-lo em um mercado que já não consegue absorver uma única lata. Tu as compraste a cinqüenta mas, na melhor hipótese, os preços cairão a trinta. Em quinze de novembro, quando os preços estiverem em trinta, ou a vinte e cinco, o Cartel te entregará mais cinqüenta mil toneladas a cinqüenta.

MAULER:

Oh! Slift, eu estou perdido! Esse é o meu fim.

Sim, eu comprei! O que eu fiz!

Coloquei sobre minhas costas toda a carne desse mundo! Trôpego, qual Atlas,

Sob o fardo de toneladas de latas de alumínio, Cairei, esmagado, sob os arcos de alguma ponte.

Ainda pela manhã, muitos de meus concorrentes balançavam, Eu fui vê-los cair, rir-me deles, dizer-lhes

Que ninguém era louco o suficiente Para comprar carne em conserva. E uma vez lá, eu me escutei dizer: “Eu compro tudo”.

Ah, Slift, eu comprei, eu estou perdido.

SLIFT – E o que escreveram, então, teus amigos de Nova Iorque? MAULER – Que eu devo comprar carne.

SLIFT – Tu deves fazer o que? MAULER – Comprar carne.

SLIFT – E por que reclamas de ter comprado? MAULER – Sim, eles me escrevem para comprar. SLIFT – E tu compraste!

MAULER:

Oh, sim! Eu comprei carne, é verdade. Mas não foi por causa da carta.

Estão erradas, de resto, essas teorias de gabinete... Não, eu não agi por razões vis.

Mas esta mulher comoveu-me a tal ponto Que mal lancei os olhos, eu te juro,

Na carta que recebi de Nova Iorque essa manhã. Aqui está: “Caro Pierpoint...”

SLIFT, continuando a leitura - “Estamos em condições, hoje, de

anunciar-te que nosso dinheiro começa a render seus frutos: muitos são aqueles que, na Câmara, votarão contra as tarifas aduaneiras. Parece, assim, indicado, caro Pierpoint, comprar carne. Receberás, amanhã, mais notícias.

MAULER:

Corromper assim,

É coisa que também não se deveria fazer. Facilmente nascem guerras

À custa de tais atitudes. Milhares de homens sangram Por causa deste imundo dinheiro.

Ah! Meu caro Slift, eu tenho a impressão De que nada de bom sairá daí.

SLIFT:

Tudo depende de quem escreve a carta. Corromper ou abolir as tarifas,

Ou desencadear guerras, Não é qualquer um que pode. Essas pessoas são gente de bem?

MAULER – É gente com liquidez. SLIFT – Quem são, então?

Mauler sorri.

Então pode ser que, apesar de tudo, os preços

Subam? E nós acabaríamos, acredito, escapando bem. Essa seria uma saída. Mas ainda há a carne

Que no mercado liquidarão cem criadores Muito ávidos. Os preços baixarão novamente. Realmente eu não vejo sentido nesta carta.

MAULER:

Tu compreenderás. Escuta:

X comete um roubo, mas Y o surpreende, O ladrão está perdido, a não ser que golpeie Y Se ele golpear, safa-se.

(23)

Da mesma maneira a carta – que está errada – Requer – para acertar – um crime desta ordem.

SLIFT – Qual crime? MAULER:

Um crime que eu não poderia cometer.

Pois, a partir de hoje, quero paz em minh’alma.

Que eles tirem, então, de seus delitos, grandes lucros! É verdade que o ganho seria apreciável;

A operação é simples: seria preciso comprar Todo o gado que se encontrasse em pé, Persuadir os criadores da oferta excessiva, Lembrá-los de Lennox, das fábricas paradas, E comprar-lhes tudo. Isto é o principal:

Sumir com o gado. Mas então, é verdade, Os enganados serão os criadores.

Não, eu não quero meter o dedo neste negócio.

SLIFT – Não deverias ter comprado, Pierpoint! MAULER:

Ah! É verdade, Slift, não foi bom.

Eu não compro mais nada, nem chapéu nem sapatos, Antes de ter saído dessa,

Feliz se, no fim, tiver cem dólares no bolso.

Retumbar de tambores. Joana entra acompanhada dos criadores.

JOANA – Nós o faremos sair de sua toca, como quem captura um

grilo. Vão para lá, para o outro lado. Quando ele me ouvir cantar aqui, tentará sair pela outra porta, para evitar me encontrar. Ele não gosta muito de me ver. (Ela ri.). Nem a mim nem aos que me acompanham. (Os criadores colocam-se diante da porta da direita. Joana diante da porta da esquerda.) Saia, Senhor Mauler, é preciso que eu lhe fale da miséria dos criadores de Illinois. Também trouxe alguns trabalhadores que adorariam perguntar-lhe quando o senhor reabrirá a sua fábrica.

MAULER – A outra saída onde é, Slift? Não quero reencontrá-la e,

sobretudo, àquela gente que está com ela. E por agora também não penso em reabrir a fábrica.

SLIFT – Por aqui.

No interior da casa, ele se dirige à porta da direita.

OS CRIADORES, diante da porta da direita – Sai, Mauler. Tu és o

responsável por nossa desgraça. E nós somos, em todo o Illinois, mais de dez mil criadores que não sabem mais a qual santo rezar. Compra então o nosso gado!

MAULER:

Fecha a porta, Slift, eu não comprarei!

Eu que já carrego toda a carne desse mundo, Toda a carne posta em conserva até hoje, Devo comprar ainda todo o gado de Sírius? É como se alguém viesse dizer a Atlas

Que não mais agüenta, dobrando-se sob o peso da terra: Saturno também precisa de apoio...

Quem me comprará, depois, todo esse gado?

SLIFT – Vejo apenas Graham, que precisa bastante.

JOANA, diante da porta da esquerda – Enquanto os criadores não

forem ajudados, não sairemos daqui!

MAULER – Tu dizes Graham? É verdade que ele precisa de gado?

Saia, Slift, e diga-lhes que quero refletir dois minutos. Slift sai.

SLIFT, aos criadores – Pierpoint Mauler está examinando vosso

pedido. Ele pede-vos dois minutos de reflexão. Slift volta.

MAULER – Eu não compro. (Ele calcula.) Slift, eu compro. Slift

traga-me tudo o que se pareça, de perto ou de longe, com um porco ou com um boi; e tudo o que cheire à banha eu compro também. Traga-me até a menor mancha de gordura, eu estou comprando e compro ao preço do dia, a cinqüenta.

SLIFT

Tu que não querias mais comprar um chapéu, Vais comprar todo o gado de Illinois.

MAULER:

É verdade, eu vou comprar.

Agora, Slift, minha decisão está tomada. Eu fiz “A”.

Referências

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