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A COMUNICAÇÃO INDIRETA, AS INTERPRETAÇÕES E AS MÁSCARASAS INTERPRETAÇÕES E AS MÁSCARAS

Biblioteca Universitária UFSC

7» MARIO VIEIRA DE MELLO

4. A COMUNICAÇÃO INDIRETA, AS INTERPRETAÇÕES E AS MÁSCARASAS INTERPRETAÇÕES E AS MÁSCARAS

Kierkegaard foi um dos pensadores que com mais acuidade refletiu sobre as formas possíveis de comunicação entre os homens. Não só sua obra como também sua vida foi afetada por esse tipo de reflexão. Kierkegaard acreditava que viera ao mundo para pregar a mensagem de Cristo - pregar essa mensagem, entretanto, a um mundo que já se considerava cristão. Como comunicar a verdade a quem já se considera possuidor dessa verdade? - Tal foi o grande problema que se apresentou à consideração do filósofo dinamarquês. Vamos aqui tentar descrever sucintamente como procurou resolvê-lo.

Há, segundo Kierkegaard, duas formas possíveis de comunicação entre os homens: uma direta e outra indireta. Na forma direta, exprime- se tudo o que se sabe, tudo o que se sente, tudo o que se pensa. E uma forma de comunicação franca, aberta, inocente, a comunicação que poderia haver entre os anjos, sem culpa, sem remorso, sem reticências. Na forma de comunicação indireta, entretanto, um elemento demoníaco intervém. Não se exprime tudo o que se sabe, tudo o que se sente, tudo o que se pensa. Procura-se mesmo enganar, disfarçar, dissimular uma parte do que se pensa. Trata-se certamente de uma forma de comuni­ cação que não é inocente, mas a culpa que nela possa existir deve ser

corajosamente assumida por quem quer comunicar um certo tipo de verdade. Sem essa forma, o tipo de verdade que temos em vista jamais poderia ser transmitido.

Expliquemo-nos melhor, ajudados por Kierkegaard. Existe uma imensa diferença, uma diferença dialética entre os dois casos seguintes: 1. o caso de um homem que é ignorante e precisa receber uma certa instrução - ele pode ser comparado a um vaso vazio que precisa ser enchido ou a uma folha de papel em branco sobre a qual algo deverá ser escrito; 2. o caso de um homem que é vítima de uma ilusão - que precisa, em primeiro lugar, ser desembaraçado dessa ilusão. Da mesma forma, existe uma enorme diferença entre se escrever numa folha de papel em branco ou se revelar, através da aplicação de um fluido cáustico, um texto que estava escondido por baixo de um outro de produção mais recente. Supondo-se então que uma determinada pessoa seja vítima de uma ilusão e que seja nosso empenho comunicar-lhe a verdade, nossa primeira tarefa, quando bem compreendida, seria remover essa ilusão - se não começarmos por enganá-la, seremos levados a pensar em nossa tarefa em termos de uma comunicação direta. Entretanto, a comunica­ ção direta pressupõe o fato de que o recipiente seja capaz de aceitá-la sem obstáculos-o que aqui justamente não acontece. A ilusão se levanta como uma barreira, impedindo que a comunicação se realize. Conse- qüentemente, se quisermos levar avante nosso projeto, precisaremos, antes de mais nada, aplicar o fluido cáustico - esse fluido que, dialeti- camente falando, consiste em inicialmente negar a verdade da comuni­ cação a ser tentada e, com a negação, caracterizar o engano.

Essas concepções de Kierkegaard tiveram uma influência decisiva sobre sua vida concreta. Kierkegaard era um escritor que queria divul­ gar a mensagem de Cristo. Seu primeiro cuidado foi, por isso, enganar seu público, o público de Copenhague, então uma pequena comunidade em que sua figura era bem conhecida. Kierkegaard teve a primeira e angustiante ocasião de fazer isso no seu relacionamento com Regina Olsen, uma adolescente de catorze anos, por quem se apaixonou quando tinha vinte e quatro anos. O jovem apaixonado resolveu esperar três anos, e só quando perdeu o pai e se tornou herdeiro de uma pequena fortuna é que se decidiu a empreender a conquista da moça com o fito de esposá-la; passou então a usar de todos os talentos e de todos os recursos que tinha a seu dispor para chegar a esse fim - e Regina, dentro em pouco, estava também totalmente apaixonada. Mas então Kierke-

