ORIVAL GRAHL
TÍTULO DE CRÉDITO ELETRÔNICO
Dissertação de Mestrado em Direito
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA – UCB
Brasília-DF – 2003
TÍTULO DE CRÉDITO ELETRÔNICO
Dissertação apres entada à banca examinadora da Universidade Católica de Brasília, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito, sob orientação do Prof. Dr. Antenor Pereira Madruga Filho.
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA - UCB
Banca Examinadora
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RESUMO
A presente dissertação tem por objeto avaliar o impacto da informática
nos negócios formalizados através de títulos de crédito, tendo em vista as
transformações verificadas naquela área do direito face ao avanço tecnológico que
O dinamismo da atividade comercial, sobretudo com a presença da informática, depende de novos mecanismos jurídicos para a concretização dos negócios, pois que, embora a prática comercial assimile naturalmente estas transformações, o mesmo não acontece sob a ótica restrita do direito positivo, que não consegue acomp anhá-las na mesma velocidade.
No âmbito do direito cambial a assertiva supra pode ser identificada com nitidez, visto que concepções basilares desse ramo da ciência jurídica encontram-se confrontados com a prática, como o princípio da cartularidade, que pressupõe a existência de um documento material, já abandonado, todavia, nos negócios realizados dentro de mecanismos informatizados.
Essa nova perspectiva – eletrônica, informatizada – a que se encontra submetida a atividade comercial e, nela, o dire ito cambial, levou-nos a problematizar a questão do título de crédito eletrônico.
RÉSUMÉ
La présente dissertation a pour but d’evaluer l’impact de l’informatique
dans les affaires formalisés à travers les titres de crédit, en vue des transformations
dans le domaine du droit face aux avances technologiques que nous vivons
actuellement.
Dans le domaine du droit cambiaire l’assertion déjà mentionnée peut être identifiée avec netteté, vue que des conceptions de base dans ce domaine des sciences juridiques se trouvent confrontées à la pratique, comme le principe de la cartularité. Néanmoins celui-ci a déjà été abandonné dans les affaires réalisés à l’intérieur des mécanismes informatisés.
Cette nouvelle perspective – électronique et informatisée – à laquele se trouve soumise l’activité commerciale et en elle le droit cambiaire, nous a conduit à la problématique de la question du titre de crédit électronique.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 7
2. CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DOS TÍTULOS DE
CRÉDITO 11
2.1. O crédito e a sua importância econômica 11
2.2. Conceito dos títulos de crédito 16
2.3. Características formais dos títulos de crédito 21
2.4. Os princípios cambiários 22
2.5. Classificação 28
2.6. A legislação cambiária 31
2.6.1. Convenções internacionais 34 2.6.2. A codificação do direito internacional e o trabalho
desenvolvido pela Organizações das Nações Unidas 37
2.7. O novo Código Civil brasileiro e os títulos de crédito 41
3. A INFORMÁTICA E O DIREITO CAMBIÁRIO 55
3.1. A teoria cambiária em face da evolução tecnológica 57 3.2. A cartularidade e a escrituralização: a desmaterialização do
título de crédito 65
3.3. A prática bancária moderna 77 3.4. A nova tecnologia da informação: a Internet 87 3.5. O documento tradicional e o documento eletrônico: validade jurídica 91
3.6. A assinatura digital 99
4. O TÍTULO DE CRÉDITO ELETRÔNICO E A CARTULARIDADE 102 4.1. Definição de título de crédito eletrônico 105 4.2. Os princípios camb iários e o título de crédito eletrônico 107
4.3. A ação de execução do título de crédito eletrônico 114
4.5. O direito comparado 126
4.6. O direito internacional 135
4.7. Necessidade de nova regulamentação para os títulos de crédito 141
4.7.1. Proposta de emenda à Lei Uniforme de Genebra 145
5. CONCLUSÃO 151
1. INTRODUÇÃO
O progresso material vivenciado pelo homem, ao longo dos séculos,
nas suas mais diferentes áreas, está diretamente relacionado aos avanços
verificados no processo de transformação da atividade econômica. Isto porque, numa
visão absolutamente simples de todo o processo de desenvolvimento, as conquistas
nas áreas sociais, científicas, políticas, culturais e tecnológicas são extremamente
dependentes do poderio econômico dos protagonistas.
O avanço tecnológico que vivemos nos dias atuais impõe constantes
mudanças e transformações à sociedade, influenciando a perspectiva jurídica sob as
quais deve estar situada a vida social.
Os valores sociais conduzem às normas jurídicas, que tentam
expressar regras de condutas que a sociedade, em determinado mom ento histórico,
considera essenciais para a sua existência e o seu desenvolvimento.
Assim, o Direito, como não poderia deixar de ser, vê-se na contingência
de adequar-se a esses novos e sofisticados meios de informação e concretização de
negócios jurídicos, como forma de atingir o seu legado: harmonizar as relações
sociais.
A importância da atividade econômica na vida das pessoas, quer em
econômico mais facilmente resta dinamizado, igualmente merece destaque. Neste
ponto, indene de dúvidas que o progresso comercial perpassa por um fator de
fundamental importância que se denomina crédito.
O comércio sempre foi uma atividade dinâmica ao longo de sua história
e o crédito, na sua concepção etimológica de confiança – creditum, credere –,
desde os primórdios, passando pelas fases da troca ou escambo, até os atuais e
sofisticados mecanismos de intermediação econômica, sempre teve em mira tornar
mais rápidas e amplas as transações comerciais entre as pessoas.
Daí que, para viabilizar a rapidez e ampliar as oportunidades de
negócios, o sistema creditício necessitava de instrumentos adequados que
permitissem atingir o seu desiderato, consistente na circulação do capital (riqueza),
ou direitos creditórios.
Assim que, na Idade Média, surgiram os títulos de crédito,
documentos destinados à circulação do direito de crédito que contemplavam.
É certo que também nesta área do direito verificamos evoluções,
consistentes no aprimoramento dos instrumentos de crédito, na medida que a
economia reclama rapidez e segurança na formalização dos negócios.
Neste contexto de evolução, e já cogitando da influência da informática
encaradas naturalmente no mundo das realizações econômicas, não o são à luz de
uma postura mais conservadora, sobretudo sob a ótica restrita do direito positivo
que, invariavelmente, não consegue acompanhar as sofisticadas formas de
realização dos negócios jurídicos.
E no cenário do direito cambial a assertiva supra pode ser identificada
com grande nitidez, pois que concepções basilares desse ramo da ciência jurídica
encontram-se confrontados com a prática: vejamos, por exemplo, princípio como o
da cartularidade, que pressupõe a existência de um documento material (papel) e
que até agora não mereceu uma discussão da sua importância e imprescindibilidade,
já abandonado, todavia, nos negócios realizados dentro de mecanismos
informatizados.
E essa discussão, que entendemos necessária, não encontra sentido
se realizada no exclusivo âmbito do Direito Interno, em vista de que o comércio, hoje,
mais do que em tempos remotos, definitivamente é o mote desse fenômeno que
resolveu-se denominar “globalização”. Não é outra a razão pela qual a legislação
cambiária, como veremos, é fruto de Tratados (Convenções Genebrinas).
Essa nova perspectiva – eletrônica, informatizada – a que se encontra
submetida a atividade comercial e, nela, os títulos de crédito, levou-nos a
problematizar a questão, surgindo-nos a indagação quanto a natureza jurídica
que, por isso, apresentam-se desmaterializados da cártula, ou seja, do documento
papel: seriam títulos de crédito?
