Biblioteca Universitária UFSC
3. A UNIDADE DAS VIRTUDES E A CORAGEM ESPIRITUALE A CORAGEM ESPIRITUAL
Quando o Sócrates platônico, antes de ir com Hipócrates encontrar Protágoras, tenta saber quais são as razões do jovem amigo para desejar tanto esse encontro, verifica, pouco a pouco, que elas são vagas e inconsistentes. Hipócrates quer beneficiar-se dos ensinamentos de Pro tágoras, mas não sabe exatamente o que ele ensina. Quando, mais tarde, os dois chegam à presença do sofista, Sócrates repete sua questão: Hipócrates deseja passar algum tempo na companhia de Protágoras, mas gostaria de saber antes o que resultaria dessa convivência. Dirigin do-se a Hipócrates, Protágoras responde: “Depois de cada dia que passar na minha companhia você se tornará melhor”. Mas Sócrates pergunta ainda: “Se tornará melhor em quê?”
O diálogo em que estão narrados esses fatos forma com o Górgias e o Meno o tripé em que repousa a majestosa estrutura do pensamento socrático-platónico. O problema de que se ocupam é o de saber se a virtude pode ser ensinada. Ensinar a virtude é, sem dúvida, a mais nobre tarefa que possa existir, e ninguém mais do que Sócrates está consciente desse fato, quando interpela Protágoras. Há, entretanto, em torno dessa tarefa, um certo número de dúvidas. O que vem a ser a virtude? Existe
uma só ou várias virtudes? É ela ou são elas transmissíveis pelo conhe cimento? - Hipócrates queria entregar-se aos cuidados de Protágoras, sem conhecer que resposta haveria para essas perguntas. E agora Sócrates, em seu benefício, questiona o sofista, não tanto para mostrar ao amigo os riscos que corre, quanto para desimpedir o terreno, criando condições favoráveis para a execução daquela nobre tarefa.
Ensinar a virtude. No período feudal da Grécia, não se fazia distin ção entre virtude política e virtude individual, e essa virtude indiferen ciada era transmitida, seja por via hereditária, seja por meio de exemplos colhidos nas relações próximas com as quais convivia o aristocrata. Quando se estabeleceu a democracia, essa forma de transmissão da virtude desapareceu, surgindo, então, a necessidade de se criar uma nova forma que a substituísse. Os sofistas se apresentaram para suprir essa necessidade. A virtude, segundo eles, podia ser ensinada. Mas já então a virtude feudal se havia diferenciado em virtude política e em virtude individual. Sócrates, no seu confronto com Protágoras, apresen ta argumentos de grande força para provar que a virtude política não pode ser ensinada. Na realidade, essa não era sua última palavra sobre o assunto. Sócrates acreditava, no fundo, que a virtude em geral pudesse ser ensinada, mas não na forma preconizada pelos sofistas. Somente depois de estabelecer que a virtude individual podia ser ensinada, acreditava Sócrates ser possível reconhecer que a virtude política tam bém pudesse ser ensinada. Mas qual era o porquê dessa crença? - Sem dúvida, não passara despercebido a Sócrates que a diferenciação entre virtude política e virtude individual era uma das causas do obscureci mento que havia sofrido a compreensão do que fosse a virtude. A democracia fora a causa dessa diferenciação e era, portanto, também a causa desse obscurecimento. Quando todos os homens são iguais, não há ninguém que possa assumir a posição de educador da sua sociedade. Existe a dificuldade de princípio causada pela igualdade e a dificuldade de fato causada pelo obscurecimento. Nessas condições, o aparecimen to de uma classe como a dos sofistas era, por assim dizer, inevitável. Os sofistas se apresentavam como educadores da sociedade como um todo. Mas, na realidade, o que ocorria era que eles pensavam na educação, não como um esforço a realizar-se para a sociedade como um todo, mas como uma ação a exercer-se unicamente sobre seus líderes e a exercer- se sobre eles encarados, não como homens comuns, mas como líderes que desejavam adquirir os meios mais eficazes para chegar ao poder. 74 MARIO VIEIRA DE MELLO
Assim se forma a diferenciação entre a virtude política e a virtude individual. A educação, para os líderes, não visa desenvolver virtudes idividuais, mas virtudes capazes de dotar um homem de poder sobre as massas. Paralelamente a esse desenvolvimento, um outro fenômeno ocorria. A educação da época feudal dos gregos era regulada pelo princípio da arelé, da excelência. Mas agora, nos tempos democráticos, o princípio que regula a educação deixa de ser a areté para se tornar o princípio do prazer. Tanto a virtude política quanto a virtude individual passam a ser reguladas pelo princípio do prazer. A sofística e a retórica, principais instrumentos nessa determinação da virtude política, utilizam o princípio do prazer para chegar a seus objetivos. O líder, a ser formado pela nova educação, deve aprender sobretudo os métodos de propor cionar prazer às massas. Sua sabedoria e sua eloqüência devem lisonjear as massas, acenando para aquilo que lhes agrada mais. E a virtude individual igualmente deve ser regulada pelo princípio do prazer.
