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Ciênc. saúde coletiva vol.1 número1

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Academic year: 2018

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U m A n tro p ó l o g o e m M arte o u o s Pa ra d o x o s d a

S a ú d e - D o e n ç a

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Um Antropólogo em MartezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA — Oliv er Sacks. São Paulo : Co mp anhia d as letras,zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA 1 9 9 5 . 3 3 1 p ág inas.

Maria Cecília d e So uz a Minay o

D ep artam ento d e Ciências So ciais, Esco la N acio nal d e Saúd e Pública, Fund ação O sw ald o Cruz.

Po d e p arecer estranho que eu p ro p o nha a leitura desta o bra justamente ao s profissionais da saúde co le-tiva. Oliver Sacks não é nem um antro pó lo go nem um sa-nitarista. Esse inglês de Lon-d res, resiLon-d ente em N o v a Yo rk, é um neuro lo gista e pro fesso r de neuro lo gia clí-nic a d o A lb ert Ein ste in College o f Medicine. Nem o título d o livro diz respeito a ele pró prio , c o m o po d eria parecer, uma vez que d esen-volve a pretensão d e co m-preender a lógica interna do s mais diferentes tipos d e identidades pesso ais d e po rtado -res d e alguma d eficiência neurológica ou cerebral. "Um A ntro pó lo go em Marte" é expressão d e uma das mais no -táveis autistas, pro fesso ra e Ph.D. em Ciências A nimais, Temple Grandin, entrevista-da por Sacks, para se referir aos grupos so ciais que a cer-cam. Segund o ela, a dificul-dade de entend er as reaçõ es, as interaçõ es, o s sentimen-tos e exp ressõ es d o s disentimen-tos

"no rmais" são de tal o rd em, que ela se vê co mo uma "An-tro pó lo ga em Marte", ou seja, aquilo que no s p arece estra-nho e bizarro em pesso as e grupo s "diferentes" também seria estranho e bizarro para eles, em relação a nó s. A di-ficuldade d e entend imento é mútua.

Co mentarei brev emente as sete histórias analisadas por Oliver Sacks antes de par-tir para uma reflexão que julg o essencial para nó s, pro -fissionais da saúd e.

A primeira é a d o pintor d altô nico Jo nathan I., assim transfo rmado po r um trauma p ro v o cad o po r acid ente de carro, ao s 65 ano s. Esse trau-ma leso u a parte d o seu cé-rebro especializada na per-cep ção da co r. Sacks aco m-p anha to da a trajetória d e Jo nathan, um pintor talentoso

que, a partir d o acidente, pas-sou a ver o mund o em preto e branco . Registra todo o seu esfo rço para se adaptar e ti-rar partido da nova co nd ição . É d up lamente intrigante a

o c o rrênc ia d o d alto nism o num artista para quem as co res tinham importância primordial, mais admirável, po -rém, lhe p arece a capacid ad e d ele d e transfo rmar a "d efi-ciência" crucial d e que foi aco metid o , em realizações ta-lento sas d e sua arte e nova visão d o mund o .

Sacks aco mp anha tam-bém a estranha história de Greg, a quem d eno mina "o

último bippié\ pela trajetória

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Enca-minhado à cirurgia, Greg es-capa da morte mas se torna cego , amnésico e "vazio". Por "vazio", Sacks entend e a to -tal incapacid ad e d e Greg ter info rmaçõ es, realizar re-flexõ es, atribuir sentido , ex-pressar em o çõ es ou memo ri-zar fatos e evento s atuais. O auto r d esenv o lv e intensas co nsid eraçõ es so bre o grande d esenvo lvimento do s lo -bo s fro ntais em humano s, so bre o papel d o s so nho s, das vigílias e das fantasias. Comenta que Greg parou sua vida no s ano s 60, d e quan-d o se lembra quan-d e co njunto s musicais, times de futebo l e linguagem de ép o ca. O que mais impressio na, po rém, no estudo de Sacks é sua cap a-cidade de p erceber em Greg não "um mo nstro ", mas um ser humano capaz d e criar a partir de seus sérios pro ble-mas d e saúd e. C o m o ele o bserv a "aind a que c o m o neurologista, eu tivesse que falar da síndro me de Greg, de seus 'deficits', não sentia que isso fosse ad equad o para d escrev ê-lo . Eu sentia que ele tinha se transformado em o utro tipo d e p esso a; que embo ra a lesão d o lo bo fron-tal tivesse, d e certa fo rma, ro ubad o sua identidade ou perso nalid ad e, também lhe deixara um tipo d e identida-de ou perso nalid ad e, ainda que de uma esp écie estranha e primitiva" (pág. 74).