Em caso positivo, seria possível a qualificação de título de crédito
àqueles documentos formados no ambiente eletrônico apenas com uma nova
interpretação das regras legais existentes, adequando-as a essa nova realidade, ou,
em contrário, uma reforma legislativa, nacional e internacional faz -se necessária para
a qualificação pretendida?
É, pois, nesta perspectiva, e buscando aquelas respostas que
pretendemos promover a abordagem do presente trabalho, sem esquecer conceitos
tradicionais e ainda muito vivos no direito, mas problematizá-los em face de uma
prática mercantil absolutamente influenciada pela tecnologia da informática, e que
2. CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO
2.1. O crédito e a sua importância econômica
A noção do que venha a ser crédito e a sua importância econômica
atual e histórica no desenvolvimento humano é imperiosa para a melhor
compreensão do que pretendemos com o presente trabalho.
O progresso material vivenciado pelo homem, ao longo dos séculos,
nas suas mais diferentes áreas, inegavelmente está diretamente relacionado aos
avanços verificados no processo de transformação da atividade econômica. Isto
porque, numa visão absolutamente simples de todo o processo de desenvolvimento,
as conquistas nas áreas sociais, científicas, culturais e tecnológicas são
extremamente dependentes do poderio econômico dos protagonistas.
Para tanto, basta ver a atual divisão política do poder global para
concluir que ela não é diferente da premissa de toda a evolução histórica até aqui
presenciada, qual seja, o poder, em todos os sentidos, concentra-se nos atores
detentores da vanguarda econômica.
Bem verdade que a nível de Estados, por exemplo, poder-se-á
argumentar que tal poderio seria fruto, dentre outras razões, da capacidade operativa
do que habilidades intelectuais, a lideranç a econômica foi buscada, principalmente,
através do aproveitamento de oportunidades. Neste ponto, importante relembrar que
as conquistas territoriais do passado, significativas na demonstração do poder
econômico, eram movidas, sobretudo, pelo censo de oportunidade.
Trazendo-se a assertiva supra para o mundo contemporâneo, vê-se
que a pujança econômica é resultado da conquista de oportunidades negociais, que
por sua vez, rendem novas oportunidades, permitindo o avanço econômico e o
desenvolvimento das dem ais áreas do conhecimento humano.
Se por um lado, as diferenças de poderio econômico entre os Estados é
algo inconteste, e as razões para tal desigualdade podem ser buscadas no estudo da
própria história da humanidade, também é verdade que as práticas comerciais
disseminadas ao longo dos tempos tem sido comuns aos povos, variando apenas o
maior ou menor grau de sofisticação.
Com o referido registro, pretende-se dar o tom que haverá de nortear o
presente trabalho. Já destacada a importância da atividade econômica na vida das
pessoas, quer em nível individual, quer em nível coletivo, sobremaneira importante é
a forma pela qual o progresso econômico mais facilmente resta dinamizado. Neste
ponto, indene de dúvidas que o progresso comercial perpassa por um fator de
O Crédito, na sua concepção etimológica de confiança – creditum,
credere –, desde os primórdios, passando pelas fases da troca ou escambo, até os
atuais e sofisticados mecanismos de intermediação econômica, sempre teve em mira
tornar mais rápidas e amplas as transações comerciais entre as pessoas.
De acordo com Carvalho de Mendonça1, o crédito, em seu aspecto jurídico, é “o direito de exigir o que se deve sob qualquer causa (creditum est id quod
ex quacumque causa debetur)”, significando dizer, pois, que o crédito representa um
direito.
Tullio Ascarelli2 defini o crédito como sendo a “possibilidade de dispor imediatamente de bens presentes, para poder realizar, nos produtos naturais, as
transformações que os tornarão, de futuro, aptos a satisfazer as mais variadas
necessidades”.
Para João Eunápio Borges3, o crédito é uma evolução da troca, que passou a ser feita em um lapso temporal diferenciado, com o cumprimento das
obrigações sendo efetuado em um momento posterior ao do nascimento desta
mesma obrigação, lapso temporal este que para Carvalho de Mendonça4 é o elemento essencial do crédito, é a expressão da confiança fundamentando o próprio
crédito.
Como salienta o mestre Rubens Requião5“o crédito importa um ato de fé, de confiança, do credor. Daí a origem etimológica da palavra – creditum, credere”.
Segundo a melhor e incontroversa doutrina, o crédito materializa-se,
essencialmente, através da venda a prazo e do empréstimo, oportunizando, primeiro
o consumo e, posteriormente, a respectiva reposição.
Diz-se que o crédito não cria riqueza, uma vez que a sua função seria
apenas e tão-somente a transferência dela. Sustenta Stuart Mill, citado por Rubens
Requião6, que “o crédito não é mais do que a permissão para usar do capital alheio”.
Feitas estas considerações iniciais acerca do crédito, que, de rigor, não
desperta maiores dificuldades de compreensão, visto tratar-se de vocábulo já
incorporado naturalmente no cotidiano das pessoas, oportuno já registrar que para
viabilizar a rapidez e ampliar as oportunidades de negócios, o sistema creditício
necessitava de instrumentos adequados que permitissem atingir o seu desiderato,
consistente na circulação do capital (riqueza), ou direitos creditórios.
Como já salientamos anteriormente, não é possível desconsiderar a
importância da atividade econômica no desenvolvimento do homem. E na história
evolutiva do processo econômico, como gerador de riquezas, nas diversas etapas
3 João Eunápio BORGES, Título de crédito, p. 8-9.
4 CARVALHO DE MENDONÇA, op. Cit., p. 8.
que percorreu para atingir o estágio atual, o crédito constituiu-se em fator de
indiscutível importância, e continua a desempenhar papel de destaque nas relações
econômicas.
Hodiernamente não é possível, sobretudo em um mundo que se
pretende globalizado, conceber a supressão do crédito. Na análise que estamos a
fazer, esclareça-se, não estamos conjeturando os aspectos políticos com as
conseqüentes desigualdades que afetam as relações creditícias, quer entre os
indivíduos, quer entre os Estados.
A circulação de riquezas foi o ponto de partida para a elaboração da
disciplina jurídico-cambiária.
Assim que, na Idade Média, surgiram os títulos de crédito –
documentos destinados à circulação do direito de crédito que contemplavam –,
através do uso da letra de câmbio, criação que pode ser atribuída à maior
intensidade da mercancia. Ora, se considerarmos que o crédito é fator de
desenvolvimento que acompanha a própria história da civilização, fácil imaginar quão
difícil era a circulação dos capitais através do crédito sem os títulos de crédito, daí
porque, sob essa ótica, incontestável a premissa de que o crédito seria um mero
transferidor de riqueza.
Assim, em função da criação dos títulos de crédito, possibilitando a
instrumentos, razoável concluir que o crédito deixara de ser mero transmissor de
riqueza, para se transformar em efetivo propulsionador ou multiplicador do capital.
Agregando-se a esta idéia o cenário financeiro atualmente vivenciado,
onde o capital pouco produz e, mesmo assim, multiplica-se, podemos inferir que o
crédito continua a não desempenhar a figura de um agente de produção, mas já não
seria um fator de simples transferência de riqueza, fazendo as vezes de verdadeiro
agente de riqueza.
Ou seja, é prudente que, paralelamente ao progresso e a intensificação
verificada na arte de negociar, os mecanismos jurídicos para a realização desses
negócios sejam compatíveis, sem comprometer a finalidade precípua, qual seja, a
circulação de riquezas.