gaard já adquirira consciência do isolamento, da solidão a que o conde­ nava seu destino espiritual. Ficaram noivos embora Kierkegaard entretivesse as maiores dúvidas sobre o compromisso que tomava. Decidiu, depois de muitas lutas interiores, romper o noivado. A moça, desesperada, sem compreender o que se passava, fez o possível e o impossível para evitar o rompimento. Foi então que Kierkegaard, sem deixar por um momento de amá-la como nos primeiros tempos, passou a representar junto à noiva o papel de rufião. Hamlet, para apartar de si o sentimento de Ofélia, se finge de louco. Kierkegaard, para apartar de si o sentimento de Regina, passou a agir como um dom-juan pouco escrupuloso.

Para completar suas táticas, Kierkegaard publicou sob pseudônimo um livro intitulado Ou Isso ou Aquilo, do qual uma das partes se apresentava sob a rubrica “O Jornal do Sedutor”. Não só Regina, mas todo o público de Copenhague, que conhecia suficientemente o autor para enganar-se com o pseudônimo usado, ficou profundamente cho­ cado com essa publicação. Regina, como era natural, sentiu-se profun­ damente atingida pela maneira leviana, desrespeitosa, quase demoníaca com que havia sido tratado, no livro, seu caso de amor. Mas havia ainda nele outros elementos qúe não diziam respeito a Regina, mas que eram também profundamente desconcertantes, despropositados para um pú­ blico que conhecia bem o autor e sua vocação de escritor religioso. Havia ali expresso um estetismo irresponsável, um farisaísmo ético medíocre, a sofisticação de um egoísmo insensato, a glorificação de uma sedução demoníaca. A reputação de Kierkegaard, no que dizia respeito à serie­ dade, à firmeza de convicções e mesmo à honestidade de caráter, sofreu nessa ocasião um certo abalo. Ele procurava acentuar ainda mais a impressão de leviandade e de irresponsabilidade que aquela publicação causara, aparecendo, por brevíssimos momentos, nos lugares mais fre- qüentados da cidade, nos restaurantes mais procurados, nos teatros, nos cafés, nas ruas, mas unicamente nas ocasiões em que era certo que fosse visto pelo maior número possível de pessoas. Cumprido o ritual, voltava rápido para casa, para sua mesa de trabalho, onde o esperava um labor insano, uma atividade por assim dizer vertiginosa, responsável por uma produção literária de uma vastidão e de uma riqueza que seus contem­ porâneos, mais tarde, tiveram condições de avaliar.

Os pseudônimos que usava para seus trabalhos estéticos, embora não enganassem ninguém (pelo menos em Copenhague), eram uma

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marca que queria ver bem assinalada de seu descomprometimento com relação às idéias expressas nesses trabalhos. Eles descreviam experi­ mentos praticados por um especialista em maiêutica, não experiências vivenciadas por uma personalidade imaginária ou real. Era por isso que não havia, nessas descrições, a mistura do bem e do mal, da sombra e do sol, a incoerência, as hesitações, as dúvidas que fazem parte da vida. Eram experimentos que revelavam a coerência profunda, as consequên­ cias últimas das diferentes opções que se apresentavam num drama de personagens transformadas em símbolos.

Tais táticas naturalmente se referiam unicamente ao comportamen­ to exterior do filósofo. Eram táticas que visavam dar, do escritor de vocação religiosa que ele era, uma idéia totalmente enganosa; e essa mistificação praticada com método era aquela primeira tarefa a que nos referimos acima, a tarefa de remover as ilusões de quem não está preparado para receber a verdade através de uma comunicação direta. Qual era a verdade que urgia antes de mais nada comunicar? - Era naturalmente sua total impossibilidade de casar com Regina - impossi­ bilidade não física, mas espiritual e moral. Qual era a ilusão que pertur­ bava Regina, que perturbava os outros, que os impedia de assimilar essa verdade? Era naturalmente a crença de que Kierkegaard podia tornar Regina feliz. Nosso filósofo, humanamente falando, não tinha meios de fazê-los ver que isso era totalmente impossível (não esqueçamos que ele a amava). Só havia um recurso - era enganá-los. Passando por rufião, enganando Regina, enganando o seu meio, Kierkegaard conseguia afi­ nal transmitir a verdade sobre as perspectivas de seu casamento.

