FACULDADE DE DIREITO
CURSO DE DIREITO
ALEXANDRE TORRES VASCONCELOS
A UNANIMIDADE NAS DELIBERAÇÕES DO CONFAZ –
CRÍTICA À LEI COMPLEMENTAR Nº 24/75 POR OFENSA
AOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICO E FEDERATIVO
A UNANIMIDADE NAS DELIBERAÇÕES DO CONFAZ –
CRÍTICA À LEI COMPLEMENTAR Nº 24/75 POR OFENSA
AOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICO E FEDERATIVO
Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo.
A UNANIMIDADE NAS DELIBERAÇÕES DO CONFAZ –
CRÍTICA À LEI COMPLEMENTAR Nº 24/75 POR OFENSA
AOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICO E FEDERATIVO
Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito, em conformidade com os atos normativos do MEC e do Regulamento de Monografia Jurídica aprovado pelo Conselho Departamental da Faculdade de Direito desta Universidade.
Aprovada em: ____/____/______.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo (Orientador)
Universidade Federal do Ceará - UFC
_________________________________________________ Prof. Dr. Carlos César Sousa Cintra
Universidade Federal do Ceará - UFC
_________________________________________________ Prof. Me. Ivo César Barreto de Carvalho
Meus agradecimentos são dirigidos a todos aqueles que colaboraram, direta
ou indiretamente, para a conclusão deste trabalho e também para minha formação
acadêmica. Identificar a parcela de participação de cada um é tarefa difícil, por isso
buscarei agradecer, pelo menos, àqueles que estiveram mais próximos de mim nos
últimos anos:
– Aos professores desta Universidade, que contribuíram com seus ensinamentos;
– Aos professores Hugo de Brito Machado Segundo, Carlos César Sousa Cintra e Ivo César Barreto de Carvalho. O primeiro por ter aceitado meu convite para
orientar este trabalho, papel que exerceu com muita paciência, dedicação e espírito
crítico, o qual espero, pelo menos em parte, ter adquirido. Os demais por aceitarem
de bom grado o meu convite para a composição da Banca Avaliadora, prestando
relevante contribuição crítica com suas experiências e conhecimentos jurídicos, mais
amplos que os meus;
– Aos colegas da Faculdade, pelo companheirismo, pela disposição em compartilhar conhecimento e pelos trabalhos que desenvolvemos, com destaque
para os amigos: Airton, Emanoel, Erick e Igor;
– Aos colegas do trabalho, que sempre me deram apoio nos momentos mais críticos da Faculdade, de tal maneira que consegui conciliar a Graduação com
minha atividade profissional;
– À família, que me apoiou bastante na decisão de me mudar para Fortaleza e de começar uma nova Graduação, especialmente aos meus pais, Jailson e
Fátima, e aos meus irmãos, Augusto, Flávia e Raphael; e
– A Fabiana, minha esposa, que, apesar da distância física que nos separa hoje, é a pessoa que está mais próxima de mim, por ser minha melhor amiga, minha
Esta monografia analisa a constitucionalidade da Lei Complementar nº 24/1975, no tocante à exigência de unanimidade, no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária, para a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação). O rigor dessa exigência, na prática, inviabiliza o processo de concessão dos incentivos, pois a totalidade dos votos dificilmente é alcançada. Em regra, um incentivo fiscal concedido por um ente da federação sempre traz prejuízo a outro, que alega, a seu favor, ofensa à competitividade interestadual. Todavia, a vedação a esses benefícios implica em subtração de importante instrumento de estímulo ao desenvolvimento dos entes mais pobres, haja vista seu uso como atrativo do capital privado para o estabelecimento de empreendimentos que promovam a economia da região. No que concerne à validade da norma, o quorum de unanimidade afronta os Princípios Democrático e Federativo. Nem mesmo a aprovação de emenda constitucional requer unanimidade de consenso, mas tão somente maioria qualificada. Ademais, com fundamento no Princípio da Homogeneidade, privilegia-se a unanimidade em detrimento do dever de compreender as razões alheias que informam o federalismo cooperativo. Desta feita, esta pesquisa, através de revisão literária das correntes mais tradicionais e vanguardistas, tem como objetivo contribuir para o debate acadêmico do tema. Seu posicionamento é contrário à exigência de unanimidade, sugerindo, ao final, um quorum condizente com a atual ordem constitucional. Aspectos doutrinários e jurisprudenciais relacionados ao assunto serão considerados no decorrer da pesquisa, assim como as iniciativas legislativas acerca do tema que estão em tramitação no Congresso Nacional.
This work examines the constitutionality of Complementary Law No. 24/1975, regarding the requirement of unanimity in the Conselho Nacional de Política Fazendária, for granting exemptions, incentives and tax benefits related to ICMS (Tax on the Circulation of Supply of goods and Services on Interstate and Intermunicipal Transportation and Communication). The strictness of this requirement in practice undermines the process of granting incentives, because the total number of votes is hardly achieved. As a rule, a tax incentive granted by an entity of the federation always brings harm to others, which argues in its favor offense to interstate competitiveness. However, the prohibition to these benefits involves subtracting important tool to encourage the development of less developed ones, considering its use as an attraction of private capital for the establishment of projects that promote the region's economy. Regarding the validity of the rule, the quorum unanimously shame the Democratic Federative Principle. Not even the approval of constitutional amendment requires a unanimous consensus, but only a qualified majority. Moreover, based on the Principle of Homogeneity, focus is unanimity at the expense of duty to understand the reasons beyond that inform the cooperative federalism. This research, through a literature review of traditional and innovator currents, aims to contribute to the academic debate on the subject. His position is contrary to the requirement of unanimity, suggesting, at the end, a quorum consistent with the current constitutional order. Doctrinal and jurisprudential aspects related to the subject will be considered during the research, as well as legislative initiatives on the subject that are pending in Congress.
INTRODUÇÃO... 9
1 FEDERALISMO FISCAL E DEMOCRACIA...13
1.1 Considerações Gerais sobre Federalismo...13
1.2 A Atribuição de Competência Tributária aos Estados como Forma de Promoção do Federalismo Cooperativo...16
1.3 Federalismo Fiscal no Brasil...20
1.4 O Princípio de Maioria do Regime Democrático...22
2 A GUERRA FISCAL DAS DESONERAÇÕES DO ICMS...25
2.1 A Concessão de Benefícios Fiscais do ICMS como Fator de Atração do Capital Privado...25
2.2 A Desconcentração Econômica através da Concessão de Benefícios Fiscais do ICMS... 26
2.3 A Ausência de Políticas de Desenvolvimentos e a Impunidade como Fatores de Estímulo à Guerra Fiscal...29
2.4 Guerra Fiscal das Desonerações do ICMS: Enfoque Atual...31
2.5 A Concessão de Benefícios Fiscais na Visão do Supremo Tribunal Federal 33 3 A EXIGÊNCIA DE UNANIMIDADE DE VOTOS PARA A CONCESSÃO DE DESONERAÇÕES DO ICMS E DEMAIS ASPECTOS CONTROVERSOS DA LEI COMPLEMENTAR Nº 24 de 1975...41
3.1 A Violação do Princípio da Reserva Legal...41
3.2 A violação dos Princípios da Não Cumulatividade e da Autonomia Estadual ... 45
3.3 A Contradição entre a Exigência de Unanimidade e os Princípios Democrático e Federativo...47
3.4 As Propostas Legislativas de Alteração da Lei Complementar nº 24/75...52
3.5 Crítica aos Argumentos Favoráveis à Exigência de Unanimidade...57
CONCLUSÃO... 64
REFERÊNCIAS... 69
ANEXO I... 75
INTRODUÇÃO
Em relação ao ICMS – Imposto sobre Operações relativas à Circulação de
Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal
e de Comunicação –, a Constituição Federal de 1988 estabelece, no art. 155, §2º, XII, “g”,
que cabe à lei complementar: “regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e
do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e
revogados”.
