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Biblioteca Universitária UFSC

2. A INFLUÊNCIA DA OBRA SOBRE A VIDA

A vida e a obra de Friedrich Nietzsche estão de tal modo ligadas, que não é menos difícil fazer-lhe a biografia sem um exame paralelo de suas idéias do que seria fazer esse exame sem dar atenção à biografia. Não se trata apenas de levar em consideração o fato de que suas experiências pessoais foram transportadas para um mundo de idéias que as acolheu transfiguradas; não se trata apenas de compreender que a vida de Nietzsche explica sua filosofia; é necessário também compreen­ der como, de que modo, sua filosofia explica sua vida. A análise filosó­ fica já vai se habituando a um tipo de filosofia que nem é acadêmica nem abstrata e que mostra disposição para participar das paixões, das vicis­ situdes e tragédias do destino humano - homens como Pascal e Kierke- gaard já lhe indicaram o caminho. Mas, apesar disso, o caso de Nietzsche parece exigir algo mais, um esforço ainda maior nesse sentido. Pascal e Kierkegaard construíram seu mundo de idéias a partir de experiências que representavam o que podemos chamar de sua base biográfica. Essa base era como que o elemento estável sobre o qual se elevava uma construção espiritual - construção que refletia, naturalmente, os movi­ mentos da paixão e da sensibilidade, mas que nem por isso deixava de

assegurar a proteção desses elementos dentro de um quadro bem definido e permanente.

Com Nietzsche, a situação já não é a mesma. Seu mundo de idéias tinha uma base biográfica - mas não era ele próprio a fonte de aconte­ cimentos que compunham uma biografia? Se refletirmos um pouco sobre essa questão, verificaremos que não há, para ela, senão uma resposta: esse mundo de idéias serve também de base para a existência biográfica de Nietzsche. E curioso que as idéias de um homem possam modificar seu perfil biográfico - mas tal foi a experiência que, através de Nietzsche, nos foi dado a conhecer.

A trajetória espiritual de Nietzsche nos oferece, assim, o espetáculo de uma oscilação permanente entre a vida e a obra do filósofo. Se quisermos isolar o aspecto biográfico do destino de Nietzsche, chegare­ mos, em pouco tempo, a uma imagem do filósofo totalmente estranha ao que ficamos sabendo quando lemos seus livros e estudamos sua obra. Era aquele homem delicado, atencioso, amável, de uma sensibilidade à flor da pele, a mesma criatura que escrevia livros tão ousados, tão radicais, tão revolucionários? Era aquele autor que escrevia num estilo tão atraente, tão apaixonadamente comprometido com o leitor, o mes­ mo homem que, para não ofender certos amigos e parentes, fazia o possível para evitar que seus livros fossem lidos por eles? O próprio isolamento que, pouco a pouco, ia envolvendo a vida do filósofo era um elemento do seu destino que não tinha apenas um caráter biográfiço. Nietzsche não foi um escritor que tivesse sido pouco a pouco abando­ nado pelos meios intelectuais em que se formara. Os laços que o prendiam a esses meios foram se afrouxando insensivelmente, em virtu­ de sobretudo de atitudes e iniciativas que partiam dele próprio. Seu isolamento era, assim, não apenas um acontecimento biográfico, mas também uma opção de natureza espiritual. O problema da doença, na sua obra, não era apenas um reflexo das condições particulares de seu estado físico - não era apenas um reflexo de acontecimentos biográficos, mas era também uma questão espiritual, que o levara mesmo a pensar que um homem tinha tantas filosofias quantos fossem os estados de saúde por que tivesse de passar. Em A Genealogia da Moral, o homem í é definido como um “animal doente” - esse homem é concebido, não a J partir da doença do indivíduo Nietzsche, e sim em conseqüência de uma análise histórica, de uma interpretação do judaísmo.