2.2. Conceito dos títulos de crédito
A teoria geral dos títulos de crédito remonta ao século XIX, com a
elaboração de uma monografia pelo comercialista italiano Cesare Vivante, fundando
o seu estudo nas práticas comerciais c orrentes à época.
Os séculos XII e XIII marcaram o surgimento da economia baseada no
câmbio de moeda. Neste período da história, em cidades da França, Itália e
agrícolas. Todavia, as grandes distâncias existentes entre os pontos de produção e
da realização das feiras, criavam inconvenientes para a comercialização destes
produtos.
Além das distâncias, a diversidade de moedas que circulavam, os
saques de mercadorias e de pecúnia, foram fatores que contribuíram para a criação
de mecanismos de crédito que superassem aqueles inconvenientes. Iniciava-se,
assim, a economia creditória, característica da economia moderna.
Mas foi na Idade Média que surgiram os títulos de crédito, com o
surgimento da letra de câmbio, precursora dos mesmos. Foi, portanto, com a
finalidade de permitir a circulação de riquezas que surgiram os títulos de crédito.
A definição de títulos de crédito comporta pouquíssima discussão entre
os doutrinadores, sendo que na esmagadora maioria, adotam os mestres a célebre
formulação de Cesare Vivante7, considerada perfeita, que definiu o título de crédito
como “um documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele
mencionado”.
Pela definição do mestre italiano, o título de crédito é um documento,
material, corpóreo, donde concluir-se pela clássica definição, que, inexistindo
Ainda pela definição de Vivante, o direito incorporado no documento
(título) é literal, entendendo-se o fato de só valer o que está escrito. A autonomia
apregoada na mesma definição, diz respeito a independência das obrigações, no
sentido de que ulteriores partícipes do título de crédito, mediante o endosso8, não têm vínculo com as obrigações já estabelecidas.
Assim, ainda hoje prevalece no cenário acadêmico a quase intocável
definição de CESARE VIVANTE, tanto que em alguns países passou a constituir
princípio legal.
É o que ocorre, por exemplo, com o novo Código Civil Brasileiro9, que assim se pronuncia no art. 887, in verbis:
“Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.”
Sem ousar desqualificar a definição de títulos de crédito dada por
Cesare Vivante, a questão que se nos apresenta é avaliar a atualidade da definição,
o que se buscará fazer em outro capítulo. De concreto, registramos uma vez mais
que a quase unanimidade da doutrina aplaude, e, em alguns países, acolhe-se o
conceito do mestre italiano como princípio legal.
7 Cesare VIVANTE, Trattato di diritto commerciale, vol. III, p.63. Julgamos conveniente transcrever o original: “Il títolo di credito è um documento necessário per esercitare il diritto letterale ed autonomo che vi è
mencionato”.
Como já dissemos, os títulos de crédito surgiram como forma de
simplificar as relações mercantis, especialmente para superar problemas como
distância, diversidade de moedas, saques de pecúnia etc.
Os títulos de crédito, conforme definição de Cesare Vivante,
incorporado em várias legislações, inclusive no novo Código Civil Brasileiro, permite
o exercício do direito literal e autônomo nele contido, significando dizer que o título
incorpora uma obrigação. É certo que as obrigações podem ser representadas por
instrumentos jurídicos diferentes. Para bem contextualizar a assertiva anterior,
valemo-nos do exemplo apresentado pelo professor FÁBIO ULHOA COELHO10.
No seu exemplo, o professor paulista utiliza a hipótese de um ato ilícito,
originado de um dano à propriedade alheia provocado por alguém com seu
automóvel, obrigando-o a indenizar os prejuízos decorrentes. Neste ponto, em
estando os envolvidos de acordo quanto à existência e a extensão do dano, poderão
representar a obrigação por um título de crédito, seja cheque, nota promissória ou
letra de câmbio.
De outra banda, se não estiverem concordes quanto a existência da
obrigação e mesmo com a sua extensão, a obrigação de indenizar estará
condicionada a uma sentença judicial que imponha este ônus àquele que causou o
dano. Quis o professor, com este exemplo, assentar que uma mesma obrigação
9 Lei 10.406, promulgada em 10 de janeiro de 2002, em vigor desde de 11 de Janeiro de 2003.
pode ser representada por instrumentos jurídicos diferentes, cuja solução,
acrescentamos nós, dependerá de determinadas circunstâncias, inclusive o nível de
discernimento das partes envolvidas.
No exemplo acima, caso a solução fosse a emissão de um título de
crédito – nota promissória, cheque -, teríamos um documento cambial, cuja
legislação processual11 confere a natureza de título executivo extrajudicial, o que vale
dizer, independeria de prévia constituição judicial do título. A segunda hipótese
demandaria a propositura de uma ação judicial, com vistas a, primeiro, obter a
constituição de um título executivo – a sentença, documento civil -, para então,
permitir a ação de execução.
Entre as duas categorias de documentos, o credor de um título de
crédito – considerando a natureza executiva extrajudicial que a lei lhe confere e a
facilidade de circulação, através do endosso e da simples entrega do documento
representativo do crédito – está dispensado da burocracia típica dos atos civis.
Como preleciona Carvalho de Mendonça12, os traços predominantes dos títulos de crédito são “a negociabilidade e força que adquirem com a boa fé do possuidor”.
Dentre os doutrinadores pátrios, vale registrar o posicionamento de
José Maria Whitaker13 no sentido de conceituar títulos de crédito como o “título capaz de realizar imediatamente o valor que representa”.
2.3. Características formais dos títulos de crédito
A formalização dos títulos de crédito – assim como nos demais atos de
declaração de vontade, conforme recomenda a cautela jurídica –, ocorre pela via
documental. A finalidade de tal postura é, em essência, a formação da prova.
Neste diapasão, de acordo com a concepção clássica dos títulos de
crédito, o formalismo, ou o rigor cambiário, como se convencionou chamar, constitui
fator preponderante para a existência do título.
Assim, cada espécie de título – letra de câmbio, nota promissória,
cheque etc –, para que tenha validade jurídica, deverá conter determinados
requisitos expressamente enumerados em lei.
O apego ao formalismo está diretamente relacionado à segurança que
se quer transmitir, por exemplo, quando da circulação do título de crédito através da
via cambiária própria, que é o endosso.
O formalismo transforma a natureza do título de um simples escrito, em
um documento válido per se, abstraindo-se de sua causa.
Destarte, as carascterísticas formais dos títulos de crédito encontram-se
estabelecidas no respectivos textos legislativos disciplinadores de cada espécie,
sendo, ainda, importante aspecto a ser observado na materialização jurídica do
instrumento, não obstante as mudanças tecnológicas verificadas nos últimos anos.
Daí porque a premissa estampada nos textos legais, de que os
documentos que não revestirem a forma exigida, não terão o valor de título de
crédito.
2.4. Os princípios cambiários
Três são os princípios, dogmatizados pela maioria dos juristas – com
influência decisiva da definição de Cesare Vivante –, que informam o regime
jurídico-cambial, responsáveis pela dinâmica e celeridade do crédito: cartularidade,
literalidade e autonomia.
