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Corpo, Pulsão, Gozo Curso Campo Psicanalítico de Salvador 2016

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1 Corpo, Pulsão, Gozo – Curso Campo Psicanalítico de Salvador 2016 A pulsão em Freud e Lacan (parte III)

Marcus do Rio Teixeira

III – Pulsão e linguagem

Introdução

Abordaremos nesta aula a relação entre pulsão e linguagem. Antes, porém, gostaria de recomendar que não tenhamos pressa em antecipar uma conclusão antes de examinarmos as formulações teóricas acerca do tema. Escutamos com frequência dizer que se a pulsão não é o instinto, se entendemos, a partir de Lacan, que o Trieb é exclusividade dos seres falantes, devemos concluir imediatamente que a pulsão diz respeito à linguagem. O raciocínio, embora formalmente correto, economiza na demonstração de como pulsão e linguagem se articulam, apenas afirma que tal articulação deve existir.

Lembro o comentário de Colette Soler na primeira aula do seu curso L’en-corps du sujet:

De uma certa maneira, pode-se dizer que, praticamente, a grande questão, desde o começo da psicanálise, é a de saber como se juntam, como se articulam entre si os mecanismos do inconsciente que aparecem pelo viés da decifração, de um lado, e as pulsões que são, de um certo modo, de outra ordem.1

Por meio desta citação quero chamar a atenção para o fato de que não se trata de uma questão simples cuja resposta já estaria dada de antemão, mas de um problema que se coloca, segundo a autora, desde o início da psicanálise enquanto teoria e prática clínica. Se pressentimos, a partir do ensino de Lacan, que pulsão e linguagem se articulam, esse pressentimento por si só não constitui uma explicação. Ao contrário, é necessário um esforço teórico para definir a forma como, segundo Lacan, tal articulação se dá.

Evitemos também invocar o exemplo do sintoma histérico para falar da pulsão – como muitas vezes se faz – visto que se trata de questões distintas. O primeiro é uma formação do inconsciente e ainda que possa se situar no corpo, isso não é uma condição necessária. Sua constituição se dá a partir do significante, por isso ele pode ser interpretado, mesmo que se apresente enquanto manifestação aparentemente de origem fisiológica (dor, mal-estar, etc.). A segunda é o “representante psíquico dos estímulos oriundo do interior do corpo que alcançam a alma [Seele], como uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua a relação com o corporal”2. Sua relação ao significante não é evidente; ao contrário, é justamente o que resta a ser demonstrado.

1SOLER, C. L’en-corps du sujet - Cours 2001-2002. Paris (sem indicação editorial), 2003. Aula de 21/11/2001. p. 4 [tradução para uso interno: Sonia Magalhães].

2 FREUD, S. As Pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2014, p. 25 [tradução: Pedro Heliodoro Tavares].

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2 Pulsão de morte

Vimos que Lacan critica o primeiro dualismo pulsional proposto por Freud, entre pulsões do eu/pulsões de autoconservação e pulsões sexuais, afirmando que a fome e a sede não são pulsões e que o amor é narcísico e não pulsional. Para Lacan, pulsão é um termo que se aplica exclusivamente às pulsões sexuais que são, como sabemos, parciais e quádruplas: oral, anal, escópica e invocante.

Quanto ao segundo dualismo freudiano, Eros X Tânatos ou Pulsões de Vida X Pulsões de Morte, sua posição não é tão facilmente discernível. Por um lado, sua crítica ao Eros freudiano é explícita e está presente em diversos momentos do seu ensino. Em Televisão, por exemplo, ele diz: “Mas o fato é que Freud também cai nessa, pois o que imputa a Eros, na medida em que o opõe como princípio ‘da vida’ a Tânatos, é unir – como se, afora breve uma coiteração [coïtération] nunca se tivesse visto dois corpos unirem-se num só.”3

Já a sua atitude a respeito da pulsão de morte não parece tão clara. Ele chega a empregar o termo

“instinto de morte” em Função e campo da fala e da linguagem4, o que parece uma contradição com sua conhecida posição contrária à tradução do Trieb por instinto. Para Soler, o uso desse termo por Lacan deve ser tomado como uma crítica ao biologismo do conceito freudiano:

