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A teoria cambiária em face da evolução tecnológica

No documento Título de crédito eletrônico (páginas 57-65)

3. A INFORMÁTICA E O DIREITO CAMBIÁRIO

3.1. A teoria cambiária em face da evolução tecnológica

A partir deste capítulo, procuraremos abordar o Direito Cambiário dentro de uma nova fase, marcada pela decisiva influência dos modernos e sofisticados meios de informática nos negócios, inclusive, é certo, por aqueles realizados através de títulos de crédito.

Os títulos representativos de crédito, que surgiram como documentos físicos necessários, atualmente, no auge da era da Informática, encontram-se em declínio. O documento materializado em papel, além de circular de uma forma menos ágil, indubitavelmente é um meio extremamente dispendioso, se considerarmos o atual modelo econômico reinante no globo, marcado pela intensificação das movimentações financeiras, indiferente, no mais das vezes, as fronteiras e, sobretudo, buscando incessantemente o aumento de lucros e a diminuição de despesas.

A tecnologia invadiu o cotidiano das pessoas, alterando e reduzindo significativamente o uso de documentos sob a forma física. Até mesmo o uso do papel-moeda, instrumento indispensável nos negócios, vem sofrendo de algum tempo a substituição por mecanismos informatizados, a exemplo do cheque e a moeda eletrônica, o cartão magnético etc.

Como instrumentos de mobilização do crédito, surgidos na idade média, primeiramente através da Letra de Câmbio – é o que sustenta a doutrina –, aponta- se como característica principal dos títulos de crédito o seu efeito circulatório, no sentido de facilitar e permitir o envolvimento de maior número de empreendedores.

É o que deixa assentado, por exemplo, Nelson Abrão46, citando Vivante, Ascarelli e Eunápio Borges. Em vista do conteúdo trazido por aqueles tratadistas nas citações do Professor Abrão, vale a transcrição:

“o sistema jurídico, que regula a circulação dos títulos de crédito com simplicidade e segurança, favorece poderosamente a formação da poupança e seu emprego útil no comércio, na indústria e nas obras públicas, porque proporciona ao fornecedor de dinheiro, que acumulou um capital, com sua economia, um título que dá lucro e que pode transformar prontamente em dinheiro de contado com a venda e com o penhor” (Vivante, Tratado, vol. IIII, pág. 123).

“Circulação dos créditos, vale dizer – o máximo de rapidez e de simplicidade no transmiti-los a vários adquirentes sucessivos, com o mínimo de insegurança para cada adquirente que deve ser posto, não só em condições

de conhecer pronta e eficazmente aquilo que adquire, mas, também, a salvo das exceções cuja existência não lhe fosse dado notar, facilmente, no ato da aquisição” (Ascarelli, Teoria Geral dos Títulos de Crédito, 1969, pág. 7).

“Materializando-se em um pedaço de papel, estruturando o título de crédito, o direito dotou a economia dos meios necessários à circulação fácil e segura do crédito” (Eunápio Borges, Títulos de Crédito, 1971, pág. 9).

Não obstante a importância do fenômeno da circulação na vida dos títulos de crédito, ver-se-á que a mesma vem perdendo espaço na atividade econômica, constatação que se dá, sobremaneira, com a intermediação cada vez mais sofisticada das instituições financeiras no processo negocial, cuja prática, no mais das vezes, consiste em encerrar o processo circulatório do título, ou seja, raramente as instituições financeiras negociam os títulos de crédito que chegam às suas carteiras. Todavia, este tópico será melhor explorado em capítulo próprio.

Assim, sem desconsiderar a importância que os títulos de crédito desempenharam ao longo dos séculos e que, indubitavelmente, continuam a desempenhar, o fato é que este instrumento, tal como tradicionalmente concebido, encontra-se em processo de decadência, motivado fundamentalmente por processos tecnológicos inovadores, que procuram prescindir dos princípios cambiários vistos no capítulo anterior, considerados incompatíveis com a prática comercial informatizada.

