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Trajetórias de práticas de leituras escolares

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Academic year: 2021

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DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

MÁRCIA ROSANE VOLTZ

TRAJETÓRIAS DE PRÁTICAS DE LEITURAS ESCOLARES

Ijuí/RS 2013

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TRAJETÓRIAS DE PRÁTICAS DE LEITURAS ESCOLARES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), para a obtenção do título de mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Simone Schwengber

Ijuí/RS 2013

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Agradeço primeiramente a Deus pela minha vida e, portanto, pela oportunidade de viver o sonho de concluir o mestrado.

À minha família, pelo incentivo, pela torcida e pela paciência nas intermináveis horas de estudos. A meu pai Walter e minha mãe Mélia, pela inspiração de ser professora desde criança. Em especial à minha irmã Camila, meu porto seguro, que sempre esteve sempre ao meu lado na construção desta pesquisa.

Aos meus filhos Cássio e Patrícia, pelo carinho, pelo afeto e pela compreensão nas horas em que estive ausente para estudar.

Ao meu irmão Claudio, mestre, que é minha fonte de inspiração para continuar estudando, pelas palavras de apoio, incentivo e carinho.

À minha avó, pelas informações significativas para a construção desta pesquisa, e à minha tia Arceli, pela torcida e pelos quitutes oferecidos nas horas de estudos.

Aos professores que colaboraram nas minhas aprendizagens e nas bancas que qualificaram esta pesquisa.

Agradeço imensamente à minha professora orientadora, Dra. Maria Simone Vione Schwengber, pela atenção, pela paciência e pelos conhecimentos adquiridos.

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Esta dissertação discute questões referentes às práticas de leituras de alunos do Ensino Fundamental (alunos do 4º ao 6º ano), inseridos em uma escola pública. Sendo uma pesquisa de natureza qualitativa e de inspiração etnográfica, utilizam-se como estratégia teórica metodológica o diário de bordo e a entrevista semiestruturada com os alunos. Buscam-se discutir as seguintes questões de pesquisa: o que, onde, com quem e como estes alunos leem? Das análises que resultaram, é possível dizer que as práticas de leituras que os alunos do 4º ano realizam são as exigidas e oferecidas no espaço escolar. É a escola que oferece um espaço cultural. No entanto isso evidencia que é a escola quem escolhe os livros e outros materiais a serem lidos. Para os alunos do 5º ano, percebeu-se que a imagem influencia na escolha do livro ou outro material que vai ser lido, por isso existe preferência por gibis e livros com textos pequenos, mas com muitas imagens. Esses alunos procuram algumas leituras além das oferecidas pela escola. Os alunos do 6º ano demonstraram, em seus registros, a utilização das multimídias, MSN, Orkut, Facebook, blogs, formando um conjunto com a hipertextualidade (caminhos não lineares de leitura do texto). A estes alunos as leituras virtuais são as favoritas e as leituras escolares são feitas somente com a exigência dos professores. Quase todos os estudantes pesquisados consideram o ato de ler importante para o processo de autonomia e de criticidade desenvolvido através da leitura.

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This dissertation discusses issues related to the reading practices of elementary school students (from 4th to 6th year), inserted in a public school. As a qualitative research with ethnographic inspiration, it was used, as theoretical methodological strategy, the logbook and semi-structured interviews with students. The following research questions are discussed: what, where, with whom and how these students read? From the resulting analysis, it is possible to say that the reading practices performed by 4th year students are those required and offered at the school. It is the school that offers a cultural space. However it shows that it is the school that chooses the books and other materials to be read. For 5th year students, it was perceived that the image influences the choice of book or other material to be read, so there is a preference for comics and books with little text, but with many pictures. These students seek some reading beyond those offered by the school. Students from the 6th year showed in their records the use of multimedia, MSN, Facebook, blogs, forming a set with hypertextuality (nonlinear reading paths). To these students, the virtual readings are the favorite and school readings are made only by the requirement of teachers. Almost all the students surveyed consider the act of reading important to the process of autonomy and criticism developed by reading.

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Figura 1 – Histórias que minha avó contava... 12

Figura 2 – Meu primeiro livro... 14

Figura 3 – A magia da leitura... 20

Figura 4 – Diário de bordo... 38

Figura 5 – Mensagem do diário de bordo... 38

Figura 6 – Orientações sobre o diário de bordo... 39

Figura 7 – Mapa do município de Eugênio de Castro... 44

Figura 8 – Foto aérea do município de Eugênio de Castro... 44

Figura 9 – Vista aérea do município de Eugênio de Castro com identificação da escola foco da pesquisa... 45

Figura 10 – Biblioteca da Escola TAT... 46

Figura 11 – Sala de mídias... 46

Figura 12 – Livros disponíveis na sala dos professores... 47

Figura 13 – Portaria n. 3, de 12 de março de 2010... 48

Figura 14 – Índice do Ideb da Escola TAT (2009) ... 50

Figura 15 – Resultados do Saers da 6º ano da Escola Estadual de Educação Básica Theodorico Alves Teixeira... 51

Figura 16 – Padrão de desempenho conforme resultados do Saers do 6º ano da Escola Estadual de Educação Básica Theodorico Alves Teixeira... 51

Figura 17 – Sala de leitura da escola TAT... 52

Figura 18 – Momento de leitura... 53

Figura 19 – Desenho de aluna sobre a leitura... 56

Figura 20 – Descrição de um dia de prática de leitura no diário de bordo... 61

Figura 21 – Tirinha de gibi... 62

Figura 22 – Relato de um dia de prática de leitura no diário de bordo... 65

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1 AVENTURAS E LEITURAS: EXPERIÊNCIAS VIVIDAS... 9

1.1 JUSTIFICATIVA E PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA... 9

2 AS PRÁTICAS DE LEITURAS E O CAMPO TEÓRICO... 21

2.1 FRAGMENTOS HISTÓRICOS DO ATO DE LER... 21

2.2 OS ELEMENTOS DA LEITURA... 24

2.3 A PRÁTICA DA LEITURA: CONSTRUÇÃO/RECONSTRUÇÃO DO SUJEITO... 29

2.4 A PRÁTICA DA LEITURA: AMPLIAÇÃO DO VOCABULÁRIO... 32

3 A PESQUISA E O CAMPO EMPÍRICO... 35

3.1 METODOLOGIA... 35

3.2 FERRAMENTAS DE PESQUISA... 36

3.3 DIÁRIO DE BORDO... 37

3.4 A ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA... 39

3.5 DESCRIÇÃO DOS PARTICIPANTES... 40

3.6 PERFIL DOS PARTICIPANTES... 41

3.7 O CENÁRIO DA ESCOLA... 43

3.8 PROJETO REALIZADO DE LEITURA NA ESCOLA... 48

3.9 IDEB E OUTRAS AVALIAÇÕES EXTERNAS... 49

3.10 E ASSIM, A SALA DE LEITURA... ... 52

3.11 CONVERSAS COM QUEM ENSINA: O DISCURSO... 53

4 PRÁTICAS DE LEITURAS DOS ALUNOS... 56

4.1 PRÁTICAS DE LEITURAS DOS ALUNOS DO 4º ANO... 57

4.2 PRÁTICAS DE LEITURAS DOS ALUNOS DO 5º ANO... 61

4.3 PRÁTICAS DE LEITURAS DOS ALUNOS DO 6º ANO... 65

4.4 O QUE A LEITURA REPRESENTA NA VIDA DAS CRIANÇAS... 69

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REFERÊNCIAS... 78

ANEXO A – Ficha socioeconômica dos alunos... 82 ANEXO B – Plano de Intervenção Pedagógica... 84

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1 AVENTURAS E LEITURAS: EXPERIÊNCIAS VIVIDAS

Neste primeiro capítulo, apresento a justificativa, a problematização do tema e o caminho que percorri para a definição do objeto de pesquisa. Inicialmente, abordo as minhas experiências de leitura, os livros que marcaram minha vida, as práticas de leituras significativas da construção do ato de ler. Este estudo vincula-se à linha de pesquisa Educação Popular em Movimentos e Organizações Sociais.

1.1 JUSTIFICATIVA E PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA

Um livro é como uma janela. Quem não o lê, é como alguém que ficou distante da janela e só pode ver uma pequena parte da paisagem. (GIBRAN, 2000, p. 14). A epígrafe de Gibran possibilita pensar o quanto a leitura se expande no mundo e também nos interliga aos diferentes mundos culturais. Ler um livro é percorrer caminhos desconhecidos, navegar por águas distantes, conhecer culturas diferentes, porque ele é capaz de nos tirar do lugar em que estamos e nos transportar a um universo irrestrito de pensamento; permite à imaginação voar para outros mundos.

A experiência de ler significa colher conhecimentos, culturas e ampliar os horizontes. Permite ao sujeito experiências sensíveis e ensina a pensar, indagando desde o cotidiano até um mundo mais amplo. Para Rangel (2005, p. 18), a prática da leitura “atua no sujeito que experiencia, através da linguagem, da leitura [...] o sujeito cresce cognitiva e intelectualmente”.

Nessa perspectiva, para a construção do objeto desta dissertação, busco inicialmente alguns fragmentos nas inquietações das minhas experiências pessoais e profissionais a respeito da leitura. Discutir as práticas pedagógicas da leitura me instiga o interesse, sobretudo as práticas do ambiente escolar em que atuo profissionalmente. Considero a importância de problematizar as práticas da leitura na escola. Durante a construção do projeto de pesquisa, algumas dúvidas e dificuldades persistiam, como o que recortar. Assim, surgiu a curiosidade de pesquisar o que os alunos leem e se eles leem. Então, com o apoio da banca de qualificação do projeto, definiu-se meu ponto de partida: pesquisar as práticas de leituras dos alunos do Ensino Fundamental da escola em que trabalho.

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Meu tema trata das práticas de leituras de um grupo de alunos do 4º ao 6º ano do Ensino Fundamental no ambiente escolar1. Escolhi estes anos porque se configuram num nível de ensino em que se dá a produção/aquisição de conhecimentos básicos de leitura e também a introdução de textos diversificados, como lendas, contos, poesias, parlendas, charges, histórias em quadrinhos, dentre outros. A leitura no Ensino Fundamental é compreendida não só como leitura de decifração das vogais, consoantes, sílabas, mas entendimento das palavras, dos contextos. Para Freire (1984, p. 8), “aprender a ler [...] alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não numa manipulação mecânica de palavras mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e realidade”.

A leitura de mundo citada por Freire refere-se às vivências e às experiências do sujeito desde o seu nascimento. O sujeito lê o mundo muito antes de ler as palavras, e usa de sua capacidade sensitiva para ler. Aprende-se a ler o mundo também por intermédio de pessoas com quem convivemos. Um bebê que ainda não sabe falar aprende com seus pais os nomes das coisas que ele vê, sente, cheira, toca, e assim essas palavras vão se internalizando no sujeito, o qual passa a ler o mundo. Freire (1994, p. 22) sensibiliza-me a pensar o quanto “a leitura do mundo precede a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele”, que somos capazes de ler sem as palavras por intermédio da capacidade de percepção dos sentidos (olfato, tato, paladar, audição e visão). Segundo o autor (2000, p. 22), antes de ler a palavra, a criança já lê o mundo por meio de gestos, olhares, expressões faciais, cheiros e do tato.

Ao escolher pesquisar sobre as práticas de leituras das crianças2, reportei-me a momentos fundamentais de minha história, das minhas incursões no mundo da leitura. Isso iniciou muito tempo antes de frequentar a escola. Eu ainda era bebê e já ouvia histórias contadas em alemão por minha avó, ela lia as palavras, mas me mostrava as figuras, eu fazia a leitura das figuras, dos gestos, das expressões que minha avó usava para interpretar essas histórias. Como descrito por Freire (1994, p. 22), “a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática”.

A leitura de imagens é chamada de leitura não verbal, aquela em que o sujeito percebe e lê tudo o que está ao seu redor, sem utilizar as palavras. No entanto, quando se pergunta o

1 Quando me refiro à leitura, trago-a não só na perspectiva das leituras do contexto escolar, mas também as que

acontecem fora deste.

2 Conforme consta no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 2º, considera-se criança a pessoa

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que é leitura, seu pensamento imediatamente se remete ao texto escrito e não percebe a leitura não verbal que acontece sem as palavras. Nesse sentido, Alves (2008, p. 19) descreve que as “noções de texto e de linguagem, frequentemente, remetem-nos a textos e linguagens verbais, ou seja, aquelas que se exprimem por meio da palavra. Entretanto, sabemos que existem outras formas de linguagem e que, por meio destas, o homem também pode representar o mundo”.

Minha mãe era professora, e assim fui crescendo em meio a livros, cadernos e materiais escolares. As experiências de leituras foram acontecendo, pois minha mãe ocupava a mesa da cozinha para preparar o seu material de aula, e lá estava eu, sentada em uma cadeira alta, na qual fazia minhas refeições, manuseando os livros, tomada de encantamento. Larrosa (2002a, p. 144) nos diz o que a leitura “tem a ver com aquilo que somos, com nossa formação e nossa transformação”. Minha avó também ocupava a mesma mesa para realizar as suas leituras da Bíblia, as cartas em alemão que recebia de suas amigas que estavam na Alemanha, jornais evangélicos, dentre outras, e lá estava eu novamente em meu lugar, participando de tudo. Esse ambiente de leituras onde os adultos, com seus exemplos, me mostravam que ler é importante foi decisivo para a minha formação leitora. Na opinião de Larrosa (ibidem, p. 142), “a experiência não é aquilo que nos passa, é o modo como atribuímos sentido a elas, senão como o modo pelo qual o mundo nos mostra sua face inteligível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade das coisas e dominá-las”.

A maior alegria era quando, já mais crescida, as histórias eram lidas para mim com exclusividade. Havia um livro de histórias infantis que continha duas histórias com os títulos

Rotkäppchen e SneeWittchen, respectivamente Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve, que

pertencia à minha avó desde os seus seis anos. A língua oficial em minha casa era a alemã, e até os seis anos de idade eu só falava esse idioma. Enquanto o livro era lido, eu ficava imaginando a história. Larrosa (ibidem, p. 134) complementa que a imaginação “está do lado subjetivo. Vem daí a sua associação a termos como irrealidade, ficção, delírio, fantasia, alucinação, sonho etc.”.

Apresento a seguir parte de um livro das minhas primeiras experiências de leituras, o qual foi dado à minha avó quando ela completou seis anos de idade.

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Figura 1 – Histórias que minha avó contava

Fonte:GOBHARDT, ( 1906, p. 1-2)

Foi por volta dos quatro anos que ganhei o meu primeiro livro de histórias da senhora

Frau Fharra Gaelzer – lê-se esposa do pastor Gaelzer. Minha família estava sempre

envolvida com a igreja, e o pastor e a pastora frequentavam a nossa casa. Eles perceberam que ali se lia muito e, sem modéstia, gostavam muito de me estimular também para a leitura. O título do livro era Walter Telefonieren (Walter está telefonando), e o conteúdo era muito significativo dentro da língua alemã. Não esqueço, até hoje, o primeiro versinho que aprendi:

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7,

Eine alte frau cocht Rüben, Eine alte frau cocht speck, Schneidert sich den finger veg.

A tradução desse verso é a seguinte: “1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, uma velha mulher cozinha cenoura, uma velha mulher cozinha gordura, corta o seu dedo fora”. O livro era ilustrado com a imagem de uma mulher cortando o dedo. Esses eram alguns dos versos que, quando chegava

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visita, geralmente pediam para eu cantar em alemão, e assim quase todos se orgulhavam de mim. Eu, então, me sentia feliz por ser valorizada e reconhecida nessa experiência de ler. Larrosa (2002a, p. 134) aponta que “essa misteriosa atividade que é a leitura [é] como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos”.

Mais tarde, com seis anos, comecei a frequentar a escola para aprender a falar a língua portuguesa e para iniciar minhas primeiras socializações em um ambiente diferente de interações com outras crianças. E assim, consequentemente, as experiências pedagógicas de leitura passaram a fazer parte de minha vida. Para Larrosa (ibidem, p. 142) a leitura “ensina a viver humanamente e a conseguir a excelência em todos os âmbitos da vida humana: no intelectual, no moral, no político, no estético etc.”. Lembro-me de minha primeira professora, que me acolheu com muito amor e paciência, pois os meus colegas falavam de modo diferente de mim; às vezes, não nos entendíamos, e ela, afetuosamente, traduzia o que eu queria dizer.

Minha família, nessa época, mudou-se para a cidade3, pois minha mãe passou a trabalhar em outra escola. Lá ia eu com ela para a escola. Com seis anos de idade, não podia ser matriculada, então eu fazia as tarefas de brincadeira, mas, para mim, era muito sério; ficava a admirar, extasiada, as tarefas que executava nesse contexto escolar.

Foi então que minha mãe, num belo dia, apareceu com um livro de histórias escrito em português. Que alegria! Tinha ilustrações em todas as páginas, que ajudavam a decifrar as palavras escritas. E, assim, esse e outros livros foram o incentivo para eu aprender a ler. Sentava na escada que dava para a cozinha, lia todos os dias. Primeiro as palavras, depois as frases isoladamente e, por último, as frases no contexto; tudo isso com a ajuda das ilustrações. Em certa ocasião, disse para minha mãe que já sabia ler; que tinha entendido o que estava escrito. Ela ficou muito surpresa, solicitando que eu lesse para que escutasse. A minha leitura deixou-a muito alegre e maravilhada. Larrosa (ibidem, p. 150) indica que “a literatura, nesse jogo de linguagem, se enrosca sobre si mesma, liberada de toda atadura exterior, as coisas, as ideias, os sujeitos, os contextos e os valores estão sempre postos como à distância de si mesmos”.

Assim, as experiências vividas, proporcionadas por esses livros, ficaram impressas em minha memória, na minha alma e na minha carne. Nesse contexto, o conceito de experiência, segundo Larrosa (ibidem, p. 161), “vem do latim experiri, provar. A experiência é, em primeiro lugar, um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova”.

3 Minha família morava no interior de Augusto Pestana (RS), mais especificamente em Esquina Renz. Depois,

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Aquilo que o sujeito vê e vive é o conhecimento que se tem na/pela prática de vida, que passa e internaliza o indivíduo.

A imagem a seguir é do primeiro livro que ganhei quando tinha cinco anos de idade, já na escola. Foi com ele que eu aprendi a ler em português e o guardo em minha memória, principalmente a história de Quiquita. Essas histórias sempre tinham uma moral para ensinar valores aos leitores, como se vê no excerto do livro.

Figura 2 – Meu primeiro livro

Fonte: IVONILDE E ZILTA, (1970, p. 15)

Logo ingressei na escola. As lembranças da experiência de ler ficaram como que tatuadas em mim, a ponto de eu recordar de algumas até hoje. Ao final do período de aula, a professora marcava com um X a tarefa para ler em casa, que geralmente era um texto. Quando eu lia, viajava para dentro da história. Larrosa (2002a, p. 153) relaciona a leitura com a metáfora da viagem: “ler é como viajar, como seguir um itinerário através de um universo de signos que se deve saber interpretar corretamente, caso alguém não queira se perder”. A alegria tomava conta de mim, pois era tudo o que eu queria: ler em casa para a minha mãe e

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só parar quando cansava de ler. Destaco que estudei esse nível de ensino em classes multisseriadas4. Em nossa sala, estudavam a primeira e a segunda série. Aprendia-se em conjunto.

E assim foi até eu frequentar a escola estadual, a partir da quinta série. A partir daí, tenho poucas lembranças marcantes em relação à leitura, mas uma eu não esqueço: numa ocasião a professora estava estudando conosco os livros de Monteiro Lobato, em especial O

Sítio do Pica-Pau Amarelo. Então, ela nos deu a tarefa de assistir ao primeiro episódio da

minissérie lançada na Rede Globo. A expectativa para assistir ao programa, naquela época, foi grande. No outro dia fizemos comentários sobre os melhores momentos. Gostei muito dessa atividade.

Esses momentos familiares e escolares são carregados de significados e perpassaram a minha infância com relação à leitura, mas, ao chegar à adolescência, foram morrendo. Depois dos dois primeiros anos escolares, poucas experiências de leitura me vêm à memória. Pergunto-me: como e por que essa experiência de ler, no meu processo de escolarização, foi perdendo sentido?

Lembro que as visitas à biblioteca eram para retirar os livros de literatura que a professora de português pedia; aí tive o meu primeiro contato com Machado de Assis, José Lins do Rego, José de Alencar e outros. Certa vez, retirei o livro Iracema. Levei-o para casa e não consegui ler para minha mãe, pois possuía palavras muito difíceis e eu demorava a decifrá-las e pronunciá-las, então desisti de lê-lo. Sobre esse aspecto, Larrosa (2002a, p. 146) considera que “a atividade da leitura é às vezes experiência e às vezes não. Porque ainda que a atividade da leitura seja algo que fazemos regular e rotineiramente, a experiência da leitura é um acontecimento que tem lugar em raras ocasiões”.

À medida que o tempo escolar foi passando, já não lia mais por gostar, mas por exigências escolares. Devíamos mostrar a professores e colegas o que líamos, e alguém nos dava nota pelo nosso desempenho. Tinha muito para ler e, às vezes, as leituras extensas, distantes dos meus interesses, causavam cansaço, e eu desistia.

É na passagem dos Anos Iniciais para os Anos Finais do Ensino Fundamental que os modos de leituras se apresentam diferentes. Geralmente nos Anos Iniciais os alunos realizam leituras de livros de histórias onde o imaginário está presente. Já nos Anos Finais, geralmente realizam leituras exigidas pela escola, que contemplem os conteúdos. Larrosa (ibidem, p. 135) contribui com uma reflexão sobre a imaginação:

4 São aquelas em que alunos de níveis diferentes estudam juntos na mesma sala e o professor atende,

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A imaginação está ligada à capacidade produtiva da linguagem: recorde-se que fictio deriva de facere, o que ficcionamos é algo fabricado e por sua vez, algo ativo. A imaginação, assim como a linguagem, produz realidade, a incrementa e a transforma.

Por exemplo, uma criança que vê bons filmes, desenhos animados, lê livros, contos de fadas, literatura, lendas, poesias, ouve músicas, participa de atividades variadas, canta, dramatiza, enfim, que utiliza as várias linguagens, amplia seus repertórios linguísticos e culturais e sua visão de mundo. Quanto mais experiências ela tem, mais enriquece suas práticas de leituras e de mundo, porque, segundo Larrosa (2002a, p. 137), “tudo o que passa pode ser considerado um texto [...] algo a que temos de prestar a atenção. É como se os livros, assim como as pessoas, os objetos, as obras de arte, a natureza, ou os acontecimentos que sucedem ao nosso redor quisessem nos dizer alguma coisa”.

Desse modo, não existe experiência sem o sujeito da experiência, porque o sujeito é quem experimenta. Nessa perspectiva, destaca-se dentro do conceito de experiência o “sujeito da experiência”, descrito por Larrosa (2004, p. 160) como o “território de passagem, algo como superfície de sensibilidade na qual aquilo que passa afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos”. Para o autor (ibidem, p. 161), o sujeito, nas práticas de leituras,

[...] é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a exposição (nossa maneira de pôr-nos), nem a o-posição (nossa maneira de opor-nos), nem a im-posição (nossa maneira de impor-opor-nos), nem a pro-posição (nossa maneira de propor-nos), mas a ex-posição (nossa maneira de ex-por-nos), com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se expõe. É incapaz de experiência aquele a que nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada lhe toca, nada lhe chega, nada lhe afeta, a quem nada lhe ameaça, a quem nada lhe fere.

Nas palavras de Larrosa, esse sujeito da experiência, sendo um sujeito “ex-posto”, que está aberto à “transformação” ou à “de-formação”, está ativo para as experiências de leituras cada vez mais complexas e variadas. As leituras apresentam-se através de vários instrumentos, e a tecnologia revolucionou os modos de interação entre suporte e leitor. Então o sujeito da experiência está “ex-posto” a novos modos de leituras.

No século XX, multiplicam-se os meios considerados da mídia de massa: sonoros: telefone, rádio, podcast; escritos: livros, jornais, diários, revistas; audiovisuais: televisão, cinema; multimídias: diversos meios simultaneamente; hipermídias: TIC, CD-ROM, TV, e-book, hiperlivro, digital e internet, que agrupa as multimídias (diversos meios simultaneamente, como escritas e audiovisuais), formando um conjunto com a hipertextualidade (caminhos não lineares de leitura do texto). Essas rápidas transformações,

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na opinião de Munari (2011), aconteceram porque “a humanidade modificou e ampliou os meios de leituras, buscando aquilo que fosse mais prático: mais rápido, portátil – o livro digital [...]”, presente para a geração Z5

.

Assim, como a internet e as demais conexões com o mundo mudam as maneiras de ler – do livro ao hiperlivro6

, por exemplo –, cabe à escola saber como as novas gerações utilizam os suportes para lerem. No espaço da escola de hoje, percebe-se a presença de uma geração que utiliza a leitura virtual. A maioria das crianças possui um telefone celular, mesmo os alunos do 1º ano do Ensino Fundamental. Também usam os computadores para realizar pesquisas escolares. Os alunos dominam esses aparelhos, utilizando habilidades de leituras distintas das leituras de um texto. Como essas tecnologias passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas, as escolas, através de suas mantenedoras, instalaram laboratórios de informática, para o acesso daqueles alunos que não têm computador e internet em casa. A sociedade contemporânea abre um espaço enorme para que a leitura da palavra transforme-se em um processo cultural ampliado, e que sejam dadas às crianças oportunidades de diálogo num processo interativo e linguístico.

É na escola que se amplia o domínio dos níveis de leitura e escrita, que orienta para a escolha de textos diversificados e desenvolve as relações entre leitura e sujeito em todas as suas interfaces. O professor tem a possibilidade de apurar o olhar e orientar, juntamente com as crianças, para aquelas áreas em que se dão os cruzamentos entre textos narrativos e ilustração. A leitura, como destaca Coelho (2000, p. 16),

[...] estimula o exercício da mente; a percepção do real em múltiplas significações; a consciência do eu em relação ao outro; a leitura do mundo em seus vários níveis e, principalmente, dinamiza o estudo e conhecimento da língua, da expressão verbal significativa e consciente – condição sine qua non para a plena realidade do ser. Sabemos que o Brasil é um país de pessoas que não têm o hábito da leitura (CASEMIRO, 2002) ou leem pouco e mal. A prática da leitura é uma experiência que não faz parte do cotidiano de muitos brasileiros, que não têm acesso a livros e outras formas de comunicação escrita em seus lares. Com base nos dados de pesquisa do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), sabe-se que, no Brasil, os estudantes da educação básica são os que têm o menor número de livros em casa. Entre os países

5 A grande nuance dessa geração é zapear. Daí o Z. Em comum, essa juventude muda de um canal para outro na

televisão. Vai da internet para o telefone, do telefone para o vídeo e retorna novamente à internet. Também troca de uma visão de mundo para outra, na vida.

6 Para Munari (2011), o hiperlivro é portador de um texto que se transforma a partir dele, como aconteceu na

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pesquisados, o Brasil está em último lugar em leitura em casa, revelando, assim, a situação socioeconômica das famílias (CASEMIRO, 2002).

Nas conversas entre professores, outro ponto que chama atenção é que é comum ouvir no cotidiano escolar, desde os Anos Iniciais, falas sobre a relação educando/ato de ler, como: “os alunos não sabem ler”; “esses alunos não leem”; “o que fazer para que estes alunos leiam?”; “os alunos não têm capacidade para ler”.

A leitura, entre os professores, também se manifesta de forma frágil. Quando da minha chegada com livros recebidos do governo federal por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e expostos sobre a mesa dos professores para apreciação, ouvi alguns comentários, como: “não tenho tempo para ler”; “não venha com este monte de livros”... Dos dez professores que estavam ali, seis reviraram as obras para encontrar algo de seu interesse e quatro levaram livros para ler. Alguns, ainda, nem olharam para os livros, e outros disseram: “gostaria de ler todos, mas não sei quando”. Situação semelhante aconteceu com o jornal7 que foi posto sobre a mesa dos professores. As reações foram as mais diversas. A maioria nem olhou. Alguns levantaram e saíram, outros desviaram o olhar. Apenas uma pegou o jornal para fazer as palavras cruzadas.

Esta pesquisa pretende debruçar-se sobre as práticas de leituras vividas pelos sujeitos (alunos) na interação escolar. Assim, olharei para as práticas escolares de leituras. Foucault (2004) sensibiliza-nos a olhar as práticas em que os sujeitos estão envolvidos, seus modos de operação, seus discursos, seus esquemas, suas ações, e não diretamente para os sujeitos. Ou seja, olhar como essas práticas de leituras constituem a subjetividade dos sujeitos pesquisados, como a leitura afeta o seu modo de ser e viver a realidade. Na opinião de Larrosa (2002a, p. 133),

Pensar a leitura como formação implica pensá-la como atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor (modos de subjetivação): não só com o que o leitor sabe, mas, também com aquilo que ele é. Trata-se de pensar a leitura como algo que nos constitui ou nos põe em questão naquilo que somos.

Desse modo, o objetivo desta pesquisa é analisar as práticas escolares de leituras de 12 alunos, quatro por turma. Considerando que as turmas do 4º, do 5º e do 6º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual de Educação Básica Theodorico Alves Teixeira, do município de Eugênio de Castro/RS), têm em média 20 alunos, essa amostra corresponde a 20% do total de alunos por turma.

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Desse modo, lanço as seguintes perguntas de pesquisa: Quais práticas de leituras são mobilizadas, pelos alunos, no contexto escolar? O que, como e onde leem? Com quem leem? Para Minayo (2008, p. 16), “toda investigação se inicia por uma questão, por um problema, por uma pergunta, por uma dúvida”. E, assim, inicio por estas perguntas.

Inicialmente, busquei mapear dissertações publicadas nos últimos cinco anos que tratassem da leitura na escola. Para tanto, busquei em bancos de dados, teses e dissertações, como os sites do Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), da Biblioteca Pública Digital, o SciElo (Scientific Eletronic Library Online), através do site do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Busquei dissertações e teses já concluídas a partir de palavras-chave e também da combinação de algumas palavras, como: leitura, leitura-escola, leitura-aluno-ensino fundamental, práticas de leituras. Em algumas dessas dissertações, tive acesso ao texto integral; em outras, somente aos resumos. Trago-as aqui na direção de pontuar um certo estado de arte, pois nesses trabalhos há elementos que relacionam a temática das práticas de leitura na escola.

Buscando essa interligação, encontrei a dissertação de mestrado A leitura nas classes

populares: uma investigação na 5ª Série do Ensino Fundamental, desenvolvida por Tatiana

Anflor (2007) junto a alunos e professores, através de entrevistas. Em suas análises, a autora destaca a descrição das experiências de leitura dos alunos de 5ª série. Os resultados permitem pensar na importância da escola no empenho de proporcionar práticas que levem as crianças a ler e escrever a sua própria história de leitura, transformando assim o quadro constatado de pouco convívio das classes populares com as obras literárias.

A dissertação de Érica Alves (2008), Estratégias de leitura e a (re) significação de

uma prática de leitura, apresentou como resultados a importância da aplicação de estratégias

de leituras para a construção de sentidos do texto. Uma vez que tais procedimentos envolvem aspectos cognitivos e metacognitivos, o leitor levanta hipóteses, valida-as ou não, preenche as lacunas que o texto apresenta, o que o leva a refletir e controlar seu próprio conhecimento.

A dissertação de Josilene da Silva (2011), (Re) descobrindo o prazer da leitura: uma

interação entre teoria e prática em sala de aula, discorre sobre o interesse pela leitura lúdica

e prazerosa que acompanha a criança desde o seio familiar até o 5º ano do Ensino Fundamental. Como resultados, a autora indicou que a maioria dos alunos pesquisados foi capaz de (re)descobrir a leitura lúdica, prazerosa. Com o intuito de preencher os espaços da alma com expressivas obras de grandes autores, esses alunos perceberam que o poético é capaz de tocar a nossa sensibilidade e desenvolvê-la.

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Trago essas pesquisas para dizer que me aproximo em termos de recorte das práticas de leituras no Ensino Fundamental, porém detenho-me a pesquisar as práticas de leituras do 4º ao 6º ano do Ensino Fundamental.

A imagem a seguir ilustra como a leitura provoca o leitor e leva-o a fazer descobertas encantadoras. A leitura utiliza-se da capacidade do leitor de transformar as palavras em imagens. Enquanto ele lê as palavras, em sua mente tudo acontece como se fosse um filme, ouve os sons, sente os gostos, se emociona com os personagens e ao final sente saudades da história que leu. Este é o poder da leitura.

Figura 3 – A magia da leitura

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2 AS PRÁTICAS DE LEITURAS E O CAMPO TEÓRICO

Neste capítulo, inicialmente compartilho alguns aspectos sobre fragmentos históricos da leitura, com a intenção de destacar a relevância desta nas sociedades e nos diferentes tempos históricos. Discuto também os elementos pedagógicos das práticas de leituras.

2.1 FRAGMENTOS HISTÓRICOS DO ATO DE LER

O ato de ler, conforme Manguel (1997), é considerado uma passagem, sendo comemorada como um ritual importante. Considerei relevante essa posição porque percebo que nas classes de alfabetização há geralmente pouca valorização desse ato. A partir de falas do tipo “Se aprendeu a ler passa de ano, se não aprendeu fica mais um ano”, entrega-se ao educando a tarefa de aprender a ler e ainda se expõe um entendimento de que ler é algo fácil, sem muita importância.

Em princípio, o ato de ler é uma ação do intelecto, das emoções, em que o sujeito utiliza seus conhecimentos prévios, suas experiências e transforma as informações culturalmente construídas. Manguel (ibidem, p. 20) afirma que “ler [...] vem antes de escrever. Uma sociedade pode existir – existem muitas, de fato – sem escrever, mas nenhuma sociedade pode existir sem ler”. Existem vários modos de ler que não empregam as palavras, e sim diferentes signos, que são oferecidos ao indivíduo, o qual tem a tarefa de decifrá-los, como descreve Manguel (ibidem, p. 20):

Mesmo em sociedades que deixaram registros de sua passagem a leitura precede a escrita; o futuro escritor deve ser capaz de reconhecer e decifrar o sistema social de signos antes de colocá-lo no papel. Para a maioria das sociedades letradas – para o islã, para sociedades judaicas e cristãs como a minha, para os antigos maias, para as vastas culturas budistas –, ler está no princípio do contrato social; aprender a ler foi meu rito de passagem.

Para as civilizações letradas,

[...] aprender a ler tem algo de iniciação, de passagem ritualizada para fora de um estado de dependência e comunicação rudimentar. A criança, aprendendo a ler, é admitida na memória comunal [...] familiarizando-se assim com um passado comum que ela renova, em maior ou menor grau, a cada leitura. (ibidem, p. 89-90).

O autor destaca que, em cada época, os métodos de ensino da leitura assumiam formas diferentes. Cada membro da sociedade, em uma idade específica, era iniciado no mundo letrado conforme sua cultura, cada uma com suas características.

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Na sociedade judaica, medieval, por exemplo, o ritual de aprender a ler era celebrado explicitamente. Na festa do Shavuot, quando Moisés recebia a Torá das mãos de Deus, o menino a ser iniciado era envolvido num xale de orações e levado por seu pai ao professor. Este sentava o menino no colo e mostrava-lhe uma lousa onde estava escrito o alfabeto hebraico, um trecho das escrituras e as palavras “Possa a Torá ser tua ocupação”. O professor lia em voz alta cada palavra e o menino as respondia. A lousa então era coberta com mel e a criança a lambia, assimilando assim, corporalmente, as palavras sagradas. (MANGUEL, 1997, p. 90). Na sociedade medieval, todos os meninos e a maioria das meninas dos clérigos tinham acesso à aprendizagem da leitura desde muito cedo, e isso começava na família. Já na “sociedade cristã da baixa Idade Média e começo da Renascença aprender a ler e escrever – fora da Igreja – era o privilégio mais exclusivo da aristocracia e (depois do século XI) da alta burguesia” (ibidem, p. 90). Manguel destaca o papel da leitura, mas também adverte que esse aprendizado exige da criança maturidade intelectual, conforme as instruções contidas em um manual escrito no século I, na Europa:

Quintiliano escreveu um manual pedagógico de 12 (doze) volumes, o Institutio

Oratória de grande influência durante a Renascença. Nele aconselhava: Há quem

defenda que os meninos não devem aprender a ler antes dos sete anos de idade, sendo essa a idade mais tenra em que podem tirar proveito da instrução e suportar a tensão de aprender. (ibidem, p. 91).

Naquela época, havia distinção entre o acesso ao ensino da leitura entre meninos e meninas. Esse ensino era oferecido de várias formas:

Depois do aprendizado das primeiras letras, contratavam-se professores como tutores particulares (se a família tivesse condições financeiras) dos meninos, enquanto a mãe se ocupava da educação das meninas. Embora no século XV os lares abastados em geral tivessem o espaço, a tranquilidade e o equipamento para oferecer o ensino em casa, a maioria dos estudiosos recomendava que os meninos fossem educados longe da família, na companhia de outros meninos. Os moralistas medievais, entretanto, questionavam acerbamente os benefícios da educação – pública ou privada – para as meninas. (ibidem, p. 91-92).

O aprendizado das meninas era considerado perigoso pelos moralistas medievais, pois o acesso ao conhecimento poderia representar certa liberdade de pensamento, como Manguel (ibidem, p. 92) descreve: “não é apropriado que as meninas aprendam a ler e a escrever, exceto se quiserem ser freiras, pois de outra forma poderão, chegada a idade, escrever ou receber missivas amorosas”. O acesso das meninas ao mundo letrado era restrito.

Do final do século XI até o século XIV na Europa, iniciou-se uma nova era da história da leitura: a união da leitura e escrita como sendo uma o complemento da outra, conforme destaca Ribeiro (2008, p. 5):

Com o desenvolvimento da alfabetização, as práticas de escrita e as práticas de leitura antes separadas, aproximaram-se tornando-se função uma da outra: lê-se para

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escrever e escreve-se para leitores. A escola agora é vista como o principal espaço onde se dará o ensino da leitura.

O método escolástico era voltado para a leitura tecnicizada. Não se aprendia a ler por prazer, mas, sim, como uma ação técnica, na perspectiva da memorização. A capacidade de memória levou as pessoas, com o tempo, a não consultar mais as obras originais, mas trechos de textos selecionados por outros. Manguel (1997, p. 95-96) destaca:

Poucos estudantes eram suficientemente ricos para comprar livros, e com frequência apenas o professor possuía esses volumes caros. Ele copiava no quadro-negro as complicadas regras de gramática – geralmente sem explicá-las pois, de acordo com a pedagogia escolástica, a compreensão não era uma exigência do conhecimento. Os alunos eram então forçados a aprender as regras de cor. Como seria de se esperar, os resultados eram amiúde decepcionantes.

O método escolástico, ainda muito presente entre nós, destinava-se a manter o controle sobre o conhecimento a serviço do status quo. Para Manguel (1997, p. 92-93), consistia em “treinar o estudante a considerar um texto de acordo com certos critérios preestabelecidos e oficialmente aprovados, os quais eram incutidos neles às custas de muito trabalho e muito sofrimento [...] o ensino da leitura dependia mais da perseverança do aluno que de sua inteligência”.

Assim, na segunda metade do século XV, o método escolástico começou a perder forças, abrindo espaço para modelos de ensino mais liberais. Ribeiro (2008, p. 6) conta que “a leitura vai se tornando responsabilidade do leitor no que tange à ligação do ato de ler com seu próprio mundo e experiências pessoais, afirmando sua autoridade sobre o texto”.

Na Idade Moderna, mais precisamente nos séculos XVI a XIX, surgem em alguns países europeus novas categorias de leitores, condicionados às práticas de leituras escolares e à industrialização. A revolução causada pelo livro impresso – marcante no avanço tecnológico – trouxe rapidez e uniformidade aos textos. Para Ribeiro (ibidem, p. 6),

Em países de forte tradição católica, os leitores procuraram desviar os olhos da censura, que insistiam cravar obstáculos para leitura de textos vistos como portadores de ideias perigosas contra a autoridade da Igreja e dos soberanos absolutos.

A leitura no mundo contemporâneo, do século XIX aos dias atuais, “conhece uma nova dispersão dos modelos de leitura em virtude do crescimento geral da alfabetização e do uso da cultura impressa por novas classes de leitores (as mulheres, as crianças, os operários)” (ibidem, p. 10). Para Ribeiro (ibidem, p. 10), as mulheres do século XIX, “em decorrência da diminuição das taxas de analfabetismo, emergiram como público leitor, consumidor principal

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dos livros de culinária, revistas e romance”. Igualmente ocorreu com as crianças do século XIX:

Com a expansão da educação primária, tiveram um maior acesso ao mundo letrado. Mas o aprendizado da leitura de maneira tradicional, na maioria das vezes, era realizado através de cartões sem contato com os livros; a capacidade para ler era uma atividade que exigia paciência e repetição de exercícios. (RIBEIRO, 2008, p. 10).

Ao propor-me a pesquisar sobre as práticas de leituras dos alunos, iniciei a busca por materiais de estudos que pudessem conduzir-me a um caminho a seguir. No trajeto dessa busca, descobri que também a leitura tem sua história. Na seção seguinte, apresento que o ato de ler é complexo e depende de alguns elementos para constituir-se.

2.2 OS ELEMENTOS DA LEITURA

Aprender a ler, para Manguel (1997), é entendido como a passagem do estado de dependência para a autonomia de pensamento. Essa passagem é um processo doloroso e difícil para a criança, que exige a observação de alguns elementos centrais do processo de formação da leitura, como a língua, a linguagem, ler, leitura, leitura de mundo, leitura de um texto, ser leitor e alguns tipos de leitores. Para compreender melhor cada conceito, dialogo com alguns autores como Freire (1994, 1996, 2000), Foucambert (1994) e Santaella (2004).

Para entender a complexa trama que envolve o ato de ler, inicio conceituando língua. Por que abordar, no entanto, o conceito de língua? Porque desde que nascemos somos parte da sociedade da comunicação, aprendemos a falar a língua materna. O Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004, p. 459) diz que língua “é o conjunto das palavras e expressões, faladas ou escritas, usadas por um povo ou uma nação e o conjunto de regras da sua gramática”. Para Freire (1994), porém, o conceito de língua vai muito além; assume um papel social e cultural. Para o autor, língua é

[...] a força mediadora do conhecimento; mas também é, ela mesma, conhecimento. Creio que tudo isto passa também através das classes sociais. Uma pedagogia crítica propõe essa compreensão cultural dinâmica e contraditória, e a natureza dinâmica e contraditória da educação como um objeto permanente de curiosidade por parte dos educandos. (ibidem, p. 35).

Nessa língua, que é diferente conforme seu povo ou nação, aprende-se a palavra, que é a essência da comunicação. Larrosa (2002b, p. 21) explica:

O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas

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que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo o humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio do vivente, que é o homem, se dá em palavras.

Larrosa (2002b, p. 21) chama a atenção para o que representam as palavras: são produção de sentidos e de poder que traduz pensamentos:

As palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras.

As palavras são usadas para expressar pensamentos, mas não usadas de qualquer forma. O sujeito que usa a palavra para expressar os pensamentos, tanto falados quanto escritos, busca aprimorar esses usos para ser entendido. Na opinião de Frantz (2006, p. 13),

Palavras são como pontes que ligam os pensamentos, as experiências, os interesses e as necessidades dos seres humanos entre si. Entrelaçar pensamentos, experiências, interesses e necessidades, pela ponte das palavras, requer também capacidade de leitura [...] implica exercícios complexos de comunicação social, de expressão verbal.

O poder de uso das palavras é o ponto central da distinção entre os seres humanos e os animais. São as palavras que permitem ao ser humano a incrível capacidade de comunicação verbal, porém, ao mesmo tempo, o ser humano busca a adaptação ao mundo das palavras, as quais se modificam. Para tanto, utiliza a linguagem falada ou escrita. Revisando a definição de linguagem, o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004, p. 461) traz que linguagem é “o uso da palavra articulada (na voz) ou escrita como meio de expressão e de comunicação entre as pessoas”. Nós, humanos, nos constituímos pela linguagem. Por meio dela e na troca com os outros, produzimos conhecimentos, tomamos consciência, reinterpretamos a condição humana e nos posicionamos.

A capacidade de ler reserva-se aos seres humanos e, além de ser a habilidade que os humaniza, torna-os forte, permitindo o acesso ao conhecimento e ao poder, desenvolve o pensamento e possibilita a autonomia. Manguel (2011, p. 11) afirma:

Ler é extensão de uma função biológica. Certos animais usam de camuflagem e outros criam defesas para atuar no mundo. Nossa espécie desenvolveu a imaginação. Uma forma de construir o mundo antes de experimentá-lo. Se posso imaginar como é por a mão na boca de um tigre, sim, vou por a mão. A imaginação faz com que inventemos histórias para reter nossa experiência. Para conhecê-las, desenvolvemos a leitura. Lemos e escrevemos para entender a experiência antes de tê-la e para ativar nossa própria experiência, para dizer que essa é a forma que sentimos e entendemos, para que as gerações futuras possam sabê-las.

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Para Boufleuer (2001, p. 65), “quando vinculamos o conhecimento à mediação da linguagem nós o entendemos, também, como uma relação social argumentativa, ou seja, como prática social”. O uso da linguagem para representar o pensamento simbólico é capacidade exclusiva dos seres humanos, diante da necessidade de convivência coletiva e da organização em sociedade, pela qual, inclusive, nos distinguimos dos demais seres.

A criança, quando chega à escola, traz consigo uma língua conhecida que aprendeu na sua vivência social e cultural, chamada dialeto. No espaço escolar, essa criança conhece as possibilidades de uso padrão da língua, considerando-se que em certas situações de comunicação são exigidos graus de formalidade para a linguagem oral. Vincula-se, assim, o aprendizado da língua ao conhecimento de formas de uso padrão.

