DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUMANA
Lúcia Cavalieri
Migração e reprodução social: tempos e
espaços do cortador de cana e de sua família
LÚCIA CAVALIERI
Migração e reprodução social: tempos e
espaços do cortador de cana e de sua família
Tese apresent ada ao Depart ament o de Geografia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do t ít ulo de Dout ora em Geografia Humana.
Área de concent ração: Geografia Agrária
Orient adora: Profa. Dra. M art a Inez Medeiros Marques
FOLHA DE APROVAÇÃO
Lúcia Cavalieri
Migração e reprodução social: t empos e espaços do cort ador de cana e de sua família
Tese apresent ada ao Depart ament o de Geografia da Faculdade de Filosofia
Let ras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obt enção do t ít ulo de Dout ora em Geografia Humana.
Aprovada em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.___________________________________________________________
Inst it uição:_________________________ Assinat ura:_______________________
Prof. Dr.___________________________________________________________
Inst it uição:_________________________ Assinat ura:_______________________
Prof. Dr.___________________________________________________________
Inst it uição:_________________________ Assinat ura:_______________________
Prof. Dr.___________________________________________________________
Inst it uição:_________________________ Assinat ura:_______________________
Prof. Dr.___________________________________________________________
Agradeço,
aos moradores de Araçuaí, em especial aos de Engenheiro Schnoor e Alfredo
Graça por t odo o carinho recebido, pelos moment os compart ilhados e por revelarem
aspectos t ão especiais (e doloridos) de suas vidas.
a Rosa, Luzia, Val, Dona M ariana, Lena, Ilma, M aiúsa, It amar, Tinha, Adhemar,
Margarida, Dendeca, Oswaldo, Téia, Aline, Seu João, Beu, Lia, Tibau, Dona Nezinha,
Donana....
a Dolores da Emat er, a Cléa da Cáritas e especialment e a irmã Sandra do SPM de
Araçuaí pela at enção dispendida à pesquisa. Regist ro minha admiração pelo trabalho
realizado por elas.
aos amigos mais ant igos da Geografia, da época da graduação, agradeço a
cumplicidade, a admiração e o amor que perdura.
aos amigos queridos de viagens e da vida t oda.
ao Xico amigo pra sempre, pelos mapas.
ao Campo em Moviment o e aos colegas do laborat ório de agrária por t odas as
conversas, cont ribuições, est udo e risadas.
a leit ura at ent a e carinhosa de Ari e Dieter durant e a qualificação.
à minha família, próxima nos moment os de alegria e de sufoco: da vida e da t ese.
à minha mãe que me ajudou muit íssimo nos moment os finais pegando estrada
t oda semana, cuidando do Tin e fazendo docinhos.
à Marta, orient adora querida, com quem pude compart ilhar momentos de
descobert a e admiração ao longo da pesquisa.
ao Zé, meu marido amado, por t udo: generosidade, confiança, companheirismo
firme e grande amor.
RESUM O
CAVALIERI, L. M igração e reprodução social: t empos e espaços do cort ador de cana e de sua família. 2010. Tese (dout orado em Geografia Humana) Depart ament o de Geografia da Faculdade de Filosofia Let ras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
Est a pesquisa tem por objet ivo entender como ocorre o processo cont radit ório da
reprodução social das comunidades rurais à luz de uma análise das prát icas cot idianas e
das est rat égias de reprodução social da família do migrante, cort ador de cana do Vale do
Jequit inhonha. Os homens migrant es vivem ora mais próximos da condição camponesa,
ora sorvidos como prolet ários na cana. Não se realizam plenament e em nenhuma das
duas condições. No t erritório da cana est ão prolet ários; no t errit ório camponês não têm
mais t erras para o t rabalho e a família não cont a com os homens em suas prát icas
cot idianas. Esses camponeses-migrant es encont ram-se na margem. A pesquisa de campo
se realizou em duas comunidades rurais: Alfredo Graça e Engenheiro Schnoor localizadas
no município de Araçuaí, no Vale do Jequit inhonha. Est as comunidades t êm algumas
caract eríst icas comuns: a migração dos homens para o cort e de cana em São Paulo e uma
série de cust os imput ados à família, em especial às suas mulheres. Nosso int eresse
consist e em ent ender como esse sujeit o, na condição de camponês-migrant e, perdura no
t empo e quais são as fissuras que essa condição provoca em sua família e em seu
t errit ório.
ABSTRACT
CAVALIERI, L. M igração e reprodução social: t empos e espaços do cort ador de cana e de sua família. 2010. Thesis (doct orat e in Human Geography) Depart ament o de Geografia da Faculdade de Filosofia Let ras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
This research aims t o understand how does t he cont radict ory process of social
reproduct ion occurs, by means of analysing day-t o-day pract ices and t he social
reproduct ion st rat egies of t he migrant sugarcane harvest er’s family living at
Jequit inhonha Valley. The migrant men live sometimes closer t o peasant ry condit ion, and
somet imes absorbed as sugarcane prolet arians. They do not live fully in neit her of those
condit ions. At sugarcane t errit ory t hey live a prolet arian condit ion, alt hough at peasant s
t errit ory t hey do not have land for working any more and t heir family can not count on
t hem for day-t o-day pract ices. These peasant s-migrant s are at t he margin. The fieldwork
was done at t wo rural communit ies: Alfredo Graça and Engenheiro Schnoor, locat ed at
Araçuaí, MG, in t he Jequitinhonha valley. These communit ies have some commom
feat ures: the men’s migrat ion for sugarcane harvest at São Paulo and a number of cost s
imposed t o t heir families, part icularly t o t heir wives. We focus on underst anding how t his
subject , in a peasant -migrant condit ion, persists in t ime and wich are t he fract ures t hat
t his condition produces t o his family and his t erritory.
LISTA DE SIGLAS
ACESITA Aços Especiais It abira
AMEJE Associação dos municípios de microrregião do Médio Jequit inhonha
AMOVAJE Associação das mulheres organizadas do Vale do Jequit inhonha
APA Área de Preservação Ambient al
ASA Associação do semi-árido
ASSOCIAR Associação Comunit ária e Infant il de Araçuaí
BBB Big Brot her Brasil
BNDES Banco Nacional de Desenvolviment o Econômico e Social
CEM Cent ro de Estudos Migrat órios
CEMIG Companhia de Energia de Minas Gerais
CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPCD Centro Popular de Cultura e Desenvolviment o
CPT Comissão Past oral da Terra
DIEESE Depart amento Intersindical de Est at íst ica e est udos econômicos
EFBM Est rada de Ferro Bahia- M inas
EM ATER Empresa de Assist ência Técnica e Extensão Rural.
FERAESP Federação dos empregados rurais do est ado de são Paulo
IDENE Inst it ut o de Desenvolviment o do Nort e e Nordest e de Minas
IPCC Painel Int ergovernament al sobre M udanças Climát icas da ONU
MDA Minist ério de Desenvolviment o Agrário
PRONAF Programa Nacional de Fort aleciment o da Agricult ura Familiar
SINGA Simpósio Internacional e Nacional de Geografia Agrária
SPM Serviço Past oral do Migrant e
UC Unidade de Conservação
UNICA União da Indúst ria de Cana-de-açúcar
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. M apa de Minas Gerais: Vale do Jequitinhonha e Araçuaí 23
Figura 2. Imagem de sat élit e da região de Araçuaí 23
Figura 3. Imagem de sat élit e da comunidade do Graça. 24
SUM ÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1
A pesquisa em curso
201.1 Algumas premissas sobre as t eorias migrat órias 33
2
Panorama da produção de agrocombustíveis
412.1 Ant ecedent es ambient ais 43
2.2 Agrocombust íveis 46
2.3 A conivência do Est ado brasileiro 53
2.4 As alt ernat ivas à produção dos agrocombustíveis 65
3
Araçuaí
703.1 Impressões 74
3.2 Exploração 76
3.3 Migração 97
3.3.1 Remessas 103
4
Das práticas cotidianas
1114.1 As águas e a sequidão 113
4.2 Represent ações sobre a miséria e a import ância das usinas 117
4.3 O ordinário e o Ext ra-ordinário 123
4.3.1 Tempo do Ext ra-ordinário 126
5
Das festas
1345.1 Experiência do sagrado 136
5.2 Virgem da Lapa 139
5.3 São Sebast ião: casa que t em bandeira nunca é pequena 141
5.4 Menino Jesus 143
5.5 Solução de cont inuidade 145
6
Engenheiro Schnoor
1486.1 Campesinidade nos quint alinhos 152
6.2 Sobre a solidão, a vigilância e alguns assunt os do coração 159
6.2.1 Se você t iver um, na boca do povo t em dez; se t iver dois, t em mil 173
6.3 Trabalho e sociabilidade 179
7
Alfredo Graça
1947.1 Assent ament o Para a Terra 196
7.2 Mulheres plurais 203
7.3 Est ado, migração, recursos 208
CONSIDERAÇÕES FINAIS 217
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 223
BIBLIOGRAFIA COM PLEM ENTAR 230
Introdução
Oco de pau que diz: Eu sou madeira, beira Boa, dá vau, t rizt riz Risca cert eira Meio a meio o rio ri Silencioso, sério Nosso pai não diz, diz: Risca t erceira
objet ivo dest a pesquisa de dout orado consist e em ent ender como ocorre o
processo cont radit ório da reprodução social das comunidades rurais do Vale do
Jequit inhonha à luz de uma análise das práticas cot idianas e das est rat égias de
reprodução social da família do migrant e, cort ador de cana em São Paulo.
Após cerca de set e anos pesquisando as comunidades caiçaras, sent i que era hora
de olhar um pouco para o ‘sertão’ e confront ar o aport e teórico que foi sendo
incorporado em minhas duas pesquisas iniciais com uma realidade por mim desconhecida.
Em 1999, apresentei a pesquisa int it ulada: “ Caiçaras da Juat inga: cult ura, conflit os
e sonhos” como Trabalho de Graduação Individual (TGI). Nessa primeira pesquisa
invest iguei o processo de grilagem das t erras de duas comunidades de Parat y (RJ), a
t ransformação da região em Unidade de Conservação - Reserva Ecológica da Juat inga -, a
legislação ambient al e o modo de vida caiçara.
No mest rado, t ambém orient ado pelo professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira,
intit ulado “ A comunidade caiçara no processo de reclassificação da Reserva Ecológica da
Juat inga” (2004), a pesquisa iniciada no TGI foi aprimorada. Os principais t emas t rat ados
foram: regularização fundiária; embat e ent re os direitos de posse e de propriedade
levado ao tribunal; a leit ura - inserida no cost ume - que fazem as comunidades acerca da
propriedade da t erra; e a aliança, ainda não duradoura, entre a lut a pela terra e a
conservação da nat ureza. Uma das caract eríst icas mais relevant es das sociedades
camponesas foi t ambém analisada por esse t rabalho: a relação t erra, t rabalho e a família,
formando a base para a consolidação do t errit ório camponês. A reprodução social do
campesinat o t ornou-se para mim uma quest ão cent ral desde ent ão.
O sert ão escolhido para uma pesquisa de doutorament o foi o Vale do
Jequit inhonha por alguns mot ivos: (a) o prazer em ler livros de Guimarães Rosa - o sert ão
roseano encont ra-se um pouco mais a lest e, mas no Vale t ambém há a cult ura do sert ão
mineiro; (b) as aulas da professora Margarida M aria Moura sobre o campesinat o e as
lut as do camponês do Vale cont ra os projetos de modernização, sobret udo os das
empresas papeleiras com a monocult ura do eucalipt o; (c) a vont ade de conhecer, de fat o,
uma realidade muit o dist int a daquela conhecida por mim durant e a graduação e o
mestrado.
No primeiro trabalho de campo, realizado em 2005, foram percorridas set e
cidades do Vale do Jequitinhonha, descendo o rio de mesmo nome a part ir de sua
nascent e ent re os municípios de Diamant ina e Serro em busca das feiras de sábado, das
comunidades rurais e dos mercados municipais. Feiras e mercados compunham uma
part e da problemát ica do primeiro t ema pensado para a pesquisa do dout orado.
Quando eu buscava, na feira, conhecer as comunidades rurais e me apresent ava
como professora e aluna em São Paulo, muit os pergunt avam se eu conhecia o parent e
que migrara definit iva ou t emporariament e para o est ado de São Paulo1.
O t rabalho de campo fez com que o projet o de pesquisa t ivesse que ser
repensado. Eu pergunt ava sobre a produção agrícola, as t erras, as relações sociais; eles
cont avam hist órias de migração, most ravam fotos dos parent es dist ant es, exibiam as
mercadorias compradas com o dinheiro do corte da cana e perguntavam sobre a vida na
cidade. Assim, um novo t ema para a pesquisa de dout orado se anunciava: ‘as migrações
do Vale do Jequit inhonha’, e as primeiras pergunt as eram: Quem fica, fica por quê? Qual a
1 Exceção se fez na cidade de Serro, Alto do Jequitinhonha, em que a rot a migratória se estabelece com os
relação entre quem vai e quem fica? Como se relaciona a reprodução social do
campesinat o com as t emporalidades e t errit orialidades vividas pelo cort ador de cana e
sua família?
A observação de duas comunidades, Engenheiro Schnoor e Alfredo Graça, no
município de Araçuaí (médio Jequit inhonha), ajudou na formulação das pergunt as
nort eadoras da t ese, quais sejam: (a) como as mudanças advindas da migração
(sobretudo a ausência dos homens e a ent rada do dinheiro do corte de cana, compondo
uma import ant e part e da renda familiar) afet am a reprodução social do grupo, (b) de que
forma as t ransformações nas prát icas cot idianas devidas à migração se expressam na
t errit orialização das comunidades rurais do Vale.
A preocupação em deslindar o campo brasileiro com a at enção volt ada aos
meandros ent re o moderno e o tradicional; e as t ensões ent re o modo de vida camponês
e as relações econômicas é um dos mot es do grupo de leitura e est udo, “ Campo em
Moviment o” , do laboratório de geografia agrária, sob a coordenação da professora
Mart a I. M. Marques. Sob a orient ação da professora Mart a, somos inst igados a pensar o
campo brasileiro sob a ót ica da subordinação econômica e das est rat égias de lut a do
campesinat o se afirmando como classe social e modo de vida. Somos t ambém
est imulados a pensar o campesinat o em suas diversas possibilidades de relação com a
sociedade dominant e, com inserções dist intas a part ir de seu ‘fazer-se’2 em diferentes
escalas espaço-t emporais.
Incorporar o ‘fazer-se’ dessa classe social implica ent ender o campesinato em
relação a t odas as subordinações econômicas, polít icas e cult urais do mundo moderno.
2 A idéia de uma classe se afirmando no seu ‘fazer-se’ vem da obra de Thompson. ‘Fazer-se’, no cont exto de
Shanin (2005) compreende o campesinat o como classe social e modo de vida. Result a da
apropriação dest es dois conceit os o reconheciment o do prot agonismo do campesinato e
de sua potencialidade de exist ência e resistência.
As previsões de que o campesinat o se extinguiria dando lugar a prolet ários, ou a
capit alistas no campo, não se efet uaram no século XX como fora previst o t ant o no
interior do marxismo como fora dele - por caminhos e com int enções polít icas dist int as.
No espaço agrário brasileiro, uma de suas maiores cont radições é a criação e recriação do
campesinat o. Não rest a dúvida de que os camponeses est ão present es, recriando-se com
graus diferent es de campesinidade3. No seio do capit alismo pode ocorrer a formação do
campesinat o. No Brasil, as obras das décadas de 1970 a 1990 de José de Souza M art ins4
são básicas para fundamentar a idéia de criação e recriação do campesinat o. Ariovaldo
Umbelino de Oliveira (1995, 1999,2005) estuda também a criação e recriação do
campesinat o sob o signo do desenvolviment o combinado e cont radit ório do capit alismo.
A ét ica camponesa, com uma inserção específica no modo de produção capit alist a,
se define a part ir das relações t ravadas por esse grupo social no int erior da sociedade,
com o fim de sua reprodução social. Para a compreensão do modo de vida camponês, do
seu ‘fazer-se’ como classe social e das formas como a vida é vivida no conjunt o de um
t ecido social mais amplo, o tripé t erra/família/t rabalho, compost o por valores cent rais de
sua ét ica, é um fundament o que se apresent a sempre e se rearranja cont inuadament e de
maneira diversa, orient ando-se pelo costume e realizando-se nas prát icas cot idianas.
3 Os conceit os de campesinidade bem como o de ordem moral aparecerão algumas vezes ao longo do
texto. Nos capítulos Schnoor e Graça, os conceitos de campesinidade e de ordem moral elaborado por Klass Woortmann (1990a) serão vistos em seu detalhe
4 Entre elas: Cativeiro da Terra (1979), Os camponeses e a política no Brasil (1981), Não há terra pra se
Retomando o t ema desta pesquisa, “Migração e reprodução social: t empos e
espaços do cort ador de cana e de sua f amília” , organizamos o conjunt o de reflexões
paut adas no est udo da t eoria e na observação, em campo, das prát icas cot idianas das
comunidades, que serão apresent adas ao longo de sete capít ulos.
No primeiro capít ulo, “A pesquisa em curso”, apresent amos os meandros da
pesquisa, os mot ivos da escolha das comunidades Alfredo Graça e Engenheiro Schnoor e
a chegada da pesquisadora no Vale com os seus est ranhament os.
Também explicit amos como foi realizado o t rabalho de campo e os mét odos de
coleta e registro de informações. Algumas premissas t eóricas acerca da migração são
apont adas nesse capít ulo como pont o de part ida para a leit ura dos capít ulos seguint es.
Para ent ender a territ orialização cont radit ória do camponês-migrant e e sua
t ransformação em força de t rabalho mobilizável, t rat amos no segundo capít ulo,
“Panorama da produção de agrocombust íveis” , de uma série de expropriações que
incidem sobre o campesinat o do Vale do Jequit inhonha relacionadas à expansão da área
cult ivada de cana-de-açúcar, com a finalidade de produzir o açúcar e o et anol dedicado à
produção de energia. O set or sucroalcooleiro é paradigmát ico para compreendermos as
cont radições que envolvem a produção, o consumo de energia e a conservação do meio
ambient e, que se intensificam na década de 1970 e que ganham um novo impulso nessa
primeira década do século XXI. Contemporaneament e à t errit orialização do monopólio e
à monopolização do t errit ório pelo set or sucroalcooleiro - diferença explicit ada nesse
capít ulo -, desde a década de 1970, constat a-se um grande fluxo migrat ório de
t rabalhadores de várias regiões do Brasil para o cort e de cana em São Paulo.
Esse segundo capít ulo t ambém aborda: os ant ecedent es ambient ais da produção
ocorridas e ainda em curso no Vale, e uma crít ica à lei 11.241/02 que est ipula uma dat a para
o fim das queimadas da palha de cana no est ado de São Paulo.
Em “Araçuaí” , o t erceiro capít ulo, nos debruçamos sobre um t ema caro à
compreensão da quest ão agrária brasileira: as f ormas como posseiros e propriet ários de
t erra disput am o t errit ório brasileiro. O Vale do Jequit inhonha não escapou à sanha de
reprodução de capit al que precisa dar cont a de seus excedent es produzindo, colonizando
e se expandindo para novas t erras. As marcas da chegada mais feroz do capit alismo no
campo se fazem present es com a consolidação da fazenda de gado e de eucalipt o e com
a int erdição do uso da t erra em comum das chapadas. Segundo M oura (1988) as décadas
de 1960 e 1970 são emblemát icas para compreendermos como quest ão de t erra se
t ransformou em quest ão trabalhista; como os t ratos (ent re sit uant es, posseiros,
moradores de condição e propriet ários de terra) se t ransformaram em dist rat os.
A perda das terras lançou milhares de camponeses do Vale à migração. Em Araçuaí
o processo não foi muit o diferent e, em várias de suas 66 comunidades rurais, há
posseiros que, na negociação (ou no dist rat o) com o fazendeiro, rest aram com uma casa
com quint al na “ rua” ou no cent ro da comunidade.
Est a migração “ provisória consolidada” cont a com as remessas enviadas pelos
homens ao Vale, com uma pequena produção agrícola da mulher e dos filhos nos quint ais
e com uma rede social que se t ece a part ir de duas direções: de um lado, o “ gat o” que
arregiment a nas comunidades os bons t rabalhadores (jovens e fort es) para a usina; de
out ro lado, os homens que part em junt os a fim de recriar uma sociabilidade possível
durant e os nove meses no cort e de cana.
O quart o capít ulo, “ Das práticas cot idianas” , principia a exposição de cunho mais
t ão cont radit ória t ant o no mundo da produção e consumo de mercadoria, como no
mundo camponês.
Os homens migrant es vivem ora mais próximos da condição camponesa, ora
sorvidos como prolet ários na cana. Não se realizam plenament e em nenhuma das duas
condições. No t errit ório da cana est ão prolet ários, no Vale não cont am mais com a t erra
de cult ivo mas paut am a vida numa ordem informada pelo cost ume camponês.
Na sit uação em que se encont ram, est ão na margem de dois mundos: int egram-se
precariament e à sociedade capit alist a e ao “ mundo” camponês, est ão na margem
vivendo uma condição ambígua e não na t ransição. Ent re uma condição e out ra exist em
horas de est rada, exist em dois mundos diferentes e profundament e ligados vividos pelas
famílias. Opt amos assim em chamá-los de camponeses-migrant es. O uso do hífen visa
demonst rar o quanto os dois t ermos est ão ligados.
Ainda nesse capít ulo, o trabalho realizado pelos homens nas usinas em São Paulo
foi por nós apreendido por meio de algumas ent revist as no Vale e pela leit ura de aut ores
que se debruçam mais sobre as condições de t rabalho no t recho: M aria Aparecida Moraes
Silva e Francisco Alves.
As ent revist as com as mulheres e a observação das prát icas cot idianas no Vale nos
fizeram pensar nas diferenças ent re o t rabalho ordinário cíclico do campesinat o, que no
Vale se ressente, claro, da ausência do homem, e o t rabalho Extra-ordinário realizado na
cana, por nós assim denominado, para dar cont a de explicit ar as diferenças ent re eles e
sublinhar o carát er de monst ruosidade deste.
“ Das fest as” , o quint o capít ulo, discut e como os t empos-espaços dos cort adores
A reprodução da vida envolve a reprodução da força de t rabalho. Cont udo, a vida
é mais que força de t rabalho, é com t oda a vida que se lut a, se vive e se “ fest a” . Ainda
que submet idos ao Ext ra-ordinário, ou seja, t rat ados como força de t rabalho crua,
buscam a referência, que os situa no mundo, no modo de vida camponês. Modo este que
se reinventa, ent re embat es para afirmar uma visão de mundo e uma ordem moral, em
meio a t ant as cont radições.
É a relação ent re fest a, migração e a import ância do fluir do t empo ordinário
cíclico que se coloca no cent ro do capít ulo. Três fest as foram observadas: Virgem da Lapa
e Reza do M enino Jesus na comunidade do Graça e fest a de São Sebast ião na cidade de
Araçuaí.
Pensar sobre as fest as nos fez entender como a “ experiência do sagrado” pode
orient ar as prát icas camponesas e como o camponês-migrant e pode se aproximar de um
t empo e de uma vida Ext ra-odinários quando a fest a vira um evento, um espet áculo.
Ant es dos capít ulos mais específicos sobre as duas comunidades, Engenheiro
Schnoor e Alfredo Graça, discut imos algumas caract eríst icas do modo de vida camponês
para orient armos a leitura dos últ imos capít ulos a fim de ent endermos a condição
camponesa-migrant e vivida por muit as das famílias do Vale.
As comunidades encont ram-se no sext o e sétimo capít ulos. No capít ulo dedicado a
“ Engenheiro Schnoor” descobrimos a campesinidade presente nos quint ais, as relações
paut adas na reciprocidade camponesa e t ambém a solidão vivida pelas mulheres. Essa é a
maior t ensão que o capít ulo revela: um modo de vida se realizando fragilment e em meio a
t ant as rupt uras e mulheres dilaceradas.
Finalment e, no últ imo capítulo, “ Graça” , apresent amos a experiência de um
t ambém já migraram após receberem a t erra, para darem cont a, no ret orno, da produção
em seus lotes. A migração nesse cont ext o reflet e, mais uma vez, as opções realizadas
pelo Est ado brasileiro: a falt a de polít icas que acredit em e viabilizem a agricult ura
1
A pesquisa em curso
Cert o. O senhor vê. Cont ei tudo. Agora est ou aqui, quase barranqueiro. (...) Amável senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não exist e. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspect o.
Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se fôr ... Exist e é homem humano. Travessia.
município de Araçuaí, no médio Jequit inhonha (Figuras 1 e 2), foi o lugar
escolhido para um est udo mais aprofundado dent re os visit ados no primeiro t rabalho de
campo, pois foi nest e que pude conhecer algumas comunidades rurais graças ao Serviço
Past oral dos M igrant es (SPM ) e à ONG Centro Popular de Cult ura e Desenvolviment o
(CPCD). O acaso t ambém ajudou: fez com que eu conhecesse, no ônibus, dois cort adores
de cana que est avam volt ando para casa e me convidaram para passar o dia nas suas
casas, na comunidade rural de José Gonçalves, à beira do rio Piauí.
A est ranheza das famílias da primeira comunidade rural visit ada, José
Gonçalves/Piauí em Araçuaí, diant e de uma mulher sozinha, “ sem parent es e vinda lá da
capit al” , sem aliança no dedo, de cabelos curt os, pergunt adeira e observadora, era
grande. A pergunt a que eu mais ouvia era: “ a senhora t rabalha de quê?” . Eu t inha que a
cada dia, até o últ imo t rabalho de campo, est ar pront a para conhecer o novo, est abelecer
a agenda de t rabalho e refazer perguntas. Aprender a me comunicar com o campesinat o
do Vale, entregar-me à paisagem mais árida.
Ao t odo, foram quat ro trabalhos de campo que somam cerca de 60 dias de
observação nos municípios do Médio Jequit inhonha, sendo que à Araçuaí foram
dedicados mais de 40 dias. Em dois desses trabalhos de campo, os homens est avam em
casa, nos out ros dois, est avam no t recho.
No primeiro t rabalho de campo t ema “ Tempos e espaços do cort ador de cana e de
sua família” já definido optei em conhecer a cidade e todas as inst it uições que pudessem
colaborar com a pesquisa. Nesse primeiro campo e nos seguint es fui conversar e colet ar
dados com o Serviço Past oral dos M igrant es (SPM), Cárit as, Emat er, Câmara dos
Vereadores, gerentes de banco, ONG´s, associação dos art esãos, produt ores no mercado
e na feira, Secret aria Municipal de Planejament o, Secret aria M unicipal de Agricult ura,
Bibliot eca M unicipal, acervo das faculdades part iculares (como a FEVALE), sindicat o dos
t rabalhadores rurais e Associação dos Municípios do Médio Jequit inhonha (AMEJE)5.
Após conhecer as mulheres da cooperat iva organizada pela Associação dos
Moradores e Amigos de It inga (AMAI) e pela Associação das M ulheres organizadas do
Vale (AMOVAJE), que se reúnem e se organizam com o apoio do SPM (irmã Sandra, em
especial); as comunidades rurais de José Gonçalves (no rio Piauí); Gravat á, Alfredo Graça
e Engenheiro Schnoor (as t rês últ imas no rio Gravat á), opt ei por estas duas últ imas para
um t rabalho de campo mais det alhado (Figuras 3 e 4). A distinção de cont eúdos e
proximidade física delas, a primeira dist a cerca de 40 km, percorridos em uma est rada de
t erra a part ir do cent ro de Araçuaí e a segunda comunidade dist a 60 km seguindo a
mesma est rada, a mont ant e do rio Gravat á, chamaram a at enção.
As duas, ademais da proximidade, têm característ icas peculiares: enquant o
Alfredo Graça, ou simplesment e Graça, t em uma produção agrícola mais int ensa, é a
comunidade que tem a maior produção de farinha de mandioca do vale do Gravat á;
Engenheiro Shnoor, elevado à dist rit o, revela-se mais urbanizado. Nas duas é freqüent e a
migração dos homens para o cort e de cana em São Paulo.
5 Sublinho que em alguns casos, era uma mesma pessoa que respondia por diferent es instit uições como,
Figura 1. Mapa de Minas Gerais: Vale do Jequit inhonha e Araçuaí.
Font e: Adapt ado de IBGE <WWW.ibge.gov.br/> Acesso em 2009. Elaborado por Carlos Tadeu C. Gamba.
Figura 2. Imagem de sat élit e da região de Araçuaí
Figura 3. Imagem de sat élit e da comunidade do Graça.
Font e: composição colorida Landsat 5 TM, Órbita 217, Ponto 072, Bandas 1 (Azul), 2 (Verde) e 3 (Vermelho), de 01 de julho de 2007. Elaborado por Carlos Tadeu C. Gamba.
Figura 4. Imagem de sat élit e da comunidade de Schnoor.
Nas comunidades de Graça e Engenheiro Schnoor, ou só Schnoor, eu dormia na
residência de alguns dos ent revist ados e ajudava na lida da casa6; conversava com
part eira, ex-vereador, enfermeiras, crianças, assent ados, com os agricult ores mais velhos
(alguns com mais de 80 anos) e com as mulheres.
Opt ei t ambém em f azer dois t rabalhos de campo em épocas de fest a mot ivada
pela Reza do Menino Jesus vist a em 2008, na comunidade do Graça, e por uma afirmação
de Suzanna Evelyn (1988, p. 26): “E assim, enquant o a fest a não migrar t ambém a
migração cont inua provisória recriando, a cada vez, este personagem cont radit ório,
dividido, operário e lavrador que é o migrant e temporário”. A fest a como uma
manifest ação cult ural e religiosa confere sentido ao lugar de origem, o qual não se
most rou mít ico como nas análises de uma import ant e referência t eórica dest a pesquisa,
Abdelmaleck Sayad7, mas sim como t errit ório de vida, t errit ório para se habit ar.
As duas fest as religiosas import ant es do médio Jequit inhonha são: Nossa Senhora
do Rosário e a Fest a de Virgem da Lapa. A primeira é organizada pela Irmandade Nossa
Senhora do Rosário, conhecida em t odo o Vale, que cont a hoje com poucos membros.8 A
segunda é mais regional, organizada por várias inst it uições e dura muit os dias.
Para a festa de Virgem da Lapa, em agost o de 2009, t omei o ônibus com dest ino a
Araçuaí na cidade de Ribeirão Preto (SP), junt o com os homens migrant es que t omaram
uma semana ou dez dias de folga nas usinas e iam fest ar. Muit os cort adores, se podem,
encaram as 24 horas de viagem dent ro do ônibus, vão visit ar a família e ir à fest a. Após a
fest a, volt am ao cort e em São Paulo e ret ornam ao Vale somente em dezembro.
6 Aventurando-me a preparar pratos da culinária paulistana.
7Abdelmalek Sayad, estudando os imigrant es argelinos que se est abeleceram na França, foi quem deslocou
o foco dos est udos migratórios na década de 60. Enquant o pesquisas, numa visão et nocêntrica, eram realizadas pensando na adequação (ou não) dos imigrant es à sociedade receptora, ele revelou o emigrant e existente no imigrante, ou seja pessoas com história e lugar de origem.
Dois homens no ônibus, quando indagados, disseram que t rabalhavam na
mont agem (linha de mont agem em f ábricas), em Campinas e Ribeirão Pret o. Cont udo,
quando coment ei um pouco sobre o calendário agrícola da cana e localização das usinas,
eles sabiam responder e conversavam com muit o ent endiment o. Parecia ser o
t rabalhador rural querendo ser operário, com o dest ino da prolet arização no seu
horizont e, com a vida part ida ent re o “ cá” e o “ lá”9.
As grandes t ensões que vinham sendo observadas nas duas comunidades rurais
est udadas foram expressas por esses homens: (i) prolet ários no t errit ório da cana,
espaço de t rabalho; (ii) camponeses-migrant es, ent re o cá o lá; e (iii) camponeses, em
uma dura lut a para mant er a família na t erra. Sujeit os com uma inserção já longa (desde a
década de 1970) no mundo da indúst ria da cana-de-açúcar como proletários;
camponeses-migrant es, como t ant os milhares que perderam suas t erras em nome da modernização e
da expansão capit alist a no campo, procurando formas para se reproduzir socialment e
com seu grupo familiar; camponeses do Vale forjados ainda na época em que o ouro e
out ros met ais preciosos faziam com que esta região fosse a “ Menina dos olhos” do
Império colonial português.
Ao mesmo t empo, eram homens orgulhosos, criando para si uma realidade
“ única” (a da fábrica ou a da roça), não dando confiança à mulher/pesquisadora.
Nos t rabalhos de campo ant eriores, já havia percebido que a conversa com os
homens era mais delicada: eles devem se apresent ar sempre como vit oriosos e chefes de
família provedores; cont ar a dureza da vida durant e os nove meses de sofriment o para
uma mulher-estranha não é fácil. O mais natural é orgulhar-se da casa equipada com
9 Sendo o “ cá” o destino da migração e o “ lá” a t erra de origem, já tão distant e. São 24 horas separando
produt os adquiridos com o suor do t rabalho em São Paulo e com as economias realizadas
pela família no Vale.
Sayad (1988), ao estudar o emigrant e-imigrant e argelino observou que uma das
caract eríst icas do fenômeno da emigração é a dissimulação, para os próprios sujeit os, da
verdade de sua condição como “ t ransit ório” . Quando ele est eve na Cabília, região da
Argélia de onde part iram muit os migrant es, observou as aldeias em fest a com a chegada
dos homens: alt os, alt ivos e felizes em ret ornar para suas aldeias, para casament os e
fest as. Na aldeia, os homens falavam do quant o o t rabalho era difícil na França, de t odo o
rest o não falavam. Quando o pesquisador os encont rou na França, viu-os em alojament os
precários, retraídos em suas camas. Num depoiment o colhido pelo aut or, um argelino de
21 anos afirma:
Eles [ os homens mais ant igos que migraram para a França] não servem nem para o t rabalho nem para o combat e; est ão quebrados, só servem para dormir at é a ‘hora mais quent e do meio-dia’. Para est es a t erra serve, agora que da França eles t rouxeram suas carcaças; f oi só o que ela lhes deixou: um mont e de ossos que eles preservaram; só lhes rest a isso, o essencial, o que é ‘vivo’, eles deixaram na França. Aliás, t odos volt aram [ da França] com alguma coisa: alguns, com uma aposent adoria; out ros, uma pensão por invalidez. Eles t rouxeram consigo, ‘da França, sua part e’. (SAYAD, 1998, p. 31 - ent revista concedida em 1975)
Ao analisar as cont radições do processo de expansão do capit alismo na
agricult ura brasileira, M art ins (1986; 1988a) apont a que, no decorrer desse processo,
milhares de camponeses e indígenas perdem suas terras: recriam-se em out ro lugar, em
front eira; podem ser const rangidos à prolet arização, liberando a t erra para a ext ração da
renda fundiária; podem resist ir e lut ar pela t erra. O campesinat o brasileiro encerra todas
um espaço a out ro, refere-se à passagem de um t empo a out ro: do tempo de produção
camponesa para o t empo de produção e reprodução do capital. O migrant e é o sujeit o
social por excelência que submet ido à lógica de reprodução do capit al vive a t ransição
ent re duas lógicas, dois mundos:
Ser migrant e t emporário é viver t ais cont radições como duplicidade; é ser duas pessoas ao mesmo t empo, cada uma const it uída por específicas relações sociais, hist oricament e definidas; é viver como present e e sonhar como ausent e. É ser e não ser ao mesmo t empo, sair quando est á chegando, volt ar quando est á indo. É necessit ar quando est á saciado. É est ar em dois lugares ao mesmo t em po, e não est ar em nenhum. É, at é mesmo, part ir sempre e não chegar nunca. (MARTINS, 1986, p. 45)
Os cort adores de cana t ambém dissimulam para si mesmos sua condição de
t ransit órios10, revelam orgulho de pertencer à comunidade e orgulho de suas novas mercadorias, duas dimensões da vida indissociáveis no moment o. Escondem o quant o
est ão submetidos à lógica de exploração de seus corpos e de suas vidas como proletários
da empresa capit alist a de cana-de-açúcar. Os homens levam de São Paulo seus corpos
exaust os, quebrados, após o longo período da safra e, levam nos bolsos o acerto de
cont as com a usina (sempre menor que o esperado11) para a compra das mercadorias e
para garant ir a reprodução social de sua família.
José de Souza M art ins (1988a), ao discorrer sobre a compra dos óculos escuros
nas rodoviárias do Brasil, afirmou que as lent es compõem uma máscara que denot a a
t ransição dest e sujeit o. As falas dos migrant es sobre suas novas mercadorias revelam a
10 O termo transição nos parece indicar um sentido único estabelecido para a trajet ória do campesinato, um
ponto de partida e um pont o de chegada, que não corresponde à diversidade de processos sociais existentes no Brasil por isto, optamos por “ transitórios” .
11 Nos boletins de sindicatos rurais e do SPM e nas entrevistas realizadas sempre aparece a denúncia de
perversidade do fetiche da mercadoria e t ambém escondem t udo o que o migrant e não
expõe facilment e como o sofriment o vivido com as condições de t rabalho, as perdas e as
saudades. A ent rada dos camponeses no mundo do t rabalho assalariado, especificament e
no cort e de cana de açúcar em São Paulo, expõe rudemente a inserção t ão precária e
cont radit ória desses sujeit os no mundo moderno no qual, ent re outras caract erísticas, o
t rabalho deixa de ser um elemento const it ut ivo de um modo de vida e se t orna força de
t rabalho a ser absorvida pelo mercado.
[ ...] o signo do moderno, os óculos escuros, é engolido por uma lógica ant imoderna, embora cont inue parecendo moder no. Est e é o pont o: parecer moderno, mais do que ser moder no. A modernidade se apr esent a, assim, como a máscara para ser vist a. Est á mais no âmbit o do ser vist o do que no do viver. Ora, de qualquer modo, m esmo que o t empo do mascarament o seja esse t empo pret érit o, a máscara é a ident idade superficial e f enomênica própria da modernidade. (MARTINS, 2008a, p. 33)
A análise do processo que t ransforma o camponês-migrant e em consumidor de
mercadorias deve ser analisado com muit o rigor. O campesinat o não part icipa
integralment e da lógica de produção e consumo de mercadorias, dado que o valor de uso
permeia ainda hoje sua vida e suas represent ações. A mercadoria est á disponível para o
campesinat o porém seu fet iche e sua invenção como imprescindível, é vivida por eles de
forma part icular.
Em seus lugares de origem, em suas comunidades, os homens têm casa, muit os
cult ivam roça com a família, são chamados pelo nome, são conhecidos por t odos, não são
submet idos a roupas de t rabalho sufocant es, tomam banho de rio na época das águas,
suas casas e comunidade. São cont inuidade, pert enciment o, dignidade12, lugar e
moviment o.
Esses mesmos sujeit os, quando em São Paulo, moram em alojament os insalubres,
podem ludibriar os comerciant es locais adquirindo dívidas, são mal-vist os por muit os das
cidades onde se encont ram, não sabem o dia da semana em que se encont ram, recebem
not ícias esporádicas da família e, mais relevant e, est ão na condição de t ransit órios.
Sent em-se t emporários no espaço da cana, a ele não se apegam, apenas o suport am.
Conversar com os homens fora de seu lugar de origem mostrou o quant o eles est ão
deslocados em São Paulo.
Há uma aut o-ident ificação dupla que t raduz as cont radições vividas por est a
parcela do campesinat o: podem definir-se como sendo da “ sua comunidade” e como
cort adores de cana. É nest a dupla afirmação, prolet ários no espaço da cana e
camponeses no Vale, que reside à contradição: o quant o uma ident idade define e
sust ent a a out ra? Vivem numa margem, ent re o local de t rabalho (exploração e dinheiro
para a reprodução de sua família) e o t errit ório de sua comunidade e família.
Mart ins (1988a) salient a que nem sempre a imigração é um problema, ela pode
t ambém represent ar aut onomia para uma parcela camponesa que se libert a do julgo de
dominação de lat ifundiários. Tal constat ação, no ent ant o, não revela que a liberdade
obt ida ao sair do julgo de lat ifundiários é uma liberdade dent ro dos limit es da reprodução
do capit al, ou seja, a liberdade para vender a sua força de t rabalho onde quiser, ou mais
realist icament e, onde o mercado absorvê-la. Para Silva, a condição vivida ant es da década
de 1970 por uma parcela do campesinat o já era uma dominação-exploração capit alist a:
O que ocorreu foi uma mudança nas relações sociais, no int erior da dominação capit alist a. Os ant igos coronéis e fazendeiros foram subst it uídos pelos usineiros e fazendeiros via novos mediadores, sob a égide do Est ado e dos aparat os jurídicos. (SILVA, 1999, p. 19)
No caso est udado, o mercado principal de absorção da força de trabalho
masculina se encont ra no set or sucroalcooleiro no est ado de São Paulo.
Foi no segundo t rabalho de campo, em julho de 2007, época de cort e, que a
pesquisa se concent rou nas famílias e mulheres dos cort adores de cana. As primeiras
ent revistas, nesta colet a, não foram gravadas por cont a da vergonha/desconfiança que
esse equipament o provocava. Durant e algumas conversas, eu anot ava continuament e a
fala das ent revist adas. Diferent ement e dos homens, as mulheres expuseram suas vidas e
suas prát icas cot idianas na comunidade.
Os mét odos de colet a de regist ros, impressões e informações ut ilizados no
t rabalho de campo foram a observação part icipant e, as entrevistas semi-est rut uradas e
algumas hist órias de vida, sem perder de vist a que t odos os discursos são sempre
mediados por uma série de valores, inclusive o da própria pesquisadora.
As principais pergunt as feit as para as mulheres durant e os trabalhos de campo
foram: como se sent em quando os maridos não est ão em casa, como organizam o
cot idiano, como é a vida na ent ressafra da cana, como administ ram a economia
domést ica familiar, o que esperam para o fut uro de seus filhos.
Ainda em campo, a observação se dirigia às prát icas cot idianas das mulheres, ao
cuidado com a casa e os quint ais, às roças cult ivadas pelos moradores mais velhos, à
A part ir do conjunt o de observações e ent revistas, das anot ações feit as nas t ant as
cadernetas de campo, do estudo da t eoria, das conversas com a orient adora que
inst igava a revelar o que est ava velado (às vezes as nossas premissas ou o excesso de
cuidado com a pergunt a cent ral da pesquisa formaram véus que nublavam a
interpretação da realidade), novos t emas se revelaram, dent re eles o da
subproletarização e da condição de margem vivida pelas comunidades. “ Terceira
margem.”
Algumas das ent revist as em Engenheiro Schnoor ocorreram em bares, com
cant orias, cerveja e cachaça; out ras, em cozinhas e quint ais preparando a comida, nos
salões de beleza improvisados nas casas ou caminhando pelas ruas. Algumas se t ornaram
hist órias de vida. Escrever sobre est as ent revistas não é tarefa fácil, requer uma at enção
ét ica e humana. As conversas sobre a ausência dos maridos e a vida quando eles est ão
longe foram de tant a intensidade que não foram gravadas e sequer anot adas nos t rês
primeiros t rabalhos de campo, em 2007 e 2008. Até mesmo o regist ro fot ográfico das
mulheres foi evit ado.
Percorrendo a comunidade, ent re uma ent revist a e out ra, ao longo das semanas
passadas ali, observava at ent ament e quem estava nas ruas, como eram as crianças, que
t ipo de comércio se est abelecia, como eram as ruas, calçadas, praças, casas, quint ais e
como as pessoas da comunidade se relacionavam em suas prát icas cot idianas.
No quart o t rabalho de campo, já conhecendo e sendo conhecida por alguns
moradores, as ent revist as puderam ser gravadas. As ent revist as t ranscrit as encont ram-se
na ínt egra no final do volume.
Dada a dureza da realidade relat ada e a garantia de poder dizer t udo o que
proposit alment e fict ícios. Os relat os foram muit o pessoais e nos preocupamos em
defender a int imidade daquelas que t ant o revelaram, daquelas que encont raram na
pesquisadora - que não é da comunidade, port ant o não compart ilha o conjunt o de
costumes e de valores das pessoas do lugar - um canal para refletir sobre a própria vida.
Pelo compromisso firmado em campo de t rocar os nomes de algumas mulheres,
opt amos em t rocar t odos os nomes das pessoas das duas comunidades na t ent at iva de
deixar no anonimat o quem pediu, dado que as trajet órias de vida se ent recruzam. Pelo
mesmo mot ivo, opt amos em não colocar nenhuma fot o das pessoas das comunidades.
Durant e os t rabalhos de campo levávamos as f ot os t iradas na t emporada ant erior para
presenteá-los pois sempre era com alegria e orgulho que eles most ravam as fot os da
família.
Na comunidade de Alfredo Graça, as entrevist as ocorreram nas casas ou nos lot es
dos assent ados. Os homens do assent ament o “ Para a Terra” conversaram sem
demonst rar vergonha, se orgulhavam da produção na terra, da vida com suas f amílias e
da lut a.
1.1 Algumas premissas sobre as teorias migratórias
Segundo Vainer (2007) e Póvoa Net o (1997), são t rês as principais corrent es
t eóricas ident ificadas nos est udos sobre a migração, quais sejam: (a)neoclássica, (b)
hist órico-est rut ural e (c) mobilidade do t rabalho.
A liberdade do t rabalhador é uma das premissas da explicação dada pela corrent e
(a) neoclássica. O mercado regularia o fluxo de pessoas livres e o espaço social seria
t rabalhador livre possui a si mesmo e suas inúmeras capacidades (inclusive a capacidade
do t rabalho) e deve colocá-las à venda.
O mercado orient a os t rabalhador es, que são racionais, a locarem de maneira ót ima o recurso de que dispõem – seu capit al humano. Sendo o mercado o mais eficaz mecanismo para ot imizar a alocação de recursos (inclusive capit al humano, ou a população), qualquer int ervenção ext er na, qualquer t ent at iva de bloquear o livre jogo de ofert a e procura de localizações implicaria em um dist anciament o em relação ao pont o ót imo para o equilíbrio espacial, ót imo para o capit al e, por conseguint e, ót imo para t oda a sociedade. (VAINER, 2007, p. 20)
Em concordância com Vainer, Póvoa Neto afirma que para a concepção
neoclássica, o migrant e seria:
(...) um port ador de t rabalho, um fat or produt ivo que, em combinações adequadas com a t erra e o capit al, apresent a int eresse para os processos de desenvolviment o econômico. (PÓVOA, 1997, p.15)
O raciocínio neoclássico ent ende a liberdade do trabalhador em sua posit ividade:
ele tem sua força de trabalho para ser negociada no mercado de t rabalho.
Não há como invest ir na t eoria neoclássica da liberdade e da regulação do
mercado, pois est a nega qualquer possibilidade e ent endiment o dialét ico da realidade e
seus conflit os13. Para os neoclássicos, se o mercado é o grande regulador, qualquer
est ranhament o vist o na realidade pode ser lido como o moment o de desestrut uração em
vias de equilibrar-se, pois, afinal, est e seria o grande mérit o do mercado.
1313 Tendo em vista t ambém as migrações internacionais e t oda a sua complexidade, não nos parece factível
No segundo modelo analisado pelos aut ores, denominado (b) est rutural, t ambém
chamado por alguns aut ores de hist órico-est rut ural, os indivíduos não fazem escolhas,
“ (...) é o moviment o do capital, sua expansão e ret rat ação, seu deslocament o ou
permanência que comanda a mobilidade e localização do t rabalho.” (VAINER, 2007, p. 21).
O espaço deixou de ser o espaço social da liberdade individual, agora é o espaço da
est rut ura capit alist a, espaço est rut ural ou est rut urado. O prot agonist a deste espaço é o
capit al.
No modelo hist órico-est rut ural ou estrut ural, os grupos e as classes sociais sofrem
a pressão das est rut uras sociais. Os mot ivos de expulsão no lugar de origem e a sua
função no int erior do sist ema econômico mais amplo são cent rais nos est udos sobre a
migração para esse modelo. No ent ant o, há problemas em conciliar os níveis macro e
micro na análise do fenômeno, segundo Póvoa (1997).
No modelo hist órico-est rut ural, o t rabalhador como indivíduo é soment e port ador
da lógica da est rutura e não mais o sujeit o livre do modelo neoclássico.
Para os neoclássicos, a ‘liberdade’ dos sujeit os era const it uída soment e por sua
positividade. A corrente hist órico-estrut ural most ra a face obscura da liberdade, a sua
negatividade. O conceit o de liberdade negat iva em M arx busca compreender o
t rabalhador como despossuído dos meios de produção e de subsistência, sujeit ado pelo
capit al, sujeit o-sujeit ado.
A crít ica à liberdade negat iva t ende a ser ‘borrada’ conforme o capit al se
espacializa ao longo do t empo. A violência da acumulação primit iva, descrita por M arx, se
nat uraliza. Os t rabalhadores serão educados, disciplinados e exercerão ‘livrement e’ as leis
da est rut ura, t ão ‘livrement e’ que a negat ividade da liberdade deixará de ser frut o de
Vainer ident ifica nos dois modelos ant agônicos uma convergência: o espaço de
deslocamento, em ambos modelos, é um espaço econômico do mercado ou da estrut ura,
espaço da razão (est rut ural capit alist a ou do mercado). As considerações sobre a
est rut ura do capit al e de sua reprodução est ão f ormuladas em M arx e poderiam se t ornar
at emporais.
Ambas corrent es dispensam um t rabalho de campo que se debruce sobre a
realidade vivida pelos migrant es já que as explicações já est ão dadas.
Os migrant es mobilizados para o cort e não são t ão sujeit os de seu caminho (como
os neoclássicos gost ariam) t odavia t ampouco devem ser vist os soment e como sujeitados
a um modelo econômico como sugere a corrente hist órico-estrut ural.
A cont radição sujeit o/sujeit ado inerent e à atual condição de t rabalhadores
t emporários est á present e nas práticas dos migrant es junt o às suas famílias e
comunidades no município de Araçuaí. A cont radição se expressa nas prát icas cot idianas
desconsideradas pelas duas corrent es.
O t errit ório camponês estudado nas duas comunidades rurais do Vale do
Jequit inhonha (como será apresent ado ao longo da t ese) não é apenas o lócus de
sobrevivência mat erial e de pert enciment o de pert enciment o, é t ambém um lugar de
ação polít ica14 . É a ‘t erra’. Para o campesinat o ela é um dos alicerces que rege t odo um
modo de vida secular e em permanent e t ransformação. À t erra, os camponeses
ret ornam, pois ela guarda sua família, sua ident idade e potencialment e as condições para
a sua realização humana.
Póvoa Net o afirma que est amos diant e de um campo em disputa, “ (...) um campo
de enfrent ament o de posições políticas e met odológicas a respeit o da migração, o qual
14 Exercido nos sindicatos, nos encontros promovidos pela SPM e Cáritas mas que não foi o foco da nossa
será aqui designado como constit uindo a questão migrat ória” (1997, p.12). Ele apresent a
mais uma possibilidade teórica além da neoclássica e da est rut ural. Para este aut or assim
como para Heidemann (anot ação de aula, 2008), a t erceira corrente assent a-se nas
formulações de Gaudemar (1976) sobre a (c) mobilidade do t rabalho.
Gaudemar (1976) resgat a em M arx (especialment e no capít ulo inédit o) a crít ica às
formulações neoclássicas ancoradas em Adam Smit h para erigir o conceit o crít ico de
mobilidade do trabalho. Como muit os dos conceit os em Marx, a mobilidade da força de
t rabalho não deve ser encarada como t ot alment e definida. Gaudemar afirma:
(...) como conceit o que corresponde às formas de exist ência da força de trabalho como mercadoria, surge e impõe-se t ambém a part ir da análise dest as formas propriament e dit as: const it ui o único modo de compreender globalment e aquilo que permit e, na mult iplicidade de seus modos, a submissão do t rabalho ao capital.(1976, p. 341)
Para a compreensão dest a submissão, o aut or resgat a o carát er t riplo da
mercadoria: valor de uso, valor de troca e inserção no mercado. A inserção no mercado
possibilit a o ent endiment o do t rabalho t ransformado em força de t rabalho. O t rabalho
(como nexo de mediação social), diante do capit al, permanece com seu carát er concret o
de produt or de valores de uso e ganha um significado abst rat o: é reduzido a força de
t rabalho e produt or de valor.
A força de t rabalho é uma mercadoria muit o part icular: seu valor de uso possui a
virt ude de ser valor de troca, e ao ser consumida, cria valor – det erminado pelo tempo de
t rabalho socialment e necessário para a sua produção. A força de t rabalho t orna-se uma
Como força de t rabalho, o t rabalho humano pode ser comprado e vendido dado
que ele é livre (em sua posit ividade e negat ividade). A mobilidade do trabalho, ou da
força de t rabalho, t orna-se condição de exist ência da reprodução ampliada do
capit alismo. Out ra condição para a reprodução é a submissão da mobilidade do
t rabalhador às exigências de organização do t rabalho: duração, int ensidade,
produt ividade, deslocament o espacial. Reside aqui uma das chaves t eóricas, no campo
econômico, para a compreensão da quest ão migrat ória.
Segundo Gaudemar, quanto maior a produção capit alist a, maior a mobilidade
exigida à capacidade de trabalho:
A mobilidade é a capacidade que permit e à força de t rabalho adapt ar-se às variações da jornada de t rabalho, à permut ação dos post os de trabalho, aos ef eit os de uma divisão do t rabalho cada vez maior. (1976, p. 194)
A front eira ent re a abordagem da mobilidade do trabalho e a concepção hist
órico-est rut uralist a parece-nos t ênue. Póvoa (1997) apont a que a primeira enfoca o processo
de acumulação capit alist a em escala ampliada e que a segunda enfoca os problemas
est rut urais causadores dos fluxos migratórios.
Para os que defendem a t eoria da mobilidade do trabalho, uma alt ernat iva se
apresent a: est udar as formas como o capit al mobiliza a t odos nós, como dispõe da força
de t rabalho e como lança mão dos migrant es, na escala (relacional) est udada que for,
para sua reprodução.
A discussão sobre a quest ão migrat ória, como observado até o moment o, t ambém
apresent a seus ‘campos’ e ‘sub-campos’ de disput a. Tomamos de Bourdieu (2004, p. 21) o
qual se inserem os agent es sociais e as instit uições que o produzem. O campo cient ífico é
um mundo social que t ambém t em suas regras e exigências e const it ui-se num campo de
força, campo de lut as t ant o em sua represent ação como na realidade.
Heidemann15 , além das correntes mais difundidas, apresent a outra possibilidade
de análise: a crise e o fim do t rabalho. O migrant e ‘mobilizado de ant igament e’ t
ornar-se-á, além de mobilizado, flexibilizado.
Abdelmalek Sayad, apont ado como um dos progenit ores dos est udos, chamados
“ culturais” , em t ext os publicados ent re 1975 e 1988, reunidos no Brasil no livro chamado
“ A imigração” (1998), apresent a t emas novos relacionados à lógica do moviment o
migrat ório.
O int elect ual argelino t ambém é um imigrant e, mas numa sit uação privilegiada,
como professor na França. Viveu a década de 1970 ent re a França e a Argélia e conheceu
o processo de desest ruturação pelo qual passaram as comunidades rurais da Argélia,
especialment e da Região Kabila, e a intensa migração desses para a França. Em outros
países da Europa t ambém a migração foi incent ivada at é meados da década de 1960/1970
quando começou a t ornar-se um problema, do pont o de vist a da sociedade recept ora,
que at ualment e mobiliza boa part e do aparat o jurídico e policial destas nações para a
cont enção do fluxo.
Um dos mérit os do aut or foi entender a dimensão simbólica e mat erial do
“ retorno como element o const it utivo da condição do migrant e” (Sayad,2000). Muit os
suport am as agruras da imigração para t erem seu lugar, lugar do emigrant e, garantido
15 Dieter Heidemann ministrou em 2008 o curso: Migração e Dinâmicas Territ oriais nos Processos de
em sua volt a, ainda que seja como mit o. ‘Ret orno’ que possibilit ará, no caso dos argelinos
est udados por ele, o re-encont ro com a família e com o lugar.
Segundo Sayad, est e ret orno pode se const it uir numa dupla ficção: ficção de uma
volt a que se sabe impossível e a ficção de uma nat uralização ambígua na França.
O ent endiment o dos processos sócio-territ oriais que criam a mobilidade do
t rabalho careceria, para os “ cult uralist as” , de out ras explicações que dêem cont a de
ent ender o que mais est es t rabalhadores são (além de força de t rabalho), o que fazem,
com que sonham e como se t erritorializam.
Ao longo dos capít ulos desta pesquisa analisaremos como o campesinato se
t ornou força de t rabalho mobilizada pelos int eresses de reprodução do capit al e se esses
t rabalhadores garant em, precária e cont raditoriament e, a reprodução social de sua
família.
O caminho teórico-met odológico escolhido foi a análise das prát icas cot idianas
para a crít ica dos processos que mobilizam o camponês do Vale, transformando-o em
2
Panorama da produção de
agrocombust íveis
. Eu já fui Rei, a minha mulher foi Rainha,
pela mat a eu ia e vinha, livre como animal,
Mas hoje em dia, sou como um bicho acuado,
t rabalhando acorrent ado, preso no canavial
O cort a cana, cort a cana, cort a cana, nego velho,
corta cana no canavial
ma das cont ribuições que est a pesquisa almeja é revelar um aspect o ainda
não muit o abordado no campo das ciências humanas acerca da quest ão energét ica
brasileira e da opção pela produção do et anol advindo da cana-de-açúcar, qual seja: a
t errit orialização cont radit ória do camponês-migrant e que cort a cana de açúcar em São
Paulo. Esperamos que est a análise da migração venha se somar às reflexões sobre a
quest ão energét ica, sobre o agronegócio e, no campo mais específico da geografia
agrária, possa t razer o t ema da migração e suas implicações nos lugares de origem e na
reprodução social dos camponeses migrant es como cont eúdos relevant es no est udo do
espaço agrário lat ino-americano.
Há aut ores que se debruçaram sobre as condições de t rabalho do migrant e
cort ador de cana em São Paulo e que teceram algumas considerações sobre o seu lugar
de origem t ais como Francisco Alves (2006; 2007) e Maria Aparecida de Moraes Silva
(1999). Entret ant o não conhecemos muit os trabalhos cujo foco de análise seja a
reprodução social do t rabalhador migrant e e sua t errit orialização cont radit ória em seu
lugar de origem, na forma como pret endemos fazer nest e t rabalho.
Tendo como objet ivo secundário da t ese, ent ender como ocorre o processo
cont radit ório da reprodução camponesa em f ace da t errit orialização do gado e do eucalipt o
em Minas Gerais e da cana- de- açúcar em São Paulo nos lançamos nest e capít ulo à
empreit ada de desenhar um panorama da produção de açúcar e álcool em São Paulo - e
seu corolário, a produção da agroenergia e sua demanda por t rabalhadores migrant es -
bem como a cumplicidade do Est ado no processo de territ orialização do agronegócio e
mobilização de força de t rabalho.
Faremos a seguir algumas observações sobre o agronegócio do set or
sucroalcooleiro, para ret omarmos nos capít ulos subseqüent es, a quest ão migrat ória em
Araçuaí e a t errit orialização do gado e do eucalipto em M inas Gerais.
2.1 Antecedentes ambientais
A relação ent re cresciment o econômico desmedido e o agravamento das quest ões
ambient ais ganhou um novo cont orno a part ir da realização de fóruns int ernacionais e da
publicação de alguns document os. Dent re eles, o Relatório do Clube de Roma em 197216,
elaborado na Primeira Conferência do Meio Ambiente, ocorrida em Est ocolmo; o
Relat ório Brundt land ou Nosso Fut uro Comum17 de 1987; a Agenda 2118 (plano de ação
para a implant ação do desenvolviment o sustent ável) e a Convenção sobre Diversidade
Biológica19 - ambas formuladas durante a II Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambient e e Desenvolviment o em 1992, conhecida como ECO 92. Para t ratar mais
especificament e das mudanças climát icas, foi criado o Painel Intergovernament al sobre
Mudança do Clima (IPCC)20 em 1988 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambient e (PNUMA) e pela Organização M et eorológica Mundial (OMM). Atualment e são
os est udos feit os pelos pesquisadores do IPCC que fornecem o discurso cient ífico oficial
ao debat e sobre as mudanças climát icas.
16 Disponível em: <http://w ww.clubofrome.at/about/limitstogrowth.html>. Acesso em: 11/04/2010.
17 Apresent ado em 1987, propõe o desenvolvimento sust ent ável como alternativa ao modelo de
desenvolvimento. Foi publicado após 15 anos da reunião em Estocolmo e visando a produção de um document o mais det alhado que conciliasse as divergências surgidas durante a I Conferência. Disponível em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N87/184/67/IMG/N8718467.pdf?OpenElement>. Acesso em: 11-04-2010.
18 Disponível em: <http://www.un.org/esa/dsd/agenda21/>. Acesso em: 11/04/2010. 19 Disponível em: <http://www.cdb.gov.br/CDB>. Acesso em: 11/04/2010.
20 O objetivo desse Painel é avaliar os conhecimentos científicos produzidos sobre os efeit os das mudanças