O professor Fábio Ulhoa Coelho47, já nos idos de 1996, fazia observações acerca da matéria, in verbis:

47 FABIO ULHOA COELHO, O Desenvolvimento da Informática e o Desatualizado Direito Cambiário, Boletim

“Não é novidade para ninguém, neste final de século, que o meio magnético vem substituindo paulatina e decisivamente o maio papel, como suporte de informações. O registro da concessão, cobrança e cumprimento do crédito comercial não fica, por evidente, à margem desse processo. Quer dizer, os empresários, ao venderem seus produtos ou serviços a prazo, cada vez mais não têm se valido do documento escrito para registro da operação. Procedem, na verdade, à apropriação das informações acerca do crédito concedido exclusivamente em meio magnético, e apenas por este meio as mesmas informações são transmitidas ao banco para fins de desconto, caução de empréstimos ou controle e cobrança do cumprimento da obrigação pelo devedor. Apenas uma pequena margem de empresários ainda se vale do cheque pós-datado, da duplicata efetivamente emitida ou da nota promissória como meio de documentação da operação creditícia”.

Esse avanço da tecnologia da informática nos documentos representativos de crédito, como registrava o professor Fábio Ulhoa, não vem sendo acompanhado pela disciplina jurídica, indispensável à segurança que as relações comerciais demandam. Tem-se a impressão que as pessoas, de modo geral, porque formadas sobre a segurança do papel, e a comunidade jurídica, em particular, por desvairada paixão a certos dogmas, não encontram-se seguras acerca da conveniência da substituição do papel pelo registro eletrônico de dados.

É preciso enfatizar, desde logo, que não estamos vislumbrando a substituição absoluta do papel como expressão documental, tal cenário somente seria possível numa hipótese pouco provável, pelo menos para as próximas décadas, qual seja: de que todas as pessoas, todos os lares, todas as empresas

dispusessem de instrumental técnico para reger suas vidas, seus negócios. Por ora, isto é um privilégio para poucos.

Ademais, aquilo que na linguagem informática convencionou -se chamar de virtual, como diz o filósofo Pierre Lévy48, não se opõe ao real mas ao atual:

“virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes”.

Ao cogitarmos da prática comercial informatizada, estamos dizendo que a grande maioria dos empresários, nos dias de hoje, ao realizar negócios já não se utilizam do tradicional meio papel de escrituração, senão fazendo-os em meio magnético. Não só impostam os dados magneticamente, mas também os negociam pela mesma via. Exemplo claro desta prática envolve as instituições financeiras. Ou seja, negócios como desconto bancário e mesmo os serviços de cobrança, já são materializados sem que necessariamente a cártula – o documento de papel – integre o negócio.

Diante desta realidade, como fica o princípio da cartularidade – que pressupõe a existência do documento físico, do papel – quando as transações são realizadas por via magnética, através da simples troca de informações, especialmente nos casos que envolvem instituições financeiras?

Quer nos parecer que a ausência do documento não teria o condão, isoladamente, de desnaturar o negócio cambial. Basta ver que a Lei de Duplicatas –

nº 5.474, de 1968 – já admitia o protesto por indicação, ou seja, sem a cártula, assim como a execução do título retido pelo sacado (art. 15).

A duplicata mercantil é exemplo singular para a presente análise, na medida que a Letra de Câmbio jamais exerceu papel preponderante no comércio brasileiro. E é a duplicata, seja mercantil ou de prestação de serviços, que tem sofrido a efetiva desmaterialização em face do desenvolvimento tecnológico.

Nos negócios realizados com duplicatas através de bancos, que em verdade, concentram hoje este tipo de negócio, a cobrança do título é realizada mediante a confecção e expedição de instrumento conhecido no meio por “boletos”, de tal maneira que o título, a cártula como tradicionalmente conhecida, muito raramente chega às mãos do devedor/sacado.