Valemo-nos dos ensinamentos do mestre Rubens Requião14, que bem
acentuou a definição dos referidos princípios, embora tenha preferido tratá-los no
“a) Literalidade. O título é literal porque sua existência se regula pelo teor de seu conteúdo. O título de crédito se enuncia em um escrito, e somente o que está nele inserido se leva em consideração; uma obrigação que dele não conste, embora sendo expressa em documento separado, nele não se integra.
b) Autonomia. Diz-se que o título de crédito é autônomo (não em relação à sua causa como às vezes se tem explicado), mas, segundo Vivante, porque o possuidor de boa fé exercita um direito próprio, que não pode ser restringido ou destruído em virtude das relações existentes entre os anteriores possuidores e o devedor. Cada obrigação que deriva do título é autônoma em relação às demais.
c) Cartularidade (documento necessário). O título de crédito se assenta, se materializa, numa cártula, ou seja, num papel ou documento. Para o exercício do direito resultante do crédito concedido torna-se essencial a exibição do documento. O documento é necessário para o exercício do direito de crédito. Sem a sua exibição material não pode o credor exigir ou exercitar qualquer direito fundado no título de crédito. Vivante, com esse conceito, substitui o vulgar, que combate, pelo qual se afirma que o direito está incorporado ao título.
Waldirio Bulgarelli15, assim se manifesta, in verbis:
documento, como o direito decorrente do título em relação ao negócio fundamental, chamado por isso mesmo, o negócio subjacente, de relação extracartular (na Espanha, extracartacea).
Assim, deve-se ter presente que um negócio qualquer, quando gera a emissão de título de crédito, passa a ser, perante o título, negócio ou relação extracartular, enquanto o título se apresenta como cártula.
Pelo direito cartular, o documento torna-se essencial à existência do direito nele mencionado, e necessário para a sua exigência, tornando-se legítima a cobrança pelo titular que o adquiriu regularmente (função de legitimação). Portanto, em decorrência da incorporação do direito no título:
a) quem detenha o título, legitimamente, pode exigir a prestação;
b) sem o documento, o devedor não está obrigado, em princípio, a cumprir a obrigação.
A literalidade é a medida do direito contido no título. Vale, assim, o documento pelo que nele se contém, exprimindo, portanto, a sua existência, o seu conteúdo, a sua extensão, e a modalidade do direito nele mencionado. (...).
A autonomia é requisito fundamental para a circulação dos títulos de crédito. Por ela, o seu adquirente passa a ser titular de direito autônomo, independente da relação anterior entre os possuidores. Em conseqüência, não podem ser oponíveis ao cessionário de boa fé as ex ceções decorrentes da relação extracartular, que eventualmente possam ser opostas ao credor originário. (...).”
Como se vê, pela compreensão dos mestres citados, para que
determinado credor possa exercitar os direitos representados por um título de
crédito, indispensável que se encontre na posse do documento. Esta a razão pela
qual Vivante – de resto, toda a doutrina – adotou no seu conceito a expressão
documento necessário para o exercício do direito nele contido.
A cartularidade, ou documento necessário, foi a alternativa encontrada
pelos comerciantes da Idade Média para conferir segurança às relações mercantis. A
cártula, em verdade, passou a substituir os acordos verbais, fazendo com que os
comerciantes passassem a dispor de um meio material para provar a existência do
crédito.
O princípio da literalidade tem o condão de manifestar que o conteúdo
do título encontra-se nele expresso, valendo dizer que não está no mundo o que nele
não está escrito. Sendo assim, incorpora-se ao documento (cártula) o próprio direito
de crédito, dando-lhe um caráter constitutivo.
Waldemar Ferreira16, atribui à literalidade a responsabilidade por conferir liquidez, certeza e segurança aos títulos de crédito. Pela liquidez que a
literalidade confere ao título, observando-se o valor nele expresso, pode ser
transformado em dinheiro, com certeza e segurança.
Tullio Ascarelli17diz que “é essa exigência de certeza e de segurança
que o título de crédito satisfaz, certeza na existência do direito, segurança na sua
realização”.
Já o princípio da autonomia manifesta a independência das relações
cambiárias, ou seja, o direito do proprietário de um título de crédito, desde que tenha
circulado, não tem qualquer vínculo com a relação antecessora. Neste ponto, embora
mereça entendimentos ou classificações diversas por parte da doutrina, podemos
atribuir ao princípio da autonomia, as conseqüências próprias da abstração e da
inoponibilidade das exceções.
No primeiro caso, a conseqüência jurídica da abstração, dizente à
causa que deu origem à obrigação representada pelo título, na medida em que este
se desprende dessa causa, pode circular sem necessidade de investigações a seu
respeito, satisfazendo a segurança e a certeza do negócio.
A conseqüência jurídica da autonomia quanto a inoponibilidade das
exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, delimita, processualmente, as matérias
passíveis de serem opostas pelo devedor de um título de crédito executado. Ou seja,
não é lícito ao devedor opor exceções de natureza pessoal àquele contra quem não
estabeleceu relação direta.
Falando sobre a inoponibilidade das exceções, sustenta o professor
Fran Martins18, verbis:
“Decorrência do princípio da autonomia das obrigações cambiárias (cada obrigação é autônoma e independente, não ficando sua validade
subordinada a uma outra obrigação – donde se concluir que cada obrigado se obriga não apenas com a pessoa a quem transfere o título mas com o portador do mesmo, seja ele quem for), surgiu a regra chamada da inoponibilidade das exceções. Por essa regra, consagrada no art. 17 da Lei Uniforme, o obrigado em uma letra não pode recusar o pagamento ao portador alegando suas relações pessoais com o sacador ou outros obrigados anteriores do título (por exemplo, não pode o obrigado recusar o pagamento alegando que é credor do sacador). Tais exceções ou defesas são inoponíveis ao portador, que fica, sempre, assegurado quanto ao cumprimento da obrigação pelo obrigado”.
Cesare Vivante explicou que a autonomia de um título está no fato de
que o possuidor pode exercê-la como se fosse decorrência de um direito originário,
em razão da inoponibilidade de exceções que garante.
Para Carvalho de Mendonça19, “o direito próprio conferido ao legítimo possuidor, não lhe podendo, portanto, ser oposta pelo devedor excepções deduzidas
das suas relações com os possuidores precedentes”.
Os princípios cambiários aludidos nos itens anteriores, conquanto
possam merecer classificações outras pelos tratadistas, constituem importantes
balizadores do direito cambiário, pois se considerarmos que a função econômica dos
títulos de crédito é exercitada, fundamentalmente, através da circulação, uma vez
dotados destas garantias, asseguram circulação pronta e segura, contribuindo não
só para o desenvolvimento e celeridade da atividade comercial, mas, sobretudo,
Na visão de Nelson Abrão20, “a circulação, no consenso unânime dos doutrinadores, tem sido apontada como característica essencial dos títulos de
crédito”.
Novamente tullio Ascarelli21, sobre circulação dos créditos, leciona que
“o máximo de rapidez e de simplicidade no transmiti-lo a vários adquirentes
sucessivos, com o mínimo de insegurança para cada adquirente que deve ser posto,
não só em condições de conhecer pront a e eficazmente aquilo que adquire, mas,
também, a salvo das exceções cuja existência não lhe fosse dada notar, facilmente,
no ato de aquisição”.
