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7» MARIO VIEIRA DE MELLO

5. A CRÍTICA DA DECADÊNCIA

Sócrates viveu durante um momento da história grega em que todas as energias espirituais daquele grande povo se concentravam para dar o passo que lhes asseguraria a imortalidade, embora os conduzisse também, sem possibilidade de retorno, a uma situação de desastre e de catástrofe. O que caracterizou esse momento crucial para a história de toda a humanidade foi a simultaneidade de uma percepção aguda das riquezas do passado e de uma obediência humilde aos imperativos do futuro. Sem uma sensibilidade extrema a esse duplo apelo, a Grécia não teria elaborado uma cultura clássica - teria certamente perdido sua forma histórica, sem preservá-la para a posteridade, mas teria talvez podido participar de modo mais ativo nas grandes formações de poder, que disputavam entre si uma posição de primazia no novo mundo que então se desenhava.

O que fez da cultura clássica dos gregos uma realização imperecível foi então uma fidelidade entranhada a um passado que lhe era caro e a consciência viva e imperiosa de que, para ser preservado, esse passado deveria ser violentado através da aliança com forças que lhe eram contrárias e para as quais pareciam estar reservadas as promessas do futuro. Essas forças naturalmente eram constituídas pelo avanço irre­

sistível do espírito racional a que os filósofos jónicos tinham dado início. Elas invadiam todos os aspectos da atividade humana, quer na vida privada, quer na vida púbüca. Representavam, na realidade, um elemen­ to corrosivo, que minava lenta mas seguramente os alicerces de um passado glorioso.

O gênio de Sócrates consistiu em transformar esse elemento corro­ sivo num fermento que consolidasse a massa que se desfazia, descobrin­ do virtudes aglutinadoras naquilo que até então havia exercido apenas uma ação desagregadora. Havia, pois, nas suas atividades, um duplo aspecto: em primeiro lugar, Sócrates se apresentava como o aliado das forças que violentavam um passado glorioso - era, por conseguinte, um decadente; em segundo lugar, afirmava-se como o prestidigitador, como o mágico capaz de transformar essas forças subversivas em algo afirma­ tivo - e era por isso um precursor, um fundador, o mestre de uma humanidade nova. Nietzsche não estava assim totalmente destituído de razão ao vê-lo, em A Origem da Tragédia, como um decadente - e esse julgamento, que pareceu a homens como Wilamowitz tão absurdo, imbuído que estava de uma fé racionalista, privada de nuanças, parece- nos hoje possuir um valor indiscutível, pois abre-nos o caminho para uma compreensão mais cuidadosa do que tenha sido realmente o fenô­ meno socrático. Se por outro lado Nietzsche parece desconhecer o fato de que Sócrates, com seu racionalismo, preservou uma cultura que de outro modo teria provavelmente desaparecido - uma cultura que de outro modo não o teria atingido - , se Nietzsche parece desconhecer esse fato, para nós tão evidente, a única explicação plausível é a circunstância de ter sido ele inconscientemente um rival de Sócrates - de ter tido ele inconscientemente a ambição de encontrar meios mais adequados e mais eficazes para preservar aquele passado glorioso de que Sócrates foi o primeiro a se ocupar.

Quando Nietzsche reconhecia que era um decadente, mas um decadente que se sabia decadente e que era capaz de superar sua decadência, é impossível que ele não se tivesse sentido atuado pelo espírito de Sócrates. As duas situações são tão semelhantes que se diria estarmos diante de um fenômeno de reencarnação. Sócrates se consi­ dera um estadista que vive num Estado decadente, incapaz de regenerar o Estado dentro do qual vive; considera que não deve participar da vida desse Estado, porque, se o fizesse, seria perseguido, condenado e executado; não se isola, não se aliena, não se separa da comunidade a que pertence, porque é através dessa comunidade que sua vida tem 144 MARIO VIEIRA DE MELLO

sentido - e é no seu passado glorioso que vai procurar inspiração. Qual é, em suma, seu statusl Sócrates teria sido um estadista, embora não exercesse sua vocação? Teria tido razão em julgar decadente o Estado em que vivia? Em pensar que conhecia os meios de regenerá-lo? Em acreditar que seria perseguido e condenado, se optasse por uma parti­ cipação na vida política desse Estado? Em decidir que, apesar de tudo, só através da comunidade a que pertencia poderia sua vida ter sentido?

Essas perguntas teriam uma resposta negativa, se a vida de Sócrates não tivesse tido o fim que teve. Sócrates não teria tido razão em se julgar um estadista, se tivesse cedido à injunção de Críton de se evadir da prisão; em julgar decadente o Estado em que vivia, se tivesse conside­ rado a fatalidade que o atingia simplesmente um erro, um engano judiciário; em pensar que conhecia os meios de regenerá-lo, se tivesse concebido e levado a efeito a idéia de participar da vida política de Atenas.

Acontece, porém, que Sócrates se tinha preservado de tais equívo­ cos. As respostas, então, se tornavam afirmativas. Sócrates tinha tido razão de se considerar um estadista, embora não tivesse exercido sua vocação, porque, nas circunstâncias históricas em que se encontrava, a única maneira de exercer a vocação de estadista era não a exercendo - resposta esdrúxula, paradoxal, mas afirmativa; razão de considerar decadente o Estado em que vivia porque ele não preenchia as funções que lhe cabiam - e essas funções Sócrates era capaz de dizer quais eram exatamente; razão de se considerar incapaz de regenerar o Estado pelos métodos habituais de participação na vida política - seu método de exercer a vocação de estadista, não a exercendo, equivalia realmente a uma certa incapacidade, uma incapacidade, entretanto, que necessitava ser qualificada; razão em pensar que seria perseguido e condenado, se participasse da vida política do país, porque teria sido então levado a fazer coisas que contrariariam a maneira habitual de se conceber essa participação; e, finalmente, razão em pensar que, apesar de tudo, só através da comunidade a que pertencia, sua vida poderia ter sentido - embora só num passado glorioso fosse possível colher inspiração.

Vejamos agora o que poderíamos dizer de Nietzsche. Ele se consi­ derava um filósofo que vivia numa cultura decadente; que era incapaz de regenerar pela filosofia essa cultura (queria, primeiro, regenerá-la pela música, depois por um não exercício da filosofia manifestado por mil formas diversas - renúncia, exílio da filosofia; trabalho de solapa nos alicerces das convicções filosóficas, morais, culturais, nos alicerces de

tudo aquilo que mais amava, de tudo aquilo que lhe era mais caro); considerava que não podia participar da vida da cultura que lhe era contemporânea, porque, se o fizesse, seria corrompido, empobrecido, destruído; não se isolava, não se alienava, não se separava da comuni­ dade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica), porque só através dela a vida poderia ter sentido - que só nela poderia colher inspiração. Qual era, em suma, seu status? Seria um filósofo, embora não exercesse a filosofia? Teria tido razão em julgar decadente a cultura em que vivia? Em pensar que conhecia os meios de regenerá-la? Em acreditar que seria corrompido, diminuído, destruído, se participasse da vida da cultura em que estava inserido? Em imaginar que só na comunidade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica) poderia colher inspiração?

Essas perguntas teriam também uma resposta negativa, se a vida de Nietzsche não tivesse tido o fim que teve. Nietzsche não teria tido razão de se considerar um filósofo, se não tivesse previsto que pagaria com a perda de sua consciência a ousadia dos imensos perigos a que se expunha; razão de pensar que a cultura do seu tempo era decadente, se tivesse recuado amedrontado diante da fatalidade que o esperava; razão tampouco de acreditar que conhecia os meios de regenerá-la se tivesse decidido participar da vida dessa cultura decadente.

Acontece, porém, que a vida de Nietzsche teve o desfecho que sabemos. As respostas se tornam, então, afirmativas. Nietzsche tinha tido razão de se considerar um filósofo, embora não exercesse a filosofia, porque, nas circunstâncias históricas em que se encontrava, a única maneira de exercer a vocação de filósofo era não a exercendo - resposta esdrúxula, paradoxal, mas afirmativa; razão em considerar decadente a cultura em que vivia, porque ela não preenchia as funções que lhe cabiam - e essas funções Nietzsche era capaz de dizer quais eram exatamente; razão de se considerar incapaz de regenerar a cultura pelos métodos habituais que empregava a filosofia - seu método de exercer a vocação de filósofo, não a exercendo, equivale realmente a uma certa incapacidade, incapacidade, entretanto, que necessitava ser qualifica­ da; razão em pensar que seria corrompido, diminuído, destruído, se participasse da vida da cultura que lhe era contemporânea - as tentativas que fizera o tinham levado ao descrédito, no mundo acadêmico, à abominação no círculo wagneriano, às intrigas e a uma situação perversa na infeliz experiência com Lou; e, finalmente, razão de pensar que só na 146 MARIO VIEIRA DE MELLO

comunidade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica) poderia colher inspiração.

Mas as analogias entre esses dois destinos, o de Sócrates e o de Nietzsche, não terminam aí. A nota trágica que marcou o fim desses dois homens não foi, na expressão que usam cautelosamente os produtores de filmes cinematográficos, “uma mera coincidência”. Havia razões fortes para que esses dois homens, cujos destinos apresentavam tantas semelhanças, chegassem ao termo de suas vidas conscientes de modo igualmente trágico. A serenidade de Sócrates, o equilíbrio em que se mantém até o último instante de sua existência, nos faz esquecer um pouco o sentido real do drama que Platão nos deixa entrever - na verdade, o que está acontecendo é nada mais nada menos do que o seguinte: um homem, na força de seus dotes intelectuais e de seu impulso criador, vê subitamente cortada sua carreira por uma denúncia absurda, por uma condenação leviana, por uma injustiça sem igual. Sua obra ainda não está terminada. Não há indícios de que essa obra, que ele não teve o cuidado de preservar por escrito, possa sobreviver. Se havia em Sócrates, do que não temos o direito de duvidar, uma consciência viva e clara do que significava sua vida, sua pessoa, não é evidente que, aos seus olhos, assumia um caráter violento de tragédia a necessidade brutal de dar por terminada uma tarefa cujo fim ainda não se tinha entrevisto? Esse caráter de tragédia se acentuava mais ainda pelo fato de depender de Sócrates que as coisas terminassem daquele modo. Dependia dele o sentido de sua obra, que não podia ser prejudicada por uma fraqueza de última hora. A situação, na realidade, comportava os elementos clássicos que constituem normalmente os ingredientes de uma tragédia: de um lado a necessidade brutal do fim, o corte violento que paralisava um impulso generoso que se projetava longe; do outro a possibilidade de evitar esse fim, de evitar esse corte, caso Sócrates aceitasse a dimi­ nuição, a destituição de relegar sua obra, a significação de sua vida e de seu esforço, a um plano secundário.

O fim de Sócrates foi trágico não porque tivesse sido envolvido num tumulto violento de sentimentos e paixões: foi trágico por ter sido a expressão trágica de um destino. Sem sua morte injusta e consciente­ mente aceita, sua obra e sua vida não teriam tido o sentido que poste­ riormente vieram a ter. Foi para preservar esse sentido que Sócrates declinou a possibilidade que lhe era oferecida de fugir da prisão. Mas o preço que teve que pagar em troca de uma tal preservação era muito alto - não era apenas sua vida mas a dúvida sobre o acolhimento dessa

obra cujo sentido era tão precioso. Os objetivos que o levavam a aceitar a própria morte podiam ser tragicamente atingidos pelos efeitos mes­ mos dessa morte.

O fim trágico da vida consciente de Nietzsche verificou-se em condições estranhamente semelhantes. Não houve serenidade no seu caso - houve euforia. Mas a catástrofe, o colapso, o mergulho súbito no abismo negro da inconsciência parece ter dependido tanto de uma decisão de sua vítima quanto a morte de Sócrates dependeu de sua decisão de esvaziar a taça da cicuta. Anos antes de seu colapso, Nie­ tzsche havia citado Turenne para exprimir seu sentimento de que esco­ lhera um caminho extremamente perigoso, um caminho que só percorreria quem tivesse uma extrema coragem. A expressão que saiu da pena de Nietzsche - “viver perigosamente” - transformou-se, entre­ tanto, numa máxima que se popularizou tanto que passou a ser empre­ gada não só por quem nunca tinha lido Nietzsche, como também por quem nunca tinha ouvido sequer falar em seu nome. Nosso Guimarães Rosa a emprega no seu romance Grande Sertão: Veredas. E aí, como em outras ocasiões em que ela faz parte do uso corrente do povo, o que se quer significar é um certo prazer do risco, quase uma maneira esportiva de conceber a vida, quando o esporte inclui um certo elemento de risco, como a corrida de automóveis, caçadas na África, acrobacias aéreas etc., etc.

Temos aqui um exemplo típico de como o pensamento de Nie­ tzsche pode ser desvirtuado. Nunca passou pela sua cabeça que o perigo pudesse ser utilizado como um condimento, como um ingrediente des­ tinado a intensificar e a multiplicar as sensações de prazer que possam amenizar nossa existência. Nunca passou pela sua cabeça de um modo geral que o perigo pudesse ser instrumentalizado. Não era o resultado de uma escolha, de uma preferência, de uma decisão cujo objetivo fosse promover uma vida mais movimentada, mais variada, mais cheia de emoções. Era, ao contrário, a conseqüência de uma decisão, de uma preferência, de uma escolha - trágica - , a escolha de si mesmo e de sua missão, uma missão mais do que espinhosa, de uma dificuldade indes­ critível, de uma exigência sem limites, uma missão que poderia levá-lo aos piores infernos, às desgraças mais inenarráveis e não apenas a simples perigos e males de vulto circunscrito. Nietzsche sabia que escolhera uma missão que abrigava em seu bojo essas consequências pavorosas. E sabia também que, para bem cumpri-la, precisava não somente enfrentar o perigo, fosse ele qual fosse, como também provo- 148 MARIO VIEIRA DE MELLO

cá-lo, ir a seu encontro. Esse perigo ligado a sua missão era, ao mesmo tempo, temido e procurado. Procurado porque, sem ele, a missão não se cumpriria; e temido pela simples razão de que não era procurado pelo prazer do risco, mas pela trágica necessidade de ser, de fato, encontra­ do.

Vemos assim que o “viver perigosamente” de Nietzsche não era um esporte, mas uma condição que não podia terminar senão em tragédia. Quem compreende com profundidade o que essa condição significa compreende igualmente que não poderia ter havido outro desfecho a não ser o que houve, para quem leva a coragem às suas últimas conse­ quências. Quando vemos um cão de caça, com uma bravura para nós incompreensível, lançar-se de encontro às garras de uma fera que, com uma só de suas patas, poderá estraçalhá-lo, ficamos imaginando, ao contemplar as tristes conseqüências desse ato de coragem inconcebível, que motivação misteriosa teria ativado tais impulsos no cérebro do pobre animal despedaçado; e a única resposta que nos ocorrerá é que ele era um cão de caça, fora adestrado para levantar e enfrentar a caça, e que esse instinto fundamental de sua natureza se sobrepunha a todos os outros instintos a que normalmente obedecia.

Há no destino de Nietzsche qualquer coisa que lembra essa situa­ ção. Nietzsche caçava “uma verdade” que dragões haviam sequestrado. Esse é um ponto sobre o qual já nos estendemos. Uma bravura imensa era necessária para enfrentar esses seres disformes que, com um simples gesto, podiam esmagar multidões. O que era impressionante era que Nietzsche avançava sempre, nunca recuava. Quanto mais avançava, mais percebia que as verdades que buscava se confundiam, se misturavam com os dragões que as guardavam. Isso as tornava cada vez menos suportáveis. Mas não era o critério de Nietzsche, para medir exatamente o valor de um espírito, saber quanto ele suportaria de verdade, quanto ele ousaria suportar? Cada passo dado em frente lhe dava uma idéia mais justa do valor do seu espírito. Mas cada passo adiante o deixava mais próximo do momento em que a verdade se tornaria um instrumento de destruição inexorável.

Esse momento efetivamente chegou. Nietzsche não pôde suportar a inconcebível tensão espiritual a que o conduzia a busca da verdade. Mas o que é importante assinalar aqui é que esse grau insuportável de verdade foi atingido por um movimento deliberado, por uma decisão totalmente consciente, por uma coragem espiritual heróica e clarividen­ te que levava a “Carcaça” a lugares cuja realidade a fazia tremer antes NIETZSCHE: O SOCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 149

mesmo de chegar diante dela. É essa circunstância que torna a tragédia do fim da vida consciente de Nietzsche extremamente semelhante à tragédia do fim de Sócrates. Ambos terminaram sua proeza espiritual em virtude de uma necessidade íntima da obra que criavam, de uma necessidade plenamente reconhecida por ambos e por aiíibos plena­ mente aceita. E. F. Podach, nos seus estudos sobre Nietzsche, utiliza vários argumentos especiosos para provar que o Ecce Homo, último texto publicado por Nietzsche, foi escrito sob a influência da loucura emergente. Mas Podach pertence a uma geração que estava empenhada em abafar, em silenciar, em neutralizar os efeitos explosivos que, pres­ sentia, a obra de Nietzsche iria causar. Todos os seus argumentos podem ser invertidos em defesa da tese segundo a qual teria sido o próprio texto do Ecce Homo um dos causadores dessa loucura. Fora o próprio Nietzs­ che quem nos iniciara na compreensão do fato de que há certas idéias que um homem não pode suportar. Essa era uma verdade que o filósofo havia descoberto através de sua própria experiência. Se, apesar da descoberta, ele não recuara diante das idéias insuportáveis, foi em virtude de sua filosofia da coragem, que o fazia tomar por modelo a frase do general francês Turenne. Essa frase, escolhida como epígrafe para o Livro V da Gaia Ciência, era um aviso do que viria a ser o destino de Nietzsche: uma determinação inflexível de acolher idéias não de acordo com o critério de sua suportabilidade, mas de acordo com o critério de sua veracidade.

Que essas idéias verazes tenham provocado uma tensão espiritual, que a consciência de Nietzsche não pôde suportar, constitui uma tragé­ dia que devemos respeitar e lamentar antes mesmo de compreender e explicar. Estamos aqui diante de um fato que nunca chegaremos talvez a compreender e a explicar satisfatoriamente. Mas não é difícil com­ preender que debicar e tirar conclusões sarcásticas de um desastre ocorrido principalmente em virtude da inteireza com que foi levada a efeito uma das mais nobres tentativas de que foi capaz o ser humano - não é difícil compreender que tal atitude é mais do que medíocre - é simplesmente desprezível. Quem se julga superior ao Nietzsche de 1890 porque é capaz de se vestir sozinho, tomar um ônibus e assinar seu ponto na repartição não merece nem mesmo um reparo. E quem é capaz de um pouco mais encontra seu limite na propensão de debicar de um homem cujo único erro foi procurar tirar a humanidade do marasmo em que ia progressivamente se afundando.

A questão se resume, então, em saber como interpretar os últimos clarões da inteligência de Nietzsche. Quem vê neles os primeiros sinais de uma loucura emergente está apenas ampliando o entendimento segundo o qual todo o território da vida de Nietzsche, mesmo aquelas partes que coincidiam com sua vida consciente, sempre tinham estado ameaçadas por erupções vulcânicas da loucura. Essa é, na verdade, uma

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