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Vemos, assim, como é falacioso o desejo que demonstram certos analistas de tudo explicar a partir da existência de um relacionamento 4$ MARIO VIEIRA DE MELLO

íntimo entre a vida e a obra do filósofo. Não há a menor dúvida de que o relacionamento existe. Mas essa asserção deve ser feita, não com o intuito de aplainar dificuldades e abrir caminhos (como acontece comu- mente), mas, ao contrário, com a disposição de enfrentar os problemas que, na realidade, a asserção cria mais do que resolve para o investiga­ dor. Na verdade, esse relacionamento é de um tipo especial, muito diferente do relacionamento que existe, por exemplo, nos casos de outros grandes escritores como Shakespeare, Goethe ou Dostoiévski. Shakespeare, por exemplo, escreveu Hamlct para conjurar o fantasma do regicídio; Cioethe escreveu Werther para conjurar a tentação do suicídio; Dostoiévski transferiu para seus romances um excesso de vitalidade que os limites de sua existência física não permitiam encarnar. Nietzsche, pensam então alguns analistas, teria, do mesmo modo, feito da filosofia um instrumento para dar largas a seu temperamento explo­ sivo Trata-se de uma interpretação que encontra apoio numa leitura superficial dos textos nietzschianos e que, por isso mesmo, tem se transformado num vade-mécum de muitos investigadores perplexos com a aparente falta de coordenadas na obra do filósofo. O problema, como teremos a ocasião de ver, é mais complicado e exige de nós um esforço de compreensão suplementar. Não é a vida de Nietzsche que explica sua filosofia; será talvez sua filosofia que explique sua vida. Em todo caso, existe aqui um problema que precisa ser atacado em toda a sua intratabilidade, porque nem a história da literatura nem a história da filosofia nos oferecem exemplos que possam tornar mais fácil o trabalho de investigação que lhes é apropriado.

Em poetas, romancistas e dramaturgos, o relacionamento entre a vida e a obra se exprime sempre por uma influência da vida sobre a obra. A vida é aquele elemento do passado que influi sobre o futuro, que é a obra a executar. É assim que comentaristas e críticos descobrem, nas obras que estão procurando analisar, traços dos elementos que perten­ cem à biografia do autor. A descoberta desses traços permite uma melhor compreensão da obra em seu conjunto. E justifica a curiosidade, modernamente difundida entre críticos e analistas, em torno desse elemento biográfico da obra literária.

O caso de Nietzsche, entretanto, reserva surpresas não pequenas. Sua vida está naturalmente vinculada à sua obra. Mas o elemento propriamente biográfico de sua existência não parece refletir-se de modo transparente na sua reflexão filosófica. Filho e neto de pastores protestantes, a infância de Nietzsche desenvolveu-se naturalmente

numa atmosfera cristã, pietista e moralista. Como adolescente e univer­ sitário, Nietzsche teve uma formação humanista, como todo indivíduo com recursos suficientes para beneficiar-se das luzes que, na época, os melhores centros culturais da Europa podiam difundir. Orfão de pai ainda menino, seu ambiente familiar reduziu-se desde cedo à sua mãe e a uma irmã, entre as quais naturalmente dividia sua afeição e seu carinho. Em nada disso, como vemos, pode-se perceber um traço qual­ quer, um elemento anômalo capaz de determinar algum aspecto da obra que nasceria no futuro. As relações de Nietzsche com a mãe e com a irmã eram normais, as relações que se espera que um homem tenha com a mãe, com a irmã - afetuosas, ternas, sem nenhum aspecto que as afastasse do normal. Nietzsche não manifestava, com relação à mãe, nenhum sentimento outro que o de amor filial - não havia nele nenhuma fixação, nenhuma dependência excessiva do amor que, sabia, lhe era consagrado. Não tinha, com relação à irmã, qualquer laço diverso daquele que une naturalmente dois irmãos - não havia entre eles nenhuma afinidade intelectual, nenhum comércio de idéias, nenhum plano ou propósito de uma aventura intelectual levada em comum. Nietzsche chega, pois, ao fim de seus estudos universitários como che­ garia qualquer europeu que tivesse tido meios e disposição para culti- var-se: com a bagagem de uma formação cristã, já então sujeita a questionamento, e com um conhecimento da cultura clássica adquirida através de estudos sérios e prolongados - estudos em virtude dos quais lhe foi possível, ainda muito jovem, candidatar-se com sucesso ao pro­ fessorado de filologia clássica na Universidade de Basiléia.