2.5. Classificação
A classificação dos títulos de crédito é tratada pela tradicional doutrina
por critérios diversos. Nada obstante, também neste ponto socorre-se, em regra, da
configuração estabelecida por Vivante, conforme faz Waldirio Bulgarelli22, in verbis:
“Para Cesare Vivante, os títulos de crédito classificam-se segundo o seu conteúdo em quatro grupos:
a) títulos de crédito propriamente ditos – que dão direito a uma prestação de coisa fungível em mercadoria ou em dinheiro (letra de câmbio etc.);
19 CARVALHO DE M ENDONÇA, op. cit., p. 50-1.
20 NELSON ABRÃO, Cibernética e títulos de crédito, p. 95. 21 Tulio ASCARELLI, op. cit. P. 7.
b) títulos que servem para adquirir direito real sobre coisa determinada (cédula pignoratícia);
c) títulos que atribuem a qualidade de sócio (ação);
d) títulos que dão direito a serviços (bilhete de passagem).”
Esclarece o mestre Bulgarelli23:
“O que se procurou acentuar, na classificação dos títulos de crédito, em razão do conteúdo da declaração cartular, é a natureza e extensão do direito mencionado, pois que na variedade dos títulos de crédito existentes esse direito varia também. Assim ocorre com os chamados representativos, como o conhecimento de depósito, que representam mercadorias; os de participação, como as ações de sociedade anônima, e os de direito de crédito (a bem dizer, monetário), como as letras de câmbio etc”.
Quanto à natureza, expressando pensamento dominante, o consagrado
Rubens Requião24 entende que a melhor classificação é a que divide os títulos em
abstratos e causais, fazendo a seguinte distinção:
“Os títulos abstratos são os mais perfeitos como títulos de crédito, pois deles não se indaga a origem. Vale o crédito que na cártula foi escrito. Títulos causais são aqueles que estão vinculados, como um cordão umbilical, à sua origem. Como tais, são imperfeitos ou impróprios. São considerados títulos de crédito pois são suscetíveis de circulação por endosso, e levam neles corporificada obrigação. A duplicata, os conhecimentos de transporte, as ações, são deles exemplo.
Entre os títulos causais ou impróprios podemos distinguir os que constituem comprovante de legitimação do credor, e são geralmente declarados
instransferíveis – bilhetes, passagens, cadernetas de Caixa Econômica, vales e tíquetes e outros que são títulos de legitimação, que são direitos transferíveis, tais como vales postais, cautelas de penhor ao portador. Enquanto nos comprovantes de legitimação o possuidor se legitima como contraente originário, nos títulos de legitimação quem for possuidor legitima-se como cessionário eventual. O título nesse caso é probatório e prova o contrato. O primeiro opera em favor do devedor; o segundo, título de legitimação, opera em favor de ambos, devedor e credor (Ascarelli)”.
Considerando que a valorização do título de crédito está diretamente
relacionada à sua capacidade de propiciar a circulação de riquezas, tem-se, neste
particular, a já consagrada classificação em títulos ao portador e nominativos.
Os títulos ao portador não identificam o seu credor, podendo ser
transmitidos pela mera tradição.
Os títulos nominativos, ao revés, porque identificam o credor, para
materialização da transferência, além da tradição, reclamam a observância de outro
ato jurídico. Assim, os títulos nominativos à ordem circulam através de típico ato
cambiário conhecido como endosso. Os títulos que contemplarem a cláusula não à
ordem, inibidores, portanto, da transferência através do endosso, somente circularão
com eficácia se verificado o ato de cessão de crédito.
A rigor, a legislação cambiária, de maneira geral, ou pelo menos em
relação aos títulos mais populares (letra de câmbio, nota promissória, cheque,
face desta peculiaridade, diz Jos é A. Saraiva25 que “a endossabilidade é elemento essencial à letra de câmbio e à nota promissória, títulos estes que foram criados para
circular, para substituir a moeda, para lhes exercitar as respectivas funções”.
Destarte, somente com a inserção de cláusula não à ordem é que
tornará o título intransferível, na via do endosso.
2.6. A Legislação cambiária
O estudo e a prática dos títulos de crédito dependem sobremaneira dos
textos legais que tratam da Letra de Câmbio26, mesmo considerando que as várias espécies de títulos sejam detentores de legislação própria. É que naqueles textos27
encontram-se os princípios norteadores do direito cambiário, e, por isso, aplicáveis
aos demais títulos, sempre que os respectivos textos apontarem lacunas ou
deficiências.
Tal dependência pode ser explicada no fato de ter sido a Letra de
Câmbio o mais importante dos títulos de crédito, mormente com a finalidade de
mobilização do crédito. Diz-se ter sido, porquanto, nos dias atuais, notadamente no
25 JOSÉ A . SARAIVA, A Cambial.
26 Consiste a Letra de Câmbio em uma ordem dada, por escrito, a uma pessoa, para que pague a um beneficiário indicado, ou à ordem deste, uma determinada importância em dinheiro.
Brasil, esta espécie de cambial já perdeu o seu espaço, pelo menos nos negócios
mais populares.
De qualquer modo, inegável que, nos primeiros tempos, desde o
surgimento dos títulos de crédito, o uso em larga escala da Letra de Câmbio fez com
que sobre ela fossem concentradas as atenções legislativas.
É por isso que qualquer manual que explore o estudo dos títulos de
crédito recomenda o conhecimento aprofundado da lei cambiária, ou da Letra de
Câmbio.
Os títulos de crédito a seguir elencados constituem o que de mais
importante se tem nesta área do direito brasileiro. Apontamos, igualmente, os
respectivos textos legais.
• LETRA DE CÂMBIO e NOTA PROMISSÓRIA –
Decreto 2.044, de 31.12.1908, alterado pelo Decreto
57.663, de 24.01.1966 – Lei Uniforme de Genebra;
• CHEQUE – Decreto 57.595, de 07.01.1966 – Lei
Uniforme de Genebra – e 7.357, de 02.09.1985;
• DUPLICATA COMERCIAL e de SERVIÇO – Lei 5.474,
• CONHECIMENTO DE DEPÓSITO e WARRANT –
Decreto 1.102, de 21.11.1903;
• TÍTULOS DE CRÉDITO RURAL – Decreto-lei 167, de
14.02.1967;
• TÍTULOS DE CRÉDITO INDUSTRIAL – Decreto-lei
413, de 09.01.1969;
• TÍTULOS DE CRÉDITO COMERCIAL – Lei 6.840, de
03.11.1980;
• TÍTULOS DE CRÉDITO À EXPORTAÇÃO – Lei 6.313,
de 16.12.1975;
• CERTIFICADO DE DEPÓSITO BANCÁRIO – Lei
4.728, de 14.07.1965;
• AÇÕES, DEBÊNTURES, PARTES BENEFICIÁRIAS,
BÔNUS DE SUBSCRIÇÃO – Lei 6.404, de 15.12.1976;
• CÉDULA DE PRODUTO RURAL – Lei 8.929, de
2.6.1. Convenções internacionais
O Brasil é signatário de uma convenção internacional para adoção de
uma lei uniforme sobre letra de câmbio e nota promissória. Trata-se da Convenção
de Genebra, celebrada em 07 de Junho de 1930, em Genebra.
No ano seguinte, em 19 de Março de 1931, firmaram-se mais 3
Convenções, igualmente em Genebra, sobre lei uniforme, conflitos de leis em
matéria de cheques.
O governo brasileiro fêz-se representar na conferência diplomática de
1930, tendo sido parte signatária das Convenções então elaboradas. Quanto às
Convenções de 1931, apenas manifestou a sua adesão.
Em 8 de Setembro de 1964, o Congresso Nacional aprovou, com o
decreto legislativo n. 54, as 6 Convenções Genebrinas, que vieram a ser
promulgadas pelos decretos executivos n. 57.595, de 07 de Janeiro de 1966 (Lei
Uniforme em matéria de Cheques), e 57.663, de 24 de Janeiro de 1966 (Lei Uniforme
em matéria de Letras de Câmbio e Notas Promissórias).