Quando ficou encerrado o período dos trabalhos estéticos, e Kier­ kegaard sentiu que passara a necessidade de enganar para abrir caminho à verdade - quando renunciou aos pseudônimos, ao descomprometi­ mento e passou a falar em seu próprio nome, compiometido e sem intenção de enganar-, ainda assim conservou sua tática de comunicação indireta - não enganava, mas disfarçava, dissimulava. Em suas batalhas em defesa do cristianismo, nunca dizia: “Sou um verdadeiro cristão (o que era verdade), os outros é que não são cristãos”. Sua atitude era a seguinte:

Sei em que consiste o cristianismo - minhas deficiências como cristão reconheço plenam ente mas sei em que consiste o cristianismo. E saber o que é o cristianismo parece-me ser do interesse de todo mundo, cristãos e não cristãos, seja para aceitá-lo ou para rejeitá-lo. Por isso nunca ataquei alguém por não ser cristão, nunca o condenei por tal motivo.

A tática comumente usada, para trabalhar em favor do cristianismo, tem sido, ao longo da história, a de empregar todos os meios imagináveis para atrair a seu seio o maior número possível de gente e, se possível, a humanidade inteira - mas sem muitos escrúpulos para verificar se foi realmente ao cristianismo que todas essas pessoas aliciadas se associa­ ram. A tática de Kierkegaard é bem diferente, é, a bem dizer, oposta. Consiste em empregar todos os meios para tornar perfeitamente claras quais são verdadeiramente as exigências do cristianismo - mesmo que isso dissuada todo mundo de adotá-lo e mesmo que leve todo mundo a renunciar à sua própria condição de cristão (em cujo caso deveria se sentir obrigado a admitir o fato abertamente). Por outro lado, é sua tática também, ao invés de procurar dar a impressão, por mais superfi­ cial que seja, de que existem dificuldades no cristianismo que justificam sua apologia, caso queiramos induzir pessoas a abraçá-lo - ao invés de procurar dar essa impressão, é sua tática representá-lo, ao contrário, como uma coisa tão inacessível, o que na verdade ele é, que uma apologia se tornaria necessária não para justificá-lo, e sim para justifi­ carmo-nos nós mesmos, caso tenhamos a pretensão de tê-lo adotado; e, nessas circunstâncias, a apologia redundaria necessariamente num re­ conhecimento contrito de que devemos agradecer a Deus o fato de podermos nos considerar cristãos.

Veja bem o leitor como, ainda aqui, embora sem enganos ou embustes, funciona a comunicação indireta. A vocação de Kierkegaard é pregar a mensagem de Cristo. Mas como os homens a quem deve ser dirigida essa mensagem vivem sob a ilusão de que já são cristãos, a primeira tarefa do filósofo é remover essa ilusão. Como fazê-lo? - A ilusão existe, porque os homens em questão têm do cristianismo uma idéia apoucada, amesquinhada e não julgam favor especial ou privilégio serem recebidos em seu seio. A primeira coisa a fazer é então, como já dissemos, remover essa ilusão, fazê-los compreender o favor altíssimo que representa poderem ser eles incluídos nas fileiras do cristianismo. Esse favor altíssimo só nos sobrevém quando compreendemos que as exigências do cristianismo são enormes e quando, uma vez pelo menos, nos chega o desânimo de podermos algum dia nos elevar ao nível em que se encontram elas.

É por isso que Kierkegaard relutava em se considerar um verdadei­ ro cristão. Diante das enormes dificuldades que envolviam a condição de ser cristão, ele hesitava. Outros podiam levianamente lançar-se na afirmação de que eram cristãos. Ele resistia. Não julgava temerariamen-

te os outros, não condenava, não negava que fossem cristãos; mas se reservava o direito de pensar que, quanto a si mesmo, estava muito longe de realizar as condições de vida do verdadeiro cristão. Essa era sua mensagem, sua pregação do Cristo; através dela, tinha a esperança de que as verdadeiras exigências do cristianismo pudessem finalmente ser ouvidas e talvez seguidas, praticadas.