É por isso que Sócrates fingiu admitir esse princípio, quando pro curou demonstrar que a virtude individual pelo menos podia ser ensi nada. Essa demonstração era necessária como uma primeira etapa para o seu objetivo final, que era provar que não só a virtude individual como também a virtude política podiam ser ensinadas - objetivo que foi atingido, quando Sócrates abandonou o princípio do prazer para recu perar o princípio da aretc, da excelência, como norma reguladora de uma educação que visasse a virtude integral.
Sócrates, assim, abandonando o princípio do prazer, recuperou a noção dos tempos feudais da Grécia, da areté, da excelência, como norma reguladora de uma educação que visava a criação de uma virtude integrada. Mas essa virtude naturalmente não era a mesma da época feudal, pois era obtida através de um processo que tinha, como ponto de partida, a virtude individual, produto da diferenciação operada na época democrática. A virtude individual, que serviu de ponto de partida para esse processo de recuperação socrática, foi a coragem. Foi anali sando a coragem, que Sócrates conseguiu refutar a perspectiva do princípio do prazer, ao mesmo tempo que provava que a virtude podia scr ênsinada. Uma vez conseguido isso, não lhe restava senão consolidar essa refutação do princípio do prazer e substituí-lo definitivamente pelo princípio da areté, da excelência. Sócrates, com isso, recuperava total mente a visão de uma virtude integrada, embora essa visão apresentasse, agora, o caráter não mais de uma realidade objetiva passada, mas o de
um projeto de realidade, objetiva naturalmente, mas não mais que um projeto que contemplasse o futuro.
A coragem teve, pois, na obra de Sócrates, um papel essencial. Foi ela que permitiu ao filósofo enfrentar o princípio do prazer e mostrar como ele era insuficiente como norma reguladora das ações humanas. Se, como pensa o homem comum, prazer e bem são a mesma coisa, ninguém preferirá o que é menos bom, isto é, o que é menos prazeroso. O que se pensa ser uma deficiência moral - ser dominado pelo prazer, isto é, pelo que é bom - é, na verdade, algo diverso. Se o homem comum prefere o que é menos bom, isto é, o que é menos prazeroso, não é, segundo o hedonista, em virtude de uma deficiência moral, mas sim de um erro de julgamento. Ele assim o faz, porque se engana sobre a quantidade de prazer envolvido. O engano é cometido involuntariamen te - pois, afirma Sócrates, com seu famoso paradoxo: “Ninguém erra voluntariamente”. Ninguém deseja voluntariamente o menos bom. Nin guém deseja voluntariamente o mal. Até aqui, o princípio do prazer parece ser inatacável. A possibilidade de enganar-se sobre a quantidade de prazer obtida não priva esse princípio de sua função reguladora das ações humanas. Cabe-nos apenas evitar tais enganos. Mas o problema da coragem coloca-nos diante de uma opção fundamental. Trata-se não de escolher entre um prazer maior ou menor, mas de enfrentar um perigo que o homem comum teme. Trata-se, na realidade, de enfrentar um mal. Esse enfrentamento é de uma certa maneira um desejo, pois o mal poderia ser evitado, se não o desejássemos. Mas o que vemos, então? O homem corajoso avança em direção ao mal, ele o deseja voluntaria mente.
Quando chegamos a esse ponto, assistimos ao colapso do princípio do prazer. Se esse princípio continuasse vigente, o homem corajoso deveria agir como o covarde, pois todos os dois seriam incapazes de avançarem direção ao que é terrível, isto é, desejando o mal. A diferença entre eles é que o covarde é regido pelo princípio do prazer, enquanto o corajoso é regido pelo princípio da areté, da excelência. Um teme a morte, o outro teme a desonra, o aviltamento, a perda da excelência. Um teme a morte em virtude de sua ignorância do princípio da areté, o outro teme a desonra, porque despreza o princípio do prazer.