Vemos, então, como não há, até esse momento, qualquer elemento biográfico que possa intervir na configuração da obra de Nietzsche. Naturalmente, sem sua formação cristã já desgastada, sem os conheci­ mentos clássicos adquiridos na vida universitária, Nietzsche não teria podido escrever seu primeiro livro. Mas esses não são elementos espe- cificamente biográficos; fazem parte essencialmente de um processo de desenvolvimento intelectual que poderia ou não levar à produção de uma obra. E somente quando essa obra é produzida que podemos começar a pensar num possível relacionamento entre a vida e a obra de Nietzsche; é somente então que a vida de Nietzsche começa a ser afetada por algo que não é ela própria - a obra publicada simplesmente. A Origem da Tragédia cria para seu autor duas situações novas, situações que só poderiam ter sido criadas pela publicação dessa obra - o estrei- 50 MARIO VIEIRA [)E MELLO

lamento de suas relações com Wagner e o esvaziamento de seu prestígio junto às autoridades acadêmicas universitárias.

Não é claro, então, que o relacionamento entre a vida e a obra, em Nietzsche, começa não por uma influência da vida sobre a obra, mas, ao contrário, por uma influência da obra sobre a vida? A publicação de A Origem da Tragédia foi um ato que teve conseqiiências sobre a totalidade da vida do filósofo. Depois dessa publicação, Nietzsche tornou-se uma outra pessoa. E entre as modificações que ela trouxe, para a constituição da estrutura íntima da personalidade de Nietzsche, está o fato de que cada um dos livros que foram publicados em seguida também represen- I ava um gesto que tinha conseqiiências na vida do filósofo. “Ressalvando apenas uma exceção, aliás essencial - convém num certo sentido, ante­ datar todas as minhas obras.” Com essas palavras, Nietzsche nos faz ver como cada um de seus livros corresponde a um gesto novo, a algo que deverá determinar uma nova orientação no seu desenvolvimento pes­ soal. “Meus livros falam unicamente de minhas vitórias”, diz ele também na mesma página do prefácio de 1886 de Opiniões e Sentenças Mistura­ das, de onde tiramos a primeira citação. Seus livros falam de suas vitórias

e são suas vitórias que determinam sua vida futura. Nesse sentido, eles não são meramente a expressão de uma experiência; são isso natural­ mente, mas são também e sobretudo essa própria experiência voltada para o futuro, disposta a agir sobre ele e a determinar sua estrutura.

É por isso que o relacionamento entre a vida e a obra, em Nie- (zsehe, parece ser mais tenso, mais dramático, mais profundo. O que se vê comumente são autores cujas obras só começam a exercer uma influência depois de terem sido, elas próprias, influenciadas pela expe­ riência vivida de seus criadores. A obra de Nietzsche, entretanto, exer­ ceu sobre a vida do filósofo uma influência que antecedeu toda influência que a vida possa ter exercido sobre a obra. Nesse sentido, pode-se dizer que, antes de influenciar a posteridade, a obra de Nie- Izsche começou por influenciar seu próprio criador.

No relacionamento entre a vida e a obra de um autor, parte-se naturalmente da vida em direção à obra. Quando se estuda a obra de um escritor, é geralmente esse o caminho que se segue. Estuda-se a escola que freqüentou, a Igreja a que pertencia, o contexto familiar, as amizades, as leituras, as experiências amorosas e outras. O resultado de tudo isso e mais o gênio criador é a obra. O positivista que existe em lodos nós age desse modo. Mas com Nietzsche a coisa é diferente. Em primeiro lugar, como já vimos, nada há de especialmente característico

no período de sua existência que antecedeu à publicação de seu primeiro livro. E, em segundo lugar, o relacionamento que estamos procurando só se manifesta depois de uma tal publicação; e, ainda assim, seria preciso, para bem compreendê-lo, inverter a ordem da demarche inter- pretativa: seria preciso partir da obra em direção à vida. As obras de outros autores passam, em geral, a influir sobre a vida depois de estarem terminadas. A obra de Nietzsche começa a agir sobre a vida antes de estar terminada e retroativamente sobre o próprio Nietzsche, antes de agir sobre qualquer outro ser humano. Essa influência da obra sobre a vida se manifesta, em Nietzsche, através das interpretações que faz de si mesmo. Já no começo de sua carreira intelectual, quando da caracte­ rização de Sócrates como pensador decadente, Nietzsche faz a primeira grande interpretação de si mesmo: sua ruptura com Wagner e suas homenagens a Voltaire constituem uma segunda interpretação em gran­ de escala; sua rejeição de todo mestre “que não sabe rir de si mesmo”, uma terceira; sua citação de Turenne, no Livro V da Geia Ciência, uma quarta. Nietzsche é, sem a menor dúvida, o primeiro e o maior intérprete de si mesmo. A seu lado, todos os outros intérpretes, sejam eles um Bertram, um Jaspers, um Heidegger ou um Kaufmann, fazem figura de intérpretes menores - não há, entre a versão deles e a do próprio Nietzsche, uma medida comum - , o que em Nietzsche se projeta para novos horizontes, neles se restringe, se limita e acaba se confundindo com a problemática do passado.

Qualquer esforço de interpretação da personalidade e da obra de Nietzsche parece, pois, ficar seriamente prejudicado, se não se partir do pressuposto de que o que se vai interpretar é já, essencialmente, uma interpretação. Para tal esforço de interpretação, essa é uma condição absolutamente sine qua non - condição que, entretanto, tem sido quase sempre ignorada, o que explica por que muito trabalho e as mais finas análises em torno do pensamento do filósofo foram, em muitos casos, vãs, puro desperdício, sem que se consiga encontrar o ponto de Arqui- medes para levantar o peso dos obstáculos à sua compreensão.

Em toda a história da cultura não existe exemplo igual. O único que dele se possa talvez aproximar é o de Sócrates - Sócrates que nada escreveu. Mas é justamente essa circunstância que permite a aproxima­ ção. A figura de Sócrates tornou-se conhecida na história não através de uma iniciativa própria, mas através de uma interpretação. Se esse conhecimento histórico chegou a ter o peso que tem - revelado na enorme influência que sobre nós exerceu e continua exercendo - , isso 5 2 MARIO VIEIRA DE MELLO

sc deve naturalmente à existência real da figura de Sócrates. Se pudés­ semos duvidar dessa existência, é provável que as idéias socráticas nunca tivessem chegado até nós. Mas também, se pudéssemos duvidar da fidelidade da interpretação platônica, é provável que não atribuíssemos a essas idéias a validade que reconhecemos em virtude de seu enraiza­ mento profundo numa personalidade real. Nietzsche não encontrou nenhum intérprete como Platão, foi ele mesmo o seu próprio intérprete. Mas, se sua figura tem peso histórico, isso se deu tanto em virtude do fato de sua existência real quanto em consequência da interpretação que fez de si mesmo. Se pudéssemos duvidar da sua existência real (acredi­ tando, por exemplo, que se tratava de uma mente desequilibrada), certamente suas idéias não teriam tido, sobre o mundo moderno e contemporâneo, a imensa repercussão que tiveram. Se pudéssemos duvidar da fidelidade de sua interpretação de si mesmo, certamente não atribuiríamos a essas idéias a validade que reconhecemos em virtude de seu enraizamento numa personalidade real.

Por que, no caso de Sócrates, é tão necessária a crença na sua existência real? - E necessária porque sua existência não consistiu unicamente na sua realidade física. Sócrates fazia parte de um contexto social com características próprias. As realidades desse contexto se refletiam sobre sua personalidade e ocasionavam naturalmente reações de tipos diversos. Se fôssemos duvidar da existência desse contexto ou da realidade das reações socráticas, ficaríamos evidentemente impossi­ bilitados de compreender suas motivações. Por que se dizia ele ignoran­ te? Por que dizer tal coisa adquiria uma significação tão fundamental? Se, à personagem descrita por Platão não tivesse correspondido um homem de carne e osso, com razões muito especiais para se dizer ignorante, um tal dito teria passado despercebido, como uma dessas muitas afirmações que se faz impensada ou inconseqüentemente.