Como não foi editada essa lei na vigência da atual Constituição, o Supremo
Tribunal Federal tem entendido que a matéria continua regulada pela Lei Complementar
nº 24, de 7 de janeiro de 1975 (anexo I), cuja recepção foi reconhecida pelo art. 34, §8º,
do ADCT. Diz a ementa da lei que ela “dispõe sobre os convênios para a concessão de
isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, e dá outras
providências”.
Todavia, a compatibilização da norma com a Constituição envolve dificuldades
jurídicas e práticas, pois há dispositivos que atentam contra os princípios constitucionais e
interferem no equilíbrio da Federação.
Um dos pontos mais controvertidos desse diploma legal é o art. 2º, §2º, parte
inicial, que estabelece que “A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão
unânime dos Estados representados; […]”. Essas decisões são tomadas no âmbito do
Confaz – Conselho Nacional de Política Fazendária –, constituído pelos Secretários de
Fazenda, Finanças ou Tributação de cada Estado e do Distrito Federal e pelo Ministro de
Estado da Fazenda. O Confaz é um órgão deliberativo com a missão de promover o
aperfeiçoamento do federalismo fiscal e a harmonização tributária na Federação.
O ponto central da controvérsia é que, como a lei exige a unanimidade de
aprovação dos Estados, quorum difícil de ser alcançado, a maior parte das propostas de
concessão de benefícios do ICMS é denegada. Afinal, um só ente federado tem o poder
de inviabilizar o que os outros vinte e seis deliberaram. Mesmo o Estado cujos
representantes não tenham comparecido à reunião de celebração dos convênios poderá
vetar o resultado, se o fizer no prazo de 15 dias contados da publicação dos mesmos, nos
A consequência é que os Estados, especialmente os menos desenvolvidos,
perdem a oportunidade de utilizar mecanismos desonerativos do ICMS, que servem de
grande estímulo para que a iniciativa privada venha a fixar parques industriais em seus
territórios, gerando empregos, movimentando a economia e aumentando a arrecadação
tributária, indiretamente. Esses instrumentos são fundamentais na concretização do
objetivo fundamental da República de reduzir as desigualdades regionais e sociais, que é
também Princípio da Ordem Econômica (arts. 3º, III; e 170, VII, da Constituição Federal).
A necessidade dos Estados em instituir benefícios fiscais do ICMS ganha cada
vez mais importância em razão da omissão da União na redução dessas desigualdades
regionais. Desde 2001, não existe mais um programa nacional eficiente de
desenvolvimento regional, quando foram extintas a Superintendência de Desenvolvimento
da Amazônia (Sudam), a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e
a Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste (Sudeco). Não obstante a
recriação dessas autarquias, em 2007 e em 2009, o fato é que elas não possuem o
mesmo desempenho das suas antecessoras, carecendo ainda de infraestrutura e de
corpo técnico suficiente.
Aqueles que denegam a concessão dos incentivos do ICMS, os entes mais
desenvolvidos, alegam, a seu favor, a necessidade de manutenção da competitividade
interestadual e a preservação da Federação, pelo Princípio do Tratamento Igualitário.
Afinal, os incentivos têm a capacidade de proporcionar aos Estados desfavorecidos uma
posição vantajosa na disputa pela atração do capital privado. Os entes que não possuem
o benefício perdem a oportunidade de receber empreendimentos, que trariam consigo
empregos e aumento da arrecadação tributária.
O poder de veto dos Estados mais ricos é, muitas vezes, conduzido pelo
egoísmo, haja vista já possuírem um amplo parque industrial e uma arrecadação tributária
muito maior do que a dos entes menos desenvolvidos. Estes entes são pouco atrativos
para o capital privado por uma série de fatores, entre eles: a localização geográfica, a
falta de infraestrutura, a distância da mão de obra especializada, do mercado consumidor
e dos recursos naturais. Tendo em vista essas deficiências, é certo que a concessão de
incentivos fiscais não gera um desequilíbrio na competição interestadual, mas reequilibra
as forças dos entes que participam dessa competição.
Diante da ineficácia das deliberações do Confaz e premidos pela necessidade de
especialmente os das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país, passam a
desobedecer a essas deliberações. Ignoram qualquer negativa do Conselho e concedem,
através de lei própria, os incentivos à revelia dos demais entes. Estes reclamam a
aplicação das sanções previstas na Lei Complementar nº 24/75, mas o Poder Público tem
atuado com ineficácia nesse sentido. O resultado, na atualidade, é que muitos Estados
agem sem obediência a qualquer regra, fomentando a famigerada guerra fiscal.
A insegurança jurídica é outro aspecto relevante nesse cenário, porquanto os
contribuintes que observam a legislação estadual podem ficar sujeitos à cobrança dos
valores já dispensados pelo Estado de origem, caso o Poder Judiciário venha a
determinar a inconstitucionalidade das leis concessivas de isenções. Mesmo os
adquirentes das mercadorias podem ter glosados os respectivos créditos de ICMS nessa
situação.
O Poder Legislativo vem mobilizado-se na solução desse problema. Atualmente,
tramitam no Congresso Nacional projetos de alteração da Lei Complementar nº 24/75, de
criação de lei complementar que a substitua e de criação de lei que estabeleça
mecanismos simplificados de remissão de créditos concedidos à revelia da aprovação dos
demais entes1. Entre os principais pontos das propostas está a mudança do quorum unânime para o de maioria absoluta ou de maioria qualificada.
Considerando todos os problemas apresentados, percebe-se que o tema tem
relevância nacional. Nesse contexto, esta pesquisa terá como principal objetivo indicar
fundamentos que comprovem a inconstitucionalidade desse quorum estabelecido pela Lei
Complementar nº 24/75, por afronta aos Princípios Democrático e Federativo (art. 1º da
Constituição Federal).
Outros pontos controversos da lei também serão apresentados com o propósito
de fortalecer as alegações finais que serão apresentadas, entre eles: a falta de exigência
de lei que atribua eficácia ao convênio celebrado e as violações das sanções cumulativas.
A partir das opiniões de autores renomados na área jurídica, buscar-se-á
contribuir para o debate acadêmico do tema, considerando, inclusive, os argumentos
favoráveis ao quorum unânime estabelecido. O confronto das opiniões pesquisadas é um
trabalho que, aparentemente, ainda não foi realizado.
