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Mário Vieira de Mello - Nietzsche o Sócrates de nossos tempos.pdf

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Mario Vieira de Mello

N.Cham. 1(430) M527n Autor: Mello, Mario Vieira de. Título: Nietzsche : o Socrates de nosso

Ex. 1 UFSC BC SIRIUS

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ISBN 8 5 - 3 1 4 - 0 0 7 6 - 7

Nietzsche: 0 Sócrates de Nossos Tempos é um liví o provocador desde o título. Acom­ panhando a biografia e percorrendo as obras de Nietzsche, Mario Vieira de Mello nos mostra como este filósofo dionisíaco tem, para o século XX, um valor análogo ao que Sócrates - alvo de ruidosas críticas de 0 Nascimento da Tragédia - tinha para a Antiguidade grega. Através da repercussão de seus livros e das inúmeras inte.rpreta- ções feitas por pensadores como Karljas- pers, Heidegger ou Bergson, o autor nos conduz pelas múltiplas perspectivas filosó­ ficas apontadas pelo autor do Zaratustra.

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Nie t z s c h e: 0 Sócrates de Nossos Tempos

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ESP

Reitor Vice-reitor |edusP Presidente Diretor Editorial Editor-assistente Comissão Editorial

Roberto Ix a l Lobo e Silva Filho Ruy Lauienti

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÀO PAULO

João Alexandre Barbosa Plinio Martins Filho Manuel da Costa Pinto

Joào Alexandre Barbosa (Presidente) Celso Lafer

José E. Mindlin Oswaldo Paulo Forattini Djalina Mirabelli Redondo

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NIETZSCHE:

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Copyright © 1993 by Mario Vieira de Mello

Foi feito o depósito legal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mello, Mario Vieira de.

Nietzsche : O Sócrates de Nossos Tempos / M ario Vieira de Mello. - São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1993. - (Campi ; 12)

Inclui índice o n o m ástico . ISBN: 85-314-0076-7

1. Filosofia alemã 2. Nietzsche, Friedrich W ilhelm, 1844-1900 3. Niilismo (Filosofia) I. Título. II. Série.

92-1838

índices para catálogo sistemático: 1. A lem anha : Filosofia 193 2. Filosofia alemã 193 3. Filósofos alem ães : Biografia e o b ra 193

CD D -193

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Edusp - Editora da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374

6® andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (011) 211-6988 Tel. (011) 813-8837 / 813-3222 r.4156,4160

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A memória de Octávio de Faria, amigo de juventude, dedico com gratidão este livro.

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Sócrates, Sócrates, Sócrates! Sim, queremos invocar teu nom e três vezes, não seria demais invocá-lo dez vezes, se de u m tal apelo fosse possível recolher algum proveito. E geral a crença de que o m undo precisa de um a república, de um a nova ordem social e de um a nova religião, m as ninguém pensa que é de u m Sócrates que m ais precisa o m undo agora, perplexo com o está n o meio de tantas noções contraditórias.

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SUMÁRIO

Apresentação ... 13

P refácio... 19

1. Reações, Comentários e C r ít ic a s ... 21

2. A Influência da Obra sobre a V i d a ... 47

3. A Unidade das Virtudes e a Coragem E s p ir itu a l... 73

4. A Comunicação Indireta, as Interpretações e as Máscaras . . . 97

5. A Crítica da D e cad ên cia...143

6. O N iilism o ... 165

7. A Medicina e a É t i c a ...189

8. O Destino Trágico - As A lternativas...209

9. Nietzsche e Sua D o e n ç a ... 229

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O leitor deste belo livro, escrito com severa paixão filosófica, se sente espicaçado desde o título, pois todos sabem que Nietzsche atacou Sócrates com veemência: mas Mario Vieira de Mello constrói o seu argumento sobre a idéia de uma antologia essencial da função de ambos. A este aparente paradoxo seguem outros, como a sugestiva afirmação que em Nietzsche a obra condiciona a vida, ou a convicção de que os seus escritos finais não sofreram o peso da loucura nascente, pois são conseqüência lógica da sua posição mental; de tal modo que a mensa­ gem suprema do Ecce Homo equivale à Apologia de Sócrates.

Mario Vieira de Mello está interessado no problema da construção do homem como ser livre, e sob este aspecto Nietzsche lhe parece um educador incomparável, como Sócrates, ambos intemeratos, destinados ao sacrifício, sujeitos à opinião deformadora. Longe de simplificar, ele desdobra ante o leitor a opulenta complexidade do filósofo alemão, num relato onde vida e obra se fundem. Para isso, estabelece entre outras coisas nexos comparativos com outros pensadores, outros contextos culturais e diversos intérpretes, além de mostrar as oscilações criadoras do seu pensamento. E por todo o livro sentimos os traços fundamentais do pensador austero que é Mario Vieira de Mello: a sinceridade que faz

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da escrita um movimento colado ao raciocínio e a coragem mental, que o torna adequado para falar de Nietzsche, com o qual possui em comum a sobranceria das idéias, a maneira pessoal de expô-las e a soberana indiferença pelas modas do momento.

An t o n i o Câ n d i d o

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APRESENTAÇAO

Pediu-me Mario Vieira de Mello que escrevesse, para apresentar este livro, um texto evocativo do cenário em que se movimentava a mocidade universitária no início dos anos trinta, mais precisamente em 1930, e a influência que exerceria sobre a formação cultural de todo um grupo de jovens que então ingressava na Faculdade de Direito do Catete, a singular agremiação que ali atuou por mais de uma década: o CAJU (Centro Acadêmico Jurídico Universitário).

Quando estava a alinhavar este texto, alguém me perguntou, vendo o título da obra: “Você também é especialista em Nietzsche?” Ao que respondi: “Não, sou especialista em Mario...”

Na verdade, há mais de cinco décadas lido de perto com Mario Vieira de Mello, hoje a mais antiga de minhas amizades, contemporâ­ neos que fomos ainda nos anos vinte no Colégio Santo Inácio. Voltaría­ mos a nos encontrar, desta vez defmitivamente e em estreito contato, em 1930, sob o signo do CAJU, onde pontificava um grupo seleto de quartanistas e bacharelandos da faculdade, futuras personalidades des­ tacadas da vida literária, política e acadêmica do Rio de Janeiro, como Américo Lacombe, Antônio Gallotti, Gilson Amado, Thiers Martins Moreira, Plínio Doyle, Chermont de Miranda, Hélio Viana, Clóvis P. da

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Rocha, e entre os quais surgiam duas incontestáveis lideranças: Octávio de Faria e San Tiago Dantas.

Essa agremiação, estranhamente até hoje - quiçá felizmente - , não tendo sido objeto de dissertação de mestrado, em plena atividade durante, creio, pelo menos uma década, era uma verdadeira academia de jovens, de total seriedade, cuja membership era conquistada median­ te apresentação e aprovação, por comissão especialmente designada, de uma tese original sobre temas relativos às áreas de interesse do centro: ciências jurídicas em geral, história, literatura, filosofia, ciências sociais.

A estimulante atuação desse grupo de jovens estudiosos e sua influência sobre as novas gerações que chegavam à faculdade revelam hoje, para nós, o espírito humanista que há meio século ainda impreg­ nava nosso processo educacional, até ali não afetado pelos efeitos da massificação que fatalmente se lhe imporia na era desenvolvimentista. Voltadas para metas essencialmente funcionais, a educação superior e a pós-graduação dirigiam seus alvos de excelência para as áreas cientí­ ficas e tecnológicas, e, progressivamente, a corrida para tais carreiras como que ofuscou e esvaziou as áreas dos estudos clássicos, retirando de nossa formação universitária todo o componente humanístico que a deve permear, como a própria expressão e essência da cultura.