Foi desse modo que Kierkegaard resolveu o problema de sua vocação religiosa de escritor. Como comunicar a verdade a quem já se considerava possuidor dessa verdade? - Sabemos, agora, qual foi sua resposta. Se havia necessidade de comunicar a verdade, era porque quem julgava possuí-la vivia sob uma ilusão. Como era possível removê- la? - Proclamando o Cristo, confessando o Cristo? - Essa proclamação, essa confissão encontrariam a barreira da ilusão. Para removê-la, era necessário lançar mão de uma maiêutica que tivesse, como pressuposto, a idéia de que o cristianismo é um bem que a humanidade poderia eventualmente possuir - um bem que não é apoucado, amesquinhado, mas um bem supremo - e que tivesse como finalidade fazer aflorar à consciência dos homens as enormes responsabilidades de quem dese­ jasse apropriar-se desse bem.

Numa entrada do seu Diário de 1847, Kierkegaard diz que os homens podiam fazer o que quisessem com sua pessoa, insultá-lo, invejá-lo, não mais o lerem, matá-lo - mas não poderiam jamais negar que a idéia, que regrava a sua vida, representava um pensamento original e a concepção mais original existente na língua dinamarquesa - a idéia de que o cristianismo exigia uma maiêutica e de que tinha compreendido sua essência e a arte sutil de praticá-la.

Estamos, agora, de posse de todos os elementos necessários para compreender o desmesurado interesse que tinha Kierkegaard pela personalidade de Sócrates. Sua carreira de escritor iniciou-se, na ver­ dade, não com o seu Ou Isso ou Aquilo, mas com a apresentação de uma dissertação acadêmica: O Conceito de Ironia, com Referência Constante a Sócrates. Esse trabalho, submetido a julgamento em obediência às práticas exigidas para a obtenção de um diploma de Master o f Arts, a 3 de junho de 1841, foi formalmente aceito no dia 16 do mês seguinte, por uma comissão presidida por F. C. Sibbern, decano da Faculdade de Filosofia de Copenhague. A defesa oral ocorreu a 29 do mês de setem­ bro. Apesar de as normas acadêmicas exigirem que fosse feita em latim e mesmo tendo durado mais de sete horas, os jornais noticiaram que o debate havia atraído “uma audiência excepcionalmente numerosa”. 102 MARIO VIEIRA DE MELLO

É certamente correta a afirmação de Lee M. Capei, tradutor para o inglês e introdutor dessa obra de Kierkegaard, de que o estudo de Platão, feito pelo filósofo dinamarquês, resultou numa teoria sobre a comunicação indireta, definida por Capei cem e um recurso literário destinado a reproduza a experiência da conversação socrática. Foi indubitavelmente a necessidade de encontrar uma maiêutica capaz de fazer aflorar, à consciência dos homens, a idéia de que o cristianismo não é um bem apoucado e sim um bem supremo que todos eles poderiam possuir - foi certamente essa necessidade que o levou a uma reflexão profunda sobre a natureza da ironia socrática. A dissertação acadêmica, que foi o primeiro livro escrito por Kierkegaard, apresenta uma curiosa analogia com o primeiro livro publicado por Nietzsche. Nas duas obras, Sócrates é a figura central; foram as duas recebidas pelos meios acadê­ micos com um misto de aprovação e de censura - a aprovação, no caso de Nietzsche, representada apenas pelos artigos de Rohde; a censura, no caso de Kierkegaard, em termos não tão rigorosos. O fato, entretanto, é que a razão dessacensura residia nos retratos, nada ortodoxos, que haviam sido-feitos da figura de Sócrates. O de Nietzsche causou escân­ dalo - era inadmissível a tentativa de marcá-lo com o estigma da decadência. Mas o de Kierkegaard também era censurado, pela exibição do picante, da malícia, da mordacidade, pelo excesso de sarcasmo e de galhofa e, de um modo geral, “pelo mau gosto que não era de se esperar da parte de quem demonstrava ter uma cultura”.

A verdade é que os dois retratos de Sócrates apresentavam distor­ ções importantes. E a reação dos meios acadêmicos a que foram apre­ sentados era compreensível. Mas, do ponto de vista da economia do crescimento interno que ocorria em cada um dos dois jovens filósofos, os retratos correspondiam a uma realidade - a realidade determinada pela mais necessária e pela mais rigorosa das leis que presidem à formação das grandes personalidades: o projeto de uma obra e o pressentimento de uma vocação. É verdade também que o retrato de Nietzsche foi muitas vezes retocado, ao passo que o de Kierkegaard permaneceu sempre o mesmo. Mas o ponto de partida foi idêntico. Sócrates significou, para cada um deles, um arranque inicial, uma promessa de viagens enriquecedoras por espaços espirituais desconhe­ cidos, a instalação de uma problemática que se abria sobre vastos horizontes. O problema socrático, em Nietzsche, estava ligado a Dioní- sio e a sua contrafação moderna, Wagner. Em Kierkegaard, estava ligado a Cristo e a sua contrafação moderna, Hegel.