1Na Câmara dos Deputados, tramita o PLP nº 85/2011. No Senado Federal, tramitam o PLS nº 240/2006; o
Antes de tratar da inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 24/75, é
essencial discorrer acerca de “Federalismo Fiscal e Democracia”, tema do primeiro
capítulo desta monografia. O segundo capítulo apresentará a “Guerra Fiscal das
Desonerações do ICMS”. O terceiro capítulo tratará do tema principal deste trabalho, que
será a “A Exigência de Unanimidade de Votos para a Concessão de Desonerações do
ICMS e Demais Aspectos Controversos da Lei Complementar nº 24 de 1975”. Por fim,
será feita uma conclusão acerca do tema considerando os principais aspectos
1 FEDERALISMO FISCAL E DEMOCRACIA
Neste capítulo, serão apresentadas considerações gerais sobre a Forma de
Estado Federativo, o Federalismo Cooperativo, o Federalismo Fiscal Brasileiro e o
Princípio da Maioria na Democracia.
Esses conceitos são importantes para a argumentação da inconstitucionalidade
da Lei Complementar nº 24/75, tendo em vista que, como será demonstrado, ela atenta
contra os Princípios Democrático e Federativo e a autonomia dos entes federados.
1.1 Considerações Gerais sobre Federalismo
O Estado unitário é uma Forma de Estado que teve surgimento na Idade Média e
caracteriza-se pela existência de um único centro de poder com capacidade de inovar no
ordenamento jurídico, ou seja, editar as leis. Todavia, isso não exclui a possibilidade de
existirem outros centros de poder, desde que sigam e apliquem as determinações do
poder central (ABRANTES, 2006, p. 2).
O Estado federado é o contraponto do Estado unitário, pois visa a afastar a
possibilidade do uso autoritário e centralizador do poder político.
A Federação teve origem nos Estados Unidos da América, quando as treze
colônias inglesas da América do Norte declararam-se independentes, dando origem a
Estados unitários que se reuniram em uma Confederação. Saliente-se que ainda não se
tratava de uma Federação, mas apenas de seu embrião. Na Confederação, cada unidade
mantinha sua soberania, não existindo uma coordenação supranacional com poder de
coagir os entes integrantes.
Leonardo Militão Abrantes (2006, p. 3) expressa bem a preocupação dos
convencionais americanos na época da opção pela Confederação:
Com efeito, motivados pelo medo de perder o controle dos governantes regionais,
os convencionais iniciaram uma reflexão sobre a Confederação.
Nesse diapasão, a Federação surge como solução. Essa nova Forma de Estado
baseia-se na divisão do poder político em diferentes esferas, os entes federados, que
preservam sua autonomia, mas abrem mão da sua soberania em favor de um poder
central, que atuará em benefício de todos os entes.
Antes de prosseguir no tema, cabe aqui fazer uma distinção entre soberania e
autonomia. Somente o Estado federal será soberano. Soberania vem do latim suprema
potestas, que se traduz como o poder supremo do Estado na ordem política,
administrativa e financeira. Roque Antônio Carrazza (2008, p. 127-128) professa que:
Tem soberania quem possui o poder supremo, absoluto e incontrastável, que não reconhece, acima de si, nenhum outro poder. […] A soberania, como qualidade jurídica do imperium, é apanágio exclusivo do Estado. Se ele não tivesse um efetivo predomínio sobre as pessoas que o compõem, deixaria de ser Estado.
Já o termo autonomia, etimologicamente, origina-se do grego autos (por si só),
mais nómos (lei, regra). Nas palavras de Raul Machado Horta (2010, p. 332)
A autonomia é, portanto, a revelação de capacidade para expedir normas que organizam, preenchem e desenvolvem o ordenamento jurídico dos entes públicos. Essas normas variam na qualidade, na quantidade, na hierarquia e podem ser, materialmente, normas estatutárias, normas legislativas e normas constitucionais, segundo a estrutura e as peculiaridades da ordem jurídica.
A autonomia é a qualidade de um povo de estabelecer com liberdade suas
próprias leis ou normas, dentro de seus limites territoriais, assim como de se gerirem.
Internamente, cada ente federado terá autonomia na gestão de suas competências, não
sendo permitidas pressões do poder central, exceto em casos extremos, previstos na
Constituição Federal.
No momento da formação do federalismo, o poder político pode caminhar em
duas direções: a centrípeta e a centrífuga. No federalismo americano houve o movimento
soberania ao ingressar no novo Estado, pois renunciaram parte do seu poder político em
favor de um poder central. A outra possibilidade é o sentido centrífugo, através do qual o
poder originariamente centralizado é repartido com os novos poderes regionais. Foi o
caso do Brasil, como será visto adiante.
Fernando Luiz Abrucio e Valeriano Mendes Ferreira Costa (1998, p. 19)
esclarecem que:
O cerne do federalismo é desenhar um arranjo institucional que seja capaz de solucionar os conflitos entre os níveis de governo sem, contudo, destruir a autonomia de cada ente. Ressalta-se que a idéia não é a extinção dos conflitos, mas estruturar meios pré-fixados para sua solução. Tal arranjo, oriundo da aliança federativa, é o chamado pacto federativo, esculpido na Carta Política de um Estado federal. Engloba a forma de atuação dos centros de Poder, bem como as regras de relacionamento entre os mesmos.
Hans Kelsen (KELSEN, 1995, p. 451) também observa que os Estados unitários,
quando divididos em províncias autônomas, diferenciam-se dos federais pelo grau de
descentralização. Essas províncias possuem um espaço de atuação, mas sem a
liberdade, que os entes federados possuem, de tomar decisões políticas.
No Estado federal há duas ordens jurídicas: a central, válida por todo o território
nacional, e as locais, válidas somente no território dos Estados. Na Federação, é a
Constituição Federal que estabelece a repartição de competências entre a União, poder
central, e os Estados, poderes regionais.
A teoria federalista, desenvolvida e aplicada com sucesso nas antigas colônias
britânicas da América do Norte, tornou-se a fonte de inspiração da classe política
dominante do Brasil, que estava insatisfeita com o Estado unitário. Enfatiza Rosa Maria
Godoy Silveira (1978, p. 59) que, naquele contexto:
Nas discussões sobre o federalismo no Brasil, os clamores contra a centralização escondiam verdadeiramente clamores contra um Estado que açambarcava todas as esferas – econômica, social, política, administrativa – da vida social, contrariando determinados interesses dos setores mais dinâmicos da sociedade, desejosos de se expandir.
O federalismo brasileiro surgiu do movimento centrífugo, com a Constituição de
na disputa pela autonomia dos poderes regionais. Enquanto que o federalismo americano
surgiu com o sentido de agregar Estados soberanos, o federalismo brasileiro surgiu de
uma desagregação.
Raul Machado Horta (2010, p. 420-421) apresenta diversos elementos do Estado
Federal brasileiro a partir da Constituição de 1988. Entre eles, merecem destaque: a
indissolubilidade do vínculo federativo entre a União, os Estados, os Municípios e o
Distrito Federal; as vedações constitucionais da União, Estado, Distrito Federal e
Municípios; a soberania da União e autonomia dos Estados, Distrito Federal e Municípios;
a repartição de competências; o poder e competência tributária da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, observada a particularização dos impostos atribuídos a
cada pessoa de direito público interno; e a repartição das receitas tributárias, objetivando
promover o equilíbrio socioeconômico entre Estados e entre Municípios.
Segundo Paulo Bonavides (2010, p. 322), o Brasil ainda possui uma característica
própria de federalismo tridimensional, porque, além da União e dos Estados, há os
Municípios, que são entes com status de membros da Federação, possuindo, inclusive,
competências estabelecidas pela Constituição.
