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Representações sobre a miséria e a importância das usinas

Das prát icas cotidianas

4.2 Representações sobre a miséria e a importância das usinas

O Vale do Jequitinhonha t em como alcunha “ Vale da Miséria”66. Alguns moradores

reit eram est a visão de pobreza e miséria e at ribuem, crit icament e ou não, essa condição à falt a de invest iment os do Est ado.

Uma moradora do Graça, Ângela, que morou alguns anos em Brasília e t rabalhava em lojas, quando indagada sobre est a alcunha respondeu que em Brasília era comum polít icos entrarem na loja, para fazer compras e pergunt arem de onde ela era, após ouvirem seu sot aque mineiro. Quando ela dizia que era do Vale do Jequitinhonha, eles demonst ravam pesar por ela ser do “ Vale da Miséria” . Ela ent ão dizia: “ (...) miséria é a polít ica de vocês, lá o povo é pobre mas t em dignidade; miséria é o bolso e a cabeça de vocês. Pro governo é o Vale da Miséria, falt a é o governo invest ir, ele só sabe comprar a gent e nas eleições.”

Em algumas falas de moradores das comunidades est udadas, miséria, pobreza e exploração se confundem. O dinheiro do cort e e as condições de t rabalho nas usinas são apont ados como miseráveis.

L: O que senhor acha da vida de quem vive na usina?

Alfredo: Eu não acho que eles t á f azendo..., vai e volt a, com poucos dias acabou o dinheiro. Não vale nada. Quando volt a, t raz dinheiro mas acaba rapidinho. O dinheiro falam que não é abençoado, de usina.

L: É amaldiçoado?

A: É. Não sei como acaba rapidinho, ainda mais quando a pessoa pega coisa assim em armazém.

66 Em 1974, um relatório da ONU declarou o Vale do Jequitinhonha como uma das regiões de maior

Méia: Quem t á aqui faz muit o dívida, a gent e com pra num pr eço hoje, amanhã já t á out ro aí quando vem o dinheiro não dá nem pra pagar. A: Não dá, não.

Não são t odos os moradores que percebem a miséria como os entrevist ados cit ados, relacionando a usina ou o dinheiro da usina à miséria. Muit os, t ant o no Graça como em Schnoor, ressalt am que o dinheiro do corte de cana é fundament al para a cont inuidade da vida no Vale e alguns agradecem à usina. Porém, nenhum dos ent revistados se ut ilizou do termo “ fart ura” ou “ riqueza” . Muit os diziam que o dinheiro “ ajuda” ou “ que é import ant e” ou que é “ a única opção” para os homens. Vejamos o depoiment o de t rês moradores de Schnoor.

Dona M azinha, senhora que gost a de t rabalhar na roça, mora sozinha. É viúva e t odos os filhos migraram:

L: E a senhora t em parent e que vai pra usina? Dona Mazinha: Meu filho mesmo vai pra lá. L: Quando ele vem aqui, ele ajuda a senhora? M: Ajuda.

L: Ele chega que mês? M: Dezembro.

L: Mas a roça já t á pront a...

M: Dezembro a roça t á pront a mas ele ajuda porque manda o dinheiro e ajuda muit o.

Malu ressalt a a import ância do dinheiro da usina, ela t em uma filha e vive quase exclusivament e do dinheiro enviado pelo marido:

L: (...) e ele precisa ir? O dinheiro que ele t raz é muit o import ant e?

Malu: Nossa é import ant e porque aqui não t em out ro meio de você ganhar dinheiro. Aqui é um lugar que eu cost umo falar que é esquecido por t odos os órgãos. Não oferecem curso pra ninguém, ent ão f ica assim meninos t ão

na escola mas t ão com o pensament o de acabar e ir pro cort e de cana. Segundo grau hoje não dá nada, se você não t iver um curso, uma formação, você não faz nada. Ele não t eve uma oport unidade de est udo, quem não est udou hoje em dia vai ser o que? Vai ser cort ador de cana. O único dinheiro, maneira de ganhar dinheiro aqui é isso...

L: Ele manda dinheiro t odo mês? M: Manda t odo m ês.

L: Ele pergunt a quant o você pr ecisa ou ele manda...

M: Não, ele manda o que acha que dá e sempre dá. Depois que ele manda ele pergunt a: deu? Tá precisando? É assim... ele não me deixa falt ar nada.

Por fim, o depoiment o de Irineu67 que trabalhou muit os anos na usina Bonfim em São Paulo, foi cort ador de cana, fiscal e mot orist a do ônibus. Hoje não migra mais, est abeleceu um comércio na comunidade e tem um emprego que lhe permit e est ar em casa t odos os dias por volt a das 16:00 horas:

L: Irineu, você falou que t em que agradecer as usinas t ambém. Por quê? I: Vou falar a verdade: eu gost o das usinas. Me ajudou demais... se não f osse usina. Não é só eu não... esse Schnoor t odinho aqui. O dinheiro que rola aqui é usina e aposent ado. Mês de dezembro isso aqui é bom, julho e dezembro. Em julho o pessoal de São Paulo e das usinas vem passear. Dezem bro é bom, é gent e demais. Reclamar de usina eu não r eclamo não, qualquer dia eu posso est ar lá de novo.

Os homens que t êm pert o de 50 anos foram f orjados no bojo da modernização conservadora como camponeses-migrant es: marginalizados e explorados no espaço da

cana; sem realizar-se inteirament e no modo de vida camponês. Est ão na borda ent re dois mundos, no “lá” e no “ cá”.