O instinto de morte, seria preciso quase colocá-lo entre aspas, e é impressionante que ele não diz pulsão de morte. Ao longo desse texto ele diz instinto de morte, precisamente, acredito, para guardar a nota do biologismo de Freud. Instinto é um termo da biologia. É uma frase que inscreve a ruptura de Lacan com todo biologismo.5

Segundo a autora, Lacan marcaria sua distância em relação a esse conceito que Freud cunhou para manter o seu dualismo após haver reunido as pulsões sexuais às pulsões de autoconservação. Para ela, ao descrever a pulsão de morte, “[Freud] pensa a natureza, se refletimos bem, nesse texto, como um Outro que teria uma vontade, uma finalidade” 6. Com o emprego do termo “instinto de morte”

Lacan estaria sinalizando, digamos, que a concepção freudiana de um anseio à morte, ao inanimado, em todos os seres vivos, só poderia ser considerado um instinto e nunca uma pulsão.

Ele chega a dizer em Função e campo...:

A noção de instinto de morte, por menos que a consideremos, propõe-se como irônica, devendo seu sentido ser buscado na conjunção de dois termos contrários: o instinto, com efeito, em sua acepção mais abrangente, é a lei que regula em sua sucessão um ciclo comportamental para a realização de uma função vital, e a morte aparece desde logo como a destruição da vida.7 Por outro lado, é conhecido o destaque que ele confere ao conceito de repetição e a sua preferência por Além do princípio do prazer. Isso leva alguns autores a deduzir que, para Lacan, a pulsão é pulsão de morte. Porém, se é verdade que Lacan confere à repetição o lugar de um conceito fundamental da

3 LACAN, J. Televisão. In: _____. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 508-543. 526.

4 LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 238-324.

5 SOLER, C. L’ En-corps du sujet...Op. cit., aula de 16/01/2002, p. 59 [tradução: Graça Pamplona]

6 Id., p. 55.

7 LACAN, J. Função e campo da fala... Op. cit., p. 317-318.

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3 psicanálise, e que esse conceito está ligado à pulsão de morte, por outro lado, nada mais distante da concepção freudiana da pulsão de morte do que a releitura feita por Lacan: “A distinção entre pulsão de vida e pulsão de morte é verdadeira na medida em que manifesta dois aspectos da pulsão.”8 Portanto, Lacan só admite o segundo dualismo freudiano tomando-o num sentido radicalmente diferente daquele proposto por Freud, ou seja, considerando-o não como duas espécies de pulsão, mas como dois aspectos presentes na pulsão. E ele continua: “Mas com a condição de conceber que todas as pulsões sexuais se articulam no nível das significações no inconsciente, na medida em que, o que elas fazem surgir, é a morte – a morte como significante, e, não mais que como significante, pois será que se pode dizer que há um ser-para-a-morte? ” 9

Acerca da aproximação feita por Lacan entre a pulsão de morte e o simbólico, Soler assim comenta:

Notem que essa redefinição está nos antípodas da ideia de um impulso em direção à morte.

Isso designa um fato de estrutura. Ele retraduz a ideia de um impulso em direção à morte em termos de estrutura. (...) Então, esta já é uma redefinição do instinto de morte que volatiza o instinto de morte e que o reabsorve na estrutura mortificante do significante, a saber, que o simbólico introduz não somente o assassinato da coisa, portanto a perda, porém, além disso, ele inscreve o inamovível. O que não é exatamente a mesma coisa.10

“Como se estabelece uma zona erógena?”

Esta pergunta me foi dirigida na última aula. A dúvida, pelo que pude perceber, diz respeito à materialidade das zonas erógenas e sua relação com a pulsão, a qual parece algo imaterial. Esta dúvida é ampliada toda vez que se escuta falar que o corpo pulsional “não é este” (se referindo, por “este”, ao nosso corpo de carne e osso). Ora, obviamente, enquanto conceito, a pulsão existe no campo teórico e não no mundo material. Porém, supor que o corpo no qual se situam as zonas erógenas – as bordas das fontes pulsionais – não é “este” constitui um atentado à teoria psicanalítica e ao bom- senso, porque teríamos que supor que temos mais de um corpo: este que já conhecemos e um outro, sabe-se lá de que natureza, etéreo, imaterial, transcendental...

Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) Freud define a pulsão como “o representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de excitação”11 No artigo metapsicológico de 1915, a fonte (Quelle) é “o processo somático que ocorre em um órgão ou em uma parte do corpo e do qual se origina um estímulo representado na vida psíquica pela pulsão.” 12 Quanto à excitação, ele afirma: “Uma destas espécies de excitação descrevemos como sendo

8 LACAN, J. O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos... Op. cit., p. 249.

9 Id., ibid.

10 SOLER, C. L’ En-corps du sujet...Op. cit., aula de 16/01/2002, p. 61.

11 FREUD, S. Três ensaios sobre sexualidade. In: _____. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972, p. 171.

12 FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão. In: _____. Obras psicológicas de Sigmund Freud, vol. 1 -

Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 2004 (tradução: Luiz HANNS). p.

149.

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4 especificamente sexual e falamos do órgão em causa como a ‘zona erógena’ da pulsão componente sexual que dela surge. ” 13 Falando sobre as zonas erógenas oral e anal, ele diz: “Na história, estas partes do corpo e os tratos vizinhos da membrana mucosa tornam-se a sede de novas sensações e de modificações de enervação (...)” 14

Para Freud, portanto, as características fisiológicas são determinantes para o estabelecimento de tais zonas por possibilitarem o aparecimento de sensações prazerosas. Lacan, por sua vez, destaca o caráter de borda da fonte pulsional. Para ele: “(...) a Quelle inscreve na economia da pulsão essa estrutura de borda.” 15 Ele chega a falar da borda das orelhas, dos olhos, etc. E conclui: “Na tradição analítica, reportamo-nos sempre à imagem estritamente focalizada das zonas reduzidas à sua função de borda.” 16

Tais bordas, como vimos, são estabelecidas pelo investimento libidinal do corpo do bebê por parte de quem se ocupa dos cuidados maternos, por quem ocupa para ele o lugar do Outro. Essa furação do corpo, fruto do investimento do Outro, é essencial para que os orifícios possam funcionar não somente como zonas erógenas, mas também desempenhando suas funções orgânicas, uma vez que, como lembra Charles Melman: “(...) é o mesmo orifício para as necessidades e para os desejos.” 17 Lígia Víctora nos dá uma definição topológica dessa furação:

Conforme Lacan [Seminário A Identificação, aulas 14 e seguintes], é o Falo que vai enfiar o objeto a no buraco do cross-cap. Esta introdução refere-se à demarcação de um lugar do corpo [orifício ou superfície] como local privilegiado pela experiência de prazer. Em torno deste furo começa a se “delimitar os limites” (redundante, não?) do corpo do futuro sujeito.18

O objeto a e as zonas erógenas

As zonas erógenas são bordas que marcam no corpo a perda de um objeto. Melhor do que perda, deveríamos empregar aqui o termo que Lacan utiliza no seu Seminário 10, A Angústia: a cessão de um objeto. O termo cessão implica um Outro a quem o objeto é cedido. Implica também a materialidade desse objeto, como algo que é separado do corpo, a título de desmame, defecação ou mesmo nos casos menos evidentes da voz e do olhar.

Lacan descreve esses objetos, mostrando como cada um deles constitui uma parte do corpo do sujeito que dele é cortada, mesmo nos casos em que o senso comum nos levaria a crer no contrário.

Assim, ao falar sobre o desmame, ele aponta que não se trata de uma separação do bebê do seio da mãe, mas de uma separação de uma parte do corpo que é tomada como sua:

13 FREUD, S. Três ensaios... Op. cit., p. 171. (Substituímos instinto, nessa tradução, por pulsão)

14 Id., p. 171-172.

15 LACAN, J. O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1963-1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008 (2ª edição), p. 169.

16 Id., ibid.

17 MELMAN, C. A questão do corpo em psicanálise. In: ____. Formas clínicas da nova patologia mental e artigos inéditos. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2004. p. 115-132. p.120.

18 VÍCTORA, L. Questões à topologia. In: Correio da APPOA, nº 209, Topologia do Gozo I, Porto Alegre, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, janeiro 2012, p. 85-87. p. 86.