1.2 A Atribuição de Competência Tributária aos Estados como Forma de Promoção do Federalismo Cooperativo
Raul Machado Horta (1964, p. 49) afirma que: “a autonomia das entidades
federativas pressupõe repartição de competências para o exercício e desenvolvimento de
sua atividade normativa”.
José Afonso da Silva (2010, p. 479) define competência como:
A faculdade juridicamente atribuída a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. Competências são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções.
Nos primórdios da Federação, prevalecia uma rígida repartição das competências
Exemplos de países que seguiram esse modelo foram os Estados Unidos, até a segunda
década do século XX, e o Brasil, com a Constituição de 1891 (RIBEIRO, 2012, p. 134).
O federalismo dual segue um modelo horizontal de repartição de competências
que, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2007, p. 155), consiste em:
Separar, radicalmente, a competência dos entes federativos, por meio da atribuição a cada um deles de uma 'área' própria, consistente em toda uma matéria (do geral ao particular ou específico), a ele privativa, a ele reservada, com exclusão absoluta da participação, no seu exercício, por parte de outro ente.
O Brasil, na seara tributária, também adotou esse modelo. No entanto, isso
resultou em um aumento das desigualdades regionais, como observa Ferreira Filho
(2007, p. 134):
Os Estados mais ricos, como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, prosperaram sob as novas instituições. Sua arrecadação tributária permitia atender convenientemente às necessidades públicas e esse entendimento favorecia maior prosperidade ainda. Os Estados mais pobres, abandonados a si mesmos, não conseguiam atender às necessidades elementares.
Essa divisão extrema de competências é útil em determinadas matérias, mas, em
outras, pode levar a sociedade a uma grave crise. Isso porque alguns Estados não têm o
mesmo potencial de crescimento que outros, seja por fatores geográficos ou históricos. A
atratividade visivelmente menor desses entes acarreta em um ônus que não pode ser
ignorado pelos demais entes, pois, como será visto adiante, os prejuízos de uns podem
tornar-se o prejuízo de todos.
A experiência dos Estados Unidos merece, mais uma vez, ser referenciada. A
crise de 1929 motivou o Presidente Franklin Roosevelt a implantar a política do New Deal,
que promoveu diversas mudanças na economia do país. Naquele contexto, havia a
necessidade de uma maior intervenção do poder central no domínio econômico, com a
finalidade de garantir o modelo do Estado de bem-estar social, a partir de uma livre
cooperação entre os entes. Dessa necessidade surgiu o modelo do federalismo
cooperativo, que tem como principal característica o dever das partes de buscar a
As funções dos órgão centrais da federação (órgãos federais) e as dos órgãos dos Estados membros completam-se reciprocamente, formando uma unidade de acção em termos de Estado global. A forma política do Estado federal é um corpo racionalmente subdividido cujas partes se coordenam no sentido de desenvolverem permanente eficácia comum. […].
Como esquema cooperativo, em sentido restrito, pode designar-se aquele que acarreta uma “obrigação ao entendimento”, quer dizer, o dever das partes no sentido de se harmonizarem entre elas e, caso necessário, aceitarem compromissos (grifo nosso).
Carlos Roberto Jamil Cury (2006, p. 115) também apresenta esse conceito:
O federalismo de cooperação busca um equilíbrio de poderes entre a União e os Estados membros, estabelecendo laço de colaboração na distribuição das múltiplas competências por meio de atividades planejadas e articuladas entre si, objetivando fins comuns.
O federalismo cooperativo veio com a intenção de atender às demandas sociais,
orientando-se pela possibilidade de desenvolvimento de ações compartilhadas entre os
níveis de governo. Nessa relação, é possível o estabelecimento de objetivos comuns,
considerando as distintas realidades que envolvem o território e a população de cada ente
federado.
O federalismo cooperativo foi adotado no Brasil a partir da Revolução de 1930.
Com a Constituição de 1937, houve um retrocesso: o poder central usurpou a autonomia
dos Estados, dando origem ao denominado federalismo orgânico. A Constituição de 1946
chegou a restabelecer esse modelo cooperativo, mas a Constituição de 1967 voltou a
apresentar essas características centralizadoras, inclusive após a redação da Emenda
Constitucional nº 01/1969, que alterou profundamente a Carta anterior (RIBEIRO, 2012, p.
135).
A Constituição Federal de 1988 promoveu o retorno ao federalismo cooperativo.
Isso está bastante claro em diversos dos seus artigos, entre eles: o art. 23, com a
definição da competência comum, entre a União, os Estados e os Municípios; o art. 24,
com a existência de competência concorrente entre a União e os Estados; os arts. 157 a
160, que estabelecem a obrigação de repartir as receitas tributárias dos impostos federais
Inspirado mais uma vez no modelo norte-americano, o Brasil percebeu que a
melhor solução para a harmonia da Federação está na promoção de ações de
cooperação, coordenadas pela própria Constituição.
Em um contexto de cooperação, é relevante que os entes federados possuam a
devida autonomia para exercer as competências conferidas pela Constituição. Alexandre
de Moraes (2012, p. 244-247) define três elementos que caracterizam a autonomia dos
entes da Federação:
a) auto-organização: poder para elaborar sua própria constituição e legislação, a fim de exercer a competência que lhe foi definida pela Constituição Federal. Os limites à auto-organização são os próprios princípios estabelecidos pela Constituição.
b) autogoverno: possibilidade de os entes federados escolherem seus próprios governantes sem qualquer vinculação com o poder central.
c) autoadministração: é o livre exercício das competências administrativas, tributárias e legislativas deferidas pela Constituição Federal (grifo nosso).
A descentralização territorial do poder está intrinsecamente relacionada à
autonomia, pois permite que os Estados sejam capazes de definir quais são suas próprias
prioridades, sem depender totalmente das politicas da União (CARRAZZA, 2008, p.
135-136).
No exercício da autonomia, o ente federado, obviamente, precisa de recursos
financeiros para poder concretizar seus objetivos. Todavia, a simples atribuição de
recursos aos Estados não é suficiente para garantir sua autoadministração. O exercício
das competências materiais conferidas a eles não pode depender exclusivamente do
exercício da competência tributária da União. Um mínimo de competências tributárias
próprias é necessário para garantir a viabilidade da Federação (RIBEIRO, 2012, p.
136-137). A centralização da competência tributária inibe o federalismo e identifica-se com o
Estado unitário (MESQUITA, 2012, p. 203).
Ricardo Lodi Ribeiro (2012, p. 138) exemplifica muito bem esse problema,
admitindo, hipoteticamente, que se a maior parte da arrecadação dos Estados
dependesse de tributos federais, a concessão de benefícios fiscais pela União, atendendo
a interesses que o Governo Federal considera prioritários, como o incentivo às
exportações, poderia obstar os Estados a atingirem suas próprias prioridades, como o
Portanto, somente por meio do exercício de sua própria competência tributária, os
Estados podem preservar sua autonomia em relação à União. É essa competência que
diferencia a repartição das receitas tributárias da Federação daquela encontrada nos
Estados unitários descentralizados. Entretanto, mesmo nestes, há uma tendência à
descentralização, como ocorre em Portugal, na Espanha e na Itália, com a criação de
regiões autônomas que possuem competências próprias e até, em muitos casos,
impostos próprios (RIBEIRO, 2012, p. 139).