A necessidade de uniformização das regras referentes aos títulos de
crédito, particularmente da letra de câmbio, decorre do fato de que a cambial, “sendo
um instrumento de crédito destinado à circulação, atravessa durante sua existência
por sua vez são fontes de múltiplas relações entre as pessoas que concorrem para a
sua realização”28.
Conforme já asseveramos, a legislação atinente a letra de câmbio e
nota promissória é fonte de solução para as lacunas ou deficiências apresentadas
por outros textos legais que regulam títulos de crédito no Brasil, visto que a mesma
contempla os princípios norteadores do direito cambial.
Segundo o professor Irineu Strenger29, “o regulamento internacional da
cambial é movido por três critérios fundamentais que, pode-se dizer, são
universalmente reconhecidos, seja no campo doutrinário, seja naquele da codificação
positiva. As divergências se referem geralmente, a questões especiais:
:
a) A obrigação cambiária não é senão uma categoria da obrigação comercial e, portanto, os lineamentos principais de sua construção devem ingressar no quadro geral dos princípios fixados nos ordenamentos internos.
b) A relação cambiária, considerada seja na origem, seja nos vários momentos de seu desenvolvimento, resolve-se em uma cadeia de obrigações (emissão, endosso, aval) vinculadas uma à outra, mas, tendo cada qual natureza e fisionomia própria. Convém, pois, decompô-la em seus vários momentos, nas simples obrigações que essa dá origem sucessivamente, aplicando à disciplina de cada uma os princípios do direito internacional privado, que a lei do foro fixou para as obrigações comerciais.
c) O princípio ora indicado, da independência das simples obrigações cambiárias, vai subordinado à condição de que elas correspondam a uma
obrigação válida. A independência subsiste em uma cambial válida, mas não em um título originariamente nulo. Convirá, pois, ainda, respeitando suas sucessivas operações cambiárias a qualidade de negócio futuro autônomo, relacioná-lo à lei originária do título, com o propósito de avaliar se possui os requisitos necessários para desenvolver validamente sua vida futura”.
Com a promulgação das Leis Uniformes – Decretos 57.595 e 57.663 -,
criou-se uma polêmica entre os comercialistas brasileiros, tendo em vista que o
Brasil já dispunha de legislação sobre letra de câmbio, nota promissória e cheque, os
Decretos 2.044 (letra de câmbio e nota promissória) e 2.591 (cheque). A polêmica
residia exatamente no fato de que “entendiam alguns que a Lei Uniforme prevalecia
como direito interno, sobre as regras cambiais existentes em nosso ordenamento;
outros sustentavam que, sendo a Lei Uniforme relativa ao comércio internacional,
somente com ele se relacionavam”30 .
Todavia, com a promulgação das Leis Uniformes, indene de dúvidas
que estas ingressaram em nosso ordenamento jurídico, e suas normas passaram a
ter aplicação imediata.
Além do que, como registra o professor Strenger31, “o Supremo Tribunal
Federal em seqüentes julgamentos tem confirmado sua orientação no sentido de que
as leis uniformes genebrinas estão introduzidas em nosso direito interno e revogam
as disposições do Decreto n. 2.044, de 31 de dezembro de 1908 e do Decreto n.
2.591, de 7 de junho de 1912, que estiverem em desacordo com suas normas”.
Releva destacar, ainda, que o Brasil assinalou determinadas reservas
quando da adesão às Convenções Genebrinas, significando dizer que em relação
àquelas matérias reservadas, permitia-se o signatário introduzir parcialmente no
ordenamento interno o texto da Lei Uniforme.
Considerando que a matéria objeto das reservas não foi disciplinada
por outro texto legislativo, comungamos com a parcela da doutrina que entende
vigorante, nestes casos, os dispositivos do Decreto 2.044, de 1908, relativamente à
Letra de Câmbio e Nota Promissória, mesmo porque, relativamente ao cheque, o
novo texto legal - Lei n. 7.357, de 02.09.85 - é harmônico com a Lei Uniforme –
Decreto 57.595.
2.6.2. A codificação do direito internacional e o trabalho
desenvolvido pela Organização das Nações Unidas
A busca da codificação do direito internacional, tarefa desenvolvida
especialmente pela ONU – Organização das Nações Unidas -, é conseqüência da
transformação verificada pelos Estados em suas relações, antes marcada pelos
costumes, hoje, diante da complexidade e intensidade com que se desenvolve o
minuciosa descrição dos direitos e deveres inerentes a cada integrante do cenário
mundial organizado.
A codificação consistiria, em palavras muito objetivas, na transformação
de normas costumeiras em normas escritas, com as modificações e
aperfeiçoamentos que estas últimas reclamam, sobretudo, valendo-nos da
observação do professor Jacob Dolinger32, “(...) daquelas instituições jurídicas que
atuam, total ou parcialmente, no plano internacional, como a compra-e-venda, os
títulos de crédito, os transportes, as comunicações, a propriedade industrial e
intelectual e todas as atividades humanas naturalmente extraterritoriais”. (Grifamos).
Dentre os propósitos e atribuições da ONU, estabelecidos no Estatuto
da Organização, um deles consiste exatamente em promover estudos e
recomendações visando a codificação do direito internacional, cujo objetivo,
evidentemente, é tornar as relações mais equânimes e uniformes, alcançando-se,
com essa postura, menos conflitos e por conseguinte a manutenção da paz e a
observância aos princípios da convivência pacífica.
Neste mister, a Organização mantém em sua estrutura órgãos
específicos para essa finalidade, sem olvidarmos de outros organismos citados pelo
internacionalista Dolinger33, in verbis:
“Na elaboração do Direito Internacional Privado Uniformizado recorrem ao comparativismo jurídico todos os órgãos internacionais que trabalham em prol desta uniformização, como a Conferência de Direito Internacional Privado da Haia, o UNIDROT e os órgãos especializados das Nações Unidas, principalmente a UNCITRAL – Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional.
Estas entidades preparam minuciosos questionários dirigidos aos países membros sobre a matéria que se objetiva regular por meio de uma convenção internacional. As respostas indicam as possibilidades de se conseguir concessões suficientes para formular um projeto de convenção aceitável a todos ou a parte considerável dos países participantes”.
A razão pela qual julgamos oportuno tecer consideraç ões sobre a
codificação do direito internacional, ainda que sintéticas, reside no fato de que, se
concluírmos pela necessidade de reformulação legislativa relativamente aos títulos
de crédito, mercê da informatização dos negócios, esta haverá que se dar, também,
no plano internacional, por conta dos fatores que já ressaltamos anteriormente.
Neste particular, não se descure que a legislação cambiária é fruto de
uma Convenção para Adoção de uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas
Promissórias, convenção esta que prevê, inclusive, a possibilidade de revisão de
suas disposições. É o que se verifica no art. 9 da Convenção para Adoção de uma
Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias – Dec. 57.663, de 24 de
janeiro de 1966:
Sociedade das Nações um pedido de revisão de algumas ou de todas as suas disposições.
Se este pedido, comunicado aos outros membros ou Estados não-membros para os quais a Convenção estiver em vigor, for apoiado dentro do prazo de 1 (um) ano por seis, pelo menos, dentre eles, o Conselho da Sociedade das Nações decidirá se deve ser convocada uma conferência para aquele fim”.