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5 No nível da fase oral, na qual o objeto a é o seio, o mamilo, como quiserem, o cerne do que está em pauta é o seguinte. O sujeito, constituindo-se originalmente e se completando no comando da voz, não sabe nem pode saber até que ponto ele próprio é esse ser chapado no peito da mãe sob a forma do mamilo, depois de ter sido o parasita que mergulharia suas vilosidades na mucosa uterina, sob a forma de placenta. Ele não sabe, não tem como saber que o seio, a placenta, isso é a realidade do limite do a em relação ao Outro.19

A noção de corte é fundamental para pensarmos a forma como esse objeto se constitui por uma separação do corpo do sujeito, como algo que ele cede ao Outro. A partir daí o objeto valerá pela sua falta como causa do desejo. Como diz Moustapha Safouan: “(...) a causalidade desta falta se enraíza em uma perda, ou, mais precisamente, num corte real: aquele do objeto da demanda ao Outro no caso do objeto oral, e aquele do objeto da demanda do Outro no caso do objeto anal.” 20

A suposição de que há um Outro que demanda ao sujeito que lhe ceda esse objeto é o pivô da operação. No Seminário 10, A Angústia, Lacan vai mostrar como a noção de desenvolvimento presente na leitura feita pelos pós-freudianos acerca das fases libidinais é ilusória, pois encobre o que de fato são mudanças na relação do sujeito ao Outro, voltas na demanda e no desejo que se expressam, por exemplo, na passagem da demanda ao Outro (que diz respeito ao objeto oral) para a demanda do Outro (que diz respeito ao objeto anal).

Pulsão e demanda

Sabemos que a teorização da demanda, articulada ao desejo e à necessidade, está presente desde o início do ensino de Lacan. Ela aparece no seu matema da pulsão, S <> D – sujeito barrado punção de D (demanda). Uma certa leitura, que apelido de evolutiva, pretende nos fazer crer que tais conceitos estariam ultrapassados, por se referirem ao imaginário e ao simbólico, ao passo que nos últimos anos do seu ensino, Lacan se dedicaria a teorizar o gozo a partir do real.

É fácil verificar que tal não leitura não se sustenta, ao ver que no final do seu Seminário 20, Mais, ainda, o qual é dedicado em grande parte a tratar do gozo, Lacan inclui uma importante referência à demanda:

Por que foi que fiz intervir, em tempo antigo, o nó borromeano? Era para introduzir a fórmula eu te peço – o quê? – que recuses – o quê? – o que te ofereço – por quê? – por que não é isso – isso, vocês sabem o que é, é o objeto a. O objeto a não é nenhum ser. O objeto a é aquilo que supõe de vazio um pedido [uma demanda], o qual, só situando-o pela metonímia, quer dizer, pela pura continuidade garantida do começo ao fim da frase, podemos imaginar o que pode ser de um desejo que nenhum ser suporta. Um desejo sem outra substância que não a que se garante pelos próprios nós.21

19 LACAN, J. O Seminário, Livro 10, a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 328.

20 SAFOUAN, M. e HOFFMANN, C. O desejo nas mutações familiares e sociais. São Paulo: Instituto Langage, 2016, p.19.

21 LACAN, J. O Seminário, Livro 20, mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 (3a edição), p. 134.

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6 Soler comenta esse trecho do Seminário 20, chamando a nossa atenção para o fato de Lacan fazer intervir o conceito de demanda, supostamente ultrapassado:

Colocar a questão como eu coloco é talvez induzido pelo fato de que nós ouvimos falar muito – a partir de Jacques-Alain Miller – que a referência ao gozo no ensino de Lacan eclipsaria a referência à demanda e ao desejo. Ela não a suprimiria, mas a eclipsaria, a deslocaria e levaria a colocar os problemas de maneira radicalmente diferente: em termos de gozo, não seria mais em termos de demanda e desejo.

Ora, eu lhes faço observar que na página 114 [página 134-135 da edição brasileira] do Seminário 20, Mais, ainda, que coloca a questão estritamente em termos de gozo – que foi o que eu escrevi no quadro – começa pela convocação do binário demanda/desejo, o que indica, a meu ver, que para Lacan a referência ao gozo não eclipsaria a referência ao tema demanda/desejo, mas simplesmente a completaria.22

É esclarecedor saber que a ideia de que a referência à demanda e ao desejo teria sido “eclipsada”

pela introdução da referência ao gozo no ensino de Lacan não é uma ideia do próprio Lacan. Seria proveitoso se alguns leitores dessa autora tomassem conhecimento disso. Mas ela continua:

A demanda aqui é o quê? Evidentemente, não é a demanda enunciada. A frase o diz muito bem.