Possuindo competência para tributar, é natural que os Estados também possuam
para não tributar. Essa competência negativa é importante para a criação de
desonerações fiscais, que servem na promoção de políticas de desenvolvimento social e
econômico, na medida em que atraem agentes estimuladores para o território do Estado,
como será visto mais adiante.
1.3 Federalismo Fiscal no Brasil
As competências tributárias devem ser definidas de modo a maximizar o
bem-estar da sociedade. Elas são determinadas pelas normas constitucionais, que, como é
pacífico, são superiores às de nível legal, que preveem as obrigações tributárias
concretas (CARRAZZA, 2008, p. 489). Dessa forma, não podem ser exercidas livremente
por cada ente federado, evitando, assim, uma série de efeitos negativos de impostos
ineficientes e injustos.
No Brasil, prevalece a rígida distribuição das competências tributárias entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Além de estabelecer a divisão de
competências, a Constituição Federal também determina a repartição do produto da
arrecadação de parte dos impostos do ente maior para o menor, ou seja, da União para
os Estados e dos Estados para os Municípios. Os montantes recebidos pelos entes
federados, nesta condição, são as chamadas receitas derivadas.
Todavia, a distribuição dessas receitas vem sendo prejudicada pela contínua
interferência da União, ora através da suspensão dos repasses constitucionais, ora
mediante a concessão de isenções dos impostos partilhados com os Estados e com os
Diferentemente dessas receitas derivadas, que são repassadas pela União, as
próprias são aquelas instituídas e administradas diretamente pelos Estados e pelos
Municípios. Estas têm a capacidade de evitar interferências que ocorrem do ente maior
para o menor. Logo, sua manutenção deve ser assegurada, sob o risco de
comprometimento da autonomia financeira dos entes federados. Segundo Leonardo
Militão Abrantes (2006, p.4-5):
Dizer federalismo significa reconhecer a autonomia financeira, administrativa e de governo dos entes federados. Não automatiza a noção de desconcentração do Poder, pois o nível desta varia de Estado para Estado, independente de seu tipo, Federal ou Unitário.
A autonomia financeira se caracteriza pela atribuição de receitas próprias para os entes federados de maneira independente, possibilitando o exercício de seu Poder político na medida em que lhe é determinado pela Constituição.
Na seara estadual, o ICMS é o maior exemplo de imposto que proporciona receita
própria, em virtude do seu elevado poder de arrecadação, e, por isso, é um instrumento
fundamental para o exercício da autonomia financeira dos Estados.
Nesse contexto, pode-se definir o federalismo fiscal, que é a rigorosa alocação de
recursos nacionais tanto para o poder central quanto para os demais entes federados
(MESQUITA, 2012, p. 208). Há uma preocupação em harmonizar essa distribuição, pela
delimitação das competências tributárias e pela repartição de parte do produto da
arrecadação dos entes maiores para os menores. Com o federalismo fiscal, fortalecem-se
os governos locais, menos poderosos, mas estrategicamente relevantes pela sua maior
proximidade da população, que pode fiscalizar de perto sua atuação. Nessa rigorosa
alocação, a Constituição tem papel fundamental na delimitação das competências desses
entes para a obtenção de suas próprias receitas, garantindo os recursos necessários ao
exercício da autonomia financeira.
A organização racional dos sistemas fiscais é tarefa árdua, sendo ainda mais
complexa nos Estados Federados, como observa Aliomar Baleeiro (2002, p. 234):
O problema avulta nos países federais, porque neles três competências diversas devem recorrer às mesmas fontes. Há que as discriminar e partilhá-las entre União, Estados ou Províncias, e Municípios ou poderes locais (grifo nosso).
Apresentados os elementos do federalismo fiscal, resta fazer considerações
importantes a respeito do regime democrático.
1.4 O Princípio de Maioria do Regime Democrático
Antes de tratar do regime democrático, é pertinente analisar o processo de
modificação da ordem social. Caio Gracco Pinheiro Dias (2008, p. 340) define bem a
ordem social:
[…] é um arranjo das condutas dos indivíduos de um grupo social, uma característica de suas relações mútuas, que são ordenadas de acordo com critérios – normas – teleologicamente orientados: diz-se que há ordem na sociedade quando as relações entre os indivíduos se dão conforme expectativas normativamente selecionadas.
Em geral, um indivíduo nasce em uma comunidade constituída por uma ordem
social preexistente. Essa ordem social, quando criada, assegura aos seus membros um
certo grau de liberdade, a liberdade política e não a natural, típica da anarquia.
Segundo Kelsen (2005, p. 408), “a liberdade política é a autodeterminação do
indivíduo por meio da participação na criação da ordem social”. A autodeterminação é “a
faculdade de um povo determinar pelo exercício do voto o seu próprio destino político”
(AUTODETERMINAÇÃO, 2009). Saliente-se que o sujeito participa da criação da ordem
social, e não a determina, pois ele só pode modificá-la se as vontades dos demais
sujeitos integrantes desta ordem forem iguais à sua.
Se todas as vontades devem ser iguais para a criação ou modificação da ordem
social, então essa ordem pode ser criada ou modificada apenas pela decisão unânime de
todos os seus sujeitos. Logo, onde houver a autodeterminação na sua forma pura, não
Kelsen (2005, p. 409) percebeu logo a incompatibilidade de uma ordem social
genuína com grau máximo de autodeterminação política, chegando a afirmar que tal
configuração não se distingue de um estado de anarquia:
Na realidade social, o grau mais alto de autodeterminação política, isto é, um estado onde não é possível nenhum conflito entre a ordem social e o indivíduo, é praticamente indistinguível de um estado de anarquia. Uma ordem normativa que regula a conduta recíproca de indivíduos é completamente supérflua se todo o conflito entre a ordem e seus sujeitos estiver excluído a priori.
Quando retira o seu consentimento, qualquer indivíduo pode colocar-se fora da
organização social. Portanto, para que a ordem social, como o Estado, seja possível e
mantenha-se estável, é inegável que deva existir uma limitação à autodeterminação dos
indivíduos.
A solução dada pelo próprio Kelsen é a transformação do Princípio de
Autodeterminação na regra de maioria. Segundo essa regra, o número de sujeitos que
aprovam a ordem social será sempre maior que o número dos que a desaprovam, mas
permanecem obrigados pela ordem. Quando o número dos que desaprovam a ordem ou
uma de suas normas tornar-se maior que o número dos que a aprovam, será possível a
mudança. A ideia é de que a ordem social deve estar em concordância com o maior
número possível de sujeitos e em discordância com o menor número possível de sujeitos.
É nesse Princípio de Maioria que se fundamenta a democracia.
Como a liberdade política significa o acordo entre a vontade individual e a
coletiva, o Princípio de Maioria assegura o mais alto grau de liberdade política possível
dentro da sociedade. Considerando que a exigência de unanimidade de pensamentos não
tem serventia, o Princípio de Maioria é facilmente assimilável pela população como uma
solução viável para determinar as regras que balizam sua organização social.
Se a opção fosse por uma maioria qualificada, como dois terços ou três quartos,
então uma minoria de indivíduos poderia impedir uma modificação na ordem social.
Portanto, não é difícil imaginar que essa ordem poderia estar em discordância com um
número de sujeitos maior do que o número daqueles que estão em concordância.