Porque pertinente com o tema proposto – a influência da informática
nos princípios cambiários -, permitimo-nos registrar a existência de movimentos
visando a regulamentação do comércio eletrônico, cujo exemplo concreto é a Lei
Modelo da UNCITRAL - Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial
Internacional.
Antecipamos aqui o que diz a Lei Modelo da UNCITRAL34 sobre a
formação e validade dos contratos, não obstante voltarmos ao assunto nos próximos
capítulos:
“Artigo 11 – Formação e validade dos contratos
1) Salvo disposição em contrário das partes, na formação de um contrato, a oferta e sua aceitação podem ser expressas por mensagens eletrônicas. Não se negará validade ou eficácia a um contrato pela simples razão de que se utilizaram mensagens eletrônicas para a sua formação”. (Grifamos).
34 ASSOCIAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – BRASIL, Lei Modelo da UNCITRAL sobre Comércio Eletrônico
2.7. O novo Código Civil brasileiro e os títulos de crédito
O novo Código Civil brasileiro, a Lei nº 10.406, promulgada em 10 de
janeiro de 2002 e que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, traz mudanças em
vários pontos do ordenamento jurídico relativo a atos civis. O diploma tem por
característica a unificação do Direito Privado brasileiro, uma vez que abrange, além
de matéria civil, matéria de direito comercial, pois revoga a Parte Primeira da Lei nº
556, de 1850, o nosso Código Comercial. A unificação do direito privado ocorre nos
moldes em que foi efetuado no Código Civil Italiano, de 1942.
Com a nova lei, volta-se a discutir o secular tema da autonomia do
Direito Comercial, que atormenta os estudiosos do Direito Privado, não obstante as
várias tentativas com a finalidade de unificar as regras desses dois campos do
Direito.
Muitos tratadistas consideram o Direito Comercial subor dinado ao
Direito Civil. Outros estudiosos do assunto e que são maioria no desate desta
controvérsia, consideram o Direito Comercial autônomo em relação ao Direito Civil,
não obstante os pontos de contato, já que ambos pertencem ao ramo do Direito
Privado.
Considerando que não temos o propósito de aprofundar o tema objeto
de discussão entre comercialistas e civilistas, qual seja, a unificação do Direito
sempre serena opinião de RUBENS REQUIÃO35 sobre a questão, na certeza de que ela reflete o pensamento majoritário da doutrina:
“A controvérsia doutrinária sobre a unificação do direito privado deixou de ser simples tema de debate acadêmico, para se tornar o mais atual e sério problema do direito brasileiro. Aceleraram-se, nos últimos tempos, as tendências da unificação, sobretudo após a Revolução de 1964, com o envio, pelo Governo ao Congresso Nacional, do Projeto de Código de Obrigações (Projeto n. 3.264/65), posteriormente retirado para melhores estudos. A reforma dos Códigos brasileiros não objetivava, na verdade, a unificação do direito privado, como se procedeu na Itália, sob a codificação única. Propendíamos, com os duplos projetos, para o sistema suíço, com um Código Civil e um Código de Obrigações autônomos. Agora, na fase atual da reforma, pretende o Governo a unificação formal do direito civil e do direito comercial, enfeixando-os num código único, sob o título de Código Civil.
(...)
É preciso não esquecer, porém, que a doutrina unificadora não foi determinada pelo direito civil. Foi, assim, conseqüência da crescente influência do direito comercial, provocada pela sua decidida invasão e domínio sobre o direito civil. Atuais, por isso, as agudas observações do Prof. Inglez de Souza, que acompanharam o Projeto de 1912: ‘O direito mercantil, progressista e humano, destacando-se do antigo direito comum para atender às necessidades crescentes do desenvolvimento do tráfico entre os homens, moldando as novas instituições pelo espírito igualitário e democrático dos comerciantes, não pode retrogradar por amor à unidade; é o direito civil que se funde, por assim dizer, no comercial, influenciando por sua vez pelo interesse social que prima ao individual’.
Conclui o mestre:
“É irrelevante, afinal, para o direito comercial, que a matéria seja tratada num código autônomo ou em um só código, formalmente unificado. Isso já o dissera luminosamente o Prof. Alfredo Rocco: ‘Ora, que as normas concernentes ao comércio e as concernentes à vida civil estejam contidas em um ou em dois códigos não é coisa que tenha grande importância sob o ponto de vista científico. O direito comercial poderia permanecer um direito autônomo e, portanto, a ciência comercial uma ciência jurídica autônoma, ainda que as normas do direito comercial estivessem contidas em um código único, conjuntamente com as do direito civil das obrigações’.”
Assim como o Professor Requião, também entendemos ser irrelevante
que a matéria atinente ao Direito Privado seja tratada em um único código. Mesmo
porque, matérias como o direito cambial, falencial, societário, pertencentes à área do
Direito Comercial, continuarão a ser regidas por leis especiais. Ademais, a revogação
da primeira parte do Código Comercial de 1850 pelo novo Código Civil não significa,
necessariamente, o fim da autonomia didática do Direito Comercial. A unificação
legislativa, por si só, como diz o Prof. Alfredo Rocco, não tornaria o Direito Comercial
menos autônomo ou independente.
De qualquer modo, não se pode perder de vista que uma das tarefas da
ciência do Direito é dar regulamentação jurídica aos fatos sociais e econômicos,
missão esta que não tem sido desempenhada a contento, ou seja, os
acontecimentos sociais estão sempre muito avançados, vindo o Direito objetivo à
Daí porque ser necessário considerar que em pouco tempo a legislação
unificada possa estar obsoleta, necessitando de constantes atualizações,
especialmente no Direito Comercial, onde os fatos ec onômicos sofrem modificações
de maneira muito rápida.
O novo diploma traz profundas modificações com a unificação das
obrigações civis e mercantis. Em substituição ao Código Comercial de 1850, um
novo capítulo é introduzido na codificação, disciplinando a vida do empresário e das
empresas. Trata-se do “Direito de Empresa”, cuja definição de empresário
encontra-se assim ditada pelo art. 966:
“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens e serviços.”
Em contínuo, temos a nova disciplina geral dos títulos de crédito,
disposta no título VIII, abrangendo os arts. 887 a 926, divididos em 4 capítulos, que
são: “Disposições gerais” (art. 887-903); “Do título ao portador” (art. 904-909); “Do
título à ordem” (art. 910-920); e “Do título nominativo” (art. 921-926).
No art. 887, o legislador do novo Código Civil assume a definição de
Cesare Vivante, segundo o qual o título de crédito é o “documento necessário ao
Em linhas gerais, os artigos 887 a 896 tratam da emissão, transferência
e circulação dos títulos. Os artigos 897 a 900 tratam do aval. Os artigos 901 e 902
tratam do pagamento dos títulos. O art. 903, estipula que “salvo disposição diversa
em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código”. Os
artigos 904 a 909 cuidam do título ao portador; os artigos 910 a 920 cuidam do título
à ordem e, os artigos 921 a 926 cuidam do título nominativo.
A doutrina nacional começa a se manifestar em relação ao Título VIII do
novo Código Civil, especialmente em relação ao disposto no artigo 903, já que este
estabelece que as regras do novo Código somente serão aplicadas quando não
houver lei especial, e, como já anotado em linhas passadas, os títulos de crédito são
regulados por leis especiais.