É a demanda enquanto ela é implicada em toda frase, em toda metonímia da frase. O que nós chamamos aí a “metonímia” é o vetor que nos conduz do primeiro termo da frase até o último, lá onde cai o ponto de basta, isso que Lacan qualifica de “continuidade”. O que isso diz é que – poderíamos dizê-lo assim – toda frase é demanda. Nem todo enunciado é um enunciado de demanda, mas toda frase, mesmo quando ela não enuncia uma demanda, porta, veicula uma demanda.23

A partir dessas colocações, podemos entender melhor a famosa frase de Lacan: “Pulsões são no corpo o eco pelo fato de que há um dizer.”24 Comentando essa frase, a autora ressalta alguns aspectos:

O dizer, isso não é tão complicado: distingue-se dos ditos, os ditos sendo os enunciados, simplesmente aquilo que se registra. (...) O dizer é outra coisa. O dizer é o ato de produzir os ditos. E, evidentemente, que se diga ou não, não depende da verdade, isto não é nem verdadeiro nem falso, isto é ou isto não é, muito simplesmente.

(...) Então, quando ele diz “o eco no corpo pelo fato que há um dizer” – se lembramos que dizeres ali não há tanto assim, – se o seguimos em O Aturdito há dois: há o dizer da demanda e há o dizer da interpretação; e todos os ditos, salvo a interpretação, portam um dizer da Demanda (que podemos escrever com maiúscula para distingui-la de todas as demandas transitivas disto ou daquilo). Então, concebe-se bem que “o eco no corpo pelo fato de que há um dizer” é o eco no corpo pelo fato de que o discurso do Outro traz o dizer da demanda.25

22SOLER, C. Lecture commentée du Séminaire Encore. Paris, Hôpital Sainte-Anne, oct.1999/juin 2000.

Transcrição não relida pela autora. Aula de 11/6/2001. Tradução minha do trecho transcrito.

23 Id., ibid.

24 LACAN, J. O Seminário, Livro 23, O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. p. 18.

25 SOLER, C. Lecture commentée du Séminaire Encore...loc sit.

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7 Ou seja, é preciso distinguir entre a Demanda, com D maiúsculo, que aparece no matema da pulsão, e que concerne ao dizer, ao fato de que toda fala comporta a demanda, e as demandas veiculadas nos ditos, que são demandas de alguma coisa, demandas transitivas, como diz a autora.

Essas demandas poderiam ser consideradas como casos específicos da Demanda. A pulsão, portanto, na definição de Lacan, não é o eco no corpo dos ditos (das demandas transitivas), mas o eco do dizer, do dizer da Demanda. Evitemos, portanto, leituras simplistas que consideram a referência à demanda como puramente imaginária e desconsideram a sua importância na pulsão.

Por outro lado, é preciso considerar o fato de que para o pequeno sujeito, o lugar do Outro é ocupado por esses outros que lhe endereçam demandas específicas. “Alguma coisa gira nesse objeto.

Trata-se da demanda da mãe.” 26 Lacan se refere à mãe que espera que o bebê faça cocô e festeja o resultado como sinal de boa saúde, transformando com isso o excremento, objeto orgânico, em objeto do dom, objeto da pulsão anal. Essa demanda da mãe, que ocupa o lugar do Outro, se sustenta na Demanda com D maiúsculo, no fato de que o sujeito está na demanda desde que está na troca de falas.

Marie-Christine Laznik, que teoriza a constituição do sujeito e o circuito pulsional a partir da clínica com bebês, destaca o componente de gozo presente nessa relação do sujeito ao Outro: “O bebê vai à pesca do gozo de sua mãe, enquanto ela representa para ele o grande Outro primordial, provedor dos significantes. ”27

O gozo e o objeto serão os próximos pontos abordados no nosso percurso sobre o corpo.

26 LACAN, J. O Seminário, Livro 11... Op. cit., p. 329.

27 LAZNIK, M.-C. Poderíamos pensar numa prevenção da síndrome autística? In: ______. A voz da

sereia - o autismo e os impasses na constituição do sujeito (textos compilados por WANDERLEY, D.).

Salvador: Ágalma, 2013 (3ª Ed.). p. 21-35. p. 28.

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