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“Por Deus e pela família”: análise dialógica dos discursos da Bancada Evangélica na abertura do processo de destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

JONATAS MICHEL KUCHNIR

“POR DEUS E PELA FAMÍLIA”: ANÁLISE DIALÓGICA DOS DISCURSOS DA BANCADA EVANGÉLICA NA ABERTURA DO PROCESSO DE DESTITUIÇÃO DA

EX-PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

PONTA GROSSA 2020

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JONATAS MICHEL KUCHNIR

“POR DEUS E PELA FAMÍLIA”: ANÁLISE DIALÓGICA DOS DISCURSOS DA BANCADA EVANGÉLICA NA ABERTURA DO PROCESSO DE DESTITUIÇÃO DA

EX-PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Orientadora: Profª Drª Pascoalina Bailon de Oliveira Saleh

PONTA GROSSA 2020

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Dedico àqueles que lutam por um serviço público gratuito e de qualidade e que compreendem que a diversidade humana é o cerne para uma sociedade saudável, harmônica e equilibrada.

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“A história será implacável com os que hoje se julgam vencedores” (Dilma Rousseff)

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RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo analisar dialogicamente os discursos dos deputados da Frente Parlamentar Evangélica – conhecida como Bancada Evangélica – na votação de abertura do processo de destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff, com o intuito de investigar alguns ecos que constituíram seus enunciados. Os estudos do Círculo de Bakhtin são a base teórica sob a qual essa pesquisa se sustenta, sobretudo em Bakhtin (1993; 2003 e 2018) e Volóchinov (2018) nos quais nos são apresentados conceitos chave, como o de dialogismo, ideologia e signo. Os dados da análise foram obtidos por meio da ata da sessão de 17 de abril de 2016 com a transcrição dos enunciados de todos os deputados presentes e a possibilidade de filtrar aqueles que compunham a Bancada Evangélica. Entre esses, 94,5% posicionaram-se favoráveis à destituição e 5,5% contrários. A análise dos discursos desses deputados permitiu observarmos algumas regularidades discursivas e, assim, o agrupamento das justificativas em cinco categorias: eleitorado; valores; salvação; legalidade; e voz do povo. Dessas cinco, duas ficaram em evidência: valores e salvação, as quais foram analisadas pela perspectiva da Análise Dialógica do Discurso (ADD), que permitiu analisar outras vozes que ecoaram dos discursos dessa Bancada. Verificou-se que ao enunciar Deus e família, ecos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de 1964, puderam ser ouvidos, o que aproxima um evento do outro, a considerar que ambos culminaram em um ataque à democracia. Deus e família são valores que, nas duas ocasiões estavam sob algum tipo de “ataque” e foram usados como símbolos para reivindicar uma mudança. Constatou-se também que essa reivindicação por mudança reverbera não só nos valores, mas também na economia, pois a própria concepção de Estado estava em jogo, ao observar também o cronotopo em questão. Os resultados obtidos evidenciam que os discursos da Bancada Evangélica na votação de destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff não foram homogêneos, mas sua maioria foi favorável à destituição, tendo como justificativas centrais a propagação de seus valores e o rompimento com o Estado de Bem-Estar Social e a instauração do neoliberalismo no Brasil.

Palavras-chave: Análise Dialógica do Discurso. Bancada Evangélica. Impeachment. Dilma Rousseff.

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ABSTRACT

This research aims to analyze dialogically the speeches of the deputies of the Evangelical Parliamentary Front - known as the Evangelical Bench - in the opening vote on the process of dismissal of ex-president Dilma Rousseff, in order to investigate some echoes that constituted their statements. The studies of the Bakhtin Circle are the theoretical basis of this research, especially in Bakhtin (1993; 2003 and 2018) and Volóchinov (2018) where are presented key concepts, such as dialogism, ideology and sign. The analysis data were obtained through the minutes of the session of April 17, 2016 through a transcript of the speeches of all the deputies present and the possibility of filtering those who made up the Evangelical Bench. Among these, 94.5% were in favor of dismissal and 5.5% against it. The analysis of the speeches of these deputies allowed us to observe some discursive regularities and, thus, the grouping of justifications in five categories: electorate; values; salvation; legality; and voice of the people. Of these five, two were in evidence: values and salvation, which were analyzed from the perspective of Dialogic Discourse Analysis (ADD), which allowed the analysis of other voices that echoed from the speeches of this Bench. It was found that by enunciating God and family, echoes of the March of the Family with God for Freedom, in 1964, could be heard, which brings one event closer to the other, considering that both culminated in an attack on democracy. God and family are values that, on both occasions, were under some kind of “attack” and were used as symbols to claim a change. It was also found that this demand for change reverberates not only in values, but also in the economy, since the very conception of the State was at stake, also observing the chronotope in question. The results obtained show that the speeches of the Evangelical Bench in the vote to dismiss former President Dilma Rousseff were not homogeneous, but the majority were in favor of the dismissal, having as central justifications the spread of their values and the break with the State of Social Welfare and the establishment of neoliberalism in Brazil.

Keywords: Dialogic Discourse Analysis. Evangelical Bench. Impeachment. Dilma Rousseff.

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SUMÁRIO

Introdução...8

CAPÍTULO 1 – O Círculo de Bakhtin e suas Contribuições para os Estudos da Linguagem......12

1.1 O Objetivismo Abstrato, o Subjetivismo Individualista e uma Filosofia Marxista da Linguagem. ... 13

1.2 O Enunciado e Alguns de seus Elementos ... 18

1.3 Orientação Dialógica da Linguagem ... 22

1.4 Signo e Ideologia na Perspectiva Enunciativa do Círculo ... 27

CAPÍTULO 2 – A Abertura do Processo de Destituição da Ex-Presidenta Dilma Rousseff na Câmara do Deputados...30

2.1 Cronotopo do Golpe de 2016 ... 31

2.2 O Evento... 38

CAPÍTULO 3 – A Bancada Evangélica e sua Participação no Golpe de 2016 .... 44

3.1 O Percurso da Análise ... 45

3.2 A Frente Parlamentar Evangélica ... 48

3.3 Como Votou a Bancada Evangélica... 52

3.4 As Vozes que Ecoam nos Discursos da Bancada Evangélica ... 60

3.4.1 Os “valores” de 1964 e 2016 – a história se repete ... 60

3.4.2 A “salvação” nos costumes e na economia...71

Considerações finais ... 78

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Introdução

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (BRASIL, 2020).

O trecho acima, retirado da nossa Constituição de 1988, é o que explicita a laicidade do Estado brasileiro. De acordo com o texto, o Estado, em todas as suas instâncias, não pode estabelecer relações de dependência ou alianças com instituições religiosas.

Isso não significa, entretanto, que as religiões ficam proibidas em território nacional. Ao contrário. O Art. 5 reforça que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL, 2020), ou seja, na sociedade civil são permitidas todas as manifestações religiosas e sua proteção pelo Estado. O que o Art. 19 estabelece é que, embora o Estado deva assegurar o livre exercício religioso na sociedade civil, ele não pode privilegiar uma religião em detrimento de outras, já que isso feriria a liberdade religiosa dos indivíduos.

O que percebemos, entretanto, de forma cada vez mais acentuada, é a participação ativa de grupos religiosos cristãos na esfera política e a reivindicação de suas pautas. Exemplo disso é a existência da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional e a relação entre Estado e religião se estreitando, como vemos no horizonte da opinião pública nos veículos de notícias:

“Bancada evangélica cresce e mistura política e religião no Congresso” publicou o Portal UOL (DIP, 2015); “Ministério tira ‘identidade de gênero’ e 'orientação sexual' da base curricular” informou a Folha de São Paulo (CANCIAN, 2017); "Frente Parlamentar Evangélica pede fim da ideologia de gênero nas escolas" noticiou a Gazeta do Povo (FRENTE..., 2018); “Políticos evangélicos protestam contra aborto na porta de clínica e chamam menina de 10 anos de 'assassina'” relatou o site Dom Total (BRITTO, 2020). “Bolsonaro diz que vai indicar ministro 'terrivelmente evangélico' para o STF” foi manchete no site G1. (CALGARO; MAZUI, 2019).

Sem nos atermos a refletir sobre a dinâmica do nosso Estado Laico – se na prática é ou não é, as influências da nossa história cristã no Estado, se a Frente Parlamentar Evangélica fere a laicidade do Estado e demais reflexões com as quais

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outros teóricos já contribuem – trago esse trecho da Constituição e as notícias acima para asseverar a tenuidade das relações que se estabelecem entre grupos religiosos evangélicos e a esfera pública e o jogo de interesses desse grupo na esfera política do Estado que, na Constituição, é Laico.

Estudos de diferentes áreas se debruçam sobre esse tema, a destacar dois: um artigo publicado em 2017, na área das ciências da religião, de autoria de Amanda Nunes Pinheiro, cujo título é “A atuação dos membros da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional: representação legítima do eleitorado ou afronta à laicidade do Estado?” (PINHEIRO, 2017). O segundo é uma tese de autoria de Rafael Bruno Gonçalves, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, intitulada “O discurso religioso na política e a política no discurso religioso: uma análise da atuação da Frente Parlamentar Evangélica na Câmara dos Deputados (2003-2014)” (GONÇALVES, 2016). Em ambos os trabalhos, os autores debruçam-se sobre a atuação da Bancada Evangélica em algumas sessões específicas no Congresso Nacional.

Nesse contexto, esta dissertação configura-se como uma contribuição à reflexão sobre o tema na área dos Estudos da Linguagem. Para tanto, direciono meu olhar na Frente Parlamentar Evangélica – conhecida como Bancada Evangélica – e sua atuação no Congresso Federal em uma votação importante no cenário político brasileiro. Retorno para o ano de 2016, no qual, mais uma vez, vivenciamos uma destituição presidencial1, agora da presidenta petista Dilma Rousseff.

Nosso objetivo geral, portanto, é analisar os discursos da Bancada Evangélica na abertura do processo de destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff. Para tanto, pretendemos quantificar os votos da Bancada para obtermos um retrato de seu apoio ou não à destituição. Quantificados os dados, nos dispomos a observar as regularidades discursivas e identificar as justificativas mais representativas de seu posicionamento e, por fim, recuperar elos na cadeia discursiva que nos permitam interpretar as vozes que ecoam dos discursos dessa bancada.

Ao longo das próximas páginas, abordarei esse acontecimento como “Golpe de 2016”, pois compreendo que nossa democracia foi duramente açoitada por grupos que não estavam satisfeitos com um governo legitimamente eleito e, para suprir seus _____________

1Presidentes destituídos no Brasil: Carlos Luz (1955), Café Filho (1955) e Fernando Collor (1992)

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interesses, fizeram uma grande manobra para destituí-lo. Nesse contexto, a Bancada Evangélica participou da abertura do processo de destituição na Câmara dos Deputados e, em um grande show midiático, discursou para todo o Brasil justificando seu voto que, em sua maioria, apoiou o Golpe de 2016.

Assim, me proponho a analisar os discursos dos membros dessa bancada na votação de abertura do processo de destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff. O evento foi escolhido por ser um marco na história política do país e por oportunizar que a Bancada Evangélica não só se posicionasse, mas também discursasse em consonância com seu posicionamento, gerando, dessa forma, um material discursivo para a análise: nosso objeto.

A lente escolhida para analisarmos nosso objeto foi a Análise Dialógica do Discurso – ADD –, que possui como base os estudos do Círculo de Bakhtin acerca da linguagem, desenvolvidos no início do século XX, na Rússia, e que reverberam até os dias atuais. Um de seus conceitos fundamentais é o de “dialogismo”. Segundo o Círculo, a língua não é neutra, mas atravessada por várias vozes sociais e carregada de ideologias. Logo, quando um deputado discursa, mesmo que brevemente, suas palavras dizem muito mais do que aparentam dizer: outras vozes ecoam de seu discurso. São essas vozes que pretendo trazer de forma mais nítida. É nessas vozes que os interesses da Bancada Evangélica, que representam os interesses da população evangélica, ficam mais evidentes.

A metodologia se deu com a leitura da ata da sessão de 17 de abril de 2016 com os discursos de todos os deputados presentes. Desses, filtramos aqueles que compunham a Bancada Evangélica e verificamos as principais justificativas utilizadas por esses membros, bem como seu posicionamento frente à votação. Assim, foi possível identificar algumas regularidades discursivas nas justificativas, dentre as quais valores e salvação ficaram em evidência e, portanto, foram analisadas sob a perspectiva dialógica.

Do ponto de vista teórico, os estudos bakhtinianos não apresentam um percurso metodológico para os estudos discursivos, mas a “arquitetônica bakhtiniana fornece elementos que contribuem para um caminho, em outras palavras, horizontes possíveis para se estudar a linguagem e os discursos numa perspectiva dialógica” (ROHLING, 46). Nesse caso, na ADD, não há uma metodologia fechada da qual possamos utilizar nas mais diversas análises, mas, ao observarmos o discurso

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cotidiano, podemos, por meio dos muitos conceitos trazidos pelo Círculo, analisá-los em sua organicidade.

Assim será nesta pesquisa. A ADD constitui um parâmetro para a análise que partiu dos discursos dos deputados e, por meio da leitura dos estudos do Círculo, será possível elaborar este estudo. Somado a isso, o próprio analista também é um agente ativo na análise, visto que não é um sujeito neutro e prepondera suas escolhas no processo de pesquisa, que vão desde o tema da pesquisa até o olhar analítico para os dados. Ainda, esta pesquisa conta com algumas vozes que não necessariamente advêm da Academia, mas que compõem um hall de textos que circulam socialmente e são formadores de opinião.

O trabalho está organizado em três capítulos e mais as considerações finais. No primeiro capítulo, apresento os principais conceitos trazidos pelo Círculo de Bakhtin que fundamentam a análise dialógica do discurso. Nele, parto da crítica a duas correntes do pensamento linguístico-filosófico – o objetivismo abstrato e o subjetivismo individualista – que antecederam os estudos do Círculo e que fundamentam sua perspectiva de linguagem. Em seguida, apresento alguns elementos do enunciado, tendo em vista que a análise se dá sobre enunciados, e discorro sobre os conceitos de dialogismo, signo e ideologia na perspectiva bakhtiniana.

No segundo capítulo, abordo a abertura do processo de destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, evento no qual os enunciados analisados foram produzidos. Para isso, além de trazer algumas informações acerca do evento em si e um panorama de como ocorreu a votação, me amparo no conceito de cronotopo do Círculo de Bakhtin para situar o contexto sociopolítico em que o evento de deu. Em clima de conflitos, pelo menos duas narrativas antagônicas surgem acerca do momento histórico vivido, dividindo a opinião pública: por um lado a narrativa do fim de um governo corrupto e, por outro, um golpe contra a democracia.

Começo o terceiro e último capítulo com a apresentação da metodologia de análise e uma breve exposição acerca da Frente Parlamentar Evangélica e sua composição em 2016. Adiante, trago um panorama quantitativo da sua atuação e analiso dialogicamente duas categorias que se evidenciaram durante a leitura dos discursos dessa bancada: os valores e a salvação, com o intuito de captar outras vozes que foram ecoadas nesses enunciados.

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CAPÍTULO 1 – O Círculo de Bakhtin e suas Contribuições para os Estudos da Linguagem

Figura 1 – “Linguagem” (Acrílica sobre tela)

Fonte: o autor

A tela acima, intitulada “Linguagem”, foi pintada para a abertura do primeiro capítulo dessa dissertação, tendo como inspiração as leituras realizadas para sua escrita. Essas leituras giram em torno do Círculo de Bakhtin, que consiste em um grupo de teóricos russos, tendo como nome de maior destaque Mikhail Bakhtin. A linguagem, nosso objeto e ferramenta de pesquisa, foi um dos temas estudados por esses teóricos, que trouxeram grandes contribuições para esse campo de pesquisa. A linguagem é também o tema da tela de abertura desse capítulo.

Na imagem há três elementos centrais: a boca aberta; o arco-íris e a relação estabelecida entre ambos. A linguagem é representada pelo arco-íris que escoa em redemoinho entre o falante e a sociedade. A linguagem, representada em forma de

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arco-íris, está relacionada à ideia de que a língua não é neutra e nem monocromática, mas sim um espectro de cores e vozes que percorrem juntas o universo. A linguagem é dialógica, assim como o arco-íris é multicolorido, pois é carregada das mais diversas vozes entre já-ditos e respostas futuras e palco de conflitos e acordos, como veremos nas próximas páginas ao estudarmos alguns pontos dos estudos do Círculo de Bakhtin.

1.1 O Objetivismo Abstrato, o Subjetivismo Individualista e uma Filosofia Marxista da Linguagem

Em 1929 é lançada, na Rússia, a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, do teórico Valentin Volóchinov. Esse, ao lado de Mikhail Bakhtin e alguns outros teóricos formam o que conhecemos como “Círculo de Bakhtin”, cujas contribuições para os estudos da linguagem são imensuráveis.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, o Círculo de Bakhtin nos apresenta uma análise crítica de duas orientações do pensamento filosófico-linguístico distintas – objetivismo abstrato e subjetivismo individualista – e, dialogando com elas, apresenta sua filosofia da linguagem. Nesse momento, observaremos cada uma dessas orientações e como a crítica bakhtiniana instaura uma terceira orientação.

A origem do objetivismo abstrato remonta aos estudos da Filologia, que se ocupava em estudar as línguas mortas por meio de documentos escritos. Volóchinov descreve o filólogo como “decifrador de escritas e palavras, alheias e ‘misteriosas’, e um professor, isto é, um transmissor daquilo que foi decodificado ou herdado pela tradição” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 186-187). O filólogo, portanto, preocupava-se em “decifrar” as palavras estrangeiras ou mortas. Com base na fonética, na gramática e no léxico (VOLÓCHINOV, 2018), ou seja, a partir da estrutura da língua, era possível identificar as formas linguísticas e ensiná-las.

Mas qual o real interesse em decifrar línguas mortas e estrangeiras? Para Bakhtin e o Círculo, a palavra estrangeira estava associada à ideia de poder, força, santidade e verdade (VOLÓCHINOV, 2018). Logo, para os povos conquistadores, fazia-se importante decifrar a língua do dominado para efetivar sua dominação e organização política, uma vez que, havendo compreensão, a dominação era facilitada. A dominação religiosa também usufruía dos estudos filológicos para atingir maior alcance. “A história não conhece nenhum povo cujas lendas ou escrituras

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sagradas ou tradições não tenham sido, em menor ou maior grau, escritas em uma língua alheia e incompreensível pelo profano” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 187). Os sacerdotes, segundo o Círculo, foram os primeiros filólogos, cuja tarefa era “decifrar o mistério das palavras sagradas” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 187) e, de alguma forma, replicá-las. Assim, como sinônimo de poder, as línguas estrangeiras e as colonizações impulsionaram os estudos filológicos, que se voltaram inteiramente ao estudo estrutural das línguas sob a orientação do que o Círculo de Bakhtin chama de objetivismo abstrato. Mas em que consiste esse pensamento filosófico-linguístico?

Dada a sua origem, como já vimos, os representantes do objetivismo abstrato “sublinham – e esse é um dos seus fundamentos basilares – que o sistema da língua é, para qualquer consciência individual, um fato objetivo e exterior, independente dessa consciência” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 174). Em outras palavras, a língua é tida como um sistema de normas rígidas e imutáveis que “paira” sobre os indivíduos sendo “exterior” a sua consciência. Assim, os estudos que tomam por base esse viés focam na estrutura das línguas para se chegar às tais normas, sem, em nenhum momento, aproximar a língua de seus falantes. É justamente esse distanciamento entre a língua e os falantes que impera como principal crítica do Círculo ao objetivismo abstrato.

Embora Bakhtin e o Círculo demonstrem compreender o contexto que levou a linguística ao objetivismo abstrato e sua despreocupação com os usos efetivos da língua, eles a criticam justamente por não dar conta da língua viva e em evolução. “O objetivismo abstrato não consegue estabelecer a relação da existência da língua em um corte abstrato sincrônico com a sua formação” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 198). Logo, faz-se necessário outro olhar para a língua que não apenas sua estrutura, mas seu uso social, contextualizado historicamente.

De fato, o objetivo do falante é direcionado a um enunciado concreto pronunciado por ele. Para ele, não se trata da aplicação de uma forma normativa idêntica (por enquanto admitiremos sua existência) em um contexto concreto. O centro de gravidade para ele não se encontra na identidade da forma, mas naquela significação nova e concreta que ela adquire nesse contexto” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 177).

Diferentemente do que propunha o objetivismo abstrato, o Círculo de Bakhtin direciona seu olhar às línguas vivas. Nesse caso, é impossível não nos atermos à língua e sua relação com o locutor, o momento de sua enunciação e as significações novas que decorrem disso. O estudo das línguas mortas e estrangeiras teve seu papel

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fundante na linguística, porém, esta não pode restringir-se a ele, visto que a língua é também viva. “Para o falante nativo, a palavra não se posiciona como um vocábulo de dicionário, mas como uma palavra presente nos enunciados mais variados da combinação linguística A,B,C etc.” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 180), ou seja, as palavras não constituem apenas itens dicionarizados para o falante.

Outra relação importante, destacada por Bakhtin e o Círculo, é a do locutor e seu(s) interlocutor(es). Para isso, Volóchinov (2018) traz uma reflexão sobre a diferença entre os processos de compreensão e identificação. Enquanto os representantes do objetivismo abstrato pareciam preocupados com a identificação das formas para a “decifração”, os teóricos do Círculo de Bakhtin voltam-se para a compreensão.

O que está em jogo, em outras palavras, é como definimos as formas linguísticas: como signo ou como sinal. “O sinal é um objeto internamente móvel e unitário que, na verdade, não substitui, reflete ou refrata nada, mas é simplesmente um meio técnico através do qual se aponta para algum objeto [...] ou para alguma ação” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 178). Para o teórico, se as formas linguísticas forem tomadas apenas como sinal, não há nenhum valor linguístico incidido sobre elas. Para que haja valor, faz-se necessário a compreensão/decodificação de signos, ou seja, figuradas em contextos dados. Como não há linguagem desconectada de contexto, logo, não faz sentido, para o Círculo, pensar a língua no âmbito dos sinais.

Tomar as formas linguísticas como sinais e restringir a língua a um sistema de formas faz do objetivismo abstrato apenas uma abstração, pois no plano teórico e prático, serve-se apenas para o deciframento de uma língua morta/estrangeira e seu ensino e não dá conta de compreender e explicar os fatos vivos e em evolução.

A segunda orientação tem como mais importante representante Wilhelm von Humboldt, cujo trabalho é descrito de forma positiva por Volóchinov (2018). Segundo o autor, “a influência do potente pensamento humboltiano ultrapassa em muito os limites da tendência por nós caracterizada (VOLÓCHINOV, 2018, p. 149), ou seja, o subjetivismo individualista possui como fundamento o núcleo principal das pesquisas humboldtianas, porém Humboldt ultrapassa esses limites e seus estudos influenciam em muito os estudos linguísticos.

Embora o Círculo de Bakhtin reconheça a importância dos estudos humboldtianos, ele tece uma crítica ao seu núcleo de ideias, bem como o fez em relação ao objetivismo abstrato, para alavancar sua orientação enunciativa da

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linguagem. Antes, porém, de adentramos a perspectiva de linguagem do Círculo, apresentamos o subjetivismo individualista e a crítica bakhtiniana ao seu entorno e, para isso, começaremos por apresentar a teoria da expressão.

O Círculo de Bakhtin define a expressão como “algo que se formou e se definiu de algum modo no psiquismo do indivíduo e é objetivado para fora, para os outros com a ajuda de alguns signos externos” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 202). De outro modo, podemos pensar num conteúdo que é interior, que ocorre na mente e sua objetivação exterior se dá por meio dos recursos comunicativos por nós utilizados.

Dessa forma, a teoria de expressão – centro do subjetivismo individualista – cria uma dualidade entre o que é interior e o que é exterior, e dá destaque ao interior, tendo em vista que a expressão se formaria no interior de cada indivíduo e caminharia em direção ao exterior, pois tudo que é essencial é interior. “Não é por acaso que a teoria do subjetivismo individualista, como todas as teorias da expressão no geral, se originou exclusivamente no terreno idealista e espiritualista” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 203).

É justamente nesse terreno espiritualista que se pensa numa deformação da expressão quando exteriorizada. O conteúdo, desse modo, sofreria uma transformação no processo de exteriorização, já que é obrigado a apropriar-se do material exterior e assim, perderia sua pureza.

Volóchinov, porém, afirma que a teoria da expressão, que serve de fundamento ao subjetivismo individualista é “radicalmente” falsa, visto que, de forma oposta à teoria da expressão, o teórico e seu Círculo acreditavam que o centro organizador da atividade mental é a expressão, ou seja, o percurso se dá de fora para dentro e não o oposto. Logo, a expressão forma-se socialmente e caminha para o psiquismo individual dos falantes, o que desmonta toda a orientação filosófica-linguística do subjetivismo individualista.

Se o objetivismo abstrato falha ao considerar que só o sistema da língua pode dar conta da língua viva; e o subjetivismo individualista falha ao supor que a língua se dá no psiquismo de cada indivíduo; como podemos, então, olhar a língua sem esses equívocos? A resposta está no conceito de enunciação trazido por Bakhtin e o Círculo:

Efetivamente, o enunciado se forma entre dois indivíduos socialmente organizados [...] A palavra é orientada para o interlocutor, ou seja, é orientada para quem é esse interlocutor: se ele é integrante ou não do mesmo grupo social, se ele se encontra em uma posição superior ou inferior em relação ao interlocutor (em termos hierárquicos), se ele tem laços sociais mais estreitos

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com o falante (pai, irmão, marido, etc.) (VOLÓCHINOV, 2018, p. 204-205, grifos do autor).

A interação social, portanto, é fundamental na língua. Somente na interação entre os interlocutores socialmente organizados, ou seja, contextualizados no mundo, no tempo e no espaço, há enunciação. Não pode haver língua desconectada da sociedade e do contexto. Assim, toda enunciação se dá socialmente por meio de indivíduos historicamente situados no mundo e entre si.

Sendo a enunciação resultado da interação social, quando conversamos sozinhos, não há enunciação? Há! Mesmo que nosso interlocutor não seja real, ou que ele seja o próprio locutor, há enunciação, pois, a interação não precisa necessariamente se dar por meio de indivíduos reais. Quando se conversa consigo mesmo, por exemplo, cria-se um espelhamento do eu e a interação torna-se efetiva. Do mesmo modo, quando um indivíduo conversa com alguma divindade que não possui matéria, a interação é válida na medida em que há uma representação psíquica do ser divino.

A substância primordial da língua – a interação social – passou despercebida ao objetivismo abstrato. Ao preocupar-se com as formas linguísticas, a interação entre os indivíduos ficou à margem. Mas o que são as formas linguísticas descontextualizadas? Qual seu valor se não associadas aos seus usos efetivos? Como vimos anteriormente, seriam reduzidas a sinais sem significação alguma. É no contexto que as formas adquirem significação, portanto, tornam-se enunciados. E, por adquirir significação na interação são tomadas de conteúdo vivencial dos interlocutores:

Na realidade, nunca pronunciamos ou ouvimos palavras, mas ouvimos uma verdade ou mentira, algo bom ou mal (sic), relevante ou irrelevante, agradável ou desagradável e assim por diante. A palavra está sempre repleta de

conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana. É apenas essa palavra

que compreendemos e respondemos, que nos atinge por meio da ideologia ou do cotidiano (VOLÓCHINOV, 2018, p. 181, grifos do autor).

Do ponto de vista do objetivismo abstrato, as palavras são meros itens de dicionário. Em se tratando de uma perspectiva enunciativa, elas ultrapassam os dicionários e ganham um conteúdo ideológico e vivencial. Toda e qualquer palavra conhecida pelo indivíduo desperta-lhe algo, fruto de sua vivência. E uma mesma palavra desperta significações diferentes em pessoas diferentes. Vejamos a palavra

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“vermelho”. Muito além de designar uma cor, ela desperta diferentes efeitos nos indivíduos. Há aqueles que não gostam de vermelho, outros que gostam, uns a remetem ao amor, outros ao comunismo... e inúmeras outras significações.

Reconhecer a existência do conteúdo ideológico só é possível ao se pensar nas interações sociais e em indivíduos que carregam consigo uma história, experiências, dramas, traumas, alegrias, enfim, vida! “A ruptura da língua e seu conteúdo ideológico é um dos erros mais graves do objetivismo abstrato” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 183, grifos do autor). Com essa separação, esvai-se toda a vida da língua e dos indivíduos.

Além das palavras possuírem um valor ideológico, o Círculo de Bakhtin aprofunda-se em outro elemento: seu poder de definição dos indivíduos em relação à coletividade, dado que toda palavra possui duas faces, ou seja, ela procede de alguém e se dirige a alguém. Tendo em vista que a língua só se efetiva socialmente, é imprescindível que haja interação entre os indivíduos. A palavra, nesse sentindo, é a ponte que liga o locutor e seu interlocutor, ambos contextualizados no mundo. Assim, eu sou quem sou através das palavras que partem de mim em direção aos outros. Logo, os outros me percebem através daquilo que expresso (não apenas verbalmente, embora aqui a expressão verbal seja o foco). As palavras, portanto, na perspect iva enunciativa, são ferramentas preciosas na definição dos sujeitos na sociedade.

Aliada à palavra, a situação social é o que definirá a estrutura da enunciação (VOLÓCHINOV, 2018). Se através da palavra defino-me, é por meio da situação social que enunciarei, a fim de obter o efeito social desejado nessa definição. De outro modo, o contexto é crucial para a estrutura da enunciação. Se há um contexto rebuscado, logo, a enunciação tenderá a sê-la também, caso o efeito desejado seja de pertencimento ao contexto em questão. “A situação social mais próxima e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, de dentro, a estrutura da enunciação” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 206).

1.2 O Enunciado e Alguns de seus Elementos

Na perspectiva enunciativa da linguagem, os enunciados tomam uma posição central, pois, segundo Bakhtin (2017), o emprego da língua somente se efetua através de enunciados (escritos e orais), da mesma forma o discurso. Logo, cabe-nos aqui aprofundarmos nesse conceito.

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Como já vimos, o elemento central das enunciações é seu caráter social, haja vista que a língua só se efetiva nas relações sociais por meio de indivíduos historicamente situados. Logo, o cerne de um enunciado é também seu caráter social, porque “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua” (BAKHTIN, 2017, p. 265). Porém, há também outros elementos dos enunciados que é importante considerarmos. Destacamos, inicialmente, que todo enunciado é composto por três elementos: conteúdo temático; estilo e construção composicional (BAKHTIN, 2017).

O conteúdo temático de um enunciado está relacionado ao tema sobre o qual se fala/escreve, ou seja, seu objeto. Porém, esse objeto “não se torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, e um dado falante não é o primeiro a falar sobre ele” (BAKHTIN, 2017, p. 299-300), ou seja, todo enunciado perpassa outros enunciados já ditos sobre o mesmo objeto. Essa característica do tema, que está sempre encadeado em outros enunciados sobre o mesmo tema, chamamos de dialogicidade, será explorada na próxima sessão.

Além do tema, os enunciados são compostos pelo estilo, que pode ser compreendido pela “seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua” (BAKHTIN, 2017, p. 261). O Círculo da Bakhtin considera que todo enunciado é individual e, portanto, pode ter um estilo individual. Ou seja, o sujeito do discurso, ao enunciar, fará suas próprias escolhas de como fazê-lo, as palavras escolhidas e o modo como irá construir suas frases. Porém, como veremos adiante, o gênero do discurso será fundamental nessas escolhas. Por ser individual, o enunciado é também irrepetível, uma vez que, embora o enunciado, em sua estrutura, seja o mesmo, as condições de enunciação são sempre únicas.

Para compreendermos melhor o conceito de construção composicional, pensemos num exemplo: um sujeito escreve uma dissertação cujo tema é a destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff. Ao escrever, ele desenvolve seu conteúdo temático que, como vimos está relacionado ao tema da dissertação que evoca outras vozes que já foram ecoadas sobre o mesmo tema. Seu estilo está relacionado às suas escolhas estilísticas durante o desenvolvimento do seu tema. Quando conclui o processo de escrita, o conjunto daquilo que escreveu confere o aspecto composicional, ou seja, ao término de sua escrita, aquilo que se desejava

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dizer toma uma forma: essa forma é o que compreendemos por construção composicional.

O conceito de construção composicional se aproxima daquilo que o Círculo de Bakhtin conceitua como gêneros do discurso. “Cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2017, p. 262, grifos do autor). São esses “tipos relativamente estáveis de enunciados” que chamamos de “gêneros do discurso”.

Em cada esfera humana, produzimos enunciados diversos. Porém nessas esferas encontramos condições específicas em que podemos aproximar alguns enunciados de outros. Uma dissertação, por exemplo, independente da área, segue um modelo relativamente estável de construção composicional, pois evoca um estilo/tema característico: um caráter científico. Assim, podemos também aproximar outros enunciados que seguem uma construção composicional semelhante entre si, como orações, cartas, manchetes entre outros.

Bakhtin e o Círculo compreendem que cada enunciado é único e pode refletir um estilo individual do falante (ou de quem escreve). Porém, há gêneros em que isso fica mais propício, como na literatura, por exemplo. Já em um ofício, o estilo individual do sujeito fica um tanto à margem, já que o gênero exige uma forma mais padronizada, o que não significa, entretanto, que o tema não explicite a individualidade do sujeito. Um bom exemplo, como veremos adiante, são as justificativas de voto dos deputados na votação de destituição da ex-presidenta Dilma. O estilo é padronizado: o deputado vota “sim” ou “não” seguido de uma justificativa breve, porém há outros elementos, como a orientação dialógica da língua, as entoações, as valorações... que fazem de cada enunciado único e condizente com a individualidade do deputado votante. As condições específicas, todavia, de uma votação da câmara dos deputados exige uma padronização dos enunciados que ali são produzidos. Assim podemos pensar em um gênero do discurso “justificativa de voto”, no qual os enunciados seguem uma forma “relativamente estável” desse campo.

Outra peculiaridade do enunciado é o que o Círculo de Bakhtin nos apresenta como sua “conclusibilidade”, que está intimamente ligado à alternância de sujeitos do discurso. “Essa alternância pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento sob dadas condições” (BAKHTIN, 2017, p. 280). Assim, compreendemos que um dos critérios da conclusibilidade é a possibilidade de resposta. Um exemplo trazido pelo Círculo é a pergunta cotidiana

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“que horas são?”. Ao ser enunciada, o interlocutor diz tudo que precisava ser dito e abre-se para a resposta permitindo a alternância dos sujeitos do discurso.

Além da possibilidade de resposta, outro critério da conclusibilidade é a “intenção discursiva”, ou seja, a vontade discursiva do falante. Ao enunciar, o sujeito possui uma intenção discursiva daquilo que pretende verbalizar, que irá determinar suas escolhas, o volume e as fronteiras do enunciado. Ao efetivar sua intenção discursiva, verbalizando tudo aquilo que intencionou, seu enunciado é dado como concluído.

Para tanto, voltamos ao conceito de gêneros do discurso, pois para efetivar sua intenção discursiva, o sujeito optará por um tema, um estilo e uma construção composicional específica, condizente com o campo de comunicação e a situação concreta em que o sujeito se encontra, para dar forma à sua intenção discursiva. Se um sujeito intenciona dar seu voto em uma votação na câmara dos deputados, por exemplo, ele certamente não optará por fazê-lo como faria se estivesse em uma conversa informal na mesa de um bar. Seu discurso será moldado no gênero condizente com a situação específica de sua enunciação.

Aliado à conclusibilidade do enunciado, outro elemento que merece destaque é o “expressivo”, isto é, “a relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto do seu discurso” (BAKHTIN, 2017, p. 289). Isso significa que, para além das escolhas lexicais, de tema e de construção composicional, a forma expressiva como o sujeito fala trará um sentido específico ao enunciado.

Para exemplificar, Bakhtin utiliza-se de duas orações “Ele morreu” e “Que alegria”. Dependendo como o sujeito enuncia essas duas orações, o sentido será abruptamente alterado. Assim como “ele morreu” pode ser enunciado com luto, pode também ser enunciado com alegria, a depender da entonação expressiva utilizada pelo falante. Do mesmo modo “que alegria” pode tanto traduzir júbilo quanto ser entoada com ironia e sarcasmo.

A entonação expressiva, portanto, é primordial nas enunciações e, embora algumas palavras possam parecer carregar por si só “um tom emocional”, – como a palavra “maravilha”, por exemplo – os teóricos do Círculo de Bakhtin apontam que as palavras enquanto itens dicionarizados são neutras e, somente através da enunciação, são construídos os sentidos. “Portanto, a emoção, o juízo de valor, a expressão são estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto” (BAKHTIN, 2017, p. 292).

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1.3 Orientação Dialógica da Linguagem

Como já vimos, a interação social é, para Bakhtin e seu Círculo, constituinte da língua. Logo, um enunciado deve ser sempre pensado nas relações com o “outro”. Esse “outro” pode ser pensado de duas formas. Primeiramente, presente na interação (interlocutor), tendo em vista que a língua sem interação é uma língua morta. Além do “outro” se constituir na interação, ele é parte integrante do próprio enunciado. Vejamos:

Mas todo existente não se contrapõe da mesma maneira ao seu objeto: entre discurso e o objeto, entre ele e a personalidade do falante interpõe-se um meio flexível, frequentemente difícil de ser penetrado, de discursos de outrem, de discursos ‘alheios’ sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo tema. E é particularmente no processo da mútua-interação existente com este meio específico que o discurso pode individualizar-se e elaborar-se estilisticamente (BAKHTIN, 1993, p. 86).

O que o Círculo de Bakhtin nos diz é que ao enunciarmos algo, nosso discurso é perpassado por outros discursos, discursos de outrem, que já foram ecoados sobre o mesmo tema, sobre o mesmo objeto. Para exemplificarmos, pensemos em um objeto qualquer: um pato amarelo. Ao falarmos de um pato amarelo, outras vozes serão entoadas sobre ele. Certamente não seremos os primeiros a falar sobre o t al pato. Em nosso discurso, todos os outros discursos sobre o pato serão também revividos. Opiniões sobre a aparência do pato, sobre gostar ou não de pato, sobre ser amarelo ou azul, sobre ser um símbolo das manifestações em favor do golpe de 2016 ou sobre ser um animal que vive no sítio. Ao discursar sobre o pato, minha fala buscará em outras falas já existentes elementos para constituí-la.

Essas vozes presentes em todo discurso é o que Bakhtin chama de dialogicidade interna. Assim, todo objeto “está amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações’ (BAKHTIN, 1993, p. 86). E se os objetos assim o estão, nosso discurso também o estará, visto que ele também é perpassado por essas vozes, se relacionando de forma complexa com elas, se aproximando de algumas e se distanciando de outras. A figura abaixo nos ajudará a compreender melhor esse conceito:

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Figura 2 – Dialogismo e refração do discurso-raio

Fonte: o autor

Atenham-se ao retângulo no centro da imagem. Ele é nosso objeto, assim como foi o pato amarelo. Inicialmente, ele era incolor. Não havia nada incidindo sobre ele. Era puro. Então surge a esfera azul e, ao observarmos, ele já não é mais o mesmo. Em seguida, incide sobre ele outras cores (vermelho e amarelo) e agora ele já não é mais incolor, nem azul, nem amarelo e tampouco vermelho. Há várias cores que refratam em sua estrutura de tal modo que já não é possível percebê-lo em sua cor “natural”.

Assim também podemos pensar a linguagem. Há um caminho do discurso para o objeto em forma de raio. O “discurso-raio”. Antes, porém, de atingi-lo, esse raio encontra as esferas coloridas que são os discursos de outrem e já não segue assertivo em direção ao objeto. O raio é refratado por essas camadas de vozes que estão sobre os objetos. São opiniões, crenças, valores que já foram ali colocados, impedindo o raio de encontrar esse objeto neutro e intacto. “A atmosfera social do discurso que envolve o objeto faz brilhar as facetas de sua imagem” (BAKHTIN, 1993, p. 87).

Pensar nesse objeto quadrado “puro”, entretanto, é meramente ilustrativo. “A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo” (BAKHTIN, 1993, p. 88). Logo, nesse

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caminho até o objeto, todo discurso se encontra com outros discursos. Bakhtin utiliza a mitologia cristã para reiterar sua afirmação ao evocar o “Adão mítico”.

Sendo Adão o primeiro homem do mundo e que traz consigo a primeira palavra, essa palavra seria também pura e virgem. Todavia, “para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível” (BAKHTIN, 1993, p. 88). Assim, as primeiras palavras desse ser mitológico não eram perpassadas por outras vozes, porém tudo que dali foi enunciado já começa a fazer parte de uma cadeia de enunciados.

O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse objeto (BAKHTIN, 1993, p. 86).

A dialogicidade interna do discurso, como vimos, aponta para as muitas vozes que compõem aquilo que enunciamos. Isso se dá porque pensamos na língua viva e em uso. Sendo viva, ela reflete o momento histórico e social de sua enunciação, e também traz consigo as marcas de outros momentos históricos que se fazem presentes nas refrações do discurso.

Se assim o pensamos, todo enunciado, por ser dialógico, faz parte de uma cadeia de enunciados, pois nunca estará isolado dos enunciados que o antecedem. Como vimos, internamente, toda enunciação é um prolongamento de enunciados anteriores. À vista disso, pensar a língua de forma dialógica é também percebê-la como uma grande corrente. Cada enunciação, portanto, é um elo dessa corrente que se estende historicamente.

“Mas a dialogicidade interna do discurso não se esgota nisso”, afirma Bakhtin (1993, p. 89). Para além das vozes que ecoam internamente nos discursos, há o que o teórico chama de “resposta antecipada”. Se pensamos a dialogicidade interna como os elos anteriores da corrente, podemos pensar a “resposta antecipada” como uma preparação da corrente para os próximos elos.

Ao refletirmos sobre a língua sob a ótica do Círculo de Bakhtin, constatamos que a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados. Mesmo que não haja um interlocutor real, ele sempre estará lá, podendo ser o reflexo do próprio “eu”. Se a enunciação se dá na interação, logo, se faz importante que haja uma compreensão ativa nessa interação. A compreensão, por

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sua vez, tem como princípio ativo a resposta: “Ela cria o terreno favorável à compreensão de maneira dinâmica e interessada. A compreensão amadurece apenas na resposta” (BAKHTIN, 1993, p. 90). Se é na resposta que a compreensão se faz efetiva – e sendo a compreensão fundamental para que haja interação, portanto para que haja enunciação – o Círculo de Bakhtin não poderia deixar de dar importância à “resposta”, como veremos no trecho abaixo:

O discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do “já dito”, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo diálogo vivo (BAKHTIN, 1993, p. 89).

Todo discurso é determinado por sua possível resposta, haja vista que ao enunciarmos, criamos um terreno para as respostas ao nosso discurso. “O locutor penetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constrói a sua enunciação no território de outrem, sobre o fundo aperceptivo do seu ouvinte” (BAKHTIN, 1993, p. 91), ou seja, todo enunciado abre caminho para uma resposta.

É com base na “resposta antecipada” que se faz importante um olhar atento ao interlocutor em qualquer discurso. Talvez um dos exemplos mais nítidos para refletirmos sobre esse aspecto dialógico da linguagem seja em discursos de políticos em véspera de eleição. Se o candidato tem interesse em eleger-se, seu discurso terá por objetivo agradar seus eleitores. Logo, o candidato terá que “orientar seu discurso, com o seu círculo determinante, para o círculo alheio de quem compreende, entrando em relação dialógica com os aspectos desse âmbito” (BAKHTIN, 1993, p. 91).

Cabe ao ouvinte, por sua vez, compreender o discurso e assumir sua posição ativa na interação, criando seus próprios elos na corrente. Concordando, discordando, completando...

[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. (BAKHTIN, 2017, p. 271).

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Portanto, a língua é dialógica em dois quesitos principais: a) sua dialogicidade interna, que aponta para as vozes de outrem que são ecoadas em nossas enunciações; e b) sua orientação para a resposta antecipada que, levando em conta as interações sociais, molda nosso discurso tendo em vista a resposta de outrem. Ambas trazem consigo a relação com o “outro”, visto que, sem interação, não há língua. E embora cada uma delas tenha uma essência diferente, elas podem “se entrelaçar muito estreitamente, tornando-se quase indistinguíveis entre si para a análise estilística” (BAKHTIN, 1993, p. 91).

Ao lermos sobre a perspectiva enunciativa da linguagem trazida por Bakhtin e nos debruçarmos sobre seu caráter dialógico, podemos cometer o erro de pensarmos que nosso discurso é apenas um reflexo dos discursos que nos antecedem e, portanto, não há originalidade nas enunciações. Todavia:

O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que não existia antes dele, absolutamente novo e singular, e que ainda por cima tem relação com o valor (com a verdade, com a bondade, com a beleza, etc). Contudo, alguma coisa é criada a partir de algo dado (a linguagem, o fenômeno observado da realidade, um sentimento vivenciado, o próprio sujeito faltante, o acabado em sua visão de mundo, etc.). Todo o dado se transforma em criado. Análise do mais simples diálogo cotidiano (‘Que horas são?’ – ‘Sete horas’). A questão mais complexa da pergunta. É necessário olhar para o relógio. A resposta pode ser verdadeira ou não, pode ter significado, etc. A que horas, a mesma pergunta feita no espaço cósmico, etc. (BAKHTIN, 2017, p. 326).

Tudo que enunciamos, devido ao caráter dialógico da linguagem, vem de algo já dado. As noções gerais de cada discurso estão postas, porque é impossível não sermos atravessados pelos discursos alheios. Entretanto, como afirma o teórico russo “todo o dado se transforma em criado” (BAKHTIN, 2017, p. 326).

Cada um de nós, ao enunciarmos, tocaremos em alguns fios dialógicos dados. Mas a forma como teceremos esses fios é sempre única e individual. Eu e você podemos ter acesso às mesmas refrações de determinado objeto, porém, em cada uma de nossas enunciações, partiremos de algo dado e construiremos algo novo, podendo concordar, discordar, gostar ou não. E como cada ser humano é único, a vida é fluida e o tempo passa a cada segundo, meu discurso se transforma constantemente, pois a cada enunciação, diferentes fios discursivos serão tocados e novas enunciações construídas.

“A língua enquanto meio vivo e concreto onde vive a consciência do artista da palavra, nunca é única” (BAKHTIN, 1993, p. 96). Toda vez que é enunciada, a língua

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cria e recria sentidos, já que sempre será perpassada por diferentes combinações de vozes. Assim, uma enunciação nunca poderá ser idêntica a outra, tendo em vista que toda vez que é enunciada, em determinados momentos sociais e históricos, a língua toca os milhares de fios dialógicos existentes. Nunca os mesmos, porque a vida gira em torno da inconstância. Cada momento é único, portanto, cada enunciação também é única.

1.4 Signo e Ideologia na Perspectiva Enunciativa do Círculo

Após nos determos na explicação sobre a concepção enunciativa de linguagem trazida pelo Círculo de Bakhtin, bem como no conceito de dialogismo abordado no tópico anterior, vamos conceituar, para fins metodológicos, o que o Círculo entende por “ideologia” e “signo”.

Ao criticar o objetivismo abstrato, Bakhtin e o Círculo refletem sobre as formas linguísticas e nos dão elementos para refletirmos sobre seu conceito de ideologia. Para o Círculo as palavras não são apenas itens dicionarizados, mas estão sempre carregadas de um conteúdo ideológico ou “vivencial”. São essas vivências que criam em nós valores em relação à vida. Se gostamos de algo, desgostamos ou tratamos com indiferença. Por estarmos inseridos socialmente e em contato direto com o mundo, lançamos sobre ele o crivo de nossas percepções.

Essas vivências, percepções e valores em relação a tudo que nos cerca compõem, para o Círculo, a “ideologia”. A língua, por sua vez, “não pode ser separada do seu conteúdo ideológico ou cotidiano” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 181), haja vista que a língua só se efetiva nas interações. Se há interação, há pessoas envolvidas. Em havendo pessoas, há vida e, portanto, impossível não haver ideologia.

Como resultado do trabalho de todas estas forças estratificadoras, a língua não conserva mais formas e palavras neutras “que não pertencem a ninguém”; ela torna-se como que esparsa, penetrada de intenções,

totalmente acentuada. Para a consciência que vive nela, a língua não é um

sistema abstrato de formas normativas, porém uma opinião plurilíngue

concreta sobre o mundo. Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um

contexto ou contextos nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras são povoadas de intenções (BAKHTIN, 1993, p. 100, grifos nossos).

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Nesse trecho, ao reiterar o caráter dialógico da língua, Bakhtin traz várias expressões (em itálico) que remetem à ideologia. Tendo seu conteúdo ideológico, a língua é “penetrada de intenções”, “totalmente acentuada”, traz consigo uma “opinião concreta” sobre o mundo, “evoca uma tendência...” ou seja, não é neutra, mas carregada de tonalidades valorativas, ou seja, de ideologias.

Aqui, podemos voltar à figura 1, da tela “Linguagem” pintada para esse capítulo. A língua, representada pelo arco-íris, não é monocromática, mas sim carregada das mais diversas cores. A depender do indivíduo que enuncia, diferentes combinações de cores podem ser acentuadas, a depender do valor estabelecido entre o sujeito, linguagem e objeto. Além disso, o contexto histórico social em que a enunciação ocorre também irá interferir nessa enunciação, pois somos indivíduos historicamente situados e a nossa enunciação ocorre sob um horizonte apreciativo da sociedade. Falar sobre aborto no século XXI, por exemplo, é diferente de falar sobre esse tema no século passado. Novamente, o comportamento da combinação de cores do arco-íris língua é determinado pela ideologia, ou seja, pelas diferentes valorações e acentuações dos sujeitos envolvidos e pelo horizonte apreciativo.

Compreendermos essa visão “mais ampla” de ideologia faz-se fundamental para o segundo conceito sobre o qual aqui pretendemos refletir: o de signo, tendo em vista que “tudo que é ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo (VOLÓCHINOV, 2018, p. 91, grifos do autor). Mas o que entendemos por signo então?

Em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, Volóchinov debruça-se para conceituar os signos e seu caráter ideológico. Para tanto, ele volta-se para os corpos físicos presentes no mundo. Em um primeiro momento, um corpo físico vale apenas por si próprio. Ele volta-se para sua natureza. Uma pedra, por exemplo, é apenas uma pedra e não significa nada além de si mesma.

Todavia, todo corpo físico pode também ser tomado como símbolo convertendo-se em signo, “o qual, sem deixar de ser parte da realidade material, esse objeto, em certa medida, passa a refratar e refletir outra realidade (VOLÓCHINOV, 2018, p. 92).

Para exemplificar, Volóchinov cita a foice e o martelo. Inicialmente, eram apenas instrumentos a serviço do homem: objetos criados com uma finalidade de auxílio no trabalho. A União Soviética, porém, toma-os como emblema e, a partir de então, esses objetos físicos passam, além da sua função inicial, a representar uma

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concepção de sociedade e de luta. Os objetos físicos são preenchidos de ideologia e tornam-se então um signo, adquirindo um sentido que ultrapassa suas próprias particularidades e reflete uma outra realidade, “sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 93).

Além dos corpos físicos – que, como vimos, podem ser transformados em signos – “a palavra é o fenômeno ideológico par excellence2” (VOLÓCHINOV, 2018,

p. 98, grifos do autor). Isso porque as palavras surgem das interações sociais e ali são depositadas várias camadas ideológicas e fios dialógicos.

A realidade da palavra é sempre resultante do consenso entre indivíduos. A palavra pedra, por exemplo, precisa remeter ao objeto pedra do mundo físico. Para isso, faz-se necessário um consenso entre os falantes. Porém, cada indivíduo, quando ouvir a palavra pedra, trará consigo suas próprias percepções e experiências antes de chegar ao objeto pedra, logo, as palavras são também signos.

O Círculo de Bakhtin ressalta, entretanto, que a palavra não pode suplantar qualquer outro signo. Como exemplo, ele cita a dificuldade de exprimir em palavras uma composição musical. “No entanto, todos esses signos ideológicos que não podem ser substituídos pela palavra ao mesmo tempo apoiam-se nela e não são por ela acompanhados (VOLÓCHINOV, 2018, p. 101).

Portanto, para avançarmos para o próximo capítulo, faz-se fundamental que compreendamos: a) que a língua precisa ser pensada, segundo o Círculo de Bakhtin, pelo viés da interação social; b) que os discursos se dão na sociedade por meio de enunciados e esses são sempre únicos e irrepetíveis, embora se agrupem em gêneros do discurso; c) que os enunciados são dialógicos, pois são elos de uma grande cadeia discursiva que tocam discursos anteriores e posteriores a eles e d) que a ideologia permeia todo e qualquer discurso, uma vez que a língua não é neutra, mas perpassada por valores, crenças, pensamentos, gostos e etc.

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CAPÍTULO 2 - A Abertura do Processo de Destituição da Ex-Presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados

Figura 3 – Manifestantes divididos entre apoiadores e contrários ao golpe de 2016 em frente ao Congresso Nacional

Fonte: Documentário Democracia em Vertigem (DEMOCRACIA, 2019)

Iniciamos esse capítulo com uma imagem do documentário “Democracia em Vertigem”, dirigido pela Cineasta Petra Costa e indicado ao Oscar de 2020. Ao fundo da imagem, temos o Congresso Federal, no coração de Brasília, e, à sua frente, dois grupos distintos de manifestantes separados por uma longa faixa de grama demarcada por estruturas de metal. À direita, pessoas vestidas em verde e amarelo e, à esquerda, o outro grupo em vermelho.

Essa imagem ilustra muito bem o contexto histórico e social em que se deu a abertura do processo de destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, em 2016. Um evento que foi marcado pela polarização popular entre apoiadores do governo (esquerda) e um grupo que tentava a todo custo derrubá-lo (direita). É nesse contexto de polarização política e muitos conflitos que se desenha o que, ao longo do texto, chamamos de Golpe de 2016.

Antes de verificarmos como a Bancada Evangélica se posicionou nesse evento e buscarmos alguns fios dialógicos presentes em seus discursos, aqui apresentaremos o dia da votação e seu cronotopo. Esse conceito é apresentado pelo Círculo de Bakhtin para definir a figura do tempo e espaço na narrativa, ou seja, como

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o contexto espacial e temporal, juntos, influenciam os discursos produzidos e são fundamentais para analisá-los.

Esse caminho se faz necessário, pois é no interior desse evento que observamos os discursos dos deputados, ou seja, nosso objeto de análise. Uma contextualização do momento em que eles foram produzidos é imprescindível para avançarmos nessa análise, pois, como veremos, esse cronotopo de polarização de narrativas perpassa todos os discursos ali produzidos.

2.1 Cronotopo do Golpe de 2016

Começamos esta sessão por apresentar o conceito de cronotopo trazido pelo Círculo de Bakhtin. “Chamaremos de cronotopo (que significa ‘tempo-espaço’) a interligação essencial das relações de espaço e tempo como foram artisticamente assimiladas na literatura” (BAKHTIN, 2018, p. 11), ou seja, para o Círculo, tempo e espaço estão interligados e deles emerge uma relação com o mundo e tudo que o cerca.

Nos escritos do Círculo de Bakhtin, esse conceito surge – emprestado das ciências matemáticas – como categoria de conteúdo/forma da literatura. Assim o cronotopo foi usado como ferramenta de análise de textos literários, como o romance grego, de cavalaria, biografias entre outros, optando por não comentar o conceito em outros campos da cultura (BAKHTIN, 2018). Segundo o Círculo, no cronotopo artístico literário:

[...] ocorre a fusão dos indícios do espaço e do tempo num todo apreendido e concreto. Aqui o tempo se adensa e ganha corporeidade, torna-se artisticamente visível; o espaço se intensifica, incorpora-se ao movimento do tempo, do enredo e da história. Os sinais do tempo se revelam no espaço e o espaço é apreendido e medido pelo tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico (BAKHTIN, 2018, p. 12)

Tempo e espaço fundem-se no cronotopo. O tempo, aliado ao espaço, ganha corpo e, segundo o Círculo, torna-se visível. Logo, nessa relação fluida entre tempo e espaço, revela uma imagem, faz-se concreto e atuante. Daí a importância do estudo do cronotopo em qualquer narrativa, seja na literatura ou no cotidiano, pois é um elemento atuante no enredo e influenciador do próprio homem: “como categoria de conteúdo determina (em grande medida) também a imagem do homem na literatura” (BAKHTIN, 2018, p. 12).

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Nesse sentido, na literatura ou no cotidiano, atua como centro basilar do enredo, pois nele são atados e desatados os nós da história. Todo discurso é atravessado por um cronotopo e não passa ileso por isso, ao contrário, incorpora em si marcas temporais e espaciais do cronotopo em que a enunciação ocorre. Um acontecimento em si não dá conta de fornecer uma imagem, mas seu cronotopo proporciona esse terreno sensorial. É justamente esse terreno pictórico-sensorial que pretendemos apresentar brevemente aqui.

A abertura do processo de destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff se deu em um cenário de muitos conflitos políticos e ideológicos e uma intensa polarização popular em relação ao tema. Nesse contexto, surgem várias narrativas acerca da votação na Câmara e a legalidade do ato em si, a destacar pelo menos duas antagônicas, que denominaremos de a) fim de um governo corrupto e b) Golpe de 2016.

Faz-se importante destacar que essas narrativas ajudam a ilustrar o cronotopo de elevada polarização político-ideológica instaurada no país antes, durante e depois da abertura do processo de destituição. A constituição dessas narrativas não possui um caráter científico, mas pautadas em notícias, documentários, livros de grande circulação etc. que as fizeram reverberar no imaginário popular e dicotomizar a opinião pública sobre a história recente do país. Não é possível trazê-las como verdades absolutas, mas sim como percepções distintas dos fatos que cercaram os sujeitos que vivenciaram esse momento histórico.

Destacamos também que as narrativas apresentadas a seguir são pequenos recortes de uma realidade, cuja complexidade é tamanha que poderíamos nos alongar por páginas e páginas e talvez não dar conta da minuciosidade dos fatos que contribuíram para o evento da destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff. O objetivo ao apresentar essas narrativas sintetizadas é proporcionar ao leitor a imagem do cronotopo de conflitos, sem nos atermos aos seus detalhes e nuances. Iniciamos pela narrativa A, do fim de um governo corrupto.

Em dois de dezembro de 2015, o Presidente da Câmara dos deputados, Eduardo Cunha (MDB), acatou o pedido de denúncia elaborado pelos juristas Janaina Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr. para o impeachment de Dilma Rousseff. Na denúncia, a Presidenta, ao autorizar despesas extras, havia desrespeitado a lei orçamentária, pois o gasto seria incompatível com a meta fiscal estabelecida pelo governo e acordada com o Congresso (VEIGA; DUTT-ROSS; MARTINS, 2019).

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Essa prática, conhecida como “pedaladas fiscais”, foi o argumento legal que deu início ao processo de destituição da então presidenta Dilma Rousseff. A defesa do governo, por sua vez, alegou que não se tratava de um crime de responsabilidade e que essa prática sempre foi utilizada, sem questionamento, por governos anteriores. O ponto chave do processo, entretanto, perpassa outros pontos importantes, a considerar a queda da popularidade de Dilma frente aos escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato. “Nomes do PT e de integrantes do governo Dilma foram acusados de estarem envolvidos com esquema de propinas. A operação recebeu grande cobertura midiática e as passeatas nas ruas se avolumaram” (VEIGA; DUTT-ROSS; MARTINS, 2019, p. 04). Com as acusações de corrupção ligadas ao PT, a popularidade do governo baixava entre a população e também no Congresso. E no dia em que o PT declarou apoio ao pedido de cassação do então presidente da Câmara Eduardo Cunha, ele acatou a denúncia de crime de responsabilidade fiscal da chefe do Executivo.

Nessa narrativa é importante destacarmos que, apesar do processo legal de destituição de Dilma ter sido o crime de “pedaladas fiscais”, a razão pela qual o pedido foi acatado no Congresso foi a crescente impopularidade de Dilma e do PT frente aos escândalos de corrupção envolvendo o partido e noticiado quase que de forma religiosa na grande mídia. Nesse cenário de conflitos, uma parte da população via na saída de Dilma uma forma de “livrar” o país da corrupção.

Por outro lado, entretanto, havia outro grupo que repetia reiteradamente que a destituição da então presidenta tratava-se de um golpe à democracia. A narrativa de um golpe foi multifacetada, bem como as contrárias ao golpe, pois o evento foi complexo e permitiu inúmeras narrativas sobre os fatos que culminaram na destituição. Aqui, vamos trazer uma narrativa do sociólogo Jessé Souza (2016) e da cineasta e antropóloga Petra Costa (2019). Para explicar o golpe de 2016, Souza (2016) nos faz olhar para a história do Brasil e sua formação.

Segundo Souza (2016), o que moldou o Brasil – cujos traços são ainda muito marcantes – foi a escravidão. Dentro da lógica escravocrata, na qual os escravizados eram tidos como sub-humanos e usados para o enriquecimento de alguns, esses alguns tornaram-se os detentores do poder na época. A economia, a política, a justiça e, sobretudo, o dinheiro, estavam nas mãos dos grandes senhores. Souza (2016) chama-os de “elite do dinheiro”. Essa elite bilionária, embora tenhamos hoje um cenário diferente, permanece como detentora do poder do país. De acordo com Souza

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