Qual era a posição de Hegel? - Ele pretendia encontrar um sentido afirmativo, uma positividade na declaração de Sócrates de que o Estado melhor e mais feliz é aquele em que todos os cidadãos se entendem e obedecem às leis. Mas Kierkegaard pretende que Sócrates seja pura negatividade, lembra que a razão pela qual o Sócrates citado por Hegel parece oferecer algo positivo reside num equívoco - Hegel não percebe que Sócrates reconhece essa positividade antes de ser Sócrates, isto é, antes de entrar no seu processo de negação infinita: o que acontece é que o Sócrates de Hegel, inicialmente, sem qualquer movimento pró­ prio, concede, reconhece de imediato a existência de um mundo social­ mente estabelecido; esse mundo não correspondia a uma positividade que sucedesse a uma negação absoluta, mas era uma positividade que a precedia. A declaração de Sócrates representava assim um movimento fingido, não um autêntico movimento socrático. Kierkegaard conclui que a discussão, em torno dessa declaração, não podia decidir sobre a questão da positividade de Sócrates.

Toda a argumentação do livro está alicerçada sobre esta convicção. Sócrates é pura negatividade, negatividade absoluta e infinita, e tal negatividade, dirigida à realidade histórica, é a essência da ironia. A ironia dos românticos, de Schlegel, de Solger, de Tieck, por exemplo, não é a verdadeira ironia, porque é uma ironia dirigida a uma realidade fabricada por ela própria, dirigida não à realidade histórica, mas a uma história transformada em mito, poesia, saga, conto de fadas. A ironia do Sócrates a de Hegel, por sua vez, não é a verdadeira, não é negação absoluta, infinita; a positividade lhe é necessária.

Alguns comentadores pretendem que a dissertação utiliza ironica­ mente uma linguagem e uma conceituação hegeliana. Confesso que essa interpretação me parece algo artificiosa. Kierkegaard, então um jovem estudante de filosofia e de teologia, não tinha ainda aprofundado seus estudos hegelianos. Era por isso natural que esse seu primeiro trabalho traísse uma dependência do aspecto formal do pensamento de Hegel. Mas era claro que, sob essa dependência formal, já apontavam os motivos que o levavam a uma discordância real. De qualquer maneira, essa suposta ironia formal não foi complementada na dissertação por uma ironia substancial. E com a maior seriedade que nela Kierkegaard examina os argumentos de Hegel, empenhando-se sempre em apresen­ tar suas próprias razões com a consideração e com o respeito que eram esperados de um crítico da obra do grande mestre. A discussão da opinião de Hegel sobre a declaração de Sócrates, a respeito do Estado 104 MARIO VIEIRA DE MELLO

melhor e mais feliz - referida acima mostra-nos bem o tom mantido por Kierkegaard nessa sua polêmica com o filósofo de Stuttgart.

Causa, portanto, uma certa surpresa constatar, como já o fizemos, o tipo de reação que a dissertação despertou no meio acadêmico de Copenhague. A mordacidade, a malícia, o sarcasmo poderiam talvez ser notados nas referências de Kierkegaard aos representantes de Hegel naquela cidade, mas nunca nas observações feitas a propósito do pró­ prio Hegel. Foi só cinco anos mais tarde, no Postscriptum, que o filósofo de Stuttgart foi objeto de uma declarada ironia. Mas já então a obra de Hegel havia sido bem assimilada, e a dependência formal de Kierke­ gaard se tinha esfumado. Vou aqui transcrever um trecho do Postscrip­ tum, que me parece representativo de sua ironia e que dá uma boa idéia de sua maneira de reagir ao pensamento de Hegel:

Se Hegel tivesse publicado sua Lógica sob o título de P e n sa m e n to P u r o , sem indicação de autoria, ou data de publicação, sem prefácio ou notas ou autocontradições

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