A memória do grupo revela que a migração est á present e desde muit o tempo, cont udo há que relat ivizar esse “ muit o t empo” . Para muit os da comunidade, passado o t empo biográfico, que dura uma vida, o rest o do t empo é chamado “t empo dos ant igos”

ou “ há muit o t empo”. Há quase duas gerações, a vida das comunidades est á vinculada à

migração. Há o sonho das mulheres de t erem seus maridos próximos e desse t empo e desse espaço vindouros serem de alegria; há a consciência de que a vida, at ualment e, necessita da migração, mesmo que com ela t oda sorte de miséria ocorra. M iséria, indignação, revolt a e exploração caminham juntos. Nest e sent ido, as reclamações sobre o acert o de cont as no final da safra são paradigmát icas.

Os sindicat os e o SPM mostram uma série de reclamações por part e dos cort adores de cana. Os homens chegam em casa com menos dinheiro do que imaginavam. Recebem por mês t ambém menos que o esperado uma vez que, ainda, a pesagem da cana cort ada ocorre na usina, longe do homem que cortou. Eles ficam sem saber ao cert o o quant o cort aram para cont rolar o pagament o mensal.

Absolut ament e t udo é descont ado dos cortadores, descont a-se: t ransporte, aliment ação (quando a usina fornece ou quando é o “ encarregado da t urma” - o gat o - quem leva), moradia (alojament os das usinas ou casas de aluguel nas periferias do município onde a usina est á inst alada), água, luz, seguro médico e t odos os impost os devidos para os que t êm regist ro na cart eira.

Assist imos a uma represent ação t eat ral realizada por membros da comunidade do Gravatá68 em que o acert o de cont as aparece como a causa do marido t er chegado em sua casa em um est ado miserável. Na peça, ele foge do escrit ório quando percebe, na hora do acert o de cont as, que devia dinheiro à usina devido aos t ant os descont os. Quando chega à sua comunidade, magro e com as roupas de trabalhar no eit o, encont ra a esposa, grávida, no forró. Ela jura que o filho é seu, faz as cont as dos meses e reclama com o marido da falt a de dinheiro. Arma-se uma briga ent re eles. Cada personagem expõe para o público como é a sua própria vida e expect at ivas em relação ao out ro, quando est ão separados.

Todos os moradores da comunidade do Graça e do Schnoor t êm parent es e hist órias para cont ar sobre a migração para o cort e. Seu Tibério acredit a que:

Os meninos que vão para o cort e at é apanham lá. Quando eles chegam aqui ficam fazendo pirraça com as mot os para se exibirem. Tiram o cano de descarga e ficam passando com t oda a velocidade. Solt aram muit o foguet e (rojões) quando chegaram mas agora quem fica solt ando são os solt eiros. As mães e avós deses m eninos ficam t ão envergonhadas quando eles chegam fazendo est a bagunça que elas nem saem nas ruas. Já t eve mais de t r ês at ropelament os aqui.

Uma das “ covardias”, t ermo ut ilizado pelos homens, realizadas pela usina é o sort eio, no decorrer da safra, de DVDs e motociclet as para o melhor cort ador de cana est imulando assim a competit ividade ent re eles e a idéia de que é possível sempre cort ar mais. O limit e é a exaust ão física. O SPM denuncia: as usinas dão energéticos com analgésicos para est imular a produção e aliviar a sensação de cansaço, o que pode t er levado à mort e alguns dos t rabalhadores na safra de 2004, 2005 e 2006.

68 Também localizada às margens do rio Gravatá. Esta comunidade foi visitada soment e no dia da

Segundo o marido de Leonora (da comunidade de Schnoor), a usina dist ribui um “suco” para repor os sais perdidos com o suor. Se houver analgésico e est imulant e na formulação eles não reparam no cansaço e por isso chegam à exaustão. Alguns, fingem que bebem69.

Há uma passagem do art igo “Como ‘expulsar o camponês’ do prolet ário” de Silva (1990), em que ela se pergunt a como a usina e o Estado transformam o camponês em força de t rabalho. Dent re o conjunt o de respostas, a aut ora ressalt a que a usina normaliza o espaço produt ivo e o espaço reprodut ivo do cort ador. No espaço produt ivo, a pressão do cort e mecanizado incide sobre os t rabalhadores forçando-os a cort ar cada vez mais cana, exigindo e selecionando t rabalhadores novos e saudáveis. No espaço reprodut ivo, a aut ora apont a o cont role da disciplina pelo “ encarregado” (normalment e o gat o responsável pela t urma) nos alojament os, na higiene e nas opções de lazer oferecidas. Espaço produt ivo e reprodut ivo são espaços de reprodução do capit al, do “ pat rão” . Os corpos são moldados para o t rabalho na indústria da cana. Est a é uma das formas para “ expulsar o camponês do prolet ário” apont adas pela autora. Pensamos que os corpos, ao mesmo t empo em que são moldados, est ão sendo gast os. Parafraseando Darcy Ribeiro, são “ usinas de gast ar gent es” .

Rogério, um dos moradores do Graça, em entrevist a afirmou:

Quando a gent e migra não é t rat ado como humano, a comida que fazem... às vezes a pessoa quer ir embora para out ro lugar. Quando sai daqui pensa que vai t er uma vida melhor mas é t rat ado de forma que não é de gent e. No Rio [ de Janeiro] o rest aurant e era do gat o: o pior do arroz, do feijão e da verdura. Ele f alava assim: ‘Se quer com er bem, vai comer na sua casa, se t iver comida’. Eu t enho 33 anos , podia t er 15

69 O gosto lembra um suco de frut as em pó bem adocicado e aguado. O marido de Leonora nem sempre

safras e não t enho nem t rês! O últ imo alojament o era um galpaozão com 70 beliches. No alojament o é doído. Falt a educação demais, eles não são civilizados, somos t rat ados igual cachorro.