Nesse meu reencontro com Mario, eu já no quinto ano de medicina e ele ingressando em direito, diluía-se a diferença de dois ou três anos de idade que no colégio nos distanciava.

Eu então já convivia com o grupo do CAJU, trazido por Octávio, ao qual me ligava a recente aventura do Chaplin Club, bela aventura de quatro rapazolas de dezesseis a dezenove anos, empenhados em impor o cinema como arte autônoma, com identidade própria, a sétima arte, à intelligentsia brasileira.

Por interesses comuns, passariam também a conviver com o grupo do CAJU meus colegas de medicina Vieira Pinto e Tito Leme Lopes, inesquecíveis amigos, e Carlos Chagas Filho. Na geração que entrara para a Faculdade do Catete em 1930 também estavam, além de Mario, caros amigos que já nos deixaram: Vinícius de Morais, que no ano seguinte publicaria O Caminho para a Distância, seu primeiro livro de poesia, José Artur Frota Moreira, que mais tarde faria marcante carrei­ ra política, Augusto de Rezende Rocha, Álvaro Penafiel, futuro autor de Grupo e Espírito. Lembro-me bem das defesas de tese de Augusto sobre Wilde e de Mario sobre Nietzsche e, anos antes, a de Octávio, A Desordem do Mundo Moderno.

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Poderíamos dizer, numa oportuna retrospectiva, que as atividades do CAJU refletiam os interesses, a visão do mundo e do Brasil e os projetos de vida da mocidade de cinquenta anos atrás; muitos voltados, como também os de hoje, para a música, os esportes, a vida social, mas sempre polarizados em torno de valores culturais que o traço humanís- tico, ainda patente em sua formação educacional, os estimulava a incor­ porar.

Mario, ao ingressar na faculdade, já se iniciara em Nietzsche e teve em Octávio, cultor fervoroso do filósofo, um precioso orientador. Mas, pouco conhecido ainda entre os colegas, causou um certo impacto ao candidatar-se ao CAJU. Aquele atletão, queimado de sol, o “Mario- asa” de Copacabana, apresentar-se com uma tese sobre Nietzsche, trabalho de maturidade incomum entre os iniciantes!

Cabe aqui uma referência espeGial a Octávio de Faria, a cuja memória Mario dedica este livro. Octávio, um pouco mais velho que todos nós, pertencia a uma família de escritores: o pai, Alberto de Faria, e seus cunhados, Afrânio Peixoto e Alceu Amoroso Lima.

Fora criado num ambiente literário e de alto nível social. Contava- nos as recepções na casa de veraneio da família em Petrópolis, onde, ainda rapazinho, ouvia Claudel recitar... Tinha assinatura da NRF e se correspondia com livrarias e editoras francesas. E todas as suas luzes nos transmitia generosamente. Quanto lhe devemos em nossa formação literária! Já tínhamos, antes de conhecê-lo (naquele tempo saía-se do colégio lendo corretamente o francês), nossas leituras avulsas e desor­ denadas de autores estrangeiros: Balzac, Hugo, Zola, Stendhal Dickens, algum Anatole, os russos, e ansiávamos por novas leituras, novas vozes. E isso Octávio nos daria à perfeição. Por ele ordenamos leituras e chegamos a Proust, Gide, Thomas Mann, Radiguet, Malègue, Alain- Fournier, Mauriac; às novelistas inglesas, M. Kennedy, Virginia Woolf, Rosamond Lehmann, as Brontë; aprofundamo-nos na obra dos russos - novos horizontes. Pode-se dizer que, para o nosso grupo, para a geração de Vinícius e Mario, Octávio desempenhou o mesmo papel de maître, de preceptor literário, que Roberto Alvim Corrêa exerceria depois, na Faculdade de Filosofia e fora dela, para a mocidade dos quarenta. Já tenho dito que “nada sei” mas “que o pouco que saiba o devo a Octávio”, e assim reforço com emoção o preito rendido por Mario a quem tanto nos deu.

Voltando ao autor deste livro, diria que, na época a que vimos nos referindo, embora sociável e até com um certo penchant por festas e

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reuniões e certamente capaz de sólidas amizades, além de participativo em relação ao seu grupo, Mario, um introspectivo, amiúde assumia uma postura de isolamento. Em nossas longas caminhadas noite adentro, deixava-se ficar para trás como que absorto... Literalizados, gracejáva­ mos: “Ses ailes de géant 1’empêchent de marcher”... Conversas com “o interlocutor invisível”, diria eu hoje, após ler este livro...

Custou-lhe fixar-se na vida prática: sem qualquer vocação para a advocacia, teve ocupações vagas que não lhe interessavam. Para “ganhar tempo”, chegou mesmo - o que era moda na ocasião - a inscrever-se na Reserva Naval Aérea, onde seu aprendizado foi interrompido quando conseguiu avariar um avião... e finalmente decidiu-se pela carreira diplomática, compatível desde logo com o seu projeto cultural, com o recurso às fontes estrangeiras, numa época em que a carreira universi­ tária, o estuário natural dum estudioso de sua marca, era objetivo a longo prazo e de limitadas perspectivas.

No exercício de suas funções diplomáticas, em longas estadas no estrangeiro, Mario aprofundou continuamente seu saber.

Estudioso e pesquisador solitário, hoje uma das mais completas formações clássicas de nosso país, com sua vertente filosófica embasada num sólido conhecimento, não só de filosofia clássica e contemporânea, como de história antiga, de filologia e de história das religiões, Mario pouco publicou em relação ao que tem a dar ao leitor brasileiro.

Só recentemente, encerrada a carreira diplomática, tem participa­ do mais extensamente do debate universitário e apresentado contribui­ ção valiosa em reuniões de alto nível, notadamente na Universidade de Brasília (UNB) e no Instituto de Estudos Políticos Econômicos e Sociais - Rio de Janeiro (IEPES). Publicou três livros, todos do melhor padrão, embora tenha obras de ficção que até agora preferiu deixar inéditas. Com Desenvolvimento e Cultura, o Problema do Estetismo no Brasil, de 1963, já entra fundo na análise dos temas do seu interesse maior em relação à evolução cultural e política de nosso país; O Conceito de uma Educação da Cultura, publicado em 1986, é talvez o ensaio brasileiro mais profundo e bem-estruturado sobre o conceito da educação através da história, suas relações com a evolução cultural do Brasil e as pers­ pectivas com que nos defrontamos. Finalmente, de certo modo anteci­ pada em esmerada súmula, numa coletânea, Nietzsche, de três conferências sobre o criador de Zaratustra, chega ao público brasileiro a obra-mestra de Mario Vieira de Mello sobre Nietzsche, objeto de 16 MARIO VIEIRA DE MELLO

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algumas décadas do seu culto e reflexão de pensador: Nietzsche, o Sócrates de Nossos Tempos.

Neste livro de uma vida, Mario apresenta a sua visão da obra e da vida de Nietzsche num exaustivo estudo em que, a partir da Origem da Tragédia, analisa toda a trajetória do pensamento do filósofo, desde o seu repúdio a Sócrates, que ali considera como pensador decadente, até as proposições dos seus últimos livros, num longo processo de realinha- mento ao contraponto socrático.

O autor, neste trabalho, além de analisar em profundidade, com sua visão pessoal, toda a obra de Nietzsche, procede a um rigoroso estudo cronológico de tudo o que de importante se publicou sobre o filósofo durante a sua vida, bem como depois de sua morte. Trata-se de um referencial bibliográfico certamente dos mais completos, objeto da pcrcuciente análise crítica de um dos nossos mais legítimos pensadores.

Reconstitui, assim, Mario Vieira de Mello todo o histórico da repercussão de cada obra de Nietzsche e da evolução dos juízos con­ temporâneos e posteriores à sua aparição, desde o silêncio formado após a Origem da Tragédia até o reconhecimento, hoje inconteste, do gênio do mais ousado pensador de nossos tempos.