Mas a crença na interpretação platônica dos atos de Sócrates é, nessa questão, ainda mais indispensável do que a crença na realidade desses atos. Se duvidássemos um momento da interpretação de Platão, duvidaríamos não só de Sócrates mas também de Platão. Duvidaríamos de que Sócrates tivesse sido, como Platão o descrevera, mas duvidaría­ mos também de tudo o que Platão nos pretendesse mostrar. Fora realmente a morte de Sócrates que o fizera abandonar a política? Não era seu espírito essencialmente contemplativo e a morte de Sócrates um simples pretexto que dera a si próprio? Havia sido Sócrates, realmente,

um homem mais justo que sua cidade? Não podia sua morte se justificar de uma certa maneira?

E no caso de Nietzsche? Por que era necessária a crença numa mente equilibrada? - Sem dúvida porque, sem uma mente equilibrada, Nietzsche não teria existido como pessoa. O contexto social e cultural a que reagiu não se teria refletido adequadamente sobre uma personali­ dade, a sua. Duvidaríamos da existência desse contexto e da adequação das reações nietzschianas. Como levar a sério seus julgamentos? Como aceitar sua crítica devastadora? A crença no Nietzsche real, na sua existência como pessoa era, pois, indispensável. Mas a crença no Nietz­ sche interpretado por si próprio era ainda mais imperiosa. Se duvidás­ semos do Nietzsche interpretado, duvidaríamos não apenas dele, mas também do Nietzsche real. Duvidaríamos não apenas que suas críticas fossem responsáveis, frutos de um espírito equilibrado, mas também que fossem instrutivas, criadoras, reveladoras de um projeto do mundo capaz de nos fascinar. Para que possamos ver o que de outro modo ficaria invisível, Nietzsche tem necessidade de se metamorfosear, de se transformar, por assim dizer, num outro ser, dotado de um outro poder de percepção e de um outro aparelho de visão. A auto-interpretação, em Nietzsche, significa precisamente isto: ser personagem, assumir uma possibilidade de vida que permita um novo ângulo de visão da realidade. Esse intercâmbio entre realidade e interpretação é um fato fundamental nas obras de Sócrates e de Nietzsche. Sem Platão, a realidade de Sócrates jamais nos seria acessível; sem o Nietzsche-intérprete, o Nietzs­ che real seria para nós um mundo inatingível.

A influência da obra sobre a vida, na história de Nietzsche, encon­ tra, assim, sua perfeita equivalência na presença de Sócrates na obra de Platão. Superficialmente, poder-se-ia dizer que a vida de Nietzsche teve uma influência sobre sua obra. Mas, se quisermos encarar o problema de um ponto de vista mais profundo, deveremos dizer que foi sua obra que influenciou sua vida. Do mesmo modo, se quisermos ver as coisas de um modo superficial, diremos que a vida de Sócrates determinou a obra de Platão; mas, se procurarmos encarar a questão de um modo mais profundo, compreenderemos que foi a obra de Sócrates que determinou a vida de Platão. Os diálogos de Platão têm, como tema principal, não a personalidade de Sócrates, mas a visão que Platão adquiriu depois de ter sofrido o impacto da obra produzida por aquela figura formidável.

A existência dessa possibilidade de duas perspectivas nos proble­ mas de Sócrates e de Nietzsche, de dois modos de ver esses problemas, um mais superficial e outro mais profundo, é o que justifica a necessi­ dade de se traçar um paralelo entre as duas vidas e as duas obras desses representantes máximos da humanidade. Platão não é, evidentemente, uma mera testemunha, um escriba (um datilógrafo, como costuma dizer o mau gosto contemporâneo), que anota os pensamentos e as intuições de Sócrates. Platão é um homem que representa a encarnação mais

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