Nas classes de alfabetização, percebe-se certa dificuldade das crianças em adaptar a linguagem conhecida à linguagem formal padrão. A tendência é escrever como se fala, e é no espaço escolar que a criança irá perceber que essa língua conhecida passa por algumas modificações, tanto na escrita quanto na leitura. Sendo assim, saber ler, para Freire (2000), “é um processo difícil, que exige maturidade e persistência do sujeito, mas ao mesmo tempo prazeroso”. Para o autor, ler implica “que o leitor (a) se adentre na intimidade do texto para aprender sua mais profunda significação. Quanto mais fazemos o exercício disciplinadamente, vencendo todo o desejo de fuga da leitura, tanto mais nos preparamos para tornar futuras leituras menos difíceis” (ibidem, p. 76).

Quando uma criança consegue ler uma palavra, é visível sua satisfação. Ela demonstra o quanto é doloroso ler, mas também a alegria ao perceber que conseguiu fazê-lo. A partir da leitura da palavra, a criança mentalmente relaciona que tudo o que está ao seu redor pode ser escrito e, principalmente, lido. Relato essas situações por acompanhar as classes de alfabetização na escola pesquisada e ter a oportunidade de ensinar muitas crianças a ler. É inesquecível ver os olhos brilhando das crianças quando descobrem que sabem ler, nem que seja somente uma palavra.

Ao aprender a ler, a criança começa a fazer relações com o mundo. Sente-se pertencente ao mundo das letras. Percebo na escola pesquisada que os índices de casos de indisciplina nos três Anos Iniciais têm como um dos motivos o não saber ler. E isso gera conflitos internos nas crianças, que afeta as relações entre os seus pares, pois se demonstra o sentimento de não pertencer ao mundo letrado. Ao aprender a ler, as crianças se tranquilizam, pois superaram a dor de não saber ler. Nesse sentido, Foucambert (1994, p. 5) contribui lembrando que “ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa que certas

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respostas podem ser encontradas na escrita, significa poder ter acesso a essa escrita, significa construir uma resposta que integra parte das novas informações ao que já se é”.

Dedico-me neste momento a pensar sobre o conceito de leitura. Para Foucambert (1994, p. 8), por exemplo, a palavra leitura nos abre um leque de possibilidades de entendê-la: para o autor leitura “é a atribuição de um significado ao texto escrito”. Ele ainda explicita que, para ler, o sujeito utiliza conhecimentos prévios necessários ao leitor, para que ele entenda o que vai ser lido e como encontrar as informações que precisa.

A leitura exige do leitor bem mais informações a respeito do que vai ler. Isso pode ser percebido durante um diálogo entre a professora e uma criança do 1º ano do Ensino Fundamental. A professora pediu a um aluno para ler a palavra casa. Com muito esforço, a criança foi decifrando as sílabas, fazendo suas hipóteses de leitura, soletrando e juntando os sons das letras para formar a palavra. Ao terminar, estava toda suada em razão do esforço feito para ler. Ela olhou para a professora e disse: “Aqui está escrito casa?” “Sim”, respondeu a professora. E a criança disse: “Então já sei ler casa?”. Nessa situação, é útil observar a explicação de Foucambert (ibidem, p. 9):

É um erro acreditar que uma palavra nova é simplesmente somada às que a criança já conhece: na verdade, a palavra nova obriga todo o sistema a se reorganizar. Por extensões e conflitos, por ensaios e erros, por equilíbrios e questionamentos. A criança elabora um sistema que explica, teoriza e organiza suas práticas de leitor. A leitura apresenta-se de várias formas. Uma leitura pode ser oral e silenciosa. Essas leituras estão diretamente ligadas às modalidades físicas do leitor. Como explica Chartier (2011, p. 82), o ato léxico “distingue uma leitura silenciosa, que é apenas o percurso dos olhos sobre a página, e uma outra que necessita da oralização, em voz alta ou baixa”.

Durante a pesquisa na escola, observei que os alunos demonstram diferentes modos de leituras. A grande maioria lia em silêncio, mas alguns poucos precisavam ler em voz alta para entender o que estavam lendo. Assim, as leituras podem ser classificadas em:

 leitura oral (em voz alta): que, para Cagliari (2009, p. 142), é “decifrar o que está escrito e depois reproduzir oralmente o que foi decifrado”;

 leitura silenciosa, que, na concepção de Cagliari (2009, p. 138),

[...] é muito mais comum entre as pessoas. Sua importância para a vida da maioria delas é muito maior que a dos outros tipos de leitura. A leitura visual tem grandes vantagens sobre os outros tipos de leitura, não só não inibe o leitor por questões linguísticas, como permite ainda uma velocidade de leitura maior, podendo ele parar onde quiser e recuperar passagens já lidas, o que a leitura oral de um texto não costuma permitir. Daí a conclusão de algumas pessoas de que a leitura silenciosa favorece mais a reflexão sobre o texto.

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Para Freire (1996, p. 30), a leitura “crítica me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou, e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito”. Muito antes de uma criança saber que existem palavras para ler, ela já lê tudo o que está ao seu redor na interação com o mundo. É essa leitura que Freire denomina leitura de mundo; a leitura que “revela, evidentemente, a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo. Revela também o trabalho individual de cada sujeito no próprio processo de assimilação da inteligência do mundo” (ibidem, p. 139).

Para saber ler, no entanto, o sujeito utiliza-se das palavras e também da leitura de mundo. Para realizar a leitura, Freire (1994, p. 22) destaca que esta “implica sempre percepção crítica, interpretação e ‘re-escrita’ do lido” (grifo do autor). Ler um texto, portanto, é

[...] algo mais demandante. Ler um texto não é “passear” licenciosamente, pachorrentamente, sobre as palavras. É apreender como se dão as relações entre as palavras na composição do discurso. É tarefa de sujeito crítico, humilde, determinado. Ler, enquanto estudo, é um processo difícil, até penoso, às vezes, mas sempre prazeroso também. (idem, 2000, p. 76).

É na escola ainda que se vive o momento de formação do sujeito leitor ou não. Ser leitor, para Foucambert (1994, p. 30), é “querer saber o que se passa na cabeça do outro para compreender melhor o que se passa na nossa”. Cabe ao leitor ter acesso aos escritos socialmente produzidos, tendo a capacidade de escolher o que irá ler e onde encontrar o que quer ler.

A partir da concepção do “ser leitor”, temos ainda os “tipos de leitores”, que, conforme Santaella (2004, p. 19), são:

 leitor contemplativo, meditativo: da idade pré-industrial; o leitor da era do livro impresso e da imagem expositiva, fixa;

 leitor movente, fragmentado: é o leitor do mundo em movimento, dinâmico, mundo híbrido, de misturas sígnicas, um leitor que é filho da Revolução Industrial e do aparecimento dos grandes centros urbanos. O homem na multidão. Esse leitor, que nasce com a explosão do jornal e com o universo reprodutivo da fotografia e do cinema, atravessa não só a era industrial, mas mantém suas características básicas quando se dá o advento da revolução eletrônica, era do apogeu da televisão;

 leitor imersivo, virtual: esse tipo de leitor é aquele que começa a emergir nos novos espaços incorpóreos da virtualidade.

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Depois de apresentar essa base de reflexão sobre a complexidade do ato de ler e seus elementos, abordo como a leitura contribui para a construção da subjetividade do leitor.

2.3 A PRÁTICA DA LEITURA: CONSTRUÇÃO/RECONSTRUÇÃO DO SUJEITO

A leitura tem o poder de despertar em nós regiões que estavam até então adormecidas. Tal como o belo príncipe do conto de fadas, o autor inclina-se sobre nós, toca-nos de leve com suas palavras e, de quando em quando, uma lembrança escondida se manifesta, uma sensação ou um sentimento que não saberíamos expressar revela-se com uma nitidez surpreendente. (PETIT, 2008, p. 7).

A citação acima mostra como a leitura mexe com as emoções do sujeito. A forma como o escritor usa as palavras para tocar o leitor contribuem na constituição da subjetividade do leitor. São os escritores que usam as palavras para dizer o que há de mais íntimo em nós, como às vezes acontece conosco quando estamos lendo um livro, “este livro parece que foi escrito para mim”. São as leituras que revelam as pessoas que leem algo que estava oculto, o leitor identifica-se com o texto. Segundo Petit (2009, p. 266), “os livros são hospitaleiros e nos permitem os exílios de que cada vida é feita, pensá-los, construir nossos lares interiores, inventar um fio condutor para nossas histórias, reescrevê-las dia após dia”. Assim, a prática da leitura é uma experiência singular na vida de cada leitor.

A prática de leitura tem capacidade de transportar o leitor para outros lugares, outros mundos, sem o leitor sair do lugar. Nesse sentido, ela está sendo incentivada aos detentos das penitenciárias, que através da leitura podem ultrapassar os muros dos presídios e habitar outros lugares, outras paisagens, conhecer outras culturas e outros povos. Martha Medeiros, em uma reportagem publicada no jornal Zero Hora, com o título Livro, um alvará de soltura, destaca a importância da leitura para os detentos de penitenciárias federais, que ao ler poderão ter suas penas diminuídas: “a cada publicação lida, a pena será diminuída em quatro dias, de acordo com a Portaria 276 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). No total a redução poderá chegar a 48 dias em um ano, com a leitura de 12 obras” (MEDEIROS, 2012, p. 34). Para demonstrar que leu, o detento precisa elaborar uma resenha da obra lida. Por acreditar que a leitura pode transformar a realidade e os sentimentos desses sujeitos que estão em outro mundo que não é o seu, a reinclusão destes na sociedade pode se dar através destas leituras, que permitem construção/reconstrução dos sujeitos. A autora ainda aponta:

Leitura = liberdade ao alcance. Não é preciso ser criminoso para estar preso. O que não falta é gente confinada na ignorância, sem saber como escrever corretamente as palavras, como se vive em outras culturas, como deixar o pensamento voar. O livro é um passaporte para um universo irrestrito. O livro é a vista panorâmica que o presídio não tem, a viagem pelo mundo que o presídio impede. O livro transporta, transcende, tira você de onde você está. (ibidem, p. 34).

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A leitura proporciona um momento para que o sujeito pare para pensar em si, na sua vida. A leitura oferece ao leitor a oportunidade de refletir sobre suas atitudes, um encontro com o seu interior para poder reorganizar-se. Para Petit (2009, p. 141), “a leitura favorece as transições entre corpo e psiquismo, dia e noite, passado e presente, dentro e fora, perto e longe, presente e ausente, inconsciente e consciente, razão e emoção. E entre eu e os outros”. Por isso, na sala de aula, a prática da leitura – a partir de histórias, por exemplo – ajuda a resolver muitos conflitos que acontecem com os alunos. Através da magia das palavras e do faz de conta, esses alunos vão se construindo para conviver em sociedade. É na adolescência que essas práticas se tornam importantes, como assevera Petit (2008, p. 79):

O papel da leitura na construção de si mesmo é particularmente sensível na adolescência e na juventude, pode ser igualmente importante em todos os momentos da vida em que devemos nos reconstruir: quando somos atingidos por uma perda; uma angústia, seja por um luto, uma doença, um desgosto de amor, o desemprego, uma crise, todas as provas que são constituídos nosso destinos, todas as coisas que afetam negativamente a representação que temos de nós mesmos, o sentido de nossa existência.

Essa construção de si mesmo está na íntima relação que o sujeito estabelece com o livro. A prática da leitura das obras literárias, na composição com a estrutura da linguagem, permite ao sujeito essa construção. É o que acontece com clássicos como os Contos de

Grimm: são livros com histórias muito antigas, mas também atuais, que passam de geração

em geração. Minha avó os lia para mim, eu lia para os meus filhos. Com certeza já lemos muitas vezes essas histórias, nelas encontramos um pouco de nós mesmos, temos um pouco de Cinderela, um pouco de Branca de Neve. Essas leituras permitem ao leitor a leitura de si mesmo e do mundo à sua volta.

A capacidade de prática da leitura ou a falta desta pode ser fator de inclusão/exclusão. Para Petit (ibidem), a ausência das palavras escritas causa um abismo cultural. Na escola percebem-se os alunos que não dominam o ato de ler: quando são chamados a ler, negam-se, sentam-se no fundo da sala de aula, escondendo-se para que ninguém os veja, sentem-se excluídos do mundo letrado. Segundo Petit (ibidem, p. 72), “o que determina a vida dos seres humanos é em grande medida o peso das palavras, ou o peso de sua ausência”. Não me refiro aqui à decodificação das palavras, mas à leitura proficiente que esses alunos não realizam.

A prática da leitura é um ato individual e significativo a todo sujeito. A cada leitura, ele amplia o seu capital cultural, se modifica e passa a fazer parte de uma sociedade em que o conhecimento oferece mais e melhores oportunidades profissionais a quem domina a arte de ler, e assim se distingue do outro. Nesse sentido, a prática de leitura também contribui para a formação de uma identidade coletiva. Assim, os alunos não proficientes na leitura estão

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excluídos da ampliação de mundo que o sujeito elabora a partir das leituras que realiza. Após a prática de leitura, geralmente o sujeito já não é mais o que era ou pensava antes dessa leitura; algo mudou em si mesmo. Os alunos que não têm o hábito de ler apresentam dificuldades em todas as disciplinas, não só nas linguagens, mas também nas disciplinas em que são realizados cálculos.

Petit (2009, p. 284) complementa:

A literatura em particular, sob todas as suas formas (mitos e lendas, contos, poemas, romances, teatro, diários íntimos, histórias em quadrinhos, livros ilustrados), fornece um suporte notável para despertar a interioridade, colocar em movimento o pensamento, relançar a atividade de simbolização, de construção de sentido, e incita trocas inéditas de conhecimento.

Para ler, utilizamos a língua, que é o instrumento de comunicação. O acesso a essa língua, tanto falada como escrita, define a posição do sujeito na sociedade, mas também pode representar uma barreira social. Certa vez, percebi que no caixa eletrônico de uma agência bancária estavam várias pessoas – mulheres e homens com idades entre 50 e 60 anos – em uma fila, a esperar pela funcionária da agência para sacar dinheiro, porque não sabiam realizar essa ação, para qual precisariam saber ler. Essa situação evidencia que tais sujeitos sempre estarão em situação de dependência de alguém que domina as palavras e a leitura para realizar atividades simples, como sacar dinheiro. É como explica Petit (2008, p. 70):

Todas as pessoas, do campo ou da cidade, pensam que sem uma certa destreza no uso da língua não existe uma verdadeira cidadania. E que o iletrado é aquele que sempre necessita de assistência. Aquele que, também, ao dispor de poucas palavras, poucas expressões, é o mais frágil diante dos demagogos que fornecem respostas simplistas.

Conhecer as palavras e saber usá-las emancipa o sujeito, permite a ele pertencer a uma sociedade e nela poder atuar, como aponta Petit (ibidem, p. 66): “a palavra é algo muito importante; [...] aquele que domina a escrita é necessariamente alguém que registra na memória sua experiência de vida e pode transmiti-la”. É o leitor, então, quem atribui sentido ao que lê, que compreende o que lê e que se transforma ao ler. No entanto a leitura pode acontecer de várias formas. O leitor lê não só as palavras, mas a leitura nos remete a infinitas dimensões:

Leitores de livros, uma família em que eu estava entrando sem saber (sempre achamos que estamos sozinhos em cada descoberta e que cada experiência, da morte ao nascimento, é aterrorizantemente única), ampliam ou concentram uma função comum a todos nós. Ler as letras de uma página é apenas um de seus muitos disfarces.

– o astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais;

– o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa de modo a protegê-la das forças malignas;

Referências

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