Permeia todo o livro a convicção do autor de que, a cada passo mais ousada e corajosa, foi a obra de Nietzsche que passou a condicionar sua vida, levando-o finalmente à aceitação da loucura como única solução para o confronto com uma verdade insuportável.

O discurso indomável de Nietzsche tem neste ensaio uma leitura a um tempo vigorosa e apaixonada, aparente contradição que a qualidade do texto torna irrelevante. Mario, trabalhador solitário e obstinado, mas que talvez por falta de um mais amplo debate sobre os seus livros, através dos anos, não tenha podido se beneficiar da fruição de possíveis dúvidas, terá talvez agora a chance de considerá-las, ao enfrentar as prováveis contestações dos seus pares.

Este livro que, dada a autoridade de seu autor, não raro é apologé­ tico e laudatório, certamente dará margem a críticas e polêmicas. A estas, Mario já está habituado e sempre se mostra capaz de enfrentá-las à altura de seus contestadores.

Resta, entretanto, e isso me ocorre ao ler os trechos sobre o “interlocutor invisível” nas caminhadas de Nietzsche, a interferência do diálogo-solilóquio, que sempre me intrigou, do ignorado leitor com o desconhecido e distante escritor... Mas, atenção, desavisado leitor: tão

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competente como no debate aberto, nesse confronto fantasma, nesse metadiálogo, Mario também é um adversário implacável...

Almir de Castro

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PREFÁCIO

Em entrevista concedida ao semanário DerSpiegel, em 1967, Martin Heidegger exprime uma opinião que é uma boa amostra de sua arro­ gância. Disse ele: Os franceses, quando começam a pensar, falam ale­ mão.

Essa opinião naturalmente tem sua origem nas convicções nazistas do filósofo, que só agora vão sendo investigadas. Não era entretanto completaménte gratuita; baseava-se numa experiência realmente ocor­ rida. Os franceses, embora vítimas do nazismo, haviam se empenhado, depois da guerra, em estudar devotamente o idioma alemão - haviam sido seduzidos por Heidegger e esforçavam-se portanto no aprendizado daquele idioma, embora isso não tenha parecido ajudá-los na com­ preensão de onde o filósofo estava querendo chegar. Os ensaios filosó­ ficos na França, produzidos na época, estão repletos de expressões alemães que parecem inúteis, pois o autor já havia encontrado no idioma francês sua equivalência perfeita. Muitas vezes a equivalência saltava aos olhos das pessoas menos versadas no alemão. Mas o autor julgava-se obrigado a registrar as duas expressões como se de repente tivesse perdido a confiança no poder de expressão de seu próprio idioma.

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Houve certamente e continua a haver uma espécie de terrorismo cultural da língua alemã na área da disciplina filosófica. E naturalmente cabe a Heidegger uma boa parte da responsabilidade por esse fato. No Brasil, entretanto, houve e continua a haver a esse respeito não apenas terrorismo, como também superstição e pedantismo. Por ignorância ou afetação sempre se julgou entre nós que alguns filósofos só seriam acessíveis a quem pudesse ler alemão. Julgava-se, não pelas razões de Heidegger, vinculadas ao nazismo, mas por pretensão erudita, que a filosofia, como a poesia, é intraduzível - deixando assim sem explicação o fato de que a filosofia, nascida em solo grego e profundamente vinculada ao idioma do povo grego, foi, ao lado do cristianismo, um fator essencial na formação da cultura ocidental que durante muitos séculos a assimilou unicamente através do latim; deixando também sem expli­ cação o fato de que, quando o grego se tornou uma língua conhecida, a filosofia nem por isso deixou de ser o que havia sempre sido; e deixando finalmente sem explicação o fato de que ela se transformou sob a influência da ciência e não desse novo conhecimento lingüístico.

Por que estou fazendo tais observações? - Simplesmente para dizer que Nietzsche é um autor eminentemente traduzível. E essa, aliás, uma das razões pelas quais sua obra já exerceu e continua exercendo uma enorme influência em quase todas as áreas da cultura ocidental. O leitor brasileiro, que ainda está fora desse movimento universal de incorpora­ ção do mundo nietzschiano, não deveria se deixar intimidar pelo terro­ rismo cultural nazista ou pela superstição ou pedantismo nacionais. Se não conhece o alemão, leia Nietzsche nas boas traduções - eis o conselho prático que me permito dar-lhe aqui. Oxalá possa encontrar neste livro boas razões para convencer-se dos benefícios que resultariam de uma tal leitura.

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1. REAÇÕES, COMENTÁRIOS E CRÍTICAS

Tudo o que se refere à vida e à obra de Nietzsche está marcado pelo estigma de um violento contraste. Hoje, quando ainda não passaram nove décadas desde sua morte, já existe em torno de sua figura uma literatura que vai além de três mil volumes. Entretanto Nietzsche, durante sua fase produtiva, teve até dificuldades em encontrar quem quisesse publicá-lo. O silêncio que se formava após o aparecimento da maior parte de seus livros era algo de surpreendente e mesmo de inexplicável. Como podia um autor armado de um estilo tão obviamente excepcional ser a esse ponto ignorado? Como podia o conteúdo de uma obra, cuja forma desafiava comparações ou reticências, prejudicar de modo tão sensível o brilho e a força de que era revestida a expressão? São essas perguntas que fazemos hoje, testemunhas que somos de uma glória que não faz senão crescer. Mas os contemporâneos de Nietzsche, e em particular alguns de seus amigos, pareciam sofrer com a publicação de certos livros seus como se pode sofrer com as manifestações extra­ vagantes de um ser que nos é caro.

Esse é um fato que convém particularizar, proteger contra compa­ rações e generalizações fáceis, para que possa ser examinado em toda a sua singularidade. Nietzsche não foi um gênio incompreendido como

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se costuma dizer. Desde logo, com a publicação de sua A Origem da Tragédia, ganhava corpo a noção de que surgira, no horizonte da cultura

alemã, um fenômeno insólito. |

As reações que o livro despertava nos meios acadêmicos eram naturalmente negativas. Não se podia endossar as idéias de um autor que apresentava Sócrates como um pensador decadente. Mas no círculo wagneriano as reações eram entusiastas. Wagner, um leitor interessado, sentia-se transportado - e arrastava naturalmente nessa sua admiração todo o grupo de entusiastas que viviam em torno dele. Se lhes faltava competência em matéria filológica, sobrava-lhes certamente percepção em matéria artística e musical. Ninguém, dizia Wagner a seus adeptos, havia como Nietzsche conseguido traduzir em palavras aquilo que ele sentia ao compor seus dramas musicais.