Mesmo nestas condições, não se questiona a quitação ofertada em documento apartado do título (boleto), em que pese a insistência da doutrina em afirmar que a quitação dada extra cártula não pode ser oposta ao portador de boa-fé do título de crédito. Ora, de há muito o sistema financeiro usa deste expediente, não sendo razoável insistir na premissa de que a quitação deva ser necessariamente conferida no título. Mesmo porque, a própria Lei das Duplicatas (5.474, de 18.07.68), no parágrafo primeiro, do seu artigo 9º, leciona que “a prova do pagamento é o

recibo, passado pelo legítimo portador ou por seu representante com poderes

especiais, no verso do próprio título ou em documento, em separado, com referência expressa à duplicata”.

Não se justifica, a nosso juízo, a resistência e indiferença do mundo jurídico a estas relevantes alterações verificadas na praxis negocial, mormente porque não têm se transformado em prejuízo aos negociantes. Ademais, não se pode perder de vista que o Direito Comercial tem nos usos comerciais uma de suas principais fontes.

É verdade que o procedimento sob cogitação perderá um pouco de sua eficácia – pelo menos até o momento que o Judiciário venha a enfrentar a questão com maior profundidade – quando se verificar a inadimplência. Nestes casos, salvo algumas decisões a que nos reportaremos mais adiante, imprescindível será a exibição material do título, visto que o registro magnético não suprirá os requisitos processuais para efeito de execução.

Mas mesmo contra estes inconvenientes, alternativas são buscadas pelos negociantes. Exemplo concreto é o acentuado uso do cheque pré-datado, em substituição mesmo à duplicata, nas operações feitas a prazo. É certo que também o cheque, na sua forma comum, vem sofrendo o impacto da informatização, com o uso cada vez mais acentuado dos cartões, que permitem não só a realização de compra e venda, mas também saques bancários, pagamento de faturas e até a concretização de empréstimos em terminais específicos, sem falar nos smart cards

que não só substituirão o cheque, mas o próprio uso da moeda, considerando que já virão carregados de um valor financeiro.

Aliás, em versão ainda mais sofisticada e bastante recente da família dos cartões, já é possível transferir dinheiro da conta corrente para o cartão de crédito ou débito, via Internet, sem precisar ir à agência bancária ou pedir qualquer tipo de autorização.

Da mesma maneira que o princípio da cartularidade é afetado profundamente pelas inovações sob consideração, assim também ocorre com os princípios da literalidade e da autonomia. Quanto a literalidade pela razão óbvia de sua expressão, qual seja, de só expressarem validade jurídica os atos lançados na cártula. Em não havendo cártula, prejudicada estará, sob a ótica convencional, a literalidade.

O princípio da autonomia, por sua vez, parece-nos ser pouco afetado pelas inovações aqui consideradas, tendo em vista as restrições circulatórias dos títulos, especialmente em face da concentração dos negócios da espécie pelas instituições financeiras, que, como frisado, raramente criam novas relações a partir dos títulos que ingressam em suas carteiras.

Observa-se, assim, que os princípios cambiários, tão preservados pela tradicional doutrina – o que se justifica pela importância dos mesmos na construção e manutenção das regras atinentes ao direito cambial –, encontram-se objetivamente

afetados pelas inovações propiciadas pela moderna tecnologia, impondo-se, como é de se esperar da ciência do direito, o repensar destes princípios, de molde a torná- los compatíveis com a nova prática comercial. É o que sustenta o professor Fábio Ulhoa Coelho49, ao assentar que “(...) deste ramo do direito privado resta nos dias de

hoje muito pouco de atual. Revela-se, portanto, um desafio para os comercialistas e para o legislador, a construção de novas doutrinas e novas regras, compatíveis com a realidade econômica e tecnológica, em que se insere a concessão e administração do crédito”.

No documento Título de crédito eletrônico (páginas 57-65)