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A exigência de unanimidade é decorrência lógica do pacto federativo. Quem fez essa observação foi Hans Kelsen (KELSEN apud FERRAZ JUNIOR, 2012, p.15), ao analisar que o direito de veto é capaz de evitar qualquer tentativa de rompimento da Federação. Afinal, possuindo todos os entes federados o mesmo poder e autonomia, não há como um só ente submeter-se à vontade dos demais. Por isso, afirmou ele que o Estado Federal não se conciliaria bem com o Estado Democrático, pois este fundamenta- se em um Princípio de Maioria, ou seja, a formação das vontades majoritárias é reconhecida pelas vontades minoritárias. A paridade dos Estados-membros demonstra o perfil antidemocrático do Estado federal e tem fundamento em um Princípio de Homogeneidade.

Entretanto, posteriormente, Kelsen (Ibidem, p. 15) acabou reconhecendo que a Federação não deveria ser contaminada por suas origens ideológicas, pelo seu caráter tirânico. Deveria essa ideia ser mitigada com um Princípio de Maioria, pois a exigência de unanimidade não encontra respaldo no Estado Democrático. Logo, para que a forma de Estado Federativo conviva bem com o regime democrático, os entes federados devem abrir mão de parte de seu poder em favor da vontade da maioria.

Nesse sentido, o art. 1º da Constituição Federal de 1988 consagra os Princípios Democrático e Federativo: “A República Federativa do Brasil, formada pela união

11 “Art. 75. As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e

fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.

Parágrafo único. As Constituições estaduais disporão sobre os Tribunais de Contas respectivos, que serão integrados por sete Conselheiros.”

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]”. A unanimidade não encontra suporte na Federação brasileira, pois esta constitui-se em Estado Democrático de Direito. Ela ameaça o pacto federativo, pois embarga o exercício da autonomia dos entes.

A opção do Estado brasileiro foi pelo regime político da democracia, do governo do povo, pelo povo e para o povo, em contraposição à ditadura, seja militar, tecnocrática, ideológica de partido único, oligárquica pluripartidária ou religiosa.

Considerada a incompatibilidade entre Federação e unanimidade, inicia-se a análise do quorum de unanimidade estabelecido pela Lei Complementar nº 24/75, em seu art. 2º, §2º:

§2º A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de

aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes (grifos

nosso).

Percebe-se, pelo que já foi explicado, que esse dispositivo afronta nitidamente os Princípios Democrático e Federativo estabelecido no art. 1º da Constituição Federal. Essa afronta decorre da exigência de quorum unânime para deliberar acerca da concessão de benefícios fiscais, incompatível com o regime democrático, que privilegia a vontade da maioria.

Note-se que nem mesmo a aprovação de emenda constitucional requer unanimidade de consenso, mas tão somente maioria qualificada. Como poderia uma lei complementar estabelecer um quorum maior do que aquele necessário para aprovar uma emenda à Constituição?

A Lei Complementar nº 24/75 foi redigida sob a égide da Constituição Federal de 1967/1969, durante o regime autoritário. Na época, a concessão de desonerações do ICM por convênios interestaduais convivia com isenções concedidas pela União, segundo se verificava no art. 19, §2º, da própria Carta: “A União, mediante lei complementar e atendendo a relevante interesse social ou econômico nacional, poderá conceder isenções de impostos estaduais e municipais”. Havia também uma política de desenvolvimento regional, baseada em incentivos fiscais relacionados com tributos federais, em especial com o Imposto de Renda (BRASIL, Senado Federal, 2012).

A autonomia política e financeira dos Estados e do Distrito Federal estava bastante enfraquecida pelos sucessivos governos militares. A União concentrava em suas mãos as receitas tributárias. Os governadores dos Estados e do Distrito Federal, no período de 1966 a 1978, escolhidos em eleições indiretas, eram praticamente nomeados pelo Presidente da República (Ibidem).

O quorum estabelecido pela lei atendeu às medidas centralizadoras do então Presidente Ernesto Geisel, que enxergava na competição fiscal intrafederativa um obstáculo ao seu controle da economia nacional (LEAL, 2012, p. 83).

Nesse contexto, a exigência de prévia aprovação unânime dos Estados e do Distrito Federal para que qualquer unidade da Federação concedesse isenção ou benefício fiscal do ICMS não tinha relevância, pois os entes federados não possuíam a autonomia necessária para executar políticas locais de desenvolvimento e a própria União já fazia uso de mecanismos desonerativos do Imposto de Renda para estimular o desenvolvimento regional.

Saul Tourinho Leal (2012, p. 84) contextualiza bem o nascimento da lei:

A missão do quórum trazido pela LC 24/1975 era impedir a competição intrafederativa por atração de investimentos mediante a concessão de estímulos fiscais. Aliado a isso, concentrou-se na União a competência para promover tal estímulo, mesmo se tratando do ICM, imposto de competência dos Estados. Ó tempos!

Essa é a certidão de nascimento do quórum de unanimidade para aprovação dos convênios concessivos de estímulos fiscais. Um registro contrário ao que pretendeu a Constituição Federal de 1988 com o restabelecimento da democracia e a manutenção integral do modelo federativo.

Após a transição democrática, o diploma regulador dos convênios de concessão de incentivos fiscais do imposto sobre circulação de mercadorias continuou sendo o mesmo, recepcionado pela nova ordem constitucional. Todavia, a lei está totalmente superada. Com efeito, o contexto político e econômico atual é totalmente diverso daquele em que ela foi editada: o art. 151, III, da Constituição Federal veda à União instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios; a autonomia política e financeira dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios foi fortalecida; e a política de desenvolvimento regional fundada no Imposto de Renda foi enfraquecida.

A Lei Complementar nº 24/75 vai além dos limites constitucionais, maculando a autonomia federativa por inviabilizar a concessão de benefícios fiscais. Ao condicionar a concessão à concordância unânime dos Estados da Federação, na prática, inviabiliza-a. O equívoco da lei complementar fica mais evidente quando se constata, no mesmo art. 2 º, §2º, que, na revogação de um benefício, basta a maioria de quatro quintos (BRASIL, Senado Federal, 2006). Quatro quintos dos Estados, portanto, sobrepõem-se à unanimidade deles.

Com fundamento no Princípio da Homogeneidade, a doutrina favorável à exigência de unanimidade privilegia-a em detrimento do dever de compreender as razões alheias que informam o federalismo cooperativo, marcado pela atuação dos entes federados com solidariedade entre si, tanto no sentido vertical (do maior para o menor), quanto no sentido horizontal (entre entes iguais). Note-se que essa cooperação entre os entes federados é concorrente, pois eles atuam com autonomia na atividade de fomento e incentivo (FERRAZ JUNIOR, 2012, p. 21). Cooperação exige concorrência como fator de desenvolvimento. Não a concorrência predatória, que elimina o concorrente, mas a da interdependência. Daí decorre a necessidade dos Estados-membros menos favorecidos fazerem uso de incentivos fiscais como forma de atração de investimentos, através de mecanismos viáveis de aprovação desses incentivos pelos demais Estados.

A experiência internacional demonstra que a competição fiscal é compatível com o federalismo. O fomento da atividade econômica através de incentivos fiscais regionais é uma prática adotada em todo o mundo. É um dos poucos casos de incentivos admitidos pela OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico –, conforme se depreende do relatório do Seminário sobre Competição Tributária de Entes Subnacionais, realizado em 2010 (RIBEIRO, 2010, p. 27).

A maioria das federações utiliza incentivos com a finalidade de reduzir as desigualdades regionais. Como verificou Leonardo Alcântara Ribeiro (2010, p. 2), nos Estados Unidos da América, os Estados possuem ampla autonomia para determinar tanto a base de cálculo quanto a alíquota de seus tributos, podendo até escolher bases de cálculo já tributadas pelo ente central. A competição fiscal é totalmente admitida. Todavia, não há repasses de verbas federais para os Estados.

No Canadá, prevalece um modelo misto entre competição e cooperação tributárias. Assim como ocorre nos Estados Unidos, as províncias canadenses detêm liberdade para criar seu próprio sistema de tributação, podendo utilizá-lo na atração de

investimentos. Entretanto, existe um Código de Conduta que deve ser observado. Ele impede a competição predatória entre as províncias, bem como a concessão de benefícios a empresas ineficientes ou em tamanho desproporcional em relação ao valor do empreendimento. Além disso, o poder central mantém um programa de equalização que transfere recursos a províncias com arrecadação abaixo da média das demais (Ibidem, p. 23-25).

Na Suíça, os cantões competem entre si por investimentos que possam estimular a atividade econômica, mediante a redução das respectivas alíquotas dos tributos. O mesmo se verifica na Finlândia, com suas municipalidades (Ibidem, 2010, p. 28).

Logo, qual é o impedimento de ordem constitucional para que o Brasil não permita a competição fiscal? Não há. É necessário, tão somente, que exista uma regulação razoável da concorrência; é o que se propõe.

Partindo-se dessas premissas, pode-se fazer uma leitura harmônica do art. 155, §2º, XII, “g”, que trata dos incentivos fiscais, com o art. 174 da Constituição:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado

exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,

sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (grifo nosso).

Ou seja, a própria Constituição destina ao Estado a atividade de fomento, contribuindo para o fortalecimento da Federação. Esse papel cabe tanto à União quanto aos Estados, pois a própria Carta, em seu art. 25, determina que “os Estados organizam- se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”. Como a Carta não fez distinção entre entes federados no art. 174, considera-se que essa atuação cabe a todos. Nesse contexto, os incentivos fiscais do ICMS são um excelente instrumento para fomentar a economia dos entes federados.

O constituinte teve a visão da harmonia como meio de evitar a competição predatória do regime de concessões de incentivos fiscais, a guerra fiscal. Por isso envolveu todos os entes nas deliberações concernentes a incentivos fiscais do imposto, sem fazer menção a unanimidade de votos, a poder de veto individual. Esse quorum, vale lembrar, foi disposição de uma lei editada em uma ordem constitucional pretérita.

Não há como deixar de observar que o poder de veto é exagerado, na medida em que interfere na autonomia política das demais unidades, principalmente levando em conta que, no limite, será a vontade política de um contra a vontade política de vinte e seis entes federados. Até mesmo o Estado cujos representantes não tenham comparecido à reunião de celebração dos convênios poderá vetar o resultado, se o fizer no prazo estipulado após a publicação dos convênios, nos termos do art. 4º, caput, §1º, da Lei Complementar nº 24/75.

Esse quorum permite, por exemplo, que o Estado de São Paulo, o mais rico do país, vete um incentivo fiscal para a instalação de uma indústria no Amapá, Estado com parque industrial muito menor que o paulista. Essa regra inviabiliza a redução das desigualdades regionais e sociais, promovendo a concentração da produção industrial em poucos Estados.

O Brasil é um país com grande variedade econômica e social e diversidade de recursos naturais. Devido a isso, o processo decisório com vistas ao desenvolvimento depende de negociações intrincadas. Sendo notória a disparidade econômica entre os Estados do país, é evidente que o quorum de unanimidade exigido pela lei dificilmente será alcançado (CARVALHO; SOARES, 2012, p. 21).

A regra da unanimidade estabelecida pela Lei Complementar nº 24/75 inviabiliza o federalismo cooperativo e a efetivação o princípio democrático, ao favorecer a ditadura da minoria sobre a maioria.