Mais fascinante ainda é a exp eriência narrad a p o r Sacks co m o Dr. Carl Bennett,

p o rtad o r da sínd ro m e d e To urette. Essa síndro me se co nhece pelo s estranhos gru-nhid o s, crisp açõ es, caretas, gesto s, blasfêmias e xinga-mento s involuntários emiti-dos pelas pesso as que dela so frem. Sem me deter aqui na sua d escrição clínica, pre-firo aco mp anhar o encanta-mento de Oliver p elo médicocirurgião Dr. Bennett, mo -rad o r da p eq u ena cid ad e americana de Branfo rd, ama-d o e queriama-d o po r seus clien-tes e respeitado pelo s seus c o leg as d e p ro fissão , no pro nto -so co rro e no ho spi-tal local. Bennett, além d e o perar co m perfeição , sem nunca ter co metid o um d es-lize, dirige carro e pilota um p e q u e no av ião p articular. Sua "esquisitisse" lhe co nferiu uma identidade e p erso -nalidade muito particulares, capazes de se manifestarem absolutamente co nvencio nais durante as atividades profis-sionais. Os gesto s brusco s, o s tiques co nvulsivo s, a mí-mica involuntária, as exp res-sõ es co mpulsivas d e xinga-mento s são inteiramente co n-troladas na sala de cirurgia, po r exemp lo , manifestand o -se livremente no s mo mento s de d esco ntração . Sacks em algum mo mento d e seu es-tudo mencio na que "estamo s diante de algo d e nível su-perio r à mera rep ercussão rítmica, quase auto mática, dos mo d elo s motores. Vemo s um ato básico de encarnação o u interpretação , p elo qual,

as habilid ad es, sensibilid a-des, a totalidade do s traços

nêuricos dezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA outro eu (grifo

no sso ) co nquistam o cérebro , red efinem a p esso a, to d o o seu sistema nervo so , duran-te to da a d uração d e seu d esemp enho " (pág.

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ce-gueira que ele recebeu co m o dádiva. A go ra, p o r fim, a Virgil é permitido não ver, escapar d o mund o o fuscante e ato rdo ante da visão e d o esp aço , para retornar a seu próprio e verdadeiro ser, o mundo íntimo e co ncentrad o de todos o s outros sentido s que havia sido seu lar em quase 50 ano s" (pág. 164).

Outro caso interessante narrado po r Sacks é o d o artista p l ásti c o Fran c o Magnani que exilo u-se, quan-do jo vem, d e sua terra natal, Pontito, p equena cidade da To scana, na Itália, po r o ca-sião da guerra. Deno minad o "Artista da Memó ria" Magnani tem uma capacid ad e o bsessi-va, fotográfica e infinita de retratar sua cid ad e (ap enas ela), so b to d o s o s ângulo s, de forma reco rdató ria e ima-ginativa. Este artista eid ético , co nfo rme Sacks, é ao mesmo tempo vítima e po ssuido r de um repertó rio d e imagens, cujo po d er é difícil co nceber. Ele não está livre para ter equívo co s de memó ria e nem para deixar d e lembrar. Tratase de uma memó ria pato -lógica, co m um p o d er d e fi-xação , de fo ssilização ou de petrificação em plena ativida-de, marcada p o rém po r uma respo nsabilidade cultural d e recordar o passad o e preser-var seu sentido . Sacks, que aco mpanho u Magnani de São Francisco (o nd e vive e pinta co mpulsivamente) a Pontito, o bserv and o to d as as suas açõ es e reaçõ es, co nclui que

se trata d e um ser humano em pro fund o vazio interior. Situação essa criad a p ela guerra e p elo exílio , o nd e a arte da pintura transfo rmo u-se num esp aço externo d e enumeração e recriação infi-nitas de um berço ao mesmo temp o idealizado e preserva-d o . To preserva-d o esse entusiasmo inesgo tável está a serviço d e um pro jeto sem fim, p o rém sem intro specção e profundi-dade para além d ele mesmo .

A penúltima história ana-lisada po r Sacks é a d o autista Stephen Wiltshire, um garo -to co m prodigiosa capacid a-d e a-d e a-d esenhar p aisagens, ruas, edifícios, igrejas,

caste-los etc. Falando do szyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA idiots

savants o auto r m enc io na

que não se trata apenas d e um sábio , mas de um prodí-gio . Nascido em Londres, fi-lho d e um funcio nário da Co mpanhia d e Trânsito, p o -bre, esse rapaz ho je co mp le-ta 22 ano s. Dep o is d e diag-no sticad o seu autismo, teve a felicidade d e enco ntrar a co mp reensão d e um pro fes-so r e vários incentivad o res que so uberam valorizar mais seu talento que suas deficiên-cias. E assim co nseguiu se projetar, ter suas o bras pre-miadas, suas capacid ad es es-timuladas e ser ho je reco nhe-cid o co m o gênio . Desenv o l-veu também pro fundas habi-lidades musicais. Dep o is d e aco m p anhar o s p asso s, as reaçõ es, as vivências d o ta-lento no p arad o xo das defi-ciências d e Stephen, Oliver

concluiu: "suas limitações, pa-rad o xalmente p o d em servir co mo forças também. Sua vi-são é valiosa, ao que me pa-rece, precisamente por trans-mitir um po nto de vista mara-v ilho samente d ireto e não co nceitualizad o d o mund o . Step hen p o d e ser limitado, e sq u isito , id io ssinc rátic o , autista; mas lhe foi permitido alcançar o que po uco s de nós co nseguimo s, uma significan-te representação e investiga-ção d o mund o " (pág. 251).

Oliver Sacks termina sua o b ra c o m a histó ria d e Tem p le Grand in, a autista que lhe fo rneceu o título de seu trabalho . Pro fesso ra da

Colorado State University,

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autismo po ssa ser asso ciad o co m algo d e valor que fica alarmad a c o m a id éia d e erradicá-lo (pág. 297).

To d o s o s sete relatos de Oliver Sacks são so bre p es-soas reais que vivem ho je. No entanto , o mund o d o senso co mum, mas também da me-d icina m o me-d e rn a te n me-d e a co nfiná-lo s num texto so bre pato lo gia. O que se to rna co mo v ente no livro d e Sacks é a sua capacid ad e de co lo -car no sso s p reco nceito s de po ntacabeça, primeiro , valo -rizando o diferente; segund o , invertendo a relação de es-tranheza; e, em terceiro lu-gar, lanç and o no v o o lhar so bre o co mp lexo e po lissê-mico mund o da saúde e da d o ença. Co nfo rme afirma no prefácio d o livro: "a imagina-ção da natureza é mais rica que a no ssa; para mim, co mo méd ico , a riqueza da nature-za deve ser estudada no fenô meno da saúde e das d o -enças, nas infinitas formas de ad ap tação ind iv id ual c o m que o rganismo s humano s, as pessoas, se reconstróem dian-te dos desafios e vicissitudes

da vicia" (pág.

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

16).

Em o u tras p alav ras, Sacks quer mostrar que o s distúrbios e as d o enças p o -dem ter um papel paradoxal de revelar po d eres latentes, ev o lução e formas d e vida que nunca seriam imaginados na ausência d esses males.

Nesse sentido , a d o ença tem um po d er criativo. Se po r um lado, destró i caminho s

preciso s, força o sistema ner-v o so a buscar inesp erad o s crescimento s e ev o lução .

Po r isso , diz o auto r, "sou levado a pensar se não seria necessário redefinir o s

co nceito s dezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA saúde/doença

para vê-lo s em termo s da ca-pacid ad e d o o rganismo d e criar uma nova o rganização e o rd em, ad equad a à sua d ispo sição especial, e mo di-ficada segund o suas necessi-dades, mais d o que em ter-mo s d e uma 'no rma' rigida-mente definida" (pag. 18).

Ou seja, se a enfermida-de geralmente co rresp o nd e a uma co ntração da vida, isso não é uma fatalidade, e quais-quer que sejam o s problemas, as pesso as buscam a vida, não ap enas a d esp eito d e suas co nd içõ es, mas po r cau-sa delas e até mesmo co m sua ajuda.

A ssim, a re f le x ão d e Oliver Sacks vem a ser de imensa importância para to -do s o s que trabalhamo s no camp o da Saúde. So bretud o p o rque, sem grandes preten-sõ es de ser um antro pó lo go em terra estranha, ele sinali-za ao s que lidam nesse cam-p o , cam-para a necessid ad e de ultrapassar à mera tipificação de caso s, pro ced imento tão presente na Clínica e na Epi-demiologia, para se chegar ao mund o pró prio e vivencial das pesso as. "O estud o da d o ença exige o estud o da identidade, os mundos interi-ores que o s pacientes criam so b o impulso da d o ença. Mas

a realidade d o s pacientes, as fo rmas co m o eles e seus cé-rebro s co nstró em seu próprio mund o , não p o d em ser total-mente co mp reend id as pela o bservação d o co mpo rtamen-to exterio r" (ibid .).

E Sacks co menta Ches-terston, através de seu deteti-v e esp iritual, q uand o diz: "q u and o um cientista fala d e um tip o o u d e um caso , nunca está se referind o a si m esm o , mas a seu v izinho , p ro v av elmente mais p o b re" (p ág . 19).

Po r co m p reend er tud o isso, Oliver Sacks, um neu-rologista, tirou o jaleco bran-co e deserto u d o hospital e d o labo rató rio , para pesqui-sar-co mp artilhar a vida de seus p ac ientes, c o m o um neuro antro p ó lo go em traba-lho d e camp o , em visita às fronteiras distantes da exp e-riência humana.

Referências

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