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Mauro Guilherme Pinheiro Koury

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Academic year: 2021

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury

"Pois é, terminei falando bobagens para o senhor que pediu para ouvi-las. E foi o senhor que começou com essa história das fotos... Só não sabia que elas foram a nossa vida comum, não é? E que ainda continuam sendo. Só que agora com um ponto final. A foto do sorriso altivo e feliz dela. A nossa vida em comum continua através do sorriso dela... . Do sorriso do dever cumprido dela ... o senhor entende? ...".

A fotografia como organizador de códigos de conduta e de orientação, e como busca de controle dos espaços cotidianos de uma vida em família, é o que se pretende discutir neste ensaio. Tem por base uma entrevista realizada em 19981, com um senhor de oitenta e cinco anos de idade, na época da entrevista, que estava em trabalho de luto pela morte de sua esposa, com quem tinha vivido por mais de sessenta e cinco anos.

Apesar do objetivo central da entrevista ter sido o luto vivido pelo entrevistado, a fotografia e principalmente a reordenação da vida em comum através dela, permitiu ao mesmo elaborar para o entrevistador as formas pelas quais se processavam o seu trabalho e vivência do luto e da introjeção da morte de sua esposa. Através das fotografias foi possível entrar em um ambiente de criação exclusivo de um movimento de cristalização de um núcleo familiar.

Adentrar no ordenamento lógico e organização específica desta criação, propostos e desenvolvidos pelo casal, sob o comando da mulher, que cobre todo o processo de vida comum, desde o casamento até a morte da esposa.

Trabalho apresentado no Seminário Temático A Produção, a Leitura-Recepção e os Usos da Imagem em Ciências Sociais do XXVI Encontro Anual da ANPOCS, outubro de 2002.

 Coordenador do GREI – Grupo Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa em Imagem e do GREM – Grupo de Estudo e Pesquisa em Sociologia da Emoção do Programa do Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.

1 Entrevista realizada na cidade de Aracaju, Sergipe, para o projeto Luto e Sociedade, do GREM, sob a coordenação do autor.

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Este movimento de cristalização tem a ver com os dois sentidos latentes contidos no termo. De um lado, de solidificação e reforço daquilo que se quer visível, enquanto lembrança íntima e ao mesmo tempo pública, de exposição, de uma vida comum. De outro lado, no sentido dado por Stendhal (1993, pp. 12 a 14 e p. 280) de encantamento, de idealização ou de solução imaginária, que fundamenta os valores e os aspectos de singularização dos significados mais importantes da vida em comum que se quer reter. Repetidos atos através dos quais se permite construir pontes que levam a percepção de todas as construções realizadas e das perfeições erigidas, pelo casal, nos detalhes mais significativos do processo vivido, que se começa e se quer reviver e manter.

Construções e perfeições erigidas e nomeadas, para o casal em si mesmo e do casal para os demais membros da família e do circulo social mais amplo, do que há de eterno na relação, segundo o entrevistado. Cristalizações que advogam e ao mesmo tempo evocam as trilhas percorridas e que fornecem o fundamento do casal, de sua história comum e, ao mesmo tempo, particular de cada um dos envolvidos. Ao falar do seu luto revela: "Tenho falta dela no físico. De ficar de mãos dadas. Do chá que ela sempre vinha trazer para mim. Do agasalho que ela sempre trazia, cuidado e cheiroso. Mas isso são coisas da matéria. O eterno ficou. A minha história com ela está aqui, dentro de mim e nesta sala. E eu vivo tranqüilo".

É este sentido de eternidade que se pretende explorar neste trabalho. A configuração específica expressa no sentido declarado de "minha história com ela", presentificado pelo entrevistado, e que o permite viver tranqüilo, por tê-la como apropriação em seu interior (dentro de mim) e no exterior (nesta sala). Local onde se encontram afixadas as fotografias codificadoras das verdades satisfeitas ou elegidas como memória da vida comum de um casamento de mais de meio século2. Locus através do qual interior e exterior se reportam continuamente em evocação de um passado que se quer manter, e na sua cristalização.

2 É um texto sobre fotografias mas sem as fotografias ou fotografias da sala de fotografias, que permitiriam uma leitura mais ampla do caso trabalhado. Ao final da entrevista foi perguntado se poderia fotografar a sala e as paredes com o conjunto fotográfico nela ordenado. O entrevistado negou com as seguintes palavras: "Não. Por favor. O senhor me perdoa mas aqui está a minha intimidade. O que eu já falei diz tudo, não tem o que fotografar, ofenderia a ela e a mim". O que foi compreendido pelo entrevistador e, agora, se espera a compreensão dos leitores possíveis deste texto.

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O permite viver tranqüilo, também, por ter finalizado com a fotografia de sua esposa, - uma fotografia onde ela se apresenta jovial e feliz, - o recorte de memória de suas vidas em comum. O álbum afixado nas paredes da sala, iniciado por sua esposa e por ela acrescentado e corrigido durante toda a vida, e acompanhado por ele como um coadjuvante, foi pontuado como ato final na afixação da última fotografia por ele, após as exéquias de sua esposa, e no auge do seu sofrimento pela perda recente.

Agora a sala, como que um templo, guarda as recordações e acende e acalenta a memória de sua vida com ela, do seu casamento, da construção da família, da chegada de filhos, de netos, de nascimentos, comemorações diversas e mortes. Vida em comum compactuada, mas construída enquanto álbum ou sala de fotografias, enquanto momentos a serem referenciados como significativos para a vida do casal, por e através dela, a esposa.

Vida em comum solidificada enquanto história com ela e que ganhava a cada dia o sentido de novidade e de permanência por ela. Agora palco do eterno, dos elementos distribuídos, ordenados, codificados, afixados nas paredes e internalizados dentro de si. Solidez da construção imaginada dos momentos que singularizaram a vida em comum e que cristalizaram possibilidades de encantamento que tornam possíveis as lembranças, não do real mas da construção desejada e objetivada de uma realidade vivida em comum, enquanto perfeição, isto é, enquanto a vida do entrevistado com sua esposa e por ela.

Lugar de memória do conjunto da vida comum estabelecida a partir do casamento e condicionada na afixação do conjunto fotográfico, no dia a dia de sua construção como paredes-álbum e como tecelagem da vida da família em cotidiana elaboração. Lugar de inteireza e de busca de integridade de um sentido de vida comum presente nos códigos da construção fotográfica e de sua disposição nas paredes da sala.

Ordenamento disposto dos momentos significativos de uma comunhão elaborada no universo do casamento, e dos valores estabelecidos como verdades deles dois, que agora satisfaz também a verdade dele próprio, o entrevistado. O olhar, ao revisitar as paisagens da memória além do registrado em cada foto e aquém do mostrado pelo conjunto do álbum disposto nas paredes da sala, revigora e reatualiza os códigos de sua elaboração e os sentidos atribuídos à codificação enquanto encantamento e solidez, enfim, enquanto cristalização.

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A sala de fotografias tornou-se assim, após a morte da esposa, o canto preferido do entrevistado, como já parecia o ser antes, só que lugar dos dois e de sua união. O lugar onde se sente inteiro em sua repetições e captações de gestos, de atitudes, de tempos e espaços ocupados por toda uma vida, que lá estão em permanente ebulição e presença. Que flui e presentifica a memória de uma vida, enquanto necessidade de rememoração e apreensão do sentido comum que objetivou a sua vida com sua esposa e o fez pessoa na instituição familiar com ela e por ela construída.

