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Da ficção em Leviathan de Paul Auster

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Da ficção em Leviathan de Paul Auster:

jogos de escrita, identidade e alterídade

PORTO 1997

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Da ficção em Leviathan de Paul Auster:

jogos de escrita, identidade e alteridade

Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-Americanos (Literatura Norte-Americana) apresentada à

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

UNIVERSIDADE DO PORTO Faculdade de Letras aiBUOTEÇA . , ^ B . I O L I U U Data g T /

a:

JfL/19-aí.

PORTO 1997

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concedeu na elaboração deste trabalho. Para além de me ter motivado para áreas de leitura e estudo que mal conhecia, não posso esquecer a paciência e a disponibilidade com que aceitou as inconstâncias do meu ritmo de trabalho, nem deixar de salientar a relevância da sua orientação em todas as fases de desenvolvimento desta dissertação.

Os ecos do convívio, do diálogo e da partilha de conhecimentos com os meus colegas de Mestrado estão também presentes no trabalho. Devo mesmo às palavras lúcidas da Cristina o impulso final que evitou o abandono deste projecto.

A colaboração "técnica" e a amizade da Júlia e da sua família foram também extremamente importantes, assim como o encorajamento e as ajudas pontuais de muitos outros amigos, cujo apoio não esquecerei.

À Paula e aos meus pais agradeço a crença incondicional nas minhas potencialidades e as suas palavras motivadoras, bem como a compreensão que demonstraram perante a minha falta de tempo para os assuntos domésticos e familiares. Esta dissertação também lhes pertence.

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He recalls an exhibit of Renaissance picture frames at the Alte Pinakothek in Munich. The frames were empty, hung against white walls; elsewhere in the museum, the masterpieces of Altdorfer, Grunewald, and Durer, of Breughel and Rembrandt, hung in their plenitude. He sensed that the museum had now become the frame of frames. And the frame of the museum? Finally, of course, the Universe.

But the Universe was an unspeakable fiction - a "thing" turned into fiction precisely in order to be spoken. Did framing and its opposite, deconstruction, then turn everything into fiction?

He refuses the thought. Desire and Death, he needs to assume, are "literal." Else the Universe is but a trope on the Void. This goes against something in him.1

A relação ambígua e paradoxal entre realidade e ficção na cultura contemporânea, que a epígrafe de Hassan preocupadamente reflecte, é o ponto de partida para o presente trabalho.O seu propósito é analisar na obra de Paul Auster - e especificamente em Leviathan - o modo como se manifesta e é tratada a actual tendência relativizante do poder da linguagem (e, por consequência, da ficção), no que diz respeito à expressão de um real que a percepção humana encontra sempre mediado por pressupostos e matrizes linguístico-ideológicas. Esta tendência será associada a uma visão construcionista do mundo e a um cepticismo crescente em relação à possibilidade de expressão de um real cada vez mais caótico, violento, incompreensível.

1 Ihab Hassan, The Postmodern Turn: Essays in Postmodern Theory and Culture (Ohio: Ohio State

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Depois de, nesta Introdução, ser levada a cabo a contextualização ideológico-cultural da obra, o primeiro capítulo tentará analisar a construção narrativa de Leviathan, tendo por base os parâmetros já referidos e salientando o papel fulcral da multiplicação de versões sobre a mesma realidade na estruturação da obra. Para isso, será feita uma aproximação de Leviathan a As Mil e Uma Noites e aos contos tradicionais, nomeadamente em relação às motivações para a escrita e ao encadeamento narrativo. Esta aproximação será a base de um estudo do inevitável processo de ficcionalização da realidade e do homem inerente à própria condição do ser humano, e de como este tema é retratado e problematizado em Leviathan.

O segundo capítulo pretenderá, partindo das reflexões do primeiro, desenvolver uma investigação sobre as ambiguidades existentes no romance ao nível das instâncias narrativas e das personagens. Tentar-se-á, por isso, fazer um levantamento das relações de dependência e influência entre os diferentes discursos que explícita ou implicitamente se manifestam em Leviathan, o que acarretará a exploração do papel do autor no romance e a aceitação de uma concepção palimpséstica do texto e do homem. As ambiguidades investigadas serão depois equacionadas com a questionação subversiva de Paul Auster dos poderes e dos limites da linguagem e da ficção na descrição e/ou criação do real.

Não pretendendo encontrar soluções finais (o próprio objecto de estudo impossibilita-o), a última parte do trabalho tentará, antes, construir uma ou várias estruturas interpretativas parciais e provisórias que reflitam a problematização em que todo ele está imerso, sendo também fonte de motivação para novas e frutuosas discussões sobre esta temática.

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Em A Condição Pós-Moderna, Jean-François Lyotard afirma:

Na sociedade e na cultura contemporâneas, sociedade industrial, cultura pós-moderna, a questão da legitimação do saber põe-se noutros termos. A grande narrativa perdeu a sua credibilidade, qualquer que seja o modo de unificação que lhe está consignado ...2

Este passo surge na sequência de uma análise da evolução das formas de legitimação do saber nas sociedades do Ocidente, contrastando a época actual com a "modernidade", na qual, segundo Lyotard, as próprias ciências sentiram necessidade de justificar o seu saber através de metanarrativas de legitimação. A temática que Lyotard aflora neste passo é central às preocupações epistemológicas da cultura contemporânea, designada por ele como pós-moderna, na sequência da designação dada por muitos autores, entre os quais o próprio Ihab Hassan3. De facto, a questão

da credibilidade das grandes narrativas legitimadoras do saber parece preocupar sobremaneira filósofos, historiadores, artistas, críticos, sociólogos, cientistas e todos os que se dedicam a um qualquer campo do conhecimento humano, uma vez que elas funcionaram durante muito tempo como fundações de todo o saber. Pôr em causa uma metanarrativa auto-legitimadora, uma história que se explica e se torna fundamentadora de todo o saber implica, assim, pôr em causa o próprio valor do conhecimento adquirido dentro dos seus parâmetros.

Ora só uma grande desconfiança em relação ao seu poder explicativo e auto-legitimador poderia justificar o abandono de estruturas tão profundamente facilitadoras do desenvolvimento do saber. De facto, o que está por trás deste

2 Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna, trad. José Navarro (Lisboa: Gradiva,1989), p.

79.

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descrédito das metanarrativas é a consciência cada vez mais firmada de que nada é auto-justificável, absoluto, universal.

Em The Postmodern Turn, Ihab Hassan explica as manifestações desta consciência:

All my comments so far evade the peculiar provocations of our postmodern thought. It is an antinomian moment that assumes a vast unmaking in the Western mind (...) I say "unmaking" though other terms are now de rigueur, from deconstruction to dispersal to a variety of virtual "deaths". Such terms express an ontological rejection of the traditional full subject, the cogito of Western philosophy. They express, too, an epistemological obsession with fragments or fractures, and a corresponding ideological commitment to minorities in politics, sex, and language. To think well, to feel well, to act well, to read well, according to this epistémè of unmaking, is to refuse the tyranny of wholes; totalization in any human endeavor is potentially totalitarian.4

A tendência para desconstruir, para pôr em dúvida, é de novo associada ao momento contemporâneo, ao pós-moderno. Ela funciona como uma forma de fuga ao poder tirânico das metanarrativas, sempre totalitárias porque sempre impregnadas por interesses ideológicos que pretendem, antes de mais, o consenso inquestionável e a aceitação das suas premissas como valores absolutos.

Consequência desta descredibilização das grandes teorias fundamentadores é a questionação da natureza universal e incontestável da noção de verdade. O verdadeiro é relativizado, já que só o é dentro de certa teoria e, por isso, de certo poder ideológico. Como Linda Hutcheon afirma, referindo-se à ficção pós-moderna, não se deve procurar dizer a verdade, antes questionar " whose truth gets told" .

A relativização da verdade implica, naturalmente, a fragmentação do conceito de realidade, a que não é alheia a consciência apocalíptica do potencial de destruição disponível para o ser humano. Perante a hipótese cada vez mais próxima da

4Hassan, The Postmodern Turn, pp. 133-134, sublinhado meu.

5 Linda Hutcheon, A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction (New York/London:

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destruição do planeta e do fim da humanidade, a noção tradicional de realidade desfaz-se, tornando-se também ela relativa: "We are, I believe, inhabitants of another Time and another Space, and we no longer know what response is adequate to our reality"6. Se a própria realidade se dilui enquanto entidade superior a qualquer

necessidade de legitimação, surgindo sempre mediada por pressupostos ideológicos, também todas as concepções tomadas como absolutas e universais se fragmentam: daí a rejeição da ideia tradicional do sujeito uno e total (a explorar mais adiante) e a desmistificação do poder da linguagem como ponte objectiva de acesso ao real.

A preocupação com o papel da linguagem na expressão do real é bem visível nas questões sobre a referência que, segundo Linda Hutcheon, estão a ser postas em várias áreas de conhecimento: "Does the linguistic sign refer to an actual object - in literature, history, ordinary language? If it does, what sort of access does this allow us to that actuality? Reference is not correspondence, after all (...) Can any linguistic reference be unmediated and direct?"7 De facto, o referente nunca corresponde ao

real: a sua "realidade" pertence a uma estrutura discursiva regida por valores ideológicos específicos, não existindo no mundo objectivo enquanto tal. Esta constatação implica a impossibilidade de acesso directo ao real e a imersão necessária de qualquer hipótese de conhecimento num mundo de linguagens e discursos: "Postmodern representation is self-consciously all of these - image, narrative, product of (and producer of) ideology."8

6 Hassan, The Postmodern Turn, p.39.

7 Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, 144.

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O carácter ideológico da referência constitui mais um aspecto do processo de desconstrução (que, segundo Hassan, caracteriza a cultura pós-moderna), e acarreta um cepticismo crescente em relação ao conhecimento. Em "Postmodern Characterization and the Intrusion of Language"9, Hans Bertens explica sucintamente

o que implica a descoberta deste carácter. Ao reflectir sobre um assassínio cometido por Bloch, a personagem principal de The Goalie's Anxiety at the Penalty Kick, de Peter Handke, afirma:

Bloch's sometimes unbearable awareness of the inadequacy of language is indirectly responsible for the murder. Furthermore, it is obvious that the failure of language is so threatening to Bloch because what he experiences as his identity, his hold on himself and the world, is bound up with language so that the awareness of that failure acutely threatens his sense of himself as a coherent subject. If language's supposed competence in dealing with the world is a fiction, then Bloch as he knows himself and the world is a fiction as well.10

Quando a competência da linguagem para transmitir objectivamente o real é questionada, o que está em causa é mais do que um problema de comunicação: há um conjunto de axiomas e valores de ordem epistemológica e ontológica que deixam de ter ancoragem legitimadora. Sem metanarrativas para enquadrar o saber e a própria condição humana, com a perda do acesso directo ao real e da consciência do sujeito como entidade coerente, provocada pelo falhanço da linguagem, é natural que Bloch considere a hipótese de ser ele próprio e o seu mundo uma ficção. São todos os pressupostos da sua - e da nossa - civilização que estão a ser desafiados.

O desafio não implica, contudo, o cepticismo total, e a solução de Bloch não é a única possível. Ele provoca, antes, uma procura de novas formas de

9 Hans Bertens, "Postmodern Characterization and the Intrusion of Language", Exploring

Postmodernism: Selected papers presented at a workshop on postmodernism at the Xlth International Comparative Literature Congress, ed. Matei Calinescu e Dowe Fokkema

(Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Pub. Comp., 1987), pp. 139-159.

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entendimento do real e do saber. Se linguagem, sujeito e mundo são ficções, construções feitas com base em discursos ideologicamente intencionados, também é verdade que são estas ficções que nos permitem enfrentar o próprio real: "Men manage reality by their constructions", afirma Ihab Hassan em The Dismemberment of Orpheus11, e é esta perspectiva construcionista que dá sentido à cultura

pós-moderna. Brian McHale define em Constructing Postmodernism a noção de construcionismo:

Constructivism's basic epistemological principle is that all our cognitive operations, including (or especially) perception itself, are theory-dependent. This means, first of all, that data do not exist independently of a theory that constitutes them as data; they are not so much "given" as "taken," seized....

Granted the theory-dependency of "facts", it follows that faithfulness to objective "truth" cannot be a criterion for evaluating versions of reality (since the truth will have been produced by the version that is being evaluated by its faithfulness to the truth, and so on, circularly). (...) In other words, constructions, or what I have been calling versions of reality, are strategic in nature, that is, designed with particular purposes in view.12

O real e a verdade são conceitos que deixam de ser considerados como existindo objectivamente, passando a ser relativizados como construções com interesses estratégicos, imersas em discursos contextualizados e dependentes de teoria. Se há representação, a procura da descrição do real, ela é sempre parcial, já que cada versão do mundo institui a sua própria realidade. As fundações metanarrativas para o conhecimento desaparecem, mas isto não implica o fim da representação, que continua a ser o meio de que dispomos para dar sentido aos dados da experiência, apesar da dependência da teoria relativamente a esses dados.

1 ' Ihab Hassan, The Dismemberment of Orpheus: Toward a Postmodern Literature (New York:

Oxford University Press, 1971), p. 3.

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Por outro lado, é a própria consciência de que todas as construções representacionais são dependentes de valores ideológicos (e, por trás deles, de diversos tipos de poder) que está na base de um movimento pragmático para legitimar as "pequenas narrativas"13 como tentativas provisórias e parciais de

conhecer e compreender os "factos" empíricos das culturas em que se inserem. Dada a incapacidade representacional de ter acesso directo ao real, as diferentes versões que sobre ele se podem construir tornam-se as únicas estruturas capazes de lhe darem sentido. A linguagem surge, assim, como matriz para a percepção - ou, melhor dizendo, para a criação - do mundo.

Daí a viragem para as pequenas histórias: "Narrative in particular recommends itself as a means of building foundations by constructing constructions because storytelling (at least in its traditional forms) bears within it its own (provisional) self-grounding, its own (local, limited) self-legitimation."14 São estas

pequenas narrativas auto-legitimadoras (mas também narradas sob a consciência irónica das suas limitações) que permitem sair do impasse causado pela desilusão com as metanarrativas. O seu objectivo é precisamente a fuga à totalização e à uniformidade ideológicas próprias das grandes narrativas legitimadoras. Esta tendência para a construção de versões narrativas de uma pluralidade de culturas (porque cada hipótese ideológica instaura uma percepção específica do todo cultural em que se integra) constitui, deste modo, uma forma de compromisso entre a

13Lyotard, A Condição Pós-Moderna, p.121. 14McHale, Constructing Postmodernism, p. 5.

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necessidade de legitimar de alguma forma o saber e a consciência das limitações da representação.

Depois de defender o estabelecimento destes "contratos temporários", do "determinismo local" em torno de cada uma destas histórias como forma de responder às ambiguidades da representação, Lyotard não deixa de afirmar a necessidade de estudar as formas assumidas por este compromisso: " Há que nos regozijarmos por a tendência para o contrato temporário ser equívoca: ela não é pertença exclusiva da finalidade do sistema, é este que a tolera, e ela mostra no seu seio uma outra finalidade, a do conhecimento dos jogos de linguagem como tais e a decisão de assumir a responsabilidade das suas regras e dos seus efeitos." A sociedade em que vivemos é ainda a mesma, a impregnação ideológica da linguagem e do conhecimento mantém-se, mas torna-se necessário estudar a ligação entre estas pequenas histórias e a sua forma de representação, por um lado, e as formas de conhecimento e poder que acabam por legitimar, por outro.

Nas ciências ditas exactas e nas ciências sociais, na literatura e na historiografia, a narração de pequenas ficções sobre cada campo de conhecimento parece ser a forma suprema de criação do mundo e do seu sentido. Contudo, ela surge sempre enraizada num contexto definido e temporário e na abertura ao diálogo com outros discursos, pois só assim os seus próprios interesses estratégicos se tornam visíveis:

Discourse, then, is both an instrument and an effect of power. (...) Discourse is not a

stable, continuous entity that can be discussed like a fixed formal text; because it is the site of conjunction of power and knowledge, it will alter its form and significance

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depending on who is speaking, her/his position of power, and the institutional context in which the speaker happens to be situated...'6

Baseando-se nas ideias de Foucault17 sobre o poder, Hutcheon refere neste

passo dois aspectos fundamentais destas "pequenas histórias": antes de mais, o seu carácter discursivo, já que são narrações localizadas espacial e temporalmente, integradas em contextos definidos que as influenciam; decorre daqui uma ligação ambígua, mas sempre presente, com o poder que as institui e que elas constantemente reafirmam. Este aspecto parece fazê-las cair de novo na dependência total de perspectivas ideológicas específicas e com intenções bem definidas em relação ao tipo de conhecimento a valorizar, como acontecia com as metanarrativas.

Há, contudo, diferenças fulcrais a salientar. A primeira tem a ver com o seu carácter local e provisório, a sua circunstancialidade, mas mais importante ainda é a consciência irónica de que não passam de construções linguísticas, de ficções que seguem determinados pressupostos ideológicos. O seu valor nunca é absoluto, já que a sua construção se baseia sempre numa perspectiva irónica que não esquece o seu carácter ficcional: se legitimam certos tipos de conhecimento e de poder, não o fazem inocentemente. Narrador e narratário estão cientes da dependência destas histórias do seu contexto cultural, e reconhecem até que o facto de terem perspectivações diferentes sobre o mundo influenciará também a comunicação. Cada história é, deste modo, construída pelo menos duas vezes: no discurso do seu narrador e no momento da sua recepção, na leitura que cada narratário faz dela. E, de novo, Lyotard quem

16 Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 185.

17 Ver Michel Foucault, The History of Sexuality: Volume I: An Introduction (New York: Vintage,

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resume esta característica das pequenas narrativas: "Nós não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis e as propriedades das que formamos não são necessariamente comunicáveis."18

Por outro lado, contextos diferentes podem levar o mesmo narrador a construir histórias paradoxalmente diferentes ou mesmo opostas. Em Constructing Postmodernism, Brian McHale publica várias construções sobre o pós-modernismo que assume terem uma integração pelo menos imperfeita. A justificação para estes choques temáticos entre os seus ensaios é simples:

I choose to regard the "imperfect" integration of these essays as illustration and corroboration of the point I have tried to make throughout this book about the plurality of possible constructions in literary history (and cultural studies generally) and the strategic nature of construction. I wish I could pretend that I set out programmatically to produce a plurality of constructions; unfortunately, it was not as deliberate as that. However, having recognized post factum that these essays do possess this kind of plurality, I have not sought to reduce multiplicity by imposing upon it some (arbitrary) uniformity of model; rather, I have let the multiplicity stand, as appropriate to the book's thesis.19

Pluralidade parece ser a palavra-chave para o conhecimento pós-moderno, a atitude irónica de quem tem apenas a certeza de que as verdades universais não existem, mas nem por isso deixa de acreditar na possibilidade ou na necessidade -de criar sentidos através -de construções narrativas parcelares e provisórias. O objectivo destas construções é, assim, produzir arquipélagos de significado a partir de uma percepção subjectiva de um mar de impressões caóticas e contraditórias em que o real se afundou. Elas são formas metafóricas de dizer e recriar o caos da experiência, de assimilar o inacreditável e o indizível. Nas palavras de ihab Hassan, "irony, perspectivism, reflexiveness: these express the ineluctable recreations of mind

18Lyotard,^4 Condição Pós-Moderna, p. 12. 19 McHale, Constructing Postmodernism, p. 3.

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in search of a truth that continually eludes it, leaving it with only an ironic access or excess of self-consciousness."20

Na literatura, o campo que merece reflexão mais aturada no âmbito deste trabalho, a ironia subjacente à procura de uma realidade fugidia através de construções parcelares e subjectivas está implícita na revisão das definições e fronteiras entre os géneros literários, e mesmo entre diferentes tipos de conhecimento. É assim que, por exemplo, ficção e historiografia se aproximam e confundem, já que ambas não constituem mais do que estruturas modelares aproximativas do real empírico. Neste sentido, ambas são entidades discursivas que se legitimam pelo uso da linguagem (e da sua perspectivação do mundo) em contextos específicos: "... history and fiction are discourses, human constructs, signifying systems, and both derive their major claim to truth from that identity"21.

A historiografia não pode, assim, ter pretensões mais "científicas" do que a ficção, pois também ela se constrói na e pela linguagem, fazendo uso da representação, e nunca conseguindo alcançar o estatuto de correspondência com o passado que tenta descrever. Todas as narrativas que produz não têm, por isso, valor superior às narrativas ficcionais, dado o carácter representational de ambas e a impossibilidade, semelhante à da ficção, de ter acesso directo ao passado: este só pode ser estudado (construído) a partir dos vestígios textuais (e, logo, também já impregnados por interesses estratégicos e ideológicos) que chegaram até à nossa época.

Hassan, The Postmodern Turn, p. 170. Hutcheon,yl Poetics of Postmodernism, p. 93.

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A aproximação entre estes dois tipos de estruturação do real levou ao surgimento de um novo tipo de romance, que Linda Hutcheon designa "historiographie metafiction", definindo-o como "those well-known and popular novels which are both intensely self-reflexive and yet paradoxically also lay claim to historical events and personages (...) In most of the critical work on postmodernism, it is narrative - be it in literature, history, or theory - that has usually been the major focus of attention. Historiographie metafiction incorporates all three of these domains: that is, its theoretical self-awareness of history and fiction as human constructs (historiogra/?/Mc metaôcûon) is made the grounds for its rethinking and reworking of the forms and contents of the past"22. A uma ficção perpassada pela

ironia, pela reflexão sobre o modo como representa o real e o estatuto que pode pretender como fonte de conhecimento, liga-se, deste modo, uma concepção revisionista e com intuitos reconstrutivos da história. As pretensões à verdade da história e da ficção são relativizadas, tornando-se visível que tanto uma como outra são discursos que nos permitem enformar o real em padrões assimiláveis, e assim enfrentar a vida.

Apesar de usar as convenções próprias da ficção e da historiografia, o que a metaficção historiográfica consegue é, assim, subverter estas convenções, numa tentativa de rever os pressupostos escondidos atrás da ficção histórica tradicional: "The postmodernist historical novel is revisionist in two senses. First, it revises the

content of the historical record, reinterpreting the historical record, often

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demystifying or debunking the orthodox version of the past. Secondly, it revises, indeed transforms, the conventions and norms of historical fiction itself"23

A subversão das convenções históricas e literárias tradicionais, através da sua mistura, associa-se, deste modo, à atitude revisionista deste tipo de ficção relativamente às teorias canónicas de entendimento do passado. Subjacente a esta mudança está a ideia de que qualquer descrição do passado está naturalmente impregnada, não só pelos valores implícitos nos vestígios textuais em que se baseia, mas também pela leitura contemporânea que deles faz o historiador-narrador, que apenas conta a sua história, a sua versão. Esta é claramente informada por valores ideológicos em que a sua forma de representação se ancora, pelo que também aqui o caminho a seguir só pode ser o das pequenas narrativas, sem pretensões de validade universal.

Ficção e historiografia assumem estatutos paralelos, diferindo apenas em termos de enquadramento teórico para as suas narrativas. O seu intercâmbio na metaficção historiográfica parte deste pressuposto, mas este tipo de ficção não deixa também de chamar a atenção para os paradoxos que esta convivência implica: "The interaction of the historiographie and the metafictional foregrounds the rejection of the claims of both "authentic" representation and "inauthentic" copy alike, and the very meaning of artistic originality is as forcefully challenged as is the transparency of

historical referentiality."24

McHale, Constructing Postmodernism, p. 90.

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Se um documento tido como "fiel" à representação que faz de determinada realidade se revela agora como uma construção sempre parcial, manchada por pressupostos ideológicos em que se baseia a visão do mundo que preconiza, que estatuto pode pretender um texto tido desde o início como "falso" ou plágio? Esta é uma questão que está no âmago das preocupações da cultura pós-moderna, sendo a única resposta possível uma atitude de indeterminação e abertura a todas as formas de representação, contudo sempre ironicamente alerta para as limitações de todas e cada uma destas formas.

O que esta atitude acarreta e preconiza é, como diz Hutcheon, o desafio de noções centrais à "modernidade" (Lyotard), nomeadamente a fidelidade e transparência da referência histórica (e literária) e a possibilidade da originalidade artística, quando se apregoa a impossibilidade de distinguir o que é uma representação "autêntica" do que constitui uma cópia. Se, por um lado, é feita a apologia do conhecimento e do discurso individuais, intuitivos e conscientemente parciais, das versões limitadas de entendimento do real, por outro assume-se uma posição céptica em relação à possibilidade da originalidade destas pequenas histórias, da produção artística como processo de criação autorial autónomo e estanque.

Isto deve-se, naturalmente, à consciência contemporânea da importância da contextualização de qualquer discurso: este depende, antes de mais, da visão do mundo que a sua forma de representação linguística institui, estando alicerçado em outros discursos (literários, históricos, sociais, científicos, etc.), que o influenciam e com os quais dialoga. A ficção pós-moderna baseia-se nesta concepção de dialogismo cultural, de intertextualidade, em que o sentido da originalidade deixa de

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ser primordial. Pelo contrário, são o retomar irónico e paródico dos textos do passado e a pluralidade de construções linguísticas auto-reflexivas sobre a mesma realidade que fundamentam agora a criação artística. Daí a importância da metaficção historiográfica no quadro do romance contemporâneo como género híbrido em que discursos diferentes se confrontam e mostram as suas semelhanças, contradições e limitações enquanto modelos de estruturação do real.

M. Bakhtin foi precursor da concepção do romance como entidade dialógica. Em The Dialogic Imagination, defende a noção de "heteroglossia"2 como

fundamental à construção do romance, entendendo-a como a diferenciação interna, a estratificação característica de uma língua e, consequentemente, de uma cultura. O romance surge, assim, como o local do diálogo entre estas vozes diferentes, os seus valores e as suas formas de representar o real:

For the writer of artistic prose, (...) the object reveals first of all precisely the socially heteroglot multiplicity of its names, definitions and value judgements. Instead of the virginal fullness and inexhaustibility of the object itself, the prose writer confronts a multitude of routes, roads and paths that have been laid down in the object by social consciousness. Along with the internal contradictions inside the object itself, the prose writer witnesses as well the unfolding of social heteroglossia surrounding the object, the Tower-of-Babel mixing of languages that goes on around any object; the dialectics of the object are interwoven with the social dialogue surrounding it. For the prose writer, the object is a focal point for heteroglot voices among which his own voice must also sound...26

O romance torna-se o local da exposição à pluralidade de formas de representação sobre a mesma realidade e ao diálogo entre estas diferentes versões e, consequentemente, entre as concepções ideológicas que lhes dão origem. O papel do autor relativiza-se, mas não se perde: é a sua ironia, a sua atitude perspectivista que

25 M. M Bakhtin, The Dialogic Imagination: Four Essays, ed Michael Holquist (Austin: University

of Texas Press, 1990), p. 67.

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possibilita o diálogo. Daí que o modo próprio do seu discurso seja paródico: a representação dialógica de discursos diversos não é inocente, antes pressupõe uma posição crítica para com as limitações inerentes à sua condição de representação. É de novo Bakhtin quem descreve as características da paródia:

But it is not a dialogue in the narrative sense, nor in the abstract sense; rather it is a dialogue between points of view, each with its own concrete language that cannot be translated into the other.

Thus every parody is an intentional dialogized hybrid. Within it, languages and styles actively and mutually illuminate one another.27

Os paradoxos inerentes à confrontação entre pontos de vista opostos não podem, deste modo, ser escondidos na ficção paródica. Pelo contrário, são tornados visíveis, na tentativa de demonstrar a diversidade de formas de representação a que se pode ter acesso e as limitações de todas elas para transmitir "fielmente" o real a que se referem. Linda Hutcheon afirma:

O romance contemporâneo que incorpora parodicamente formas de arte, altas e baixas, é outra variante daquilo que Bakhtin apreciava na ficção: o dialógico ou polifónico. (...)

São, todas elas, formas altamente convencionalizadas que se transformam em modelos, ou abertos ou disfarçados, dentro de obras metaficcionais, modelos que actuam como clichés narrativos que assinalam ao leitor a presença da autorepresentação textual.28

Abertamente conscientes das limitações das diferentes formas de representação, os textos paródicos utilizam, assim, essas formas como modelos que exemplificam a apreensão específica do mundo feita por cada uma delas. Por outro lado, dada a necessidade implícita à nossa condição de estruturar o real com base nestes discursos diversos, o diálogo intertextual é tomado como a forma possível de conhecimento e (re)criação do mundo: "Languages, apt or mendacious, reconstitute

Bakhtin, The Dialogic Imagination, p. 76.

28 Linda Hutcheon, Uma Teoria da Paródia: Ensinamentos das Formas de Arte do Século XX, trad.

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the universe (...) into signs of their own making, turning nature into culture, and culture into an immanent semiotic system. The language animal has emerged, his/her measure the intertextuality of all life."29

Como animal linguístico, o homem vive numa encruzilhada de discursos, sempre posicionado entre " "nós" de circuitos de comunicação"30 a partir dos quais

faz um trabalho de re-escríta, de reconstrução da sua percepção do real: conta as suas histórias, consciente do espírito intertextual que elas não escondem. "The writer does not originate his discourse, but mixes already extant discourses"31, afirma B.

McHale. A criação ironiza os seus próprios pressupostos, revela os seus limites e os seus alicerces noutras construções linguísticas, mas abre também o texto a novas atitudes e a novos processos de questionação. Os textos expõem-se ao diálogo, porque os seus produtores assumem igualmente a intertextualidade da sua existência, e, consequentemente, a impossibilidade de uma percepção unitária e estanque da sua realidade de criadores.

Este facto implica uma mudança na definição e limitação do que pode ser considerado o centro criador de cada história, o seu autor. Se a importância da sua originalidade é posta em causa, se o discurso linguístico em que baseia a sua perspectivação do mundo é relativizado, então é a sua própria existência enquanto centro nevrálgico da produção de textos e sujeito autónomo que estão em jogo, como Hans Bertens explica32. Mais do que nunca, torna-se necessária a

Hassan, The Postmodern Turn, p. 172.

30Lyotard,^4 Condição Pós-Moderna, p. 41.

31 Brian McHale, Postmodernist Fiction (London/New York: Routledge, 1994), p. 200. 32 Ver nota 10.

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contextualização no tempo, no espaço e no ambiente ideológico do sujeito como entidade discursiva, o que acarreta a revisão da concepção tradicional do sujeito:

That sense of the coherent, continuous, autonomous and free subject is, as Foucault too suggested in The Order of Things, a historically conditioned and historically determined construct, with its analogue in the representation of the individual in fiction. In historiographie metafiction, written from the perspective of a different historical moment, (...) character gets represented rather differently.33

Na cultura pós-moderna, a possibilidade de conformidade da actividade representacional com o real é posta em causa, o que provoca um movimento para a preferência das pequenas narrativas, conscientes do seu carácter reconstrutivo do real e da sua fundação num contexto histórico-sócio-cultural definido. Paralela a esta tendência, e dependente dela, está a ideia de que qualquer concepção do sujeito é também sempre uma construção contextualizada, fundada numa matriz linguístico-ideológica que lhe dá vida. Depreende-se daqui a necessidade de estudar a forma como esta matriz modela a noção da subjectividade criadora e de procurar outras formas de a conceber, uma vez que a versão moderna do homem "as the measure of all things"34 já não faz sentido.

A ficção é um campo de estudo vasto nesta área, e daí que a própria representação do indivíduo que ela faz seja também questionada. Ao expor a representação como uma construção, o que pretende é problematizar a possibilidade da existência de um sujeito coerente numa realidade que já não o é. Daí o jogo com a subjectividade narratorial que é feito, por exemplo, na metaficção historiográfica, ela própria já uma forma híbrida e lúdica de tornar visíveis os paradoxos de todo e qualquer modelo linguístico de estruturação do real: "On the one hand, we find overt,

Hutcheon, The Politics of Postmodernism, p. 38. Hassan, The Postmodern Turn, p. 5.

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deliberately manipulative narrators; on the other, no one single perspective but myriad voices, often not completely localizable in the textual universe. In both cases, the inscription of subjectivity is problematized, though in very different ways."35

Abertamente, qualquer uma destas vias expõe o carácter "ficcional" da representação de um sujeito na linguagem: a escolha de um narrador que manipula sem escrúpulos os factos que narra e as personagens que descreve (rugindo do papel a que tradicionalmente estaria restringido e dando-se todas as liberdades na construção das suas histórias) ou a opção por uma multiplicidade de vozes narrativas que se confundem e dialogam entre si (retirando ao leitor qualquer hipótese de encontrar um centro de valores em que ancorar o texto) servem o mesmo propósito. Este consiste, naturalmente, em demonstrar que é na própria linguagem que a noção de sujeito se institui, que cada discurso estruturado em contextos ideológicos definidos constrói a sua noção do indivíduo e da sua subjectividade. "In other words, subjectivity is a fundamental property of language",36 afirma L. Hutcheon. É no acto

de narrar que o sujeito se constrói, porque só no discurso encontra grelhas de significação que lhe podem dar sentido.

Pela linguagem, o homem edifica, assim, a sua visão do mundo e de si próprio, e a consciência deste facto não conduz necessariamente à esterilidade artística. Pelo contrário, a sua posição de produtor dentro de um determinado contexto, que expõe as suas limitações recorrendo, por exemplo, à sua própria ficcionalização no mundo da narrativa, acaba por favorecer a reflexão sobre a

Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 160. Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 168.

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proximidade ontológica das histórias literárias e das construções narrativas da história, da ciência, e de todas as áreas do saber e, por analogia, das concepções de subjectividade inerentes a cada uma destas matrizes de acesso ao real. McHale expõe em Postmodernist Fiction as questões que o autor contemporâneo pode explorar na sua ficção ao confundir estes diferentes campos ontológicos:

Where, then, does the level of the irreducibly "real" world lie? The harder we look for it, the more elusive and miragelike it becomes. Behind the "truth of the page" -the reality of -the writer at his desk - lies -the superior reality of -the writing itself; but behind the reality of the writing must lie the superior reality of the act of writing that has produced it! An uncomfortable circularity, and one that hinges on the strangely amphibious ontological status, the presence/absence, of the author.37

De facto, o autor parece surgir na ficção pós-moderna como um ser anfíbio, que conscientemente se instala na fronteira entre os dois mundos em que vive - o da ficção e aquele em que tem lugar o acto de escrita dessa ficção -, chegando mesmo a imiscuir-se autobiograficamente no mundo que narra. Esta situação possibilita a exposição das semelhanças discursivas entre estes mundos (tanto na ficção como na "realidade" se contam histórias sobre a vida e o homem), e a consciencialização para questões epistemológicas centrais (a importância destas histórias como única forma de construção do conhecimento). Apesar de McHale pretender ignorar este segundo aspecto, ele é também central às preocupações da ficção pós-moderna, sendo fulcral para o surgimento deste ser ambíguo e misterioso que é o autor contemporâneo.

Em resumo, a tendência actual para a relativização das pretensões de universalidade e coerência total dos conceitos de sujeito, verdade, representação e realidade deve-se a uma descrença em sistemas totalizantes capazes de justificar o carácter absoluto destes conceitos. Por trás do descrédito das metanarrativas

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legitimadores está a consciência da sua imersão em pressupostos ideológicos que modelam a sua concepção do mundo e informam todas as noções centrais à identidade humana que elas constroem no seu discurso. O acesso ao real é, assim, sempre mediado por uma matriz linguístico-ideológica, que constrói a sua percepção do mundo entre uma infinidade de possíveis percepções. Daí a necessidade de valorizar o contexto discursivo e histórico-social de cada uma destas construções, o qual instaura a sua legitimidade (provisória e limitada, porque não conseguem ver além dos valores inerentes à matriz que lhes dá significado). Tanto a teoria como a arte pós-modernas exploram esta necessidade: "... both have foregrounded the need to break out of the still prevailing paradigms - formalist and humanist - and to "situate" both art and theory in two important contexts. They must be situated, first, within the enunciative act itself, and second, within the broader historical, social, and political (as well as intertextual) context implied by that act and in which both theory and practice take root."38

Perante a perda das fundações metafísicas para os valores tidos até agora como universais e absolutos, dá-se uma viragem para o modo narrativo, consciente do seu enraizamento num contexto definido mas também do seu papel fundamental enquanto veículo possível do conhecimento. Lyotard explica a sua função:

As narrativas, como se viu, determinam os critérios de competência [de cada indivíduo no sistema social em que se insere] e/ou ilustram a sua aplicação. Elas definem, deste modo, o direito de dizer e de fazer na cultura e, como elas são também uma parte desta, encontram-se assim legitimadas.39

Hutcheon,^4 Poetics of Postmodernism, p. 75. Lyotard, A Condição Pós-Moderna, p. 54.

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É nesta legitimação auto-construída, conscientemente parcelar e provisória, dada caso a caso a cada versão narrativa da realidade, que se fundam as (in)certezas da nossa cultura. O pluralismo torna-se a única atitude possível e razoável, porque, regressando à epígrafe de Hassan, os conceitos centrais à vida humana, como o desejo e a morte, têm que ser "literais", têm que existir de alguma forma para que o mundo possa fazer sentido e não ficar vazio de significados.

O que Hassan propõe (e com ele, de formas variadas, a maior parte dos representantes contemporâneos de todos os campos de conhecimento) é a adopção de uma atitude pragmática de legitimação das nossas versões de realidade como única forma de a percepcionar, não esquecendo contudo as suas limitações:

God, King, Father, Reason, History, Humanism have all come and gone their way, though their power may still flare up in some circles of faith. We have killed our gods - in spite or lucidity, I hardly know - yet we remain ourselves creatures of will, desire, hope, belief. And now we have nothing - nothing that is not partial, provisional, self-created - upon which to found our discourse.41

Os "deuses" que legitimavam o nosso acesso ao conhecimento já não existem, mas há que procurar esperançosamente outros tipos de fundação, mesmo que parciais e provisórios. A viragem para as pequenas histórias de âmbito local, que dialogam entre si, produzindo novas histórias, novos sentidos (e também novas dúvidas), constitui uma forma de crença na hipótese da existência de significados, um acto de fé na possibilidade do conhecimento, ciente contudo dos paradoxos que implica. Em "Pluralism in Postmodern Perspective", é de novo Hassan quem explora estes paradoxos:

... I do not know how to prevent critical pluralism from slipping into monism or relativism except to call for pragmatic constituencies of knowledge, sharing values,

40 Hassan, The Postmodern Turn, p. 119. 41 Hassan, The Postmodern Turn, p. 180.

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traditions, expectancies, goals. I do not know how to make our "desert" a little greener, except to invoke enclaves of genial authority, where the central task is to restore civil commitments, tolerant beliefs, critical sympathies. I do not know how to give literature or theory or criticism a new hold on the world, except to remythify the imagination, at least locally, and bring back the reign of wonder into our lives. In this, my own elective affinities remain with Emerson: "Orpheus is no fable: you have only to sing, and the rocks will crystallize; sing, and the plant will organize; sing, and the animal will be born" ...

But who nowadays believes it?42

Influenciado pela escrita visionária e pela tendência pragmática de William James, nomeadamente em The Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy, Hassan afirma a necessidade de remitificar a imaginação pós-moderna, de criar histórias locais que lhe permitam o acesso à construção do real e dos seus sentidos. Contudo, como continuar a acreditar, com Emerson, no poder de Orfeu, quando o ponto de partida desta necessidade é precisamente a necessidade de "desfazer", de perceber a priori o carácter "ficcional" de todas as formas de representação? Só acreditando, porque a impossibilidade do sentido "goes against something in him."43

*

Curiosamente, Emerson é o autor que Paul Auster escolheu para dar início a Leviathan, apesar de a epígrafe da obra não ter o carácter esperançoso da frase citada por Hassan: "Every actual State is corrupt", afirma agora Emerson, com a consciência lúcida de que entre a ideologia política e a realidade empírica vai uma distância intransponível. Leviathan faz esta constatação, ao contar a história trágica de um sonhador que não aceitava esta distância.

Hassan, "Pluralism in Postmodern Perspective", Exploring Postmodernism, p. 32. Hassan, The Postmodern Turn, p. 119.

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Esta temática é equacionada, na obra, com a questão do poder da linguagem para construir o real, uma vez que a estruturação ideológica do estado ideal só pode ser representada linguisticamente, o que pressupõe que nunca possa ser equivalente à realidade de um estado concreto. Para sair deste impasse, torna-se necessário, como já foi afirmado, aceitar pragmaticamente a "ficcionalidade" de toda a representação, mas esta saída é, conscientemente, para Auster como para outros autores contemporâneos, uma solução de compromisso: da teoria, das construções, dos discursos contextualizados à veracidade empírica dos factos, à violência, à desordenação e ao caos do real vai uma distância intransponível.

O discurso não consegue, assim, ajustar-se à realidade que descreve, e é desta premissa que Leviathan nasce. A imagem de fragmentação com que o primeiro capítulo abre, ao referir-se à morte violenta de Benjamin Sachs, dá o mote para a visualização do potencial destrutivo inerente à condição humana, perante a qual o poder referencial da linguagem só pode ser relativizado.

Em "The Book of Memory", a segunda parte de The Invention of Solitude, obra estruturante das teorias que Auster defende nos seus romances subsequentes, este tema é já explorado: "The first word appears only at a moment when nothing can be explained anymore, at some instant of experience that defies all sense. To be reduced to saying nothing. Or else, to say to himself: this is what haunts me. And then to realize, almost in the same breath, that this is what he haunts."44. A narrativa surge

do silêncio do indizível, da incapacidade de dar sentido à experiência do caos e da morte, tornando-se uma forma de sublimar a violência do real que assombra o seu

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narrador e que este, mesmo que inadvertidamente, acaba por perseguir e tentar integrar numa construção assimilável à sua consciência. É, pois, deste contacto com o indizível da violência e da morte que a narrativa de Peter Aaron desponta. O seu dilema é descobrir como sublimar pela narrativa a sua perda, quando está consciente da impossibilidade de referência directa desta narrativa à realidade que tenta descrever.

O caminho é, naturalmente, a aceitação do carácter limitado e provisório das construções com que cria sentidos para a vida e a morte de Sachs, e a desconfiança, implícita em toda a obra, dos valores absolutos e universais. "Language is not truth. It is the way we exist in the world", diz Auster em "The Book of Memory"45, e as

implicações desta consciência são bem visíveis em Leviathan. As construções linguísticas com que Aaron, como as outras personagens, tenta assimilar e compreender o inacreditável da vida empírica são, por isso, assumidas como ficcionais, incapazes de corresponderem directamente ao mundo que descrevem. Durante o romance, muitos são os episódios em que esta relativização do conceito de verdade é afirmada, e o próprio narrador descreve a sua perplexidade quando posicionado perante versões antagónicas de um mesmo facto:

After that lunch, I no longer knew what to believe. Fanny had told me one thing, Sachs had told me another, and as soon as I accepted one story, I would have to reject the other. There wasn't any alternative. They had presented me with two versions of the truth, two separate and distinct realities, and no amount of pushing and shoving could ever bring them together. (...) I hesitated to choose between them. I don't think it was a question of divided loyalties (...), but rather a certainty that both Fanny and Ben had been telling me the truth. The truth as they saw it, perhaps, but nevertheless the truth. Neither one of them had been out to deceive me; neither one had intentionally lied. In other words, there was no universal truth.46

45 Auster, The Invention of Solitude, p. 161.

46Paul Auster, Leviathan (London/Boston: Faber and Faber, 1993), p. 98, sublinhado meu. Futuras

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Desacreditada a possibilidade da existência de uma verdade universal, resta a Aaron (e, por trás dele, a Auster) assumir a credibilidade parcial das diferentes versões de realidade a que tem acesso, e com elas construir uma interpretação subjectiva e minimamente coerente dos acontecimentos. Proliferam, assim, no romance, versões de realidade controversas, mesmo antagónicas, que, contudo, se iluminam mutuamente e dialogam entre si, abrindo a obra a uma infinidade de vozes e percepções do mundo ficcional.

Para esta concepção pluralista e dialógica implícita em Leviathan contribui sobremaneira o relevo que Auster dá à teoria do romance de M. M. Bakhtin, expresso claramente em "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory":

LM: That sounds like Bakhtin's notion of the 'dialogic imagination ', with the novel

arising out of this welter of conflicting but dynamic voices and opinions. Heteroglossia...

PA: Exactly. Of all the theories of the novel, Bakhtin's strikes me as the most brilliant, the one that comes closest to understanding the complexity and the magic of the form.47

O romance surge como a forma adequada à expressão da "heteroglossia", e daí a procura por parte de Auster de modelos que integrem este conceito: é o caso dos contos tradicionais, nomeadamente da estrutura narrativa d'As Mil e Uma

Noites, em que a narradora faz um encadeamento de histórias paralelas que acabam

por se esclarecer mutuamente e pelas quais ela consegue vencer a ameaça da morte que pesa sobre a sua cabeça e criar novos sentidos para a vida. Parece ser este o objectivo do confronto de histórias tão diversas (e, contudo, tão próximas no material empírico que as originou) que se dá em Leviathan. Posto perante o facto

47 Paul Auster, "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory", The Red Notebook and other

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indescritível da morte de Sachs, Aaron começa a narrar um conjunto de histórias sobre a sua vida, não se inibindo mesmo de expor versões diferentes de outras personagens e do próprio Sachs, que acabam por, indirectamente, fazer luz sobre os possíveis sentidos da morte do amigo, criando construções interpretativas que o tornam assimilável.

O próprio Aaron expõe versões pessoais contraditórias, mas nem por isso deixa de acreditar na hipótese de extrair sentido do seu diálogo. Se cada contexto dá origem a um discurso, então naturalmente cada discurso dá origem a significados diferentes e complementares. Na entrevista já mencionada de The Red Notebook, Auster explica a importância do romance a este nível: "Like everyone else, I am a multiple being, and I embody a whole range of attitudes and responses to the world. Depending on my mood, the same event can make me laugh or make me cry; it can inspire anger or compassion or indifference. Writing prose allows me to include all of these responses. I no longer have to choose among them."48

O diálogo destas diferentes respostas na obra conduz, assim, à relativização de todas elas: apesar da perspectiva centralizadora do narrador, o centro de valores da narrativa perde-se na confusão de versões e na incerteza das construções que o próprio Aaron apresenta. Ele baseia a sua narrativa na memória (naturalmente selectiva e com interesses estratégicos assumidos e inconscientes) e no seu poder de observação, mas desde o início admite a hipótese da falsidade da sua versão. Se o seu objectivo é " explain who he was and give the true story of how he happened to be

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on that road in northern Wisconsin" (2, sublinhado meu), a "verdade" desse testemunho nunca é assumida como absoluta:

I can only speak about the things I know, the things I have seen with my own eyes and heard with my own ears. (...) I have nothing to rely on but my own memories. (...) There is nothing definitive about it [this book]. It's not a biography or an exhaustive psychological portrait, and even though Sachs confided a great deal to me over the years of our friendship, I don't claim to have more than a partial understanding of who he was. I want to tell the truth about him, to set down these memories as honestly as I can, but I can't dismiss the possibility that I'm wrong, that the truth is quite different from what I imagine it to be. (22)

A honestidade do seu propósito manifesta-se precisamente pela admissão da parcialidade das construções que vai fazendo sobre a vida de Sachs. O que conhece dele corresponde apenas a uma parte do que pode ser conhecido sobre qualquer ser humano, e não se pode esquecer: "... even if we're surrounded by others, we essentially live our lives alone: real life takes place inside us."49 Isto pressupõe a

existência de pelo menos duas vidas, a exterior, supostamente mais artificial, e a interior, o local da "verdadeira" vida. Ora Aaron só pode ter acesso ao que viu e ouviu, e mesmo isto não corresponde a uma percepção unitária da personagem que descreve. Daí que, logo no seu primeiro encontro, não seja apenas o excesso de álcool que lhe permite ver Sachs como "a man with two heads and two mouths" (22).

A descrição de alguém implica, assim, a relativização das percepções individuais, e torna-se uma tarefa impossível em toda a sua plenitude. Contudo, são estas construções subjectivas que permitem o conhecimento parcial e limitado do outro, como Auster explica em "Portrait of an Invisible Man", a primeira parte de

The Invention of Solitude:

Impossible to say anything without reservation: he was good, or he was bad; he was this, or he was that. All of them are true. At times I have the feeling that I am writing Auster, The Red Notebook, p. 142.

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about three or four different men, each one distinct, each one a contradiction of all the others. Fragments. Or the anecdote as a form of knowledge50

As palavras do narrador sobre o seu pai expressam igualmente as ambiguidades que Aaron encontra na descrição que faz de Sachs. Novamente se afirma a consciência irónica das limitações mas também das possibilidades das pequenas histórias para estruturarem a estranheza do real em formas de conhecimento. Numa cultura em que, como diz Ihab Hassan, a palavra de ordem é desconstruir, são as versões localizadas que, pragmaticamente, possibilitam enquadrar e dar sentidos à realidade.

Leviathan constitui, assim, para Auster, um instrumento de exploração das

finalidades e paradoxos inerentes ao acto de escrita enquanto momento da reconstrução do mundo. Daí o pendor meta-reflexivo da obra, a que se associa a integração desestabilizante de elementos autobiográficos (os episódios da visita à Estátua da Liberdade, da queda amparada por um estendal de roupa, das dificuldades económicas e pessoais do narrador após o seu divórcio e dos autógrafos falsos são bons exemplos) e de figuras históricas e literárias exteriores ao mundo do romance (principalmente em The New Colossus, o livro dentro do livro em que Ralph Waldo Emerson, Buffalo Bill Cody e Walt Whitman convivem com Raskalnikov, Huckleberry Finn e Ishmael). Entra-se, pois, na área da metaficção historiográfica, em que os campos ontológicos da vida presente e passada se confundem com o da ficção para expor a semelhança das construções que os fazem compreensíveis à

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experiência humana, e apostar de forma irónica nas "anecdotes" como sustentáculos narrativos dessas construções.

"Auster's work always contains aspects of the author's own life, references to other literature, and descriptions of actual historic figures and events. This is historiographie metafiction as Linda Hutcheon defines it", afirma Dennis Barone na Introdução a Beyond the Red Notebook51 Como foi exposto, Leviathan não foge à

regra, apesar do realismo, ou, talvez mais correctamente, da verosimilhança patente em toda a obra. Barone explica: "He [Auster] does use the metafictional devices of his predecessors (...), but he does not use them to frustrate or disrupt the reading process. (...) Auster does not turn typography on its head (...), but rather he embeds philosophical investigations on the nature of fiction within a narrative that never takes itself to be the real itself"52

Apesar de desestabilizado, o processo de leitura de Leviathan não é frustrado. Pelo contrário, a narrativa de Aaron é, desde o início, assumida por este como uma construção interpretativa (como uma ficção), mas a forma da narração acaba por ser propícia à investigação da natureza e limites da ficção e do conhecimento. De facto, todo o livro constitui para Aaron uma forma de relatar subjectivamente a história de Sachs (ou seja, de ficcionalizar o seu passado), esbatendo-se assim os contornos definidos do conceito de verdade. Este não é um testemunho isento (nem o poderia

Dennis Barone, "Introduction: Paul Auster and the Postmodern American Novel", Beyond the Red

Notebook: Essays on Paul Auster, ed. Dennis Barone (Philadelphia: University of Pennsylvania

Press, 1995), p. 5.

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ser), mas uma tentativa de encontrar sentidos e de reflectir sobre esta demanda, no mundo do romance como no da realidade.

"In a work of fiction, one assumes there is a conscious mind behind the words on the page. In the presence of happenings in the so-called real world, one assumes nothing. The made-up story consists entirely of meanings, whereas the story of fact is devoid of any significance beyond itself, afirma Auster em "The Book of Memory"53. E, contudo, as personagens dos seus romances, dentro da "realidade" do

seu mundo, não param de procurar ligações e padrões entre os acontecimentos, à semelhança do que se considera hoje acontecer a cada instante com cada ser humano "real". Daí que, em Leviathan, não sejam os leitores os primeiros a procurar sentidos: toda a obra se funda na criação de estruturas de compreensão do real por parte de Aaron, mas também de Sachs, Maria Turner, Fanny, Lillian Stern, e todas as outras personagens.

O modelo interno de toda a narrativa é, por isso, The New Colossus, o único romance publicado por Sachs. Este é também uma metaficção historiográfica em que, segundo Aaron, se procuram relatar pequenas histórias verídicas ou verosímeis ligando as personagens, as figuras históricas e os acontecimentos mais estranhos e diversos. As coincidências ganham significados, e o real parece ser lido como uma obra literária: Benjamin Sachs mitologiza o passado; a narrativa de Aaron faz exactamente o mesmo em relação à vida de Sachs, e daí a ambiguidade, mas também a riqueza, de Leviathan.

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O projecto de Aaron pressupõe, assim, um trabalho de re-escrita a dois níveis: ao nível da avaliação subjectiva que fez do que viu e ouviu na memória, e ao nível da construção com interesses específicos e contextualizados da vida de Sachs que empreende agora. Os modos de focalização da narrativa têm por base estes dois níveis de re-escrita: a presença de um narrador conscientemente manipulador e centralizador não consegue nem pretende escamotear a multiplicidade de perspectivas, de versões de realidade presentes na obra. Deste modo, o acto de reconstrução de Sachs a partir dos fragmentos passíveis de observação e análise não é fruto de uma subjectividade independente, mas de um processo de recriação colectivo e intertextual, em que participam o próprio Sachs, as personagens que o conheceram, o narrador e os textos de todos os escritores presentes na obra. O papel do narrador-escritor é, pois, também relativizado, o que põe em questão a possibilidade da originalidade autorial no mundo da narrativa e, por analogia, no mundo do escritor "real", Paul Auster. Em ambos, a função autorial é dispersa por um grande número de discursos, entre os quais o de cada leitor individual, que re-escreve a obra no acto de a 1er. Auster não esquece este facto, e daí o comentário em "Portrait of an Invisible Man": "... once this story has ended, it will go on telling itself, even after the words have been used up."54

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Construindo histórias

Falou. E tendo Xerazade ouvido toda a história de seu pai, disse: «Desejo, meu pai, faças tudo como já te pedi!» O vizir, sem mais insistir, mandou fazer a trouxa da filha Xerazade e fez sabedor do facto o rei Schariar.

Xerazade entretanto fez recomendações a sua irmã mais nova e disse-lhe: «Quando eu estiver ao lado do rei, mandarei que te vão buscar; e quando tu chegares e vires o rei a acabar de fazer coisas comigo, dir-me-ás: "Conta-me, minha irmã, uns contos maravilhosos que nos ajudem a passar a noite!" E eu então contar-te-ei uns contos que, se Alá quiser, serão a causa da libertação das filhas dos Muçulmanos.»

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1. As histórias, a morte e a vida: de Xerazade ao espaço

da memória

Parler, c'est célébrer, et célébrer, c'est glorifier, faire de la parole une pure consumation rayonnante qui dit encore quand il n'y a pas plus rien à dire...' A narrativa de Xerazade ao rei Schariar, descrita em As Mil e Uma Noites, parte da necessidade sentida pela narradora de acabar com o reino de terror e morte que Schariar instituiu, libertando as vítimas inocentes ("as filhas dos Muçulmanos") de um destino trágico a que parecem estar votadas. Xerazade narra com a consciência da sua morte iminente, transformada pelo rei em forma de vingança pela traição da sua mulher, usando de uma estratégia narrativa planeada para retardar a morte e libertar as donzelas do reino para a vida. Em The Invention of Solitude, Paul Auster sintetiza de forma clara as motivações e o projecto de Xerazade para contar as suas histórias:

The invention of solitude. Or stories of life and death.

The story begins with the end. Speak or die. And for as long as you go on speaking, you will not die. The story begins with death.2

Sendo uma donzela culta e letrada, Xerazade usa os textos e os autores que conhece para salvar vidas (a sua, mas também a das poucas virgens que sobreviveram à ira do rei), quebrando a cadeia de mortes promovida por Schariar. O discurso que ela escolhe, contudo, não é teórico, argumentativo ou informativo: não expõe factos, antes narra histórias maravilhosas que acabam sempre por espelhar a situação em que o rei, o reino e ela própria se encontram.

1 Maurice Blanchot, L'espace littéraire (Paris: Gallimard, 1955), p. 210. 2 Auster, The Invention of Solitude, p. 149.

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A primeira história que Xerazade conta, a "História do Mercador e do «Efrit»", é já constituída por uma série de níveis narrativos que reflectem o modo de construção próprio d'As Mil e Uma Noites, em que diferentes contos se vão encadeando e criando sentidos metafóricos amplos, ao mesmo tempo que suspendem a ameaça da morte. Ao reflectir sobre o momento em que o "efrit" explica ao mercador a razão por que pretende a sua morte (como vingança pelo papel inadvertido deste na morte do seu filho), Auster afirma:

This is guilt out of innocence (echoing the fate of the marriageable girls in the kingdom), and at the same time the birth of enchantment - turning a thought into a thing, bringing the invisible to life. The merchant pleads his case, and the genie agrees to stay his execution. But in exactly one year the merchant must return to the same spot, where the genie will mete out the sentence. Already, a parallel is being drawn with Sherhzad's situation. She wishes to delay her execution, and by planting this idea in the king's mind she is pleading her case - but doing it in such a way that the king cannot recognize it. For this is the function of the story: to make a man see the thing before his eyes by holding up another thing to view.3

A estrutura narrativa d'As Mil e Uma Noites invoca, assim, um conjunto de narradores pertencentes a diferentes níveis ontológicos que conseguem, pelas imagens metafóricas infundidas nos diferentes patamares de recepção, enfrentar a ameaça ou a certeza da morte através da consciencialização dos ouvintes para os valores positivos e regeneradores da vida. Se a maior parte dos narradores das histórias que Xerazade dá a conhecer ao rei partem da constatação do luto, do nojo, da perda, ou da ira dos seus respectivos ouvintes, a verdade é que as suas narrