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A fabulosa fábrica de divertimento

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Academic year: 2022

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A fabulosa fábrica de divertimento

Cid Seixas

A característica básica da cultura de massa – quer sejam os pro- gramas de televisão, as histórias em quadrinho ou os livros destinados ao grande público, os chamados best sellers – é partir de um esquema ou de uma fôrma de garantida eficiência. A renovação e o trabalho de descoberta de novos meios de expressão constituem moeda de pouco valor nesta indústria cultural.

Frequentemente, quando o leitor se encontra com mais de um livro do mesmo autor, termina envolvido num mundo de recorrências

A Crítica de Rodapé, assim chamada por ter sido desenvolvida nos jornais, especialmente em espaços menos nobres, como a parte inferior da página, encontrou cultores no Brasil, mesmo entre nomes da Academia, a exemplo de Antonio Cândido e Wilson Martins.

Marcada pelo calor da hora e pela resposta imediata ao lançamento ou à leitura de um livro, esta “brigada ligeira” é vista como uma atividade de risco intelectual, onde a reflexão imediata pode ser desmentida pelo amadurecimento das questões propostas.

Atualmente confundida com a resenha informativa de caráter jornalís- tico, ela é rigorosamente uma resenha crítica concentrada e minimalista, primando pela seleção de pontos considerados essenciais.

Na Bahia, foi praticada por estudiosos da universidade como Heron de Alencar e David Salles. No final do século XX, o autor deste texto assinou por quatro anos a coluna “Leitura Crítica”, no jornal A Tarde, onde se pro- punha a analisar um livro por semana, além de publicar críticas esparsas em O Estado de S. Paulo.

Neste espaço essencialmente acadêmico, retoma-se a experiência do texto leve e despretencioso, da conversa amena sobre leituras. Precisa- mente o contrário da análise vertical proposta por Jakobson num manifesto estrurural do início do século passado.

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e redundâncias. Repetem-se as mesmas estratégias destinadas à fabri- cação do sucesso. Um autor de best seller descobre uma fôrma que deu certo e continua moldando novas histórias nesta bem sucedida fábrica de divertimentos.

Mas, mesmo assim – ou talvez por isto mesmo –, alguns dos produtos saídos da indústria cultural de massa são capazes de alcançar surpreendentes resultados. Principalmente, quando o leitor não conhece muito as manhas do autor. Quando está diante de um contato inicial e descobre os pontos fortes do seu artesanato.

É verdade que, depois de um leitor arguto conhecer dois ou mais livros do mesmo autor, o interesse se anula, porque falta alguma coisa além do artesanato bem dosado. Falta arte, isto é: renovação de soluções e caminhos.

Mas estas fábricas de sonhos constituem o forte da indústria editorial porque há leitores – e muitos, milhares – que só se encontram na redundância, na repetição, do modelo pré-fabricado. Sua inteligência está treinada para perceber dentro dos limites do já conhecido, onde a dose de novidade deve ser mínima. Assim, ao criar uma obra com bons momentos, o autor usa a fôrma para extrair cinco ou dez “originais”

mais ou menos parecidos, encantando o grande público como quem quer vencer na vida sem fazer força – ao contrário dos artistas angustiados pela busca de algo indefinido, talvez a perfeição, talvez o compromisso de dar sempre o melhor de si.

Não esqueçamos, no entanto, que não só os produtores de Tv ou os industriais da escrita constroem suas fôrmas de estimação. Grandes autores, de reconhecido poder criativo, também se deixam seduzir pelo sucesso já alcançado. O maneirismo de alguns escritores nada mais é do que uma repetição de si mesmos, um apelo à valorização da fôrma em lugar da forma criativa.

O grande García Márquez já foi acusado de desenformar novos livros de uma mesma fôrma. Da mesma fórmula de sucesso garantido.

Se um prêmio Nobel de Literatura pode fazer concessões à cômo-

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da mediocridade de cada um de nós, satisfeitos com o déjà vue, porque não um escrevente que vive da sua pena?

Paulo Coelho fez fortuna repetindo o bem recebido esquema de O alquimista, onde retoma um pouco do encanto místico das narrativas de Herman Hesse e de outros mestres da viagem interior, contribuindo aqui com um erro de ortografia, ali com um escorrego gramatical, evitando, mesmo sem saber, que o texto fique muito parecido e tão bem escrito quanto os dos autores mananciais. Mas nem precisava tanto. Os originais são melhores que as muitas cópias.

Faz a tua parte que a media te ajudará.

* * *

É evidente que o gosto pela redundância, pela repetição, ou pelo já conhecido, é uma concessão à preguiça mental, à boa burrice de estimação que descansa na nossa pança. Como discursou o célebre personagem de Mário de Andrade: Ai que preguiça!

Mas é verdade também que a redundância é uma marca do homem.

Mesmo no falar cotidiano demonstramos o nosso gosto pela redundância.

Repetimos as mesmas idéias com outras palavras, muitas vezes, e de muitas formas diferentes. A repetição reforça o dito e elimina o não dito.

Evitamos a ambigüidade e a interferência de ruídos na comunica- ção através da reiteração da mensagem. Além de tudo, a repetição é um pronto-socorro para as inteligências mais emperradas. Os mais espertos, ao reencontrarem aquilo que já haviam percebido, novamente descoberto no dizer repetido, se sentem gratificados por achar que já achavam aquilo que o autor achou.

Ao perceber difusamente a idéia de um filme, de um quadro tele- visivo ou de um livro, o receceptor da mensagem não toma consciência do que foi dito. Somente quando o que foi informado difusamente passa a ser reconhecido e compreendido, através da redundância, o receptor encontra uma forte ligação entre aquilo que sente e compreende e o que

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o outro expressa. Apossa-se da idéia e do sentimento transmitido pelo outro e se identifica com o “enorme talento” do escritor. Narciso encan- ta-se com a própria imagem. Mesmo quando o espelho retoca a figura e mostra um outro rosto que ele toma como o seu. O homem gosta de se ver passado a limpo nos personagens bem-sucedidos. O super-homem encanta adultos e crianças porque cada um de nós vê nele o próprio ego;

poderoso e perfeito.

A poesia moderna, ao despir-se da redundância – ao aceitar a idéia segundo a qual “para o bom entendedor, meia palavra” –, deixou de ser entendida por largas fatias de público acostumado a ler poesia alambicada e verbosa. O texto enxuto, econômico, às vezes não basta.

Por falta de entendedor. Daí a prosa feita para o consumo em massa caminhar no sentido inverso.

* * *

No espaço do kitsch,1 Dean R. Koontz soube fabricar uma fôrma eficiente. Especializado em narrativas fantásticas de horror, ele consegue, em Esconderijo,2 realizar um livro bem dosado. Contar uma história em que os motivos se entrecruzam formando uma trama bem urdida. O foco ora se volta para as peripécias do protagonista, ora ilumina outros personagens igualmente importantes.

Suspense, ação e horror são os ingredientes do livro. A idéia é

1. Segundo Ludwig Giesz, em Phaenomenologie des Kitsches (Heidelberg, Rothe Verlag, 1960), o termo kitsch passou a ser usado quando os turistas ameri- canos em Munique começaram a demonstrar especial predileção pelas imitações baratas de obras de arte. Posteriormente o termo foi adotado em outras línguas para se referir a produtos da cultura de massa.

2. KOONTz, Dean R: Esconderijo [Hideaway]; tradução de Bráulio Tavares.

Romance norte-americano. Rio de Janeiro, Record, 1994.

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antiga: o eterno duelo entre o bem o mal. O maniqueísmo é uma forma de tornar os personagens planos e sem maior dimensão humana, mas o resultado não deixa de ser eletrizante.

Por isso temos que admitir que Dean R. Koontz não é um es- crevente qualquer. É um escritor, um escritor de massa, com o qual, às vezes, o escritor erudito precisa aprender.

Embora envolva no seu livro sugestões de magia negra e outras coisas queijandas, a crença judaico-cristã preside o grande duelo do livro:

de um lado, Vassago, um dos nove príncipes do Inferno, do outro lado, Uriel, um dos arcanjos do Deus ocidental. Os homens ou os personagens da sua narrativa são meros instrumentos de ação destas forças polares.

É como se os deuses do Olimpo decidissem o destino dos homens e mulheres de Atenas.

Mas há um ponto muito curioso no livro. Em meio a uma narrativa onde a inteligência dorme ou se espreguiça, Koontz dá uma espetada no acomodado leitor. A tradição cristã identifica a sexualidade com a degra- dação moral. Dito assim, a coisa soa forte. Mas não esqueçamos que tudo que diz respeito ao sexo e ao prazer é tido como pecado, como impureza.

A nossa tradição moral e religiosa entra em choque com a velha idéia grega de duas forças antagônicas. De um lado, Eros, a força da criação, do prazer e da vida – o bem maior. Do outro lado, Thanatos, a força da destruição, da paralisação e da morte.

Os santos do nosso céu se fazem merecedores da graça pelo aban- dono da vida, pela renúncia. Isto é, a busca da morte. São os pecadores que mantêm viva a chama de Eros, reacendendo a vida.

Pois bem, curiosamente, o personagem que se identifica com Vassago, com a força do mal, tem horror ao sexo. Nas narrativas de inspiração cristã, as figuras diabólicas são altamente eróticas, enquanto as figuras identificadas com as forças divinas são inocentemente frias.

Segundo o verso de Capinam, “todos os santos têm o sexo amputado”.

Neste livro, Dean Koontz vira a mesa do jogo: as forças do mal detestam o sexo, por tudo aquilo que ele representa de vitalidade, de

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criação, de epifania do prazer e do amor. Voltado para a destruição, a morbidez e a morte, Vassago trava sua luta com a vida.

Este é, sem dúvida, um ponto alto do livro, em termos de convite à participação do leitor. De solicitação ao confronto de idéias. Ou em outros termos: aí o autor, bem sucedido artesão, ultrapassa o esquema previsto e também consegue ser artista.

O artista não é aquele que transgride os limites do estabelecido?

Que extrai o imprevisto sumo da pedra? Não é aquele que procura ver o outro lado dos objetos, o lado que o olhar se recusa a alcançar?

Mesmo trabalhando nos estreitos limites de um esquema, o bom artesão ultrapassa o previsível e ilumina com criatividade e arte a sombra do esperado, apostando na sensibilidade e na inteligência do seu público.

Cid Seixas é docente fundador do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS e Professor Titular da UFBA.

Referências

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