Não cabe o argumento de que o direito da minoria será sempre repudiado. Seria
vontade da maioria. Logo, se a minoria não for eliminada, sempre existe uma
possibilidade de que ela influencie a vontade da maioria.
Em uma democracia, a vontade da sociedade sempre deve ser manifestada
através da discussão contínua entre maioria e minoria, não só no parlamento, mas
também em outros veículos de opinião, como jornais, livros e debates públicos. É
essencial a manifestação da opinião pública, ao mesmo tempo em que deve ser
assegurada a liberdade de expressão. Afinal, o verbete democracia vem do grego
demokratía e significa governo do povo, sistema em que cada cidadão participa do
2 A GUERRA FISCAL DAS DESONERAÇÕES DO ICMS
Antes de tratar da guerra fiscal, este capítulo apresentará os benefícios que as
concessões de desonerações do ICMS podem trazer para os Estados que delas fazem
uso. A seguir, serão apresentadas as influências das concessões desreguladas dessas
desonerações na configuração da guerra fiscal e quais as consequências dessa disputa
para a Federação. Por fim, a visão do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema será
considerada.
2.1 A Concessão de Benefícios Fiscais do ICMS como Fator de Atração do Capital Privado
A centralização da maior parte do produto da arrecadação tributária nas mãos da
União é um problema que remonta ao surgimento do Estado Democrático brasileiro. Na
época da elaboração da Constituição Federal de 1988, muitos Constituintes propuseram a
mudança total do Sistema Tributário e alguns projetos inovadores foram apresentados
(CARVALHO; SOARES, 2012, p. 20). Todavia, não houve rompimento com o modelo
anterior. A prova disso é que o Código Tributário Nacional ainda é o de 1966, assim como
a Lei Complementar nº 24, objeto deste trabalho, é de 1975 e continua a ser a
responsável pela regulação dos convênios do ICMS.
O resultado dessa inércia é que a União ainda detém a maior parte da
arrecadação, deixando os demais entes em uma situação de dependência financeira,
condição que dificulta a execução de políticas locais de desenvolvimento. Na ausência
dessas políticas locais, restam apenas os programas de redução das desigualdades
regionais a cargo da própria União, nem sempre conduzidos com a eficiência esperada.
No contexto brasileiro de federalismo cooperativo, conforme tratado no capítulo 1,
não pode prevalecer a postura paternalista de que somente à União é dado o poder de
elaborar medidas de combate às desigualdades, cabendo aos próprios Estados e
Municípios elaborarem iniciativas de promoção de seu desenvolvimento econômico e
Todavia, os Estados menos desenvolvidos não conseguem sobreviver de suas
próprias finanças e dos montantes repassados pela União, necessitando cada vez mais
de recursos. Essa necessidade reflete-se na constante busca desses entes por recursos
financeiros da iniciativa privada, capazes de custear obras de infraestrutura e de
desenvolver atividades que, indiretamente, contribuem com o bem-estar da sua
população e com o incremento das suas receitas (CARVALHO; SOARES, 2012, p. 20).
A concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais é um importante
instrumento utilizado pelos entes federados na atração do capital privado para seus
territórios, que promovem, indiretamente, a movimentação da economia, a geração de
empregos e o incremento da arrecadação tributária do local por meios indiretos. O ICMS,
o imposto com maior poder de arrecadação do país, de competência estadual, pode ser
utilizado como um meio de atração dos agentes econômicos, a partir do momento em que
esses agentes forem isentados do seu pagamento.
No capitalismo, as empresas tendem a fixar seus empreendimentos em locais
específicos, que atendem a uma série de critérios, dentre eles, a proximidade com o
mercado consumidor, as matérias-primas, a mão de obra especializada, os portos. Os
grandes centros econômicos do país já oferecem essas condições ao empreendedor, o
que concentra ainda mais a atividade econômica nesses locais. Essa concentração gera
um desequilíbrio econômico entre as regiões do país, sendo essencial a intervenção do
Poder Público no incentivo à descentralização.
Sob a ótica do federalismo cooperativo, esse papel não cabe somente à União,
mas também aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Todos têm o poder-dever
de atuar na promoção do desenvolvimento social e econômico de seus territórios, de
forma cooperativa, exercendo cada um sua competência tributária sem óbice ao exercício
desse direito pelos demais entes.
Nos últimos anos, a concessão de incentivos e benefícios fiscais proporcionou
considerável desconcentração econômica, com efeitos positivos no âmbito econômico e,
principalmente, no âmbito social.
A Consultoria “Rosemberg Consultores Associados” comprovou que, através dos
incentivos fiscais, houve a inclusão social de milhares de famílias beneficiadas pela
geração de empregos em áreas de difícil exploração econômica, devido à distância dos
centros consumidores. Também se reduziu o êxodo para as grandes cidades, criando-se
um movimento inverso de interiorização (ROSEMBERG CONSULTORES ASSOCIADOS,
2009, p. 14).
Os estudos demonstraram também que a supressão desses incentivos
prejudicaria sobremaneira as economias estaduais que deles necessitam, inibindo a
continuidade de empreendimentos produtivos. Os Estados perderiam receitas tributárias e
teriam de amparar as famílias que dependem da permanência das empresas para prover
seu sustento.
Além disso, muitos entes federados teriam que reparar os prejuízos decorrentes
da rescisão de contratos de instalação ou expansão de empreendimentos econômicos
firmados com a iniciativa privada e que tinham, como principal contrapartida, a
desoneração de impostos. Isso porque, em regra, tais incentivos não são concedidos
gratuitamente. Os Estados exigem, como contrapartida, investimentos, geração de
empregos, e uma série de outros requisitos, que são onerosos (MACHADO SEGUNDO,
2012, p. 176).
Um dos trechos do estudo da “Rosemberg Consultores Associados” encontra-se a
seguir (2009, 21):
Pode-se imaginar que, desprovidos de instrumentos de atratividade de novos investimentos, os Estados menos desenvolvidos da Nação, em função de processos históricos e condições de competitividade desfavoráveis, não só não atrairiam novos investimentos, mas, em médio prazo, perderiam os já instalados, que muito provavelmente decidiriam pela realocação das atividades, mais próximas aos grandes mercados consumidores, notadamente no Sudeste.
Nas atuais condições demográficas brasileiras, de fortes mudanças na pirâmide etária em todas as regiões, rápida urbanização e envelhecimento da população, poderia mesmo ser questionável a viabilidade de um movimento maciço de migração interna em direção aos pólos de desenvolvimento do Sul/Sudeste, como o do passado. Se isso se verificar, pode-se configurar um cenário de “pior dos mundos”: a conjugação de déficit de mão-de-obra nessas regiões e de desemprego nas demais [sic].
Como regra geral, prevaleceria o processo de concentração de renda, e de geração de empregos, já observado nos períodos de ausência total de instrumentos para a promoção do desenvolvimento regional. Voltaríamos, em espaço relativamente curto de tempo, à promoção da dualidade sócio-econômica crescente, fortalecendo a idéia de dois espaços, dois países, quem sabe duas nações (grifos nosso).
A Fundação Getúlio Vargas, no projeto denominado “Impactos Socioeconômicos
dos Incentivos Fiscais Estaduais”, fez também relevantes constatações. O estudo teve
como objetivo estimar os impactos socioeconômicos nacionais e regionais decorrentes da
implantação de projetos industriais viabilizados por incentivos fiscais estaduais. Os
impactos foram mensurados sobre variáveis, tais como: valor adicionado (PIB), emprego,
renda e arrecadação tributária.