Em relação a este ponto especificamente, vejamos a observação do
professor Manoel Justino Bezerra Filho36:
“A primeira crítica que se poderia fazer ao novo Código diz respeito ao fato de se ter perdido a oportunidade para unificar a legislação cambial, o que poderia ter sido tentado pela inserção no Código de toda a legislação internalizada pela Convenção de Genebra, resolvendo-se de uma vez por todas as terríveis dificuldades, quase intransponíveis, que se apresentam ao estudioso dos títulos de crédito. Com efeito, já que o novo Código Civil mantém em vigor toda a legislação especial, poder-se-ia perguntar qual foi então a utilidade de suas normas que só se aplicarão de forma subsidiária, parcamente subsidiária. Waldírio Bulgarelli ressalta a extrema dificuldade que se apresenta
36 MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO, Dos Títulos de Crédito – Exame crítico do título VII do Livro I da
ao estudioso quando se depara com esta confusão legislativa já existente, lembrando a vigência simultânea das leis próprias a cada título cambial, da lei geral das cambiais (Dec. 2.044/1908), de ambas as Leis Uniformes (Convenção de Genebra), além de resoluções, circulares, portarias etc. Pois bem, a tais dificuldades acresce-se agora mais uma, com a promulgação do novo Código Civil, outro texto legal sobre a mesma matéria, já tão farta e confusamente legislada”.
Conclui o professor37:
“Enfim, melhor teria sido que relativamente aos títulos de crédito se procedesse como foi feito com relação à sociedade anônima, a qual, segundo o art. 1.089 do novo Código Civil, continua regida por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições do Código; ou ainda o que ocorreu com a legislação falimentar, sobre a qual não há menção no Código; ou também com relação à segunda parte do Código Comercial, mantida em vigor pelo art. 2.045 do texto de 2002. Talvez, melhor ainda teria sido que o novo Código Civil não entrasse em vigor”.
Com o devido respeito a opinião do professor Manoel Justino, não
cremos que o novo Código Civil, ao regular de forma geral sobre os títulos de crédito,
causará a confusão por ele apregoada, a ponto de sugerir a não vigência do novo
diploma. Ora, os títulos regidos por leis especiais continuarão a ser regidos por elas,
nada mais, mesmo porque, não se vislumbra, em exame preliminar, profundas
incompatibilidades entre as disposições do novo Código Civil e a legislação
cambiária em vigor.
E quando houver incompatibilidade, haverá de prevalecer a lei especial,
pois, como já visto, a nossa legislação cambiária é fundada em convenções
internacionais e, nestes casos, a lei posterior não pode revogar ou alterar lei anterior
oriunda de ato internacional, sem a prévia denúncia feita pelo Poder Executivo38, observando-se que no Brasil, garante-se tratamento pa ritário entre os tratados e as
leis nacionais e diplomas de grau equivalente39.
O novo Código propõe-se, segundo pensamos, a positivar uma Teoria
Geral dos Títulos de Crédito, de modo a acolher as constantes transformações a que
essa área do Direito está sujeita, quer em face do número variável de títulos que a
compõe, quer em face das influências do comércio nacional e internacional.
Neste ponto, divergem os doutrinadores, defendendo alguns a
construção de uma teoria geral e de uma disciplina uniforme interna; outros a
consideram desnecessária e de difícil elaboração.
Não temos por propósito analisar os pontos externados pelas
autoridades no assunto, quer os que se mostram favoráveis a construção de uma
teoria geral, bem assim aqueles que a consideram desnecessária. O que resta claro
no contexto, é a deficiência legislativa dos inúmeros diplomas legais que cuidam dos
títulos de crédito, ante a prática exagerada da técnica remissiva à legislação cambial,
dificultando a atuação do intérprete.
Exemplo manifesto desta situação é o da duplicata mercantil – título de
crédito mais utilizado na atividade empresarial –, que não obstante ter merecido um
tratamento mais aprimorado pela Lei 5.474, ainda assim é insatisfatória
legislativamente no tocante as rem issões. Vejamos o teor do art. 25 da Lei:
“Art. 25. Aplicam-se à duplicata e à triplicata, no que couber, os dispositivos sobre emissão, circulação e pagamento das letras de câmbio.”
Outros textos com maior grau de deficiência podem ser apontados. É o
caso, por exemplo, dos títulos de crédito industrial. O Decreto-lei 413, de 09.01.69
constitui a base remissiva de dois outros textos, tendo-se presente a técnica de
remissão à remissão. Assim é que tanto a Lei 6.313/75 (art. 3º), quanto a 6.840/80 (art. 5º), que tratam, respectivamente, dos títulos de crédito à exportação e dos títulos
de crédito comercial, dispõem que serão a eles aplicáveis os dispositivos do
Decreto-lei 413/69, que por sua vez reporta-se “no que forem cabíveis, as normas de Direito
Cambial’ (art. 52)”.
Também é exemplo o Decreto-lei 167, de 14.02.67, que trata dos títulos
de crédito rural, em que se adotou técnica remissiva. Eis o teor do art. 60:
São inúmeros os exemplos, valendo destacar, ainda, a Lei 8.929, de
22.08.94, que instituiu a Cédula de Produto Rural, utilizando-se da técnica remissiva,
conforme se extrai do art. 10:
“Art. 10. Aplicam -se à CPR, no que forem cabíveis, as normas de direito cambial, com as seguintes modificações:
I – os endos sos devem ser completos;
II – os endossantes não respondem pela entrega do produto, mas, tão-somente, pela existência da obrigação;
III- é dispensado o protesto cambial para assegurar o direito de regresso contra avalistas.”
Os exemplos apresentados são suficientes a recomendar uma
disciplina geral para os títulos de crédito, justamente para suprimir as confusões de
intepretação. É a proposição, salvo melhor juízo, do Título VIII do novo Código Civil,
um conjunto de regras, de caráter geral, aplicável a todos os títulos de crédito que
não sejam regulados por lei especial, ou quando esta contiver lacunas.
Com esta sistemática, a disciplina dos títulos de crédito passa a ter um
conjunto homogêneo de preceitos gerais, que conferirão organicidade ao sistema,
nada obstante as opiniões científicas em sentido contrário.
Importante observar, ademais, que o novo Código Civil adota o princípio
da liberdade de criação e emissão de títulos de crédito, abandonando o sistema de
numerus clausus, ou seja, admitindo a figura dos títulos atípicos ou inominados. É o
Inicialmente, convém esclarecer que títulos atípicos ou inominados
seriam aqueles documentos não previstos objetivamente na legislaç ão, mas
compreendidos nos princípios reguladores dos títulos típicos ou nominados.
Exemplos de títulos nominados seriam aqueles popularmente conhecidos, como a
letra de câmbio, nota promissória, duplicata, cheque, dentre outros, porque regulados
por textos específicos.
Os dispositivos do novo Código Civil que contemplam, de forma mais
contundente, o princípio da liberdade de criação dos títulos atípicos são:
“Art. 889. Deve o título de crédito conter a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente.
§ 1º É à vista o título de crédito que não contenha indicação do vencimento. § 2º Considera-se lugar de emissão e de pagamento, quando não indicado no título, o domicílio do emitente.
§ 3º O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo.”
Ora, não fosse a intenção do legislador permitir o uso de títulos atípicos,
razão inexistiria para estabelecer, conforme o fez no artigo 889, os requisitos que o
título de crédito deve conter. Isto porque, os textos legais que cuidam dos títulos
nominados – letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata etc – estabelecem
os requisitos que referidos títulos devem apresentar para serem considerados títulos