E importante registrar aqui as primeiras reações a esse livro, porque com ele se inicia um drama que ia evoluindo com graus sempre mais elevados de intensidade e emoção. Os primeiros exemplares saíram da impressão no final de 1871. Em janeiro de 1872, Nietzsche enviava um exemplar a Wagner acompanhado de uma carta que falava da relação estreita existente entre as teorias do livro e a criação wagneriana. Wagner respondia: “Nunca li livro melhor do que o seu. É absolutamen­ te esplêndido”. Apesar disso, ao fim de poucas semanas, ficava perfei­ tamente claro que o mundo acadêmico recebera o livro de modo hostil e que tampouco outros círculos não ligados a Wagner haviam manifes­ tado uma receptividade maior. Nietzsche se sentia especialmente ma­ goado com o silêncio de seu mestre Ritschl; e por esse motivo resolvia escrever-lhe uma carta. No seu Diário, Ritschl anotava: “Carta espan­ tosa de Nietzsche - megalomania”; mas ao respondê-la a carta adotava um tom conciliador, explicando que dele, um scholar alexandrino, não se podia esperar que abandonasse o “conhecimento” pela “arte”. Logo se colocava a questão de saber para que público o livro estaria dirigido: se para o meio musical ou o meio acadêmico e filosófico. Erwin Rohde, colega e amigo de Nietzsche, escrevia um artigo em que dava realce ao aspecto filosófico do livro - e naturalmente Cosima Wagner, embora afirmasse tê-lo apreciado, observava que a ênfase nesse aspecto havia sido excessiva. O artigo de Rohde era recusado por uma revista espe­ cializada em assuntos clássicos. Mas, quando Rohde manifestou-lhe a intenção de publicá-lo numa revista não especializada, Nietzsche res­ pondeu que preferia esperar por nova oportunidade. Até maio de 1872, só uma crítica surgia na revista italiana Rivista Europea. O livro estava 22 MARIO VIEIRA DE MELLO

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agora com uma venda razoável, mas o mundo acadêmico e mesmo o mundo literário continuavam a manter-se em silêncio. No fim do mês de maio, um novo e longo artigo preparado por Rohde aparecia numa revista não especializada, com simpatias wagnerianas; o artigo reconhe­ cia no livro a abertura de novas e profundas perspectivas no campo da estética e uma compreensão original do valor e da eterna primazia da ( irécia e da arte grega.

Dias depois do aparecimento desse segundo trabalho de Rohde, o silêncio da ortodoxia clássica rompia-se. Ulrich von Wilamowitz-Mõel- lendorf, um jovem scholar de vinte e quatro anos, num longo artigo de vinte c oito páginas, procurava demolir o livro de Nietzsche, enfileirando um grande número de razões: o tom do livro, seu estilo e sobretudo a l.ilta de scholarship; acusava Nietzsche de desonestidade e ignorância; i de 1er cometido uma enormidade de erros de princípio e de detalhe.

Nietzsche não pareceu muito atingido por esse ataque. Mas quando Wagnci veio em sua defesa, escrevendo um artigo desastrado, em que d.iv.1 .1 entender que A Origem da Tragédia havia sido escrito não para

uhiiliin in.is p.ii.i artistas, Nietzsche achou-se prejudicado e teve o ,i nluiii nlo de que devei ia surgir em sua defesa alguém do mundo ii i.l. ... Rnliile, o amigo leal, prontificou-se a produzir um novo .uligii qui lui i .i itin i ui Iiiiii l.ui hostil a Wilamowitz quanto o dele o li .- i l h...a o I.h,.ni .i Niel/selie. O jovem demolidor, dizia Rohde, i i ii m il mli a ni h h 11 | h i ’,un!,i iso; dado a calúnias, crítico incompetente;

h avi.i tg in a ii • h ... ni. in lu ii île le et mil e tilosól tco do livro c se limitado an pmlili um da 11 holarship Nietzsche havia sido obrigado, pela

natu-ii i du loin a i fi .envolvei sens aigumentos sem rclerências eruditas - ma nimpli Min nii a imaturidade île Wilamowitz que o impedia de li b ut ilii ai a . limles cm que Nietzsche se apoiava.

I a lesposla de Rohde não sensibilizou o mundo acadêmico, t filando Wilamowitz escreveu mais um artigo em resposta ao que agora |,i ei a um ataque a sua pessoa, ele o fez com o sentimento de que o seu objetivo havia sido atingido. Mas as observações de Rohde não haviam sido feitas cm vão. Wilamowitz agora não atacava mais a scholarship de Nietzsche - denunciava simplesmente o fato de haver seu colega posto cm dúvida o valor de uma tradição bimilenar de cultura.

A publicação do livro, de imediato, teve para Nietzsche apenas uma conseqüência prática: “Há uma coisa que me está perturbando”, escre­ via ele a Wagner em novembro de 1872, “o semestre de inverno chegou e não tenho discípulos. Nossos classicistas não aparecem!” Veremos

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entretanto que, com o correr do tempo, suas consequências foram se

mostrando permanentes e profundas. ^

Essas foram então as circunstâncias que cercaram o aparecimento dcA Origem da Tragédia. Com relação à publicação de outros livros de Nietzsche, seremos mais sucintos. Cuidamos do aparecimento de seu primeiro livro de modo mais extenso porque se trata de uma obra fundamental, uma obra que exprime um projeto de vida que atravessará a existência do filósofo até o apagar de sua consciência. Convinha, pois, indicar de que modo esse projeto havia sido recebido pelas diferentes audiências que o jovem autor desejava sensibilizar. Durante os anos imediatamente consecutivos, a situação de Nietzsche no mundo acadê­ mico como que se estabilizara. Seus cursos passaram a ser moderada­ mente freqüentados, mas sua nova orientação de fazer da filosofia o interesse principal de suas atividades filológicas retirava-lhe, sem dúvi­ da, parte da autoridade científica que lhe caberia se, além dessas atividades filosóficas, estivesse também cobrindo os outros setores da disciplina filológica que escolhera. Correspondem a esse período suas quatro Considerações Inatuais, todas elas escritas ou a pedido de Wag­ ner ou tendo em vista sua obra. As reações a esses quatro livros natural­ mente eram entusiásticas nos círculos wagnerianos, algumas vezes coléricas fora deles. No último deles, entretanto, Richard Wagner em Bayreuth, uma ligeira alteração se produziu. Embora o livro tivesse sido muito bem recebido por Wagner, nada se fazia no sentido de sua maior divulgação. E que o teatro de Bayreuth se tinha transformado num empreendimento que, para ser levado a bom termo, exigia cautela, versatilidade e mesmo diplomacia. Nietzsche, com sua maneira direta, franca e por vezes contundente de expressão, representava sempre um risco de desagradar a eventuais patrocinadores. A situação era curiosa porque o livro, de caráter ambíguo, revelando, para quem sabia lê-lo, a"S dúvidas já existentes no espírito de Nietzsche a respeito da validade da obra wagneriana, havia sido recebido com entusiasmo por Wagner e só não tivera uma repercussão maior porque o grande músico não julgara prudente divulgá-lo entre o seu público, já afluente, apresentando-lhe “verdades” que talvez não estivesse ainda em condições de assimilar.

Quando o próximo livro de Nietzsche, Humano, demasiadamente Humano, foi enviado a Wagner, a ambiguidade se dissipou e a ruptura entre os dois tornou-se inevitável. Wagner a princípio pretendera não ter lido o livro, por amizade a Nietzsche, dizia ele. Mas finalmente não resistiu a mostrar que sucumbira à curiosidade e manifestou então de 24 MARIO VIEIRA DE MELLO

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mil formas o quanto se sentia atingido. Entre as muitas coisas que o feriam estava a crítica a Schopenhauer. Wagner e Cosima, nessa crise de amizade, revelavam a natureza algo egoística de seus sentimentos - não pouparam o amigo que antes lhes havia sido tão devotado, insinuan­ do entre outras coisas que se tratava de um homem doente. Diziam também ter a impressão de que Nietzsche renunciara à sua personali­ dade para assumir a de Paul Rée, um amigo recente do filósofo e autor de um livro intitulado^ Origem dos Sentimentos Morais, inspirado nos sensualistas franceses; Rohde, aliás, tivera a mesma impressão. E sobre Overbeck, co-locatário nos primeiros tempos de Basiléia e amigo de Nietzsche o resto da vida, o livro exercera também uma impressão negativa. E, como não se podia deixar de esperar, as críticas adversas em Bayreuth eram veementes. Embora fossem favoráveis as reações de Jakob Burckhardt, antiwagneriano decidido, com quem Nietzsche man­ tinha relações cordiais mesmo no período wagneriano, as de Paul Rée naturalmente e sob reservas as de Malvida von Meysenburg, em cuja casa de Sorrento o filósofo escrevera parte do livro, tornava-se evidente que, de uma maneira geral, seu texto não havia sido bem recebido. Depois de ter perdido sua reputação no mundo acadêmico, Nietzsche perdia agora a estima do círculo wagneriano.

Inicia-se então, na vida do filósofo, um período de isolamento crescente. No prefácio da edição de 1886 do Humano, demasiadamente Humano, isto é, oito anos depois de seu aparecimento, Nietzsche nos diz que foi justamente na Alemanha que o livro foi lido com maior negligência e menor compreensão, embora tenha encontrado leitores em outros países. Ora, em 1886 estamos distantes três anos apenas do fatal acontecimento com que devia terminar a vida consciente do filó­ sofo. Os livros que se seguiram, Opiniões e Sentenças Misturadas, O Viajante e sua Sombra, A Gaia Ciência e finalmente Falou Zara- tustra, só faziam aumentar a hostilidade que pouco a pouco ia fechando seu círculo em torno do filósofo. Com o Zaratustra o círculo parecia fechar. Nietzsche, que até então conseguira de um modo ou de outro fazer editar seus livros e chegara mesmo a encontrar tradutores, sente agora dificuldade em achar alguém que se interesse pela nova produção. As primeiras partes do Zaratustra têm sua impressão retardada porque o editor deseja imprimir antes cinco milhões de exemplares de Cânticos para a época de Páscoa e também livros relacionados com uma campa­ nha anti-semita; e quanto à última parte, Nietzsche era mesmo obrigado a imprimi-la por conta própria, com o dinheiro ganho no processo que

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movera contra seu editor. Jakob Burckhardt, que havia tido palavras de simpatia com relação ao Humano, demasiadamente Humano, tinha agora dificuldade em esconder sua decepção. E mesmo Rohde, cOm sua fidelidade de sempre, limitava agora seus comentários a generalidades pouco expressivas, chegava mesmo a usar fórmulas um tanto ambíguas: “Seu Zaratustra, sob todos os aspectos, deu-me uma impressão bem mais salutar que vários de seus últimos escritos”.

É preciso reconhecer a realidade: logo depois de Zaratustra um completo vazio se formava em torno de Nietzsche. Foi durante o período em que se processou sua elaboração que ocorreu o episódio Lou Salomé. Indicaremos em outro capítulo o que consideramos haverem sido as conseqüências desse episódio, mas antecipemos aqui nossa opinião de que o Zaratustra parece ter sido escrito sob o efeito do trauma que pôs fim a tal episódio. Os analistas de um modo geral não estabele­ cem uma relação qualquer entre a experiência Lou e a produção do Zaratustra, mas penso que há fortes motivos para avançar que tal perspectiva deve ser reconsiderada. De qualquer modo, se temos de um lado uma experiência frustrada, temos do outrc um livro que é no mínimo problemático; um livro, em todo caso, que pode sem exagero ser respon­ sabilizado por muitas das incompreensões que se formaram, em sentido positivo e negativo, em torno das idéias, das intenções e mesmo das experiências que levaram Nietzsche a escrevê-lo.

Façamos aqui um parêntese para dizer que Nietzsche não era um autor que escrevesse em vão. Havia sempre, pelo menos, um leitor extremamente atento ao que ele escrevia: ele próprio. Apesar de suas contradições e autodilaceramentos, apesar dos sim e dos não pronun­ ciados a respeito de uma mesma questão, Nietzsche foi um escritor que manteve sempre a mais estrita coerência entre o que dizia e os momentos particularizados de sua evolução espiritual Essa coerência obriga o pesquisador, na sua análise, a evitar que se dissocie, por um segundo que seja, o que exprimiu Nietzsche do momento especial em que surgiu a expressão; obriga-o também a procurar compreender, através do que foi dito, a qualidade especial de um tal momento. Nietzsche foi um escritor cuja ação se fez sempre sentir - fez-se sentir desde seu primeiro livro; mas fez-se sentir de modo inusitado, pois era ele, o próprio Nietzsche, quem mais se sentia afetado por essa ação. Durante vários anos, os livros de Nietzsche agiram principalmente sobre ele mesmo, criando uma situação sui generis que procuraremos exprimir indicando como e por que foi sua obra que influenciou sua vida.

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Mas voltemos ao efeito produzido pela publicação do Zaratustra, em edições privadas. Em torno de Nietzsche, a partir de 1883, nada havia, apenas o silêncio. Só em 1886 esse silêncio foi amenizado, até um certo ponto, pela carta em que Hippolyte Taine, então já famoso na França, agradecia-lhe a remessa do livro Para além do Bem e do Mal e tecia comentários elogiosos sobre pontos precisos da obra. Essa carta de Taine, que foi talvez o primeiro sinal de sua glória nascente, era, pouco depois, seguida de um bilhete curto em que Taine se dizia feliz por ter Nietzsche apreciado seus artigos sobre Napoleão. Erwin Rohde, o amigo velho e experimentado do filósofo, teve um gesto desastrado nesse momento delicado da vida de Nietzsche - enviou-lhe uma carta em que exprimia seu pouco apreço por esse autor celebrado que, antes de qualquer outro, oferecia sua solidariedade ao escritor solitário. Resultou daí o rompimento da relação entre os dois homens, que haviam sido verdadeiros amigos, e cuja separação dificilmente se pensaria pudesse ocorrer em virtude de tal incidente1.

No estado de excitação em que se encontrava Nietzsche, a tristeza causada pelo rompimento com Rohde talvez tenha sido amortecida pela satisfação derivada do recebimento de uma carta de (ieorg Brandes, crítico dinamarquês de grande sensibilidade, que já havia se notabiliza­ do pela divulgação inteligente que fizera da obra de Sõren Kierkegaard. A carta de Brandes respondia à remessa que lhe havia feito Nietzsche de A Genealogia da Moral e revelava grande vivacidade e perspicácia por parte de seu autor. Vale a pena citá-la:

Respiro em seus livros um espírito novo, original. Nem sem pre com preendo intei­ ram ente o que leio, nem sem pre sei aonde o senhor q u er chegar, mas m uito do que diz se harmoniza com m inhas idéias e minhas simpatias: como o senhor, tenho pouca estima pelo ideal ascético, a mediocridade dem ocrática me causa igualmente uma repugnância profunda; adm iro seu radicalismo aristocrático. O desprezo que professa pela moral da piedade é uma coisa que não está perfeitam ente clara para mim [...] Sobre o senhor nada sei. Vejo com espanto que é professor, doutor. D e qualquer modo receba meus cum pri­ m entos pelo fato de ser intelectualm ente tão pouco professor. O senhor pertence ao pequeno núm ero de hom ens com quem eu desejaria conversar2.

1. Informação dada por Daniel Halévy em sua biografia de Nietzsche. 2. C 'ilação reproduzida da biografia de Daniel Halévy.

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Essa era uma carta que não podia deixar Nietzsche indiferente - mas talvez estivesse chegando um pouco tarde. Brandes nunca pôde satisfazer seu desejo de conversar com Nietzsche e muito menos realizar sua intenção de iniciá-lo na obra de Sòren Kierkegaard. Nietzsche e Kierkegaard, esse dois espíritos tão próximos um do outro, apesar da diversidade de suas convicções religiosas, traçaram assim linhas parale­ las no espaço cinzento do século XIX, sem jamais se encontrarem. Mas é sintomático que os dois, desde o início de suas respectivas carreiras, tenham encontrado em Sócrates o estímulo insubstituível para a reflexão filosófica.

Sõren Kierkegaard morreu extremamente jovem, em 1855, com quarenta e dois anos de idade. Nietzsche tinha então apenas onze e, durante os trinta e quatro anos de vida consciente que lhe sobraram, não teve ocasião de conhecer os livros do pensador dinamarquês. Esses dois homens cujas obras revelam uma tão clara afinidade e que exprimiram, fora de dúvida, nos respectivos idiomas, um espírito novo e inconfundí­ vel, deixaram de produzir, segundo os padrões de nossos tempos, quan­ do ainda eram extremamente jovens. É naturalmente ocioso especular sobre o que teria acontecido se Kierkegaard tivesse podido viver mais algum tempo, mas não é arbitrário imaginar que o contato pessoal ou literário de um Nietzsche jovem com um Kierkegaard já maduro seria algo que teria tido repercussões profundas no contexto cultural dos nossos tempos.

Kierkegaard e Nietzsche pensaram sobre Sócrates o que ninguém mais pensou no século XIX. O cristianismo de Dostoiévski não impedia Nietzsche de ver no romancista russo um mestre que lhe podia dár lições em psicologia. Do mesmo modo, o cristianismo de Kierkegaard prova­ velmente não o teria impedido de ver no filósofo dinamarquês um mestre em socratismo, já que Nietzsche, impressionado com o otimismo teórico de Sócrates, deixara, no começo de sua carreira, passar desper­ cebida sua ironia. O ironista nunca é um otimista - essa lição que Nietzsche aprendeu a duras penas e por conta própria, ele a teria assimilado facilmente de um Kierkegaard maduro, ainda nos primeiros anos da sua juventude curiosa.

Constitui, sem dúvida, mais do que uma coincidência o fato de que os dois pensadores que mais contribuíram para uma valorização do fator ético, na Europa do século XIX, fossem justamente aqueles que tiveram um relacionamento especial com Sócrates. Foi no século passado e através desses dois pensadores que se compreendeu claramente a ne-28 MARIO VIEIRA DE MELLO

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cessidade de conciliar duas imagens de Sócrates que pareciam contra­ ditórias - a do precursor dos universais e a do descobridor do indivíduo. Não havia dúvida de que a natureza de Sócrates fosse suficientemente rica para autenticar as duas imagens. O problema era saber como operar, no interior da natureza socrática, a transição, a passagem de uma imagem para outra. Nietzsche era suficientemente perspicaz para compreender que a descoberta dos universais, o otimismo teórico, a decadência, não esgotavam o problema socrático. Kierkegaard, por seu lado, sabia que a ironia do indivíduo não era a última palavra da sabedoria socrática: a ironia era simplesmente propedêutica. Um e outro teriam indubitavelmente se completado se o destino não tivesse tido o capricho de aproximá-los na contemporaneidade mas não na contiguidade das gerações que surgiam.

Em 1892 Max Nordau, um crítico austríaco, publicava um ensaio, intitulado “Degeneração”, sobre a cultura decadente da Europa do século XIX, em que Nietzsche era violentamente atacado. O super-ho­ mem era nele visto como um animal de rapina, capaz das mais lamentá­ veis proezas. Esse ensaio foi traduzido para o russo em 1893 e foi um dos mais eficazes instrumentos da disseminação da obra de Nietzsche na Rússia, vista sob esse aspecto negativo da interpretação de Nordau. Mas Nietzsche encontrou também na Rússia uma grande quantidade dc leitores interessados e simpatizantes. Pode-se mesmo dizer que foi naquele país que a obra nietzschiana exerceu o seu primeiro grande impacto. Merejkóvski, Rozanov, Fedorov, Berdiaev, Shcslov, (iórki, Lunacharski, entre vários autores, cujas tendências iam do neo-idealis- mo ao marxismo, foram nietzschianos, pelo menos durante uma certa fase de sua evolução espiritual. De 1895 a 1915 nenhum país da Europa ocidental pôde rivalizar com a Rússia nesse particular. Toda a literatura russa desse período esteve impregnada de um espírito que era clara­ mente nietzschiano. O mesmo sentimento de afinidade que experimen­ tara Nietzsche ao ler Dostoiévski os russos experimentaram então lendo o pensador alemão. O clima histórico em que viviam parecia exigir mudanças profundas e radicais: só o espírito totalmente livre de Nietzs­ che parecia ser capaz de conduzir aquela massa enorme de aspirações c exigências que se agitava confusamente antes de explodir e causar a grande transformação social que marcou o nosso século.

Na Europa ocidental, entretanto, um dos primeiros, senão o primei­ ro ensaio favorável a Nietzsche, parece ter sido publicado em 1893, por Lou Salomé, uma jovem russa, personagem problemática e que com o

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livro ganhou renome internacional. Lou Salomé conheceu Nietzsche em 1882 e durante alguns meses manteve com ele estreitos laços de amizade. Paul Rée, amigo de Nietzsche, era também amigo de Lou e, embora seu nome não figure na capa do livro de Lou, deve, segundo todas as probabilidades, ter contribuído consideravelmente para sua feitura. O sucesso do ensaio se deve a várias causas, a primeira das quais tendo sido o quase total desconhecimento por parte do público das circuns­ tâncias que cercaram seu aparecimento. A verdade é que Lou Salomé, que se apresentava como uma das primeiras pessoas capazes de com­ preender e de interpretar a obra de Nietzsche, havia exercido, sem a menor dúvida, uma influência claramente negativa na vida do filósofo e, como intérprete, errava o alvo tanto nas suas apreciações encomiásticas quanto nas críticas e censuras que se permitia formular. Sua falta de discernimento se revelava no fato de acreditar ter sido Nietzsche in­ fluenciado por Paul Rée, a ponto, dizia ela, de através dessa influência ter o filósofo enterrado para sempre seu idealismo antigo. É possível que esse julgamento lhe tenha sido “soprado” pelo próprio Rée. Mas, de uma forma ou de outra, o que o livro revela é uma inegável falta de escrúpulos na manipulação dos elementos utilizados para a elaboração de seu trabalho: e o exemplo mais flagrante dessa falta de escrúpulos se encontra na alusão feita ao aforismo 279 de A Gaia Ciência, onde, sob o título de “Amizade das Estrelas”, Nietzsche se despede de Richard Wagner - alusão feita, entretanto, com o propósito de fazer crer aos leitores que era de Paul Rée que Nietzsche se despedia. Se houve alguma influência importante entre os dois - Nietzsche e Rée - durante a época em que foi escrito o Humano, demasiadamente Humano, ela certamente teria provindo do filósofo, apesar de tudo o que disseram em contrário Wagner, seu círculo e também Erwin Rohde, uns e outros já então muito afastados dos problemas e experiências que constituíam a vida de Nietzsche.

Mas as relações entre Nietzsche, Lou Salomé e Paul Rée são um capítulo à parte e aqui estamos interessados unicamente na emergência da reputação literária e filosófica de Nietzsche. Em 1893 Elisabeth Fõrster, irmã de Nietzsche, voltava do Paraguai, viúva de um marido anti-semita e sobrevivente de uma experiência fracassada. A situação que encontrava no seu núcleo familiar se apresentava duplamente mo­ dificada: o irmão vivia num estado de prostração inconsciente, mas sua fama crescia rapidamente, o interesse dos editores pela publicação de seus livros aumentando dia a dia. Ela, que durante a vida consciente do 30 MARIO VIEIRA DE MELLO

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irmão chegara mesmo a julgar algumas de suas idéias “detestáveis”, resolvia agora administrar essa glória nascente. A primeira providência que tomava era modificar seu nome. Passava agora a assinar suas cartas com o nome de Elisabeth Förster-Nietzsche e, para dar validade a esse acréscimo, pedia oficialmente que fosse feita a mudança, o que lhe era concedido por decreto. Essa foi a primeira d’é uma série de providências que a levaram à propriedade e ao domínio exclusivo dos arquivos em que se encontravam os manuscritos e as cartas de Nietzsche.

Para enfatizar sua autoridade sobre tudo o que dizia respeito a Nietzsche, Elisabeth pôs-se a escrever uma biografia do irmão. O pri­ meiro volume foi publicado em 1895. Cobria apenas o período da vida de Nietzsche durante o qual Elisabeth convivera com o irmão, isto é, até 1886. Essa convivência, entretanto, fora marcada por um grande número de desentendimentos: o período da amizade de Nietzsche e Lou Salomé, em que explodira o ciúme de Elisabeth, sua acintosamente íntima amizade com os Wagner, mesmo depois da ruptura provocada pelo irmão, seu noivado e casamento com um homem que Nietzsche não estimava. Pode-se, pela simples enumeração dessas desinteligências, imaginar o tipo de biografia que foi então publicada. O livro teve, entretanto, algum sucesso de livraria, o que encorajou a obstinada mulher a prosseguir na sua ambiciosa tarefa. Para o segundo volume, Elisabeth resolveu viajar de modo a conhecer os lugares e os amigos que o irmão freqüentara durante o tempo em que ela se ausentara da Europa; recorreu também às luzes de Rudolph Steiner, que acabara de publicar um livro sobre Nietzsche e que na época ficou impressionado com a ignorância de Elisabeth sobre tudo o que dizia respeito à filosofia do irmão.

Tal é, em brevíssimos traços, o perfil da mulher que iria, durante muito mais de quarenta anos, administrar o legado cultural deixado por um dos maiores filósofos de todos os tempos. Muito da incompreensão e da ignorância, que durante tantos anos envolveram a vida e a obra de Nietzsche, deve-se naturalmente a ela. E o fato de haver a reputação do filósofo resistido tantos anos a uma ação tão persistente e destruidora é algo que merece ser assinalado.

Em 1895, Rudolph Steiner publicava seu ensaio Nietzsche, um Inimigo de seu Tempo, em que o filósofo era apresentado como a vítima de uma época científica. As preocupações espiritualistas de Steiner cedo o levariam à teosofia e o tornariam incapaz de compreender que a ciência não era o único problema do século XIX. Segundo Steiner, os

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preconceitos da ciência impediam Nietzsche de contemplar o homem espiritual no homem físico. Isso teria criado nele a ilusão de um homem natural superior.

Provavelmente antes de terminar o século (a segunda edição, que é a que conheço, é de 1902), Alfred Fouillée escreveu um livro intitulado Nietzsche e o Imoralismo, obra que pode ser considerada clássica na literatura criada em torno da figura de Nietzsche; clássica, não pelas virtudes de análise e de interpretação crítica, mas pelas características que lhe são diretamente opostas - pela incompreensão, pela presunção, pela total incapacidade de perceber os interesses que motivaram o filósofo.

Quando Nietzsche morreu, em 1900, Stefan George, então um dos poetas mais celebrados da Alemanha, dedicou-lhe um poema. Com isso a reputação de Nietzsche elevou-se a um nível maior de significação não só na Alemanha, mas em toda a Europa. Stefan George era mais do que um grande poeta, era o líder de um círculo de intelectuais e artistas possuidores de prestigioso talento, com uma obra crítica, historiográfi- ca, literária e artística que representa talvez um dos pontos altos da moderna cultura alemã. Friedrich e Ernst Gundolf, Rudolf Borchardt, Kantorowicz, Ernst Bertram, Kurt Hildebrandt e Ludwig KJages são nomes que atravessaram as fronteiras da Alemanha e que se impuseram à admiração da Europa, por uma qualidade especial de seus escritos, em que profundidade crítica e elã admirativo, eros platônico e análise lúcida se misturavam numa dosagem até então desconhecida pela en- saística do mundo ocidental.

O poema de Stefan George foi publicado em 1907 no volume de poemas intitulado O Sétimo Anel. O poeta vê, em Nietzsche, um amal­ diçoado, uma vítima da vulgaridade moderna, um profeta conduzido à loucura pela cegueira e pela surdez de seus contemporâneos. O esforço de Nietzsche havia sido heróico mas inútil. Tornava-se necessária a criação de um pequeno círculo, que constituísse o núcleo da regenera­ ção futura - o núcleo que ele, Stefan George, havia formado. Num segundo poema, escrito na véspera da Primeira Guerra Mundial, Geor­ ge não mais lamenta a inutilidade do heroísmo de Nietzsche. O mal estava inteiramente do lado dos que não haviam sabido compreender a grandeza do profeta. O poema exprime a desilusão do poeta. Não havia por que esperar uma regeneração futura. E a Nietzsche, com seu amor fati e com sua teoria do Eterno Retorno, é atribuída agora uma nova

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façanha, uma façanha de uma ousadia inacreditável! A tentativa de paralisar a história e de impedir uma catástrofe inevitável.

Havia, na visão poética de George, elementos que poderiam con­ duzir a uma concepção verdadeira e justa da personalidade de Nie- I zsche. Mas a obediência cega com que os membros do círculo ouviam

.1 palavra do mestre fez com que essa visão fosse utilizada para uma

apoteose de George. Nietzsche, pensavam eles, era apenas um precur­ sor, uma voz no deserto a pregar o acontecimento iminente: “George é”, chegou a afirmar um dos discípulos, “aquilo que Nietzsche convul­ sivamente desejava ser”.

O caso de Ernst Bertram, entretanto, merece uma consideração à parte. Walter Kaufmann encara sua interpretação de um Nietzsche em perpétua autocontradição como uma conseqüência extremada da visão de George de um Nietzsche autodilacerado. Kaufmann nega a legitimi­ dade desse ponto de vista. Segundo ele, Bertram projetou, em Nietzs­ che, sua própria personalidade romântica quando propôs que o considerássemos um filósofo “tipicamente ambíguo”.

Discutir a tese de Kaufmann não é fácil. Há, na sua argumentação, algo que é inquestionavelmente verdadeiro, mas há também elementos que são contestáveis. A ambigüidade de Nietzsche não o identifica automaticamente com os românticos como parece pensar Kaufmann. O que caracteriza os românticos é a indefinição, não a ambigüidade. Sócrates, Platão e Lutero são ambíguos, mas não são românticos. Supe­ ração de si mesmo e não ambigüidade é a chave de Nietzsche, propõe- nos Kaufmann - mas a superação de si mesmo não explica vários dos grandes temas nietzschianos: em momento nenhum de sua obra, Nietzs­ che possui a certeza de que a máscara histriónica pode ser superada pela máscara do divino; Nietzsche era um decadente que se sabia decadente; o saber-se decadente podia ser uma superação da decadência, mas podia ser também uma outra forma de decadência etc., etc.

É inegável que Bertram abusa do conceito de ambigüidade para explicar a personalidade de Nietzsche. O erro parece consistir no fato de Bertram derivar essa ambigüidade das características da personali­ dade de Nietzsche e não do tipo de problemas que o filósofo precisou enfrentar. Seu ensaio sobre Nietzsche, publicado em 1918, trai insofis­ mavelmente a tendência a apresentar Nietzsche como uma personalida­ de romântica. Dito isso, é preciso reconhecer que se trata de uma das peças de crítica literária e filosófica mais brilhantes que já foram escri­ tas. Sua interpretação de Nietzsche, como uma personalidade românti­

Biblioteca Universitária

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ca, permite-lhe explorar exaustivamente todos os aspectos da ambigüi- dade do filósofo e oferecer-nos assim um vasto material donde podemos, de um outro ponto de vista, e talvez com maior lucidez e objetividade, selecionar o que no criador de Zaratustra é ambíguo, em virtude da inexorabilidade dos problemas.

Friedrich Gundolf não escreveu um livro sobre Nietzsche. Mas as poucas páginas que lhe dedicou, em alguns ensaios, entre os quais os estudos sobre César e Shakespeare, têm talvez mais relevância do que vários dos volumes consagrados à memória do filósofo. Friedrich Gun­ dolf foi sem dúvida alguma, depois de George, a figura mais brilhante do círculo, mais brilhante mesmo que Bertram, tendo produzido obras de uma grande importância como estudos sobre Paracelso e Goethe, além dos que já mencionamos. Nas poucas páginas dedicadas a Nietzs­ che no ensaio sobre César, Gundolf nos revela o segredo das máscaras do filósofo:

[...jentre todas as imagens heróicas conhecidas Nietzsche escolhe a de C ésar porque é ela que se aproxima mais do seu novo desejo de clareza, de contorno, de densidade terrestre, como de seu desejo mais antigo de grandeza, de enorm idade, de fatalidade e de superio­ ridade espiritual. Mais do que no jovem Alexandre, em briagado de espaços longínquos, envolvido em nuvens de imaginação romântica, ele sente prazer em encontrar em César a imagem de seu desejo e o modelo de seu pensam ento, o rom ano. [...] C ésar para ele era sim plesm ente o herói m onumental não romântico.

Uma única palavra nos comentários decididamente elogiosos que faz a respeito da personalidade de Nietzsche revela uma restrição, uma dúvida, uma reticência: o adjetivo que qualifica Zaratustra, identificado com César. César seria, segundo Gundolf, um Zaratustra mais sadio. Linhas adiante, termina o ensaio dizendo que sua época não tinha visto ainda nascer um dominador como César, embora já reinasse sobre ela uma personalidade em que se uniam uma sabedoria amadurecida e uma vontade inexorável de comando - alusão transparente a Stefan George, que parecia assim se apresentar como o Renovador que nem Nietzsche nem Zaratustra haviam podido ser.

Outros membros do círculo que escreveram sobre Nietzsche foram Kurt Hildebrandt e Ernst Gundolf, irmão de Friedrich. Hildebrandt escreveu quatro ensaios sobre o filósofo, um dos quais publicado junta­ mente com um trabalho de Ernst Gundolf no volume intitulado Nietzs­ che como Juiz do Nosso Tempo e publicado em 1923. De um modo geral se poderia dizer que o círculo de Stefan George, embora utilizando 34 MARIO VIEIRA DE MELLO

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Nietzsche como um pedestal para a apoteose de George, contribuiu para retirá-lo da atmosfera de mediocridade dentro da qual se havia debatido até então a crítica nietzschiana. Entre outras coisas surgira, em 1902, um ensaio de Paul J. Möbius, em que era estudada a doença de Nietzsche de um ponto de vista estritamente médico. Möbius realizara pesquisas nas clínicas da Suíça e da Alemanha em que Nietzsche fora internado após a crise de Turim e chegara à conclusão de que a causa da loucura de Nietzsche era de natureza exclusivamente física: Niejzfc ehe teria adquiridasiTüis, em Leipzig ou nos quarteirões mal-afamados de alguma cidade italiana, e pagava, aos quarenta e três anos de idade, o preço de suas aventuras escabrosas. Teremos a ocasião de dizer mais adiante o que valem as pesquisas e conclusão de Möbius. Havia também outros tipos de polêmicas manifestamente incompreensivas como as de Roberty e Liechtenberger, dois intérpretes afinados mais ou menos com o diapasão de Alfred Fouillée.

Em 1904 Richard Oehler publicou um ensaio “intitulado” Nietzsche e os Pré-Socráticos, que teve uma certa repercussão. Segundo Oehler, Nietzsche estava completamente sob a influência de Schopenhauer e por isso repudiara o otimismo socrático. Muito mais tarde, em 1935, Oehler publicou um novo trabalho sobre Nietzsche: Nietzsche e o Futuro da Alemanha. Os dois livros se caracterizam por uma intensa teutoma- nia.

Em 1908, na Sociedade Psicanalítica de Viena, realizavam-se semi­ nários sobre Nietzsche, com a participação de Freud, Adler e Otto Rank. Essas discussões pouco interesse têm do ponto de vista de um entendimento de Nietzsche. Eram apenas uma indicação da glória crescente do filósofo, já que tanto Freud quanto Adler e Rank não se interessavam especificamente pelo problema que para Nietzsche era crucial - o problema da decadência da cultura. As afinidades que sentiam entre si próprios e o filósofoeram marginais, afinidades que, de formas diversas, um grande número de pessoas também sentia, sem que por isso estivessem identificadas com os problemas essenciais da filoso­ fia de Nietzsche.

Virgile J. Barbat publicava, em 1911, um livro intitulado Nietzsche - Tendências e Problemas, que representava um esforço para estabele­ cer uma certa ordem nas idéias do filósofo, aliás entendidas num espírito de servil submissão.

Em 1912, Max Scheler, do ponto de vista da fenomenologia, escrevia seu trabalho sobre o ressentimento, procurando refutar a visão

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chiana do cristianismo. Thomas Mann, em 1919, credenciava-se para receber um prêmio que havia sido instituído para o melhor livro escrito num espírito nietzschiano (Reflexões de um Apolítico). O ensaio de Bertram sobre Nietzsche o entusiasmara; seu Doutor Fausto, escrito mais tarde, foi também profundamente influenciado pelas idéias do fdósofo. Ludwig Klages, anti-semita e irracionalista, escrevia em 1926 um livro sobre Nietzsche, fazendo da oposição entre o “espírito e a vida” a inspiração fundamental do seu trabalho.

Entramos agora num período de análise da obra nietzschiana em que o trabalho dos comentaristas consistia sobretudo em divulgação. Nenhuma análise da importância do ensaio de Bertram apareceu antes da publicação, em 1936, do livro de Karl Jaspers sobre Nietzsche. É verdade que Charles Andler publicara de 1920 a 1931 seus seis alentados volumes, que vão dos precursores até a última filosofia de Nietzsche, e que Daniel Halévy produzira, pouco depois, uma inteligente biografia do filósofo. Mas, embora Andler tenha erigido à memória do filósofo um monumento impressionante pela sua dimensão e pela variedade e riqueza de detalhes, faltava-lhe a visão do essencial e a percepção da pulsação íntima do pensamento nietzschiano; e a biografia de Halévy se ressentia naturalmente da falta de elementos de informação ciosamente guardados por Elisabeth Fórster nos Arquivos Nietzsche. Satelizava a obra monumental de divulgação de Andler um sem-número de comen­ taristas igualmente falhos de uma visão essencial, tais como Émile Faguet, Jules Gaultier, Pierre Lasserre, Genieve Bianques, Stefan Zweig, Georges Bataille, E. F. Podach, August Mueller, Karl Heckel, Karl Justus Obenauer, Cari Albrecht Bernouille, Friedrich Muckle, Georg Simmel, B. Groethuysen e muitos outros. Seria impossível fazer aqui um catálogo completo dessa literatura e muito menos um comen­ tário pormenorizado de cada um desses livros.

Com Karl Jaspers, chegamos a um outro marco importante no desenvolvimento da crítica nietzschiana. Nietzsche é apresentado pela primeira vez como um filósofo que não pode ser compreendido através de posições definidas, ou complexos de pensamentos extraídos de sua obra. E verdade que havia, já em Bertram, uma certa tendência nesse sentido. A concepção que Bertram tinha de Nietzsche, como uma personalidade ambígua, excluía naturalmente a possibilidade de um Nietzsche formulador de doutrinas positivas. Mas a diferença entre a concepção de Bertram e a de Jaspers é que a ambigüidade, na primeira, deriva da personalidade de Nietzsche, ao passo que, na segunda, resulta 3b MARIO VIEIRA DE MELLO

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