Fora de lá, se sente um pouco como deslocado do seu lugar de fala, repetindo estórias e casos que os outros, e os filhos principalmente, já estão cansados de ouvir. Em suas palavras: "meus filhos às vezes se preocupam pela minha cisma de ficar no meu canto. Mas eles devem no fundo entender, ou entenderão mais tarde. Se eu falo só digo coisas de velho, repetições, estórias que eles já ouviram. Eu prefiro ficar aqui, com as minhas lembranças e com a nossa vida".

Este trabalho, deste modo, pretende compreender os processos de memória e como são construídos e constituídos no cotidiano. Tem como elementos de análise o trabalho de luto vivido por um homem idoso pela perda de sua esposa e a construção fotográfica, a partir de uma sala de fotografias. Lugar, segundo o entrevistado, que contém os códigos norteadores de apreensão de sua existência e de sua esposa enquanto vida em comum e enquanto construção familiar e, principalmente, enquanto ele, não como indivíduo singular, mas como pessoa constituída e conformada na instituição família.

A Sala de Fotografias

Antes de iniciar a apresentação das fotografias e da sua organização nas paredes da sala de fotografias, é importante relatar a forma pela qual a entrevista se fez. Após o entrevistador ser introduzido na casa e na sala onde se encontrava o entrevistado, e depois dos cumprimentos formais de ambas as partes, e antes mesmo da apresentação mais ou menos elaborada na cabeça do entrevistador sobre o processo de entrevista, o entrevistado afirma, sem meias palavras: "Eu só concordei falar com o senhor porque o senhor foi gentil pelo telefone. Não gosto muito de falar de mim, dos meus sentimentos, com ninguém. Nem com a minha

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mulher, quanto mais com um estranho. Fiquei pensando em declinar da conversa mas resolvi enfrentar, se achar que eu devo parar eu paro".

A partir desta afirmação, perguntou ao entrevistador se concordaria em finalizar a entrevista quando ele, o entrevistado, assim o quisesse. Dito pelo entrevistador que concordaria, o entrevistado solicita: "Bom, já que o senhor concorda, me fale primeiro um pouco do seu trabalho. O que é que o senhor quer de fato fazer com toda essa conversa sobre luto e sobre o meu luto em particular?"

Foi explicado o objetivo da pesquisa. Ele ouviu atentamente e depois falou, seco, "então, pode começar". Embora um pouco sem jeito pela surpresa do "pode começar", de forma tão abrupta, teve início a entrevista.

O roteiro original foi deixado de lado e a entrevista iniciou com uma conversa mais informal, onde se tentava ganhar a confiança do entrevistado. Em busca de adentrar no universo do entrevistado, a conversa teve início pelo encantamento do entrevistador do lugar onde se encontrava realizando a entrevista.

O lugar era uma sala grande, fechada por uma porta de vidro e madeira de quase igual extensão a um dos lados. Uma verdadeira preciosidade de móveis e peças antigas, e de fotografias pelas paredes, desde pequenas fotos três por quatro até ampliações de bom tamanho. Todas com molduras simples ou elaboradas e afixadas como se obedecessem a um critério qualquer que não o estilístico.

A primeira pergunta, assim, foi sobre as fotos. O entrevistado sorriu, começou a explicar, e a entrevista teve início. O santuário, ou o álbum de fotografias disposto pelas paredes da sala, não apenas serviu de introdução à conversa, mas adentrou pelos meandros da construção simbólica da vida em comum do entrevistado com sua esposa, da construção da família, dos tempos familiares, dos sentidos de vida atribuídos pelo entrevistado, do seu sofrimento e processo de luto após a morte de sua mulher.

O entrevistado iniciou a sua narrativa introduzindo o entrevistador ao conjunto de fotografias dispostas na sala onde se realizava a entrevista. "As fotos, se o senhor reparar bem tem um sentido cronológico. Do mais antigo ao mais novo. E se o senhor reparar melhor, o mais antigo e o mais novo não tem a ver com o retrato mais velho ou mais recente, e sim com uma cronologia pessoal, de cada membro. E se o senhor quiser enxergar verá que elas mudaram de lugar

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com o passar dos anos. Cada fotografia recente de um mais antigo fazia todas as outras descerem e se reorganizar a ordem existente. Essas paredes nunca foram pintadas, estão com as marcas de cada quadro, daqueles que ficaram por cima e daqueles que ultrapassaram ou não as marcas anteriores, ocupando o novo lugar".

De forma didática, o entrevistado começava a situar o entrevistador na lógica da construção em que se elaborou ao longo dos anos a sala de fotografias. A primeira fotografia presa na parede na verdade são duas, emolduradas em um mesmo caixilho. Um rapaz e uma moça, de aproximadamente dezoito anos, representando o futuro marido e a futura esposa, um pouco antes de se conhecerem e namorarem. A segunda fotografia afixada pela esposa na parede são os noivos ladeados pelos pais de cada um. A terceira fotografia revela os noivos no altar, no momento final do enlace matrimonial. Uma série de dez fotografias ordenam momentos da lua de mel, o retorno a Aracaju, a casa onde iriam morar durante toda a vida, e o primeiro ano do casal.

A seguir, encontra-se afixada uma moldura de bom tamanho com seis fotografias que mostram o prolongamento da gravidez da esposa do primeiro filho.

Nestas, apenas uma tem o entrevistado presente, com uma mão como que acariciando o futuro filho gerado no ventre de sua mulher.

A partir de então, todas as demais fotografias afixadas nas paredes da sala retratam a chegada, o cotidiano e o crescimento dos filhos. Menos a última, presa à parede um pouco depois do falecimento da esposa do entrevistado, por ele.

Uma fotografia colorida de uma senhora bem maquiada, bem vestida, com um olhar sonhador e como que perdido em algum ponto distante e ausente do recorte fotográfico, mas denotando segurança, confiança e amor na e pela vida.

Esta fotografia fecha o álbum fotográfico disposto nas paredes da sala.

Seria, segundo o entrevistado, a última fotografia a ornar o ambiente, coroando, pontuando e terminando uma seqüência temporal e espacial de uma vivência em comum.

Esta finalização do álbum-paredes, a escolha desta fotografia específica e não de outras possíveis da esposa, será tratada em uma sessão específica deste ensaio. Nesta apresentação serve para referenciar o término de um trabalho e a sua configuração final em sala-templo, em local de contemplação e rememoração.

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Em espaço de encantamento e reforço de sua integridade enquanto pessoa e enquanto casal.

O primeiro conjunto fotográfico até as primeiras fotos com a chegada do primeiro filho e os dois primeiros anos de sua existência, foram aquelas que nunca foram retiradas de suas posições e distribuição originárias. A partir do nascimento do segundo filho, as fotografias são recolocadas e assumem novas posições e distribuição nas paredes, segundo o crescimento e desenvolvimento de cada filho.

É esta distribuição espacial e temporal que se prende o entrevistado longamente, querendo de forma didática repassar para o entrevistador as formas de apreensões cristalizadas nos códigos organizadores de cada subconjunto fotográfico. Subconjuntos que parece estabelecerem-se de forma autônoma, tornando independente cada organização, mas, e ao mesmo tempo, submetendo esta independência à lógica do conjunto total de fotografias dispersa pelas paredes da sala.

"As fotos, se o senhor reparar bem, tem um sentido cronológico. Do mais antigo ao mais novo ", informa o entrevistado ao entrevistador. Neste momento, busca estabelecer uma ordem temporal, uma cronologia, na distribuição espacial do conjunto da mostra fotográfica. Informa o olhar do entrevistador e as formas que deve nortear este olhar para a compreensão do resultado da disposição das fotos na sala de fotografias.

Do antigo ao mais novo, quer significar, deste modo, que a afixação de cada fotografia representou um momento específico na vida do casal. Deles em separado até o casamento e os diversos estágios de reprodução com o nascimento dos seis filhos que tiveram ao longo da vida em comum.

A organização geral, assim, segue o nascimento de cada filho. O primeiro, o segundo, o terceiro, ao sexto. Do antigo, ou seja, das bases de formação que deu origem ao casal, ao mais novo, isto é, ao último filho gerado. Esta é a lógica que o olhar deve se submeter, se quiser compreender na observação do conjunto o projeto executado no cotidiano fazer-se do álbum-paredes, pela esposa, e pelo entrevistado, como co-participante, mas, como informa, coadjuvante da constituição simbólica da mostra, embora prisioneiro encantado dela.

Após submeter o olhar do entrevistador à totalidade do conjunto fotográfico e a seqüência coerente, regular e necessária do formato das disposições de cada

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foto nas paredes, enquanto organização de uma história de vida, ou de momentos significativos que permitem adentrar-se nesta história do casal, o entrevistado passa a revelar uma segunda possibilidade de leitura. Presa e dependente da primeira, é verdade, mas que ganha autonomia própria na história particular de cada filho em crescimento.

Esta outra seqüência, a que o olhar observador deve se acostumar, está ligada a um ordenamento de uma história singular, no interior da história geral do casal. Ao apresentar esta nova idéia, por trás da organização do álbum disposto nas paredes da sala, o entrevistado informa: " ... se o senhor reparar melhor, o mais antigo e o mais novo não tem a ver com o retrato mais velho ou mais recente, e sim com uma cronologia pessoal, de cada membro ".

Esta nova viagem permite o olhar observante acompanhar o desenvolvimento de cada filho, do nascimento, das festinhas de aniversário, da formatura ao casamento, o nascimento dos filhos dos filhos, o desenvolvimento de cada neto, bem como, descasamentos, novos casamentos, acontecimentos felizes e mortes, sempre relacionados a cada filho e a cada neto.

Os pais, ou seja, o marido e a mulher que mantém a sala-álbum de fotografia, passam a ser coadjuvantes nas fotos dispersas e afixadas pelas paredes. Os filhos e os netos ganham então a primazia da mostra.

Myriam Lins de Barros (1987), em sua tese de doutorado, discute a família brasileira de classe média, na cidade do Rio de Janeiro, tendo como foco os avós.

No seu trabalho demonstra como a trajetória de vida de um casal vai mudando e conformando-se pouco a pouco a partir do momento da opção pela reprodução e chegada dos filhos e, posteriormente, com a chegada dos netos. Afirma que estes novos momentos não aniquilam a vida individual de cada membro da relação conjugal, isto é, marido e mulher, mas são momentos de revisitação singular do compromisso de cada um com as novas fases da constituição da família, de referenciar-se através dos espaços abertos aos filhos e netos no processo do seu crescimento e autonomia.

O casal não fica prisioneiro de sua prole, por assim dizer, mas sua vida transmuda-se para novas formas de apreensão do real vivido familiar. As referências pessoais do eu e do nós passam a ser direcionados para uma subsunção a este nós ampliado, e os significados de realização também se

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ampliam e passam a estender-se para os projetos de realização dos filhos e netos.

Embora fonte de tensão e conflito, analisado, por exemplo, por Salem (1980) e Velho (1978), as relações entre pais e filhos são prenhes de significados de trocas sociais gratificantes. Para os pais, principalmente, cheias de cuidados e interesses pelos projetos de realização dos filhos, estas relações, muitas vezes, se transformam em sentido do núcleo familiar, tanto no sentido de perpetuação biológica e reprodução social (SALEM, 1980, p. 189), quanto no sentido de ascensão social. Ambos os aspectos revestidos no caráter de afetividade e de relações de troca afetivas.

Não é o propósito deste ensaio trabalhar com as questões de tensão e conflito, ou de produção de ajustamento e equilíbrio nas relações entre pais e filhos, nem mesmo discutir a questão da família moderna de classe média e alta no Brasil, para isso remete-se os leitores para autores que trataram a questão mais detidamente, como Salem (1980, 1980a), Lins de Barros (1978), Velho (1978 e 1983), Fukui & Bruschini (1981), Bruschini (1990), entre outros. A referência à questão é significativa, aqui, porém, para informar o papel dos filhos e seu crescimento na composição da memória de uma família nuclear, enquanto projeção dos pais e busca de retenção do que se quer guardar para a lembrança futura, do que se construiu.

No caso do álbum-paredes estudado e a sua composição, este elemento da memória que se quer reter, através da fotografia, é significativo. A história fotográfica dos pais torna-se secundária, a partir do momento do nascimento do primeiro filho, e na seqüência dos demais nascimentos. Este fato é assumido pelo entrevistado, que chama atenção do entrevistador para os primeiros registros da sala-álbum, e para o planejamento e caráter da organização geral da mostra.

Pergunta o entrevistado, logo respondendo a sua própria questão, didaticamente, tentando treinar o olhar do pesquisador para o sentido norteador da composição do conjunto fotográfico disposto nas paredes da sala de fotografias: "O senhor reparou que a primeira foto, a de lá de cima, sou eu e ela em retratos separados? Depois vem ela e eu no dia do nosso casamento até a primeira gravidez da minha mulher. Depois são os filhos. A gente aparece de vez em quando porque flagrados com os filhos, mas não somos nós que a organização revela. São eles, os nossos meninos e meninas ".

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Os pais, daí em diante, são fotografados secundando os filhos e, posteriormente, os netos. Aparecem nas fotografias, desde então, seja como apoio, como cuidados ou, ainda, como presentes nos momentos significativos do crescimento da prole: aniversários, primeiras comunhões, formaturas, casamentos, ou em datas específicas como natal, ano novo, São João, carnaval, e outras tantas.

São os filhos e os netos que são mostrados, como que tornando palpável a evolução e os ganhos (algumas vezes também, as perdas3) da construção familiar, dos laços de consolidação e perpetuação da família enquanto bem simbólico. Moreira Leite (1993) e Lins de Barros (1989), em seus estudos sobre família e memória através dos álbuns de fotografias, revelam também este aspecto familiar de demonstração pública dos filhos, nas e pelas fotografias, sendo nelas secundado pelos pais. Cito aqui Lins de Barros (1989, p. 40) que sintetiza o momento e o fato tratado da fotografia dos filhos e netos: "A cena fotográfica expõe a criança, conferindo-lhe um lugar de absoluta centralidade".

Seja em cenas onde a criança permanece imóvel, posando, como na maioria das fotos dos filhos do casal em crescimento, seja nas fotos onde a criança é tomada em movimento, como nas fotografias mais recentes, envolvendo os netos.

Tanto no primeiro formato, quanto no segundo, as fotografias expostas revelam as crianças, sozinhas ou sendo secundadas, como fonte de apoio, enquanto bebês, ou como complemento ao cenário, pelos pais. Mesmo adultos, os filhos, nas fotos presas nas paredes da sala de fotografia, ganham primazia em relação as fotos dos pais. São os momentos galgados em cada estágio da vida pelos filhos que interessam eternizar no álbum-sala.

A história familiar passa a ser a história dos filhos e seu desenvolvimento.

Parecem apresentar o projeto familiar em se fazendo, como desejo realizado e

3 Tania Salem (1980) fala sobre o sentimento de perda dos pais quando da autonomia dos filhos.

A formatura e o espaço profissional dos filhos, a saída de casa, o casamento, entre outros momentos simbólicos do processo de individuação da prole, são sentidos pelos pais como perda emocional, para a autora, pelo afastamento que provoca em relação ao controle por eles exercido. Embora sejam também momentos simbólicos repensados como alianças (VELHO, 1983) com novas famílias e novos estratos societários da família, através dos espaços galgados pelos filhos, bem como de alargamento familiar, com a chegada dos netos. Além do sentimento de perdas, como as anunciadas acima, que indicam a autonomia dos filhos e a chegada da idade adulta, fase também esperada e encarada como ganho pelos pais, existe também o sentimento de perda retratada, através da morte de um ou mais filhos. No caso do álbum em questão, a fotografia de um dos filhos, morto em um acidente, tirada durante o seu

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alcançado, apesar de alguns deslizes (por exemplo, descasamentos e mortes), mas retomados e refeitos no interior de um ideário projetivo familiar, eternizado nas fotografias, do casal.

As fotografias presas nas paredes da sala, a partir do nascimento do primeiro filho, tornam-se, assim, na disposição projetiva da organizadora do álbum-sala, segundo as palavras do entrevistado: "uma cronologia pessoal, de cada membro".

Na exposição didática do entrevistado para o entrevistador, tentando passar os códigos norteadores do olhar para apreensão do conjunto fotográfico ali disposto, indica um terceiro momento de visualização da gestão organizadora da mostra. Informa o entrevistado: "E se o senhor quiser enxergar verá que elas (as fotografias) mudaram de lugar com o passar dos anos. Cada fotografia recente de um mais antigo fazia todas as outras descerem e se reorganizar a ordem existente".

Esta era a forma de garantir a "cronologia pessoal" de cada filho e de cada neto. É bom frisar, aqui, que as fotos dos netos são acrescidas segundo a ordem cronológica de nascimento por filho ou filha específicos que se tornaram pai e mãe. Assim, cada filho de um filho ou de uma filha entrava na seqüência lógica daquele filho ou filha específico. Uma continuidade dos seus filhos, que passariam, por sua vez a figuras de segundo plano no cenário armado de cada foto de seus filhos revelada, doada aos avós e destinada as paredes-álbum.

Esta lógica de continuidade cronológica por filho, na organização do álbum, faria, no decorrer do tempo, no momento em que uma nova fotografia fosse fixada, mudar o lugar das demais já dispostas, e pertencentes a outros filhos e netos. Com o passar dos dias, dos meses e dos anos, o álbum ganhava novo formato, mudando de lugar todo um conjunto de fotografias abaixo da ordem cronológica desejada, por filho, no acrescentar de uma nova foto à parede. Uma ordem, ou ordenamento, em constante atualização e revisão, como a vida familiar na sua extensão de cada filho e de cada passo dado por este, seja profissional, seja no casamento, seja nos diversos estágios de procriação de cada um deles.

O mesmo se fazendo a cada neto, filho de cada um dos filhos.

velório, é mostrada como o final da trajetória deste filho, simbolizando o sofrimento eterno do casal. Como a última foto dele junto a família.

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Cada novo filho de um filho, bem como cada momento da evolução e conquistas sociais de cada neto, por filho, modificada a ordem disposta pelo conjunto da fotografia, na cronologia daquele filho, como uma sub cronologia autônoma do desenvolvimento de cada neto.

Eterno recomeço na busca de aproximação da extensão e crescimento familiar conseguido ou dos passos conquistado pela família como um todo, a partir do núcleo familiar básico, que o casal deu origem. Recomeço que deixava suas marcas no movimento contínuo do deslocamento das fotos para a colocação de uma nova, dentro da ordem cronológica proposta pela realizadora do álbum, a mulher do entrevistado. Por uma opção do casal, por solicitação da esposa, segundo o entrevistado, "(as) paredes nunca foram pintadas, estão com as marcas de cada quadro, daqueles que ficaram por cima e daqueles que ultrapassaram ou não as marcas anteriores, ocupando o novo lugar".

A opção por não atualizarem a pintura da sala-álbum, de manterem as marcas do deslocamento continuado das fotos, por se só é significativo. E o entrevistado chama a atenção do entrevistador para o fato. "É uma organização curiosa que minha mulher organizou e passava o tempo inteiro arranjando e rearranjando as fotos como se elas pudessem indicar os momentos individuais de cada um querido ali representado".

Assim, como rituais de passagem (VAN GENNEP, 1978), as marcas deixadas pelo deslocamento contínuo das fotografias parecem afirmar continuamente o valor dado à família, sua organização, expansão e conquistas, como um bem inalienável. Bem como ao movimento familiar em sua fase de crescimento, expansão e conquistas, ou mesmo finalizações, como no caso da morte do filho e do final de casamento de dois outros, e recomeços, como no fato do novo casamento de um dos descasados.

As marcas nas paredes do álbum-sala induzem o olhar para o movimento das fotos, mas também e, principalmente, para a estabilidade familiar e sua consolidação, que o movimento das fotos agendam e demonstram. As marcas nas paredes, assim, são como as marcas da maturidade de cada estágio galgado pela família, a partir do núcleo originário de sua criação.

São as marcas das marcas do processo de maturidade. Importantes, então serem deixadas, na composição de um álbum-sala, porque registram o movimento de maturação que precisa ser vista e eternizada como um valor, como

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um bem simbólico de representação da família, daquela família em particular.

Porque revelam o fundamento da existência, consolidação e manutenção de laços, a serem passados de geração e geração, e serem visualizados por aqueles a quem se abre a porta da sala-álbum adentrando a intimidade publicitada da memória familiar desta família em questão.

Conversas e Recordações

Após a apresentação ao entrevistador das diversas possibilidades de entendimento da lógica presente no conjunto fotográfico, e colocar na esposa o principal indutor da conformação do processo que deu origem e prosseguimento ao álbum-sala de fotografia, o entrevistado começa a discutir o seu papel nesta formação singular de sua sala de fotografias. Ao mesmo tempo que reflete sobre o seu papel e o da sua esposa, repensa também as relações entre marido e mulher e o próprio casamento, em que esteve envolvido por décadas a fio.

Segundo o entrevistado: "A organização é da minha mulher, como já venho dizendo várias vezes ao senhor mas, com o tempo, fui vendo, era também minha:

que eu tinha participação ativa nela". Fala, então, de suas atividades na

"mudança continuada dos retratos", na fixação de uma nova foto à parede, das discussões demoradas com sua esposa sobre o lugar exato de afixação na cronologia singular disposta nas paredes-álbum. Fala da retirada de todos os quadros posteriores e sua fixação após a nova fotografia, respeitando a seqüência presentificada na ordem lógica da composição, "até as nossas conversas e recordações que passavam sempre em torno delas".

Ao se colocar como ativo também na composição da sala-álbum, o entrevistado se remete ao seu casamento e a relação com sua esposa. Na configuração do seu casamento e nas metas traçadas ou não de sua realização.

Com o nascimento dos filhos e a sua importância na vida do casal, estes passam a ser a tônica principal, na visão do entrevistado, do seu relacionamento com a sua mulher.

Segundo ele: "A nossa vida em comum sempre foram os filhos. Eu e ela nunca conversávamos de forma direta sobre isso, mas sabíamos que era o que nos unia mais ". Discute a sua relação doméstica, traçando um paralelo entre a sua vida pública e a sua vida privada. Nas lembranças narradas de sua vida em

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comum, e ao realçar a importância crescente da vida dos filhos na união e consolidação do seu casamento, informa uma aparente dicotomia entre a vida doméstica e o mundo exterior.

Esta dicotomia, aparentemente, na sua narrativa, não está preenchida de uma valorização de uma esfera ou outra da vida. Indica, porém, esferas nítidas e diferenciais de sua trajetória, enquanto marido, e das mudanças havidas com o passar dos anos. O entrevistado discute o casamento através do seu ponto de vista, e nele busca desvendar o passado de sua relação e a importância do casamento e da esposa na sua vida4.

Narra as descobertas e os ajustamentos que foi realizando no decorrer dos anos de vida em comum. De acordo com o entrevistado: "O meu trabalho nunca teve importância na nossa relação. Eu era o provedor e pronto. Não trazia o meu trabalho para casa, até porque ela não deixava. Não ouvia, não se importava. O que importava era o cotidiano da casa, dos filhos crescendo, da importância deles na vida dela e, logicamente, da minha".

Ao dizer que "era provedor e pronto", o entrevistado remete a uma visão de casal onde a esposa não trabalhava fora de casa e cabia ao marido este papel.

Não há qualquer questionamento as posições formais de marido e mulher, o papel de provedor aparece naturalizado na sua fala como o que tinha que ser e foi. Como também não parece haver qualquer questionamento crítico ao fato expresso de que "o meu trabalho nunca teve importância na nossa relação ". Pelo contrário, no tom expresso pelo entrevistado, este fato parece conter a fórmula adequada de satisfação da vida em comum, do casamento com a sua esposa.

Nesta tecla irá rebater em muitas partes da entrevista, demonstrando o seu ajustamento ao lar formado, a supremacia da esposa nesta esfera e a sua aceitação, a cada dia um pouco mais, do processo em construção de sua união, sob a égide da esposa. Não que este ajustamento tenha ocorrido sem tensão.

A duplicidade da vida em duas esferas, a casa e a rua, na conceituação de DaMatta (1987) ou, a privada e a pública, na formulação de Arendt (2001), quando afirmada, mostra esta tensão, demonstra o seu papel de homem, tal

4 Não interessa a este trabalho discutir as relações homem e mulher e o papel da mulher na sociedade brasileira. Para isso se recomenda a leitura de Bruschini (1990) e de toda uma literatura a respeito do papel da mulher na família e na sociedade no Brasil. Este ensaio enfoca, sobretudo, o imaginário construído e evocado de um casamento por um entrevistado

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como acredita e formulou para si, ao mesmo tempo que afirma a sua união.

"Nunca fui santo, afirma, tive lá meus casos mas não eram importantes. Sempre o mais importante foi voltar para casa. Gostava de voltar".

Busca explicar que os conflitos interiores dos primeiros anos de casado foram se dissolvendo com o tempo. O espaço e a temporalidade doméstica, a sua organização, sob o comando de sua esposa, foram, segundo o entrevistado, crescendo de significados para a edificação de si mesmo, enquanto pessoa, e não apenas enquanto marido, a cada novo dia. Informa que o "que importava era o cotidiano da casa, dos filhos crescendo, da importância deles na vida dela e, logicamente, da minha", e acrescenta, que "no início ficava zangado com a falta de atenção. Mas depois achei que não, os filhos de fato eram os mais importantes. Eles eram nós, e aprendi a chegar até ela de novo através deles".

Fala dos primeiros tempos do casamento, cheio de crianças pequenas, e que o fazia "às vezes (ficar) enlouquecido com o barulho das crianças, as brigas por nada, o aperreio da mulher que dava num, dava no outro, me chamava de mole porque não dava em nenhum e escondia eles até da mãe quando estava braba... ". Comenta as brigas do casal, sempre em torno das crianças e do seu modo mole de com elas lidar, e a forma como sua mulher resolvia a questão: "

...ela se vingava em mim à noite".

Após cada briga, a esposa parecia fechar-se em si mesma: "era uma mulher que não conversava. Servia muda o meu jantar, ficava calada, sentada numa cadeira distante da minha até chegar a hora de irmos para a cama, e lá fechava- se nela mesma e eu não tinha acesso nem para um boa noite", diz. Mas e ao mesmo tempo, informa da renovação do dia seguinte, a retomada do cotidiano doméstico, o acompanhamento dos filhos, a reaproximação da esposa através deles: "pela manhã, a raiva dela ainda continuava só que era de descarrego".

Continua sua narrativa com ar brincalhão, lembrando o encerramento das brigas do casal: "antes de sairmos do quarto ela dizia que eu não me importava com a educação dos filhos, dava uma de bonzinho e só fazia prejudicar eles e a autoridade dela em relação a eles. O que é que eu queria? Pensava que era fácil o trabalho e a dedicação a eles? E ia assim em diante... . Eu pedia desculpa, ela

em luto pela morte de sua esposa, tendo a construção fotográfica, organizada em um álbum- paredes de uma sala, como pano de fundo.

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evitava o meu beijo, mas antes de sair para o trabalho ela acenava tímida para mim. O que significava que tudo estava de novo no normal"5.

Rememora o processo de reaproximação a cada novo desentendimento e o sentimento de inclusão que ia se achegando e ia transformando a sua vida. De vida individual em vida a dois, em vida familiar.

Fala do amor que sentia pela esposa, da falta que ela lhe faz no momento presente, após a sua morte, e de como foi domando os dois mundos em que vivia, as esferas do privado e do público, e se ajustando ao plano doméstico. "De vez do meu mundo de lá de fora, o mundo dela daqui de dentro. Aí foi ficando mais fácil. Foi ficando gostoso. A gente tinha momentos de grande intimidade nas recordações de cada momento vivido por eles e vivido por extensão por nos".

Ao buscar aproximar o entrevistador do universo familiar disposto na sala- álbum, o entrevistado rememora o cotidiano familiar e o processo de ajustamento e adequação por ele passado ao espaço privado. Relembra como o cotidiano doméstico em que vivia, com sua esposa e os filhos, foi se tornando importante na sua vida e ganhando espaço cada vez maior do seu interesse, além de despertar e acentuar a cada dia o seu amor pela esposa. Informa que "o meu trabalho era lá fora. Eu resolvia tudo correndo e vinha correndo prá cá, e se tornou bom, gostoso, confortável. Até as outras mulheres perderam importância para mim. Nunca fui santo, mas me tornei dela. O mundo dela era o meu e isso me fazia feliz, me fazia querer voltar logo, não querer sair".

Fala da cumplicidade estabelecida entre ele e a esposa, e da preocupação da esposa, em forma de birra amorosa, de sua entrada cada vez maior no mundo doméstico, do casal, que os envolvia, que solidificava, na sua opinião, a união dos dois. Lembra que chegava a esquecer o seu trabalho e que "ela (era) que me expulsava às vezes, ralhando que eu ia ser desbancado nos negócios, que os outros iam passar a perna em mim, que eu tinha que sair para ela também poder cuidar dos afazeres da casa. Para informar, com ar zombeteiro e ao mesmo tempo gratificado: "eu ia e voltava correndo".

Segundo o entrevistado, este processo de entrada no mundo doméstico, e na construção simbólica de um mundo na sala de fotografias, junto com a esposa

5 Mais uma vez é necessário afirmar que este ensaio não tem a intenção de trabalhar a questão das relações de poder no interior do espaço familiar e nem tampouco entre homem e mulher.

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foi, e continua sendo na evocação intimista de um tempo vivido, a sua vida.

Processo de inclusão que se ampliou e se estendeu de forma acelerada após sua aposentadoria. Nas suas palavras, "quando eu me aposentei fiquei com ela. E não mais saí. Os filhos casavam e iam embora, a gente tinha mais tempo prá gente e vivia todo esse tempo. A maior parte de recordações". Lembra que após sua inclusão completa, após a aposentadoria, na vida privada, o seu casamento e o amor que sentia pela sua esposa ampliou-se. Sua esposa tornou-se mais do que uma companhia e companheira: "ela saia comigo, como nunca fez antes, para ir até o banco, para ir a Igreja que eu nunca fui mas depois passei a ir com ela, para fazer compras, coisas assim. Vivemos agarrados até que ela morreu".

A Organização das Paredes-Álbum

No imaginário do entrevistado, a formação e organização da sala de fotografias sintetiza e registra os sentidos simbólicos e afetivos, segundo ele mais caros, de conformação de sua vida conjugal. O conjunto das fotografias expostas nas paredes da sala parece eternizar, na opinião do entrevistado, a confecção de uma vida em comum. O que pode e deve ser mostrado, como objetificação de um projeto familiar, e os laços invisíveis que aos poucos foram tecendo e dando forma a uma rede de significados e sensações, evocadas por ele como integrantes da reciprocidade6 experimentada na união e na conformação dele próprio como pessoa.

Vai lembrando aos poucos, na busca de tornar compreensivo para o entrevistador, o processo de organização da sala de fotografias. A origem e as formas como foram sendo organizadas as fotos nas paredes da sala, e como o local foi aos poucos se emaranhando na sua vida, enquanto espaço de construção simbólica pessoal e familiar.

Retoma, para isso, o casamento como fio condutor de sua narrativa, no intuito de revelar as linhas mestras da tecelagem que formataram e objetificaram aquela sala de fotografias, enquanto universo simbólico de constituição da união familiar específica por ele experienciada. Por ele, também, rememorada a cada

Remete-se para tal à bibliografia extensa sobre poder e família no Brasil e, em particular, à presente na bibliografia deste ensaio.

6 No sentido dado por Mauss (1974) ao termo.

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dia, e diariamente referenciada na sua condição de quase prisioneiro do álbum- paredes.

A sua vontade de não sair daquele espaço, de lá encontrar as forças para continuar a viver após o falecimento de sua esposa, levanta o problema específico do poder da fotografia sobre os processos de memória. A presentificação nas fotografias do tempo e do espaço anteriormente vividos, discutido por Barthes (1980), parece indicar um movimento de atualização permanente das lembranças e de contiguidade, no sujeito que observa, como tratado em outro trabalho (KOURY, 1998), que invadem a vida do entrevistado com recortes do passado, não de todo observáveis na atualidade das fotos expostas na sala-álbum. No seu depoimento, emocionado, o entrevistado informa que não foi de imediato, logo após o casamento, que sua esposa e ele iniciaram a construção do álbum fotográfico nas paredes da sala de fotografia. Segundo ele,

"a fixação dela (de sua esposa) nos quadros, pelos retratos dos meninos, começou já meio tarde".

Relata que "a gente tirava só de quando em vez umas fotos. Ela guardava e vez ou outra a gente repassava vendo o tempo passar com o crescer dos filhos.

Até que de repente ela viu uma moldura com uma foto na casa de uma comadre e se encantou ". Este encanto da mulher, repentino, pela possibilidade trazida da observação de uma fotografia emoldurada na casa de alguém próximo, segundo o entrevistado, mudaria por completo, no correr dos anos, a sua relação com a sua esposa e com a vida. Na rememoração dos tempos passados e que foram construindo a sala-álbum, o entrevistado parece pôr cristais, no sentido dado por Stendhal (1993), nas interpretações do vivido, dando um aspecto mágico ao processo singular de sua união e curso de vida. Estabelece relações que ultrapassam a realidade das fotos expostas nas paredes-álbum e a realidade mesma da sala de fotografias, assim como da realidade por ele vivida, dando a impressão de que a sala e as fotos nela contidas reportam o observador ao passado e as credibiliza como passado presente, tanto quanto as relações sociais estabelecidas pelo casal e pela família deles e através deles constituída.

As fotos na sala de fotografia mesclam-se, assim, entre os significados do que aconteceu, produto mesmo do objeto fotografia, no dizer barthesiano, os sentidos atribuídos e efetivados nas rememorações cotidianas sobre os acontecimentos apropriados pela e na revelação fotográfica, e a presentificação

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dos fatos acontecidos, selecionados, fixos nas paredes e consolidados na evocação da memória. O que parece renovar e acrescentar aspectos novos e sempre sentimentais ao ato da lembrança do passado presentificado. Parece, também, prognosticar um discurso de eternidade e cristalização às narrativas, aparentemente prisioneiras de um futuro do passado presente e afixado no álbum de fotografias esparramado pelas paredes da sala.

Através da constituição do álbum-sala, na formulação do entrevistado, o casal ia construindo os sentidos e significados de sua união e os projetos da vida comum, bem como acompanhando o cotidiano do crescimento de filhos e, logo após, netos. Objetificado na sala de fotografias, enfim, como exposição permanente, dia após dia, a concretização do projeto familiar.

Relata o entrevistado que, ao chegar em casa, após a visita e o encantamento, até então desconhecido por ele, da esposa sobre a foto emoldurada dos filhos da comadre, teve início a confecção do que viria a ser a sala de fotografias, no molde atual. Segundo sua narrativa: "o nosso casamento já estava na parede da sala. Ela procurou um dela e um meu e mandou emoldurar.

Aí começou, sem eu e acho nem ela saber na ocasião, a organização".

Fala da excitação de sua esposa e sua ansiedade pela chegada das molduras com os retratos encomendada. Relata os cuidados que foram sendo preparados para a chegada das fotografias: a limpeza de uma sala, uma espécie de um jardim de inverno, até então pouco utilizada pelo casal, e a implicância da esposa com o local onde estava afixado o retrato de casamento, na sala principal da residência. Rememora o revolver incessante das caixas e dos álbuns onde estavam guardadas as fotografias, a conversa sobre as melhores fotos, a separação seriada das mesmas, a insegurança sobre esta primeira escolha, o retorno das fotografias previamente selecionadas às caixas, o recomeço do processo de seleção, a procura da opinião do marido, ainda dissimulada, sobre esta ou aquela fotografia de cada filho, deles próprios.

Uma semana, segundo o entrevistado, onde não se falava na casa em outra coisa que as fotografias que dispunham do casal e dos filhos ainda pequenos.

Com a chegada das molduras encomendadas, ainda sem o entrevistado ter consciência do que estava para acontecer, tem inicio o processo de formação do álbum familiar disposto pelas paredes da sala de fotografias.

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Sala agora com pintura nova, diferente dos demais espaços da casa, de uma cor amarelo claro, segundo o entrevistado. Cor hoje indefinida, mais puxada para a cor marrom, ou cáqui, pelos mais de quarenta anos sem pintura nova, e com marcas diferenciadas em tonalidade pelo remanejar constante das fotografias para incorporação de novas, na lógica própria contida nas paredes- álbum: "eu, ela, nosso casamento e as conseqüências dele: os filhos".

Esta organização mais ampla e norteadora da formulação geral da sala de fotografias, como já foi visto anteriormente, foi se refinando com o passar do tempo e com o estabelecimento e conformação das paredes-álbum. Após a fixação das fotografias do casal antes, durante e após o casamento, para o entrevistado, começou a escolha, o emolduramento e o afixar das fotografias dos filhos do casal na sala de fotografias. Segundo ele, sua esposa inicialmente,

"procurou nas fotos uma ordem e começou a por em molduras: primeiro as melhores de cada um (dos filhos). Depois, achou melhor ver que poderia ficar mais interessante se cada um tivesse o seu espaço garantido, para vê-los crescer. Daí começou o troca-troca de fotos. Cada filho tinha uma coleção e uma continuava a outra por idade".

Narra, que no início achou um pouco estranho esta obsessão da mulher pela afixação nas paredes do até então jardim de inverno, lugar pouco usado da casa, das fotografias do casal e dos filhos. Do formato que ia tomando o álbum disposto nas paredes e, aos poucos, do uso constante, cada vez mais, de sua mulher e dele da agora sala de fotografias.

Informa que de início era solicitado, apenas, "para pregar as fotografias nas paredes" e, vez ou outra, para "confirmar a escolha de um ou outro retrato"

previamente escolhido pela esposa. Uma espécie de referendar ou confirmar uma escolha já realizada.

Com o tempo, e a passagem das horas em casa sendo quase todo tomado pelo fabrico do álbum-sala, afirma que: "eu terminei gostando. Passávamos, às vezes, noites inteiras e fins de semana inteiros, com os filhos já grandes, tomando cada qual o seu rumo, a organizar e reorganizar as paredes". Relata, deste modo, o encantamento de que foi tomado e que até hoje vigora, e faz os olhos do entrevistado ficar cheios de água, emocionado, com a sala de fotografias e como ela se tornou necessária para a construções e montagem da vida afetiva e conjugal do casal.

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Conta, também, a reação dos filhos àquela exposição permanente de fotos nas paredes do antigo jardim de inverno. De acordo com o entrevistado: "minha filha mais velha, quando começou a crescer e ficar adulta, era enlouquecida com essa coisa que ela chamava de mórbida". Perguntava o tempo todo, "como é que a mãe dela e eu só vivíamos do passado. Mas ela não entendia que, visto dali, o nosso futuro eram eles, que ali estava representado os nossos anseios e o que construímos".

A sala de fotografias, ao que parece, ao representar os anseios, a construção e o sentido de futuro do casal e do núcleo familiar dele disposto, tornou-se, ou transformou-se no passar do tempo cotidiano da sua constituição, para o entrevistado, no encaixe perfeito por onde um observador atento e qualificado poderia sentir ou enxergar os nexos discursivos e projetivos de uma vida em comum. As fotografias sentidas como duplo do real são apresentadas, na narrativa, deste modo, como o real reproduzido. Uma espécie de síntese da memória familiar, onde sentimentos, gestos e atos prisioneiros da revelação constróem redes de significados. Redes que singularizam e dão tonalidade, com intensidade que convém ou não àquele que evoca, que permanece ou não permanece (DELEUZE, 1968, p. 116), a cada movimento emocionado e de cumplicidade estabelecido entre o olhar que observa e rememora e a realidade que a foto representa.

O estranhamento dos filhos e, principalmente da filha mais velha, deste modo, feria a construção de um discurso via sala de fotografias, e para o narrador, era sentido pelo casal como agressão ou incompreensão. Informa, porém, quase em tom de desabafo, as diferenças sentidas entre ele e sua mulher no envolvimento encantado com o álbum-sala em organização permanente, que parecia estabelecer-se, pelo menos no momento da entrevista, quando da tensão entre o casal e os filhos.

Segundo ele: "eu não explicava, sempre fui de falar pouco, ou porque não tinha muita consciência disso que estou falando. Eu, até pouco tempo, só sentia, não sabia explicar". Não elaborava o sentimento que tomava conta dele na aceitação gratificada, no encantamento, que a constituição do álbum-sala provocava. Da necessidade dele, que ia tomando corpo, mais e mais, na construção das paredes-álbum sob a égide de sua mulher. Sem saber explicar

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calava, envergonhado por não saber o que dizer e agredido por não ser compreensivo para todos da família o sentido exposto da e na sala-álbum.

Finaliza as desavenças com os filhos e, principalmente, com a filha mais velha, afirmando que, se com ele passava pela falta de respostas ou em respostas evasivas, "com a mãe era um bate boca sem fim, um desentendimento que parecia só aumentar, até que ofendida, a mãe também se fechava". A confusão acabava até a próxima tirada dos filhos e, especialmente, da filha. Mas, segundo o entrevistado, "não se explicava muito, se brigava um bocado, e elas terminavam se entendendo. Os filhos achando que era coisa de velhos, fazendo birra e achando graça e tocando a vida e cada um ficando, como se diz, na sua"7.

Corta de forma um tanto quanto abrupta a narrativa onde evocava tensões no interior do núcleo familiar. Tensões que de certa forma pareciam retirar a credibilidade do discurso exposto em imagens fixas do álbum fotográfico, montado nas paredes da sala de fotografias. Discurso de consolidação de projetos, de rememoração da construção do casal e da constituição de uma família. De modo jocoso, retoma a narrativa da organização das paredes-álbum e da presença de retratos três por quatro ou cinco por oito, tirados para documentos, emoldurados e presentes na exposição selecionada daquela sala.

Segundo o entrevistado, da sala de fotografias pode-se acompanhar o crescimento dos filhos e os passos mais importantes de autonomia de cada um.

Esclarece que "quando eles cresceram não tínhamos mais o direito das fotos deles só a que eles nos ofereciam", informa, a seguir, como uma explicação sobre a presença de fotografias de origens e finalidades diversas expostas nas paredes- álbum que, "aí tem foto de três por quatro, de documento, tem de tudo". Faz uma pequena pausa e diz em tom de brincadeira: "Tem até netos. Mas os netos só quando nasciam e estavam com os filhos. Prá mostrar que eles continuavam a vida Era a coleção de nossa vida, neles ". Continua o relato mostrando que o álbum é recheado, com a aproximação da e na idade adulta dos filhos "de foto de formatura, de casamento deles, e até da morte".

7 As formas diferenciadas do olhar a sala-álbum de fotografias pelo casal e pelos filhos, parece revelar a tensão entre gerações no espaço doméstico familiar. Não se discutirá neste ensaio esta questão, embora importante e necessária ao estudo das relações entre pais e filhos na unidade familiar, sendo remetido o leitor para os estudos de Salem (1980 e 1980a), já citados.

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A Morte Fotografada

A fotografia do velório do quinto filho do casal e a do filho morto no caixão, dá o ponto final na exposição da curva de vida de um jovem de dezenove anos morto em acidente de transito8. Ao mostrar a foto do filho no caixão e circundado pelos parentes no velório, o entrevistado perde a jocosidade e rememora: "nós tivemos seis (06) filhos. Todos vingaram, menos um que aos dezenove anos morreu num acidente de lambreta. Era o quinto filho, se não me engano. Mas é fácil saber é só contar a ordem de cima para baixo que o senhor logo saberá.

De fato, era o quinto filho. Um jovem retratado com pinta de playboy dos anos cincoenta, usando uma jaqueta preta, cigarro entre os lábios e cabelo no corte de James Dean. Aponta para a foto e diz: "Está vendo aquela foto ali, foi a sua última foto em vida. Viu? É ele na lambreta fazendo pose, o senhor encontrou? O entrevistador diz que sim e inicia um comentário sobre a fotografia, o narrador corta e acrescenta de forma compulsiva: "Depois vem o retrato dos irmãos e da gente no velório, circundando o caixão, vê? E, logo a seguir, vem a última que retrata um caixão. Se o senhor olhar mal se vê o rosto e as mãos do rapaz, o restante está coberto de flores, por causa do estado que ele ficou. Foi uma foto feita à pedido. Feita a pedido da minha mulher. Não há ninguém em volta, o senhor esta vendo, vê? Só o caixão com o rapaz no seu interior".

O narrador é informado de que a sua indicação da foto do filho morto foi acompanhada pelo olhar do entrevistador. Foto triste e banal, mórbida! Como quem estivesse lendo o pensamento do interlocutor, o entrevistado complementa, colocando a foto indicada de volta ao interior da coleção de fotografias expostas na sala: "é uma foto comum, feia até, para alguém que a vê apenas de fora. De fora, quero dizer, da história que cada ordem conta de cada um dos nossos filhos, de nós mesmos".

É uma fotografia que não é para ser vista independente da história maior que deve ser compreendida. Tanto quanto as demais. O sentido não está nela, na sua morbidez, na sua feiúra, na sua tristeza e banalidade, mas na história familiar construída e referenciada como álbum fotográfico, como um álbum-sala. Lá ela é

O presente estudo se centra nas construções simbólicas de uma vida em comum, elaboradas por um entrevistado, através da relação fotografia, memória e luto.

8 Para uma discussão mais detalhada sobre a fotografia mortuária no Brasil vê Koury (2001).

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importante, necessária, de acordo com o entrevistado. Faz parte "de nós mesmos".

Faz parte da imagem projetada do plano familiar, elaborado e consolidado no cotidiano fazer-se da sala de fotografias, da vida do casal, como uma história coletiva que deve ser preservada e compreendida como uma totalidade. É o conjunto que dá significação às partes, parece reforçar o entrevistado, que as retira da possível banalidade e morbidez, como a foto do jovem no caixão, com o corpo coberto de flores para cobrir as mutilações sofridas durante o acidente que o matou, parece revelar.

Um rito de reencontro, conforme o conceito proposto por Mauss (1974, p.

70), com o projeto familiar, é o que o narrador parece querer propor na recolocação simbólica da compreensão da foto do filho morto no conjunto das paredes-álbum. Disposto na exposição fotográfica presente na sala de fotografias, o filho morto parece estar eternamente incorporado, através da foto que finaliza a sua ordem na mostra e também a sua curva de vida. Reencontro singular e mágico por encontrar-se prisioneiro de um recorte temporal e espacial que a realidade não mais pode vivenciar no presente nem reviver na sua integridade histórica a não ser pelo trabalho da emoção e como objeto de memória (KOURY, 1998, p. 67). Aspecto ritual, enfim, apresentado como um tipo de esquematização aberta e sempre improvisado nas relações cotidianas entre a família e o projeto familiar que se quer reter, entre a família e a sociedade mais ampla e entre a família e ela própria.

Informa o entrevistado que quando a esposa requereu uma foto do filho morto no velório e no caixão, não titubeou, apesar das reações contrárias de alguns parentes presentes e filhos mais velhos. "Ela quis", afirma, "e eu aceitei como fato importante. Chamamos um fotógrafo para tirar a foto do nosso menino e esse terminou aí".

Como se pode observar, não é uma recusa à morte do filho a presença na parede de sua fotografia morto, mas antes uma espécie de finalização que não compromete o projeto familiar, antes pelo contrário, expõe a sua continuidade através dos demais, que continuam vivos e fornecendo elementos para novas fotografias que irão para a afixação na sala-álbum. As fotos do filho morto configuram no imaginário como integradas ao projeto mais amplo de consolidação e nucleamento de um imaginário familiar. Embora, como reforça o entrevistado, "é

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uma coleção finda a dele. Os demais mudam porque permaneceram crescendo e vivendo e nos dando vez ou outra fotografias que iam emolduradas para a parede".

A presença do mágico encantamento, apontada no interior da totalidade que o conjunto fotográfico retém, amplia os caminhos por onde são possíveis a percepção dos movimentos que dão mobilidade às fotografias em família, como lembra Bourdieu (1967), como uma espécie de substituto das relações que o tempo insiste em modificar e por um fim. A presença da foto da morte do filho, retratado no caixão, permanece como uma evocação eterna da memória que insiste em esfumar, recolocando o filho morto no interior do projeto em execução.

Mesmo agora morto, sua coleção sendo finda, faz parte e uma parte significativa do projeto familiar. Recupera, como tal, o projeto total na afixação do retrato emoldurado do filho morto na sala-álbum, como uma espécie de remontagem da comunicação com os outros autônomos, e com o casal em si mesmo.

A Última Fotografia Afixada

"A última foto, se o senhor olhar, é dela. É a última foto que ela tirou para ir a

festa de uma neta que completava 15 anos. Olhe como ela está bonita. Eu mesmo coloquei a moldura e a pendurei na parede. Fiz isso depois que ela morreu", relata o entrevistado. Continua falando sobre o porque da sua resolução de colocar na sala-álbum a foto de sua mulher, viva e em pose contemplativa e feliz, como a última fotografia afixada na mostra lá exposta.

Indica ao entrevistador que a fotografia de sua esposa afixada e exposta recentemente, não é apenas a última fotografia presa nas paredes da sala, mas a fotografia que finaliza a mostra. Orienta o observador para um espécie de verificação, como para ter certeza de ter sido entendido: não apenas é a última fotografia afixada, mas aquela que está colocada no final do conjunto completo das fotografias disposto por entre as paredes da sala.

"Como uma espécie de ponto final, de missão cumprida", afirma. Com uma indicação usando a mão direita mostra a primeira e a última fotografia. Mostra sua esposa e ele, em fotos independentes mas prisioneiras de uma mesma moldura, iniciando uma afirmativa projetiva e, ao passar dos anos, as formas de

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consolidação da construção familiar, tal como imaginada por sua mulher e compactuada por ele.

Indica, a seguir, a fotografia no final da amostra, de sua esposa em uma pose que parece refletir um momento de felicidade e maturidade, feita durante a festa de quinze anos de uma das netas. O retrato que fecha, em ponto final, o álbum fotográfico montado entre as paredes da sala de fotografias.

Entre a primeira foto e a fotografia final, e última afixada, parece fechar-se, para o entrevistado um ciclo. Uma espécie de curva de vida simbólica é eternizada como missão cumprida. Simbolismo que representa, para ele, a história construída de sua família, através das fotografias, sob a égide de sua esposa, agora morta.

Nesse espaço de tempo eternizado e fixo no conjunto das fotografias, o ponto final parece revelar a construção do luto do entrevistado. De um lado, uma aparente negativa da morte da esposa, pela negação de continuidade da vida familiar e dele pessoal após o seu desaparecimento. De outro lado, o ponto final revela um fim de ciclo, revela uma missão cumprida, revela um aparente não mais importar-se com uma imagem projetiva, enquanto prospecção. A escolha da fotografia de sua esposa viva cristaliza uma construção realizada, fixando o observador em uma imagem projetada na sala-álbum que revela uma finalização e parece misturar-se com a própria esposa que se foi, ao mesmo tempo que a faz presente neste passado atemporal, fixo nas paredes da sala de fotografias.

"No início, imediatamente após o seu falecimento, pensei em fazer como ela

fez com o nosso menino morto. Tirar uma foto do caixão. Mas não tive coragem de tê-la morta na parede. Nem falei aos filhos dessa minha idéia, eles iam achar louca e eu teria de brigar. Mas não quis porque achei que não poderia suportar.

Ela morta na parede, não. Jamais!" O pensamento expresso do narrador, ao comparar o seu menino morto em um caixão fixo na sala de fotografias, com a possibilidade expressa em pensamento, no imediato momento do falecimento de sua esposa, de continuidade da mostra, com a afixação de uma foto com sua esposa morta retratada, assim, revelou-se em uma insanidade aos olhos do entrevistado.

Insanidade, de um lado, porque não poderia suportar a dor da presença contínua, em uma fotografia mortuária, da morte de sua esposa presa nas paredes-álbum. Loucura, de outro lado, porque teria de brigar com os filhos sobre

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