Vemos assim a importância do problema da coragem para Sócrates. Não só foi ele o meio eficaz de destruir a credibilidade do princípio do prazer, como norma reguladora das ações humanas, como se torna no Protágoras, o que é fato sabido, o instrumento principal na legitimação 7h MARIO VIEIRA DE MELLO
da equação virtude = conhecimento e, por conseguinte, da convicção de que a virtude pode ser ensinada. E há mais ainda. A concepção da virtude coragem adquire, ao mesmo tempo, com Sócrates, um caráter mais profundo, mais espiritual do que o que havia sido o seu, anterior mente. Antes, a coragem havia sido uma mera qualidade física ou, quando muito, uma disposição moral para enfrentar perigos que decor riam da fidelidade a certos princípios. Agora, a coragem mostrava também ter uma qualidade espiritual, na medida em que contribuía mais que qualquer outra virtude para restabelecer a vigência do princípio de areté como norma reguladora das ações humanas. O princípio de areté não era um princípio qualquer. Era a fonte de todos os impulsos que contribuíam para a formação da personalidade ética do homem. Era, portanto, essencialmente um princípio criador. Sem o ideal da areté, qualquer concepção de um processo educacional se perdia no vago, no informe, no vazio. A coragem socrática, que recuperou esse ideal, revelou-se, assim, extremamente criativa, espiritual. E não é só no plano teórico que devemos realçar sua importância - a vida de Sócrates, o desafio que representou face à realidade adversa do Estado, as ameaças e os avisos que a circundaram e finalmente a morte que a coroou são outros tantos elementos que devemos associar a essa biografia privile giada.
Quando se examina com cuidado a obra de Nietzsche, chega-se à conclusão de que a primeira condição requerida para sua abordagem eficaz e proveitosa consiste em considerá-la essencialmente sob o pris ma da coragem. Coragem sim, mas não a coragem física, a coragem que é necessária simplesmente para viver; não a coragem moral, que se confunde facilmente com a coragem física e nada mais é do que o destemor das consequências físicas de nossas atitudes morais (a cora gem de um Lutero, por exemplo, na Dieta de Worms); mas a coragem espiritual - coragem difícil de ser definida, porque ela é, no sentido mais rigoroso da palavra, uma qualidade, uma virtude nova. Na realidade, uma tal caracterização é, e ao mesmo tempo não é, uma verdade plena. Sê-lo-á, se julgarmos que, depois de mais de dois mil anos de um eclipse lotai, essa virtude teria o direito de apresentar-se outra vez como uma qualidade nova. Nietzsche, para representar para si mesmo a virtude nova que sentia dentro de si, invocou as famosas palavras de Turenne: “Treme, Carcaça, mas tremerias muito mais se soubesses aonde vou te levar”. Mas se tivesse podido evocar, numa só frase, a personalidade e
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a missão de Sócrates, teria coberto de maneira muito mais completa o conjunto de problemas que essa virtude encerrava.
Nietzsche, com efeito, tinha diante de si problemas que, num outro registro, lembram fortemente os problemas que havia enfrentado Sócra tes. Era natural que situaçõe,s parecidas suscitassem o aparecimento de meios, de instrumentos, de virtudes semelhantes para resolvê-las. Sócra tes vivera num período de crise, de decadência; decadência de uma ordem social, cultural e política que não podia mais ser recuperada, mas que continha elementos capazes de contribuir para a edificação de um futuro melhor. Nietzsche viveu num período de crise, de decadência; a decadência de uma ordem social, cultural e política que também não podia ser recuperada, mas que continha igualmente germes de um grande futuro. O passado que inspirava Sócrates era um passado próxi mo, um passado que podia oferecer vivas esperanças de um aproveita mento em grande escala; o passado que inspirava Nietzsche era um passado remoto, tão remoto, que o próprio Sócrates, incluído nesse passado, podia por momentos parecer um elemento inaproveitável, uma força incapaz de contribuir para a edificação do futuro que antevia Nietzsche. Mas podia dar essa impressão por momentos apenas. Havia, entre as duas situações, a de Sócrates e a de Nietzsche, uma tal seme lhança, havia, entre as faculdades que essas situações suscitavam, um tal parentesco, que distorções ocasionais que pudessem obscurecê-lo eram logo corrigidas de modo que o fato fundamental, a identidade dos dois destinos ficasse solidamente restabelecida.
Como na filosofia de Sócrates, na filosofia de Nietzsche a virtude da coragem desempenha um papel essencial. O grande inimigo que Sócrates tivera que enfrentar fora o princípio do prazer, que represen tara, para o filósofo ateniense, o principal obstáculo ao seu empenho de fazer reviver o princípio da are té. O grande inimigo de Nietzsche fora tudo o que se opusera a seu ideal de grandeza, versão moderna do princípio da areté - o princípio do prazer em primeiro lugar, mas também suas manifestações mais recentes: a indiferença pelo dioni síaco da comunidade científica a que pertencia e o histrionismo não só da comunidade wagneriana que o acolhera, como também do mundo da arte e da cultura do seu tempo. A coragem de Sócrates fora necessária para fazer reviver uma antiga tradição dos helenos. A de Nietzsche seria para fazer reviver um princípio que se afirmara claramente na literatura trágica dos gregos.