Constatou-se que “os impactos indiretos e induzidos pelos projetos são muito
superiores aos impactos diretos” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2011, p.5-6). Isso
porque a perda de arrecadação dos entes foi suprida pelos benefícios advindos da
implantação do negócio. Esses benefícios não são só restritos geograficamente, “mas são
distribuídos de maneira difusa entre os Estados, na medida em que os mesmos
participam da cadeia produtiva da implantação e operação da planta” (Ibidem).
Há opositores que apresentam várias razões contrárias à concessão de
incentivos fiscais. Uma delas é o risco de abuso por parte das autoridades estaduais,
acarretando em prejuízo para as suas respectivas populações, que ficariam sem serviços
públicos essenciais em função das perdas permanentes de arrecadação (ROSEMBERG
CONSULTORES ASSOCIADOS, 2009, p. 8).
O fato é que a arrecadação tributária dos Estados que utilizaram o instrumento
cresceu de forma expressiva, em função do já citado impacto indireto da criação de
riqueza decorrente dos investimentos incentivados, que compensa o impacto, de curto
2.3 A Ausência de Políticas de Desenvolvimentos e a Impunidade como Fatores de Estímulo à Guerra Fiscal
A Constituição de 1967 não estabelecia limitações gravosas aos Estados e ao
Distrito Federal na concessão de desonerações do ICM, o antigo Imposto sobre
Circulação de Mercadorias. Era possível isentar do ICM as vendas a varejo dos gêneros
de primeira necessidade, não permitindo que estabelecessem diferença em função dos
que participam da operação (art. 24, §6º, da Constituição de 1967).
Foi nesse contexto que os entes federados começaram a conceder isenções e
benefícios fiscais, iniciando a concorrência nesse âmbito. Como resposta, a Emenda
Constitucional nº 01/1969 alterou o §6º do art. 232, que trata do mesmo assunto, passando a exigir convênios, nos termos de lei complementar, para a concessão dessas
isenções (MESQUITA, p. 225). A Lei Complementar nº 24/75 foi editada para regular essa
situação.
Carlos José Wanderley de Mesquita (2012, p .225) expõe o resultado da medida:
E o que se verificou realmente foi uma certa contenção na concessão de benefícios fiscais até o ano de 1988. É verdade que os Estados e o Distrito Federal observaram a LC 24/1975, até porque as sanções ali contidas são fortes, tais como a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal, além da exigibilidade do imposto devido e não pago.
É verdade, também, que nem todos os convênios eram respeitados. Com efeito, alguns eram transpostos para as legislações estaduais com incorreções ou com “interpretação própria”, mas o fato é que as concessões de incentivos fiscais poder-se-ia dizer que estavam sob controle (grifos nosso).
Com a Constituição 1988, observou-se que os Estados passaram a conceder
isenções e benefícios fiscais à margem do disposto na Lei Complementar nº 24/75. Isso
ocorreu não obstante o grande aumento de convênios celebrados sob a vigência da nova
Carta3. Cabe-se o questionamento: qual foi a razão dessa desobediência?
2 “§6º As isenções do impôsto sôbre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou
revogadas nos têrmos fixados em convênios, celebrados e ratificados pelos Estados, segundo o disposto em lei complementar.”
3 Desde a publicação da Lei Complementar nº 24/75 até 1988, ou seja, em 14 anos, foram celebrados 760
Como já tratada na Introdução deste trabalho, a dificuldade de alcançar o quorum
de unanimidade dos Estados exigido pela Lei Complementar nº 24/75, para a concessão
de incentivo fiscal do ICMS, é o principal motivo da desobediência. Afinal, é difícil para um
Estado pobre aceitar uma negativa de concessão quando há um investidor privado,
interessado em implantar uma unidade industrial relevante em seu território, só que sob a
condição de isenção do ICMS por uma determinada quantidade de anos. É mais difícil
ainda para o Estado aceitar essa decisão quando a União é omissa na sua obrigação de
reduzir as desigualdades regionais.
A aceitação das decisões do Confaz é cada vez mais improvável em um cenário
em que praticamente ninguém obedece à lei. Isso porque não há sanções administrativas
eficazes para o Poder Público concedente do benefício, configurando uma verdadeira
concorrência desleal.
É importante frisar também que, desde 2001, não existe mais um programa
nacional eficiente de desenvolvimento regional, quando foram extintas a Superintendência
de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), a Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste (Sudene) e a Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste (Sudeco).
Em 2007, foram recriadas a Sudam, com a Lei Complementar nº 124/07, e a
Sudene, com a Lei Complementar nº 125/07. A Sudeco foi recriada em 2009, com a Lei
Complementar nº 129/09. Todavia, essas novas autarquias não possuem o mesmo
tamanho e desempenho das antecessoras. É o caso, por exemplo, da nova Sudene, que,
segundo Beroaldo Maia Gomes (GOMES, 2007), engenheiro que fez parte do grupo de
técnicos que concebeu a nova autarquia, a estrutura nasceu com menos poder. Há muita
burocracia na organização de concurso público para o preenchimento de cargos e na
gestão da infraestrutura.
As sucessivas violações à lei geram um estado de anomia, de insegurança
jurídica, pois os contribuintes que observaram a legislação estadual podem ser cobrados
por valores dispensados pelo Estado de origem, se a lei concessiva do benefício for
declarada inconstitucional. Há a possibilidade, além disso, de os adquirentes das
mercadorias terem cancelados os créditos do ICMS referentes a elas.
2.4 Guerra Fiscal das Desonerações do ICMS: Enfoque Atual
Os incentivos fiscais têm o poder de atrair indústrias para um ente estatal,
gerando empregos e aumentando a arrecadação tributária indireta. Entretanto, os entes
que não fazem uso do incentivo perdem esse poder de atração. Contam, a seu favor, com
outros benefícios, tais como a proximidade do mercado consumidor, da mão de obra
especializada ou das vias de escoamento da produção. E é exatamente por possuírem
essa vantagem competitiva que essas unidades federadas não aceitam que as outras
façam uso de mecanismos desonerativos do ICMS, pois perderão a oportunidade de
receber novas indústrias, que irão para o ente que possuir o benefício, assim como
correrão o risco de perder as que ali já se encontram instaladas. Ademais, as empresas já
fixadas perdem competitividade para as que recebem o benefício fiscal, pois estas não
suportarão a mesma carga tributária daquelas.
É nesse contexto de disputa que nasce a famigerada guerra fiscal do ICMS. Ela
começa quando um ente estatal concede uma desoneração do imposto à revelia da
aprovação dos demais entes. Nos termos do art. 2º, §2º, da Lei Complementar nº 24/75,
essa concessão depende de convênio, aprovado em votação unânime. Como o quorum
de unanimidade é muito difícil de ser alcançado, os entes federados derrotados na
votação optam por desobedecer a lei, gerando a revolta dos demais.
A guerra fiscal acontece quando há um abuso no exercício da autonomia local de
um Estado, provocando prejuízos aos interesses de outros entes federados. Ela não se
caracteriza pela adoção de políticas de incentivo fiscal pelos Estados e Municípios, pois
isso é inerente ao federalismo. A guerra fiscal tem como pressuposto a violação do
princípio da conduta amistosa federativa, mediante ações abusivas ou ilegais, com o fito
de atrair empreendimentos que, sem essas práticas, seriam destinados a outro ente
(RIBEIRO, 2012, p. 141).
Os Estados prejudicados reclamam a aplicação das sanções previstas na lei
complementar, mas o Poder Público tem atuado com ineficácia nesse sentido. Como
resposta, alguns entes chegam a adotar posturas intransigentes diante da diminuição da
arrecadação, como a resistência à utilização de créditos do ICMS sobre bens ou
mercadorias advindos daquelas unidades federadas que concedem incentivos fiscais
No entendimento de Ricardo Varsano (1998, p. 6):
A guerra fiscal é, como o próprio nome indica, uma situação de conflito na Federação. O ente federado que ganha — quando de fato, existe algum ganho — impõe, na maioria dos casos, uma perda a algum ou a alguns dos demais, posto que a guerra raramente é um jogo de soma positiva. O federalismo, que é uma relação de cooperação entre as unidades de governo, é abalado. Também a Federação — cara aos brasileiros a ponto de a Constituição conter cláusula pétrea que impede sua abolição — perde.
Para Sérgio Prado (2000, p. 18):
A guerra fiscal é um processo de alteração na alocação de capacidade produtiva, emprego e receita fiscal entre unidades federadas, onde o conjunto do país perde, mas nada impede que alguns, individualmente, ganhem.
Para Carlos José Wanderley de Mesquita (2012, p .232), a guerra fiscal é:
[…] a disputa fiscal no contexto federativo, que se manifesta de forma conflituosa e desordenada, através da intensificação de práticas concorrenciais unilaterais e extremas entre os Estados da federação, no que diz respeito à gestão de suas políticas desenvolvimentistas, em flagrante desrespeito à ordem jurídica, decorrente da ausência de políticas de desenvolvimento regionais e nacionais, revelando, entretanto, seu aspecto perverso pelos resultados negativos gerados para toda a sociedade brasileira.
A guerra fiscal nasce da concorrência ilegal entre os Estados, degenerando a
Federação. Diante disso, qual seria a solução para acabar com essa “guerra”?
Há duas visões acerca do tema. Há aqueles que veem vantagem na disputa, pois,
na ausência de uma eficiente política nacional de desenvolvimento regional, os Estados
menos desenvolvidos contariam apenas com os incentivos fiscais do ICMS como
instrumento de aceleração do seu desenvolvimento. Ademais, esses incentivos também
servem para conter o crescimento do governo e da tributação, pois a concorrência entre
os entes federados desestimula o aumento dos impostos.
Por outro lado, há os que consideram a concessão unilateral de incentivos fiscais
um problema, pois haveria uma escalada de concessão de benefícios e, ao final, todos os
sistema tributário, geradoras de ineficiência. Por exemplo, para manterem o nível de
arrecadação ao mesmo tempo em que concedem incentivos, os entes tenderiam a
sobretaxar alguns setores econômicos de mais fácil tributação e que não podem
transferir-se para outro Estado. São os casos dos setores de energia elétrica e de
telefonia. O resultado seria o aumento do custo desses serviços essenciais.
Esses opositores acusam os Estados que fazem uso dos benefícios irregulares
de desagregadores, gerando uma crise de descentralização, com conotações negativas à
autonomia dos entes federados. Usam esses argumentos para justificar um novo pacto
federativo, como se a guerra fiscal fosse causa e não efeito (MESQUITA, 2012, p. 233).
Nesse novo pacto, tenta-se diminuir a autonomia dos Estados, como aconteceu
quando o Poder Executivo apresentou ao Congresso Nacional a PEC nº 233, de 2008,
com uma proposta de reforma tributária. Um de seus objetivos era coibir a guerra fiscal
por meio da federalização do ICMS e da substituição da tributação na origem (local de
produção) pela tributação no destino (local de consumo). Em compensação, seria criado
um fundo de desenvolvimento regional.
Não tendo a PEC logrado aprovação, a questão da guerra fiscal continua aberta.
Em vez de suprimi-la, é possível regulamentá-la e colocá-la dentro de limites que evitem
prejuízos econômicos excessivos à Federação. Esse é o caminho proposto neste
trabalho, a partir da flexibilização do quorum de unanimidade exigido pela Lei
Complementar nº 24/75 para a concessão de desonerações do ICMS. Afinal, como bem
observou Everardo Maciel (2009):
Incentivos fiscais não são necessariamente ilegais. Guerra fiscal consiste em outorgá-los sem suporte legal. Por que persistem as ilegalidades? Porque há uma condescendência geral com práticas nocivas. O TCU jamais exerceu a competência que lhe foi conferida, há mais de 30 anos, pelo parágrafo único do art. 8º da Lei Complementar nº 24. O Ministério Público, na condição de fiscal da lei, salvo singulares iniciativas, não se dispõe a tratar da questão. O Judiciário dispensa indiferença e morosidade às raras demandas. Os governos dos Estados prejudicados acomodam sua indignação na conveniência política. Nada se faz e todos protestam. Talvez seja um caso clássico de hipocrisia coletiva.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu em diversos sentidos acerca da concessão
de benefícios, isenções e incentivos fiscais do ICMS. Dentre essas decisões, as mais
comuns são as relativas a declarações de ineficácia de isenções e benefícios fiscais
concedidos sem a existência prévia de convênio, nos termos da Lei Complementar nº
24/75. São exemplos:
a) A ADI nº 260/SC, de relatoria do Ministro Ilmar Galvão:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. "GUERRA FISCAL". BENEFÍCIOS FISCAIS: CONCESSÃO UNILATERAL POR ESTADO-MEMBRO. Lei 2.273, de 1994, do Estado do Rio de Janeiro, regulamentada pelo Decreto estadual nº 20.326/94. C.F., art. 155, § 2º, XII, g.
I. - Concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, por Estado-membro ao arrepio da norma inscrita no art. 155, § 2º, inciso XII, alínea g, porque não observada a Lei Complementar nº 24/75, recebida pela CF/88, e sem a celebração de convênio: inconstitucionalidade. […].
III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (grifo nosso).
b) A ADI nº 1.179/SP, de relatoria do Ministro Carlos Velloso:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. "GUERRA FISCAL". BENEFÍCIOS FISCAIS: CONCESSÃO UNILATERAL POR ESTADO-MEMBRO. Lei 2.273, de 1994, do Estado do Rio de Janeiro, regulamentada pelo Decreto estadual nº 20.326/94. C.F., art. 155, § 2º, XII, g.
I. - Concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, por Estado-membro ao arrepio da norma inscrita no art. 155, § 2º, inciso XII, alínea g, porque não observada a Lei Complementar nº 24/75, recebida pela CF/88, e sem a celebração de convênio: inconstitucionalidade. [...]
III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (grifo nosso).
c) A ADI nº 1.247/PA, relatada pelo Ministro Dias Toffoli:
Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 12, parágrafo único, da Lei estadual (PA) nº 5.780/93. Concessão de benefícios fiscais de ICMS independentemente de deliberação do CONFAZ. Guerra Fiscal. Violação dos arts. 150, § 6º, e 155, § 2º, XII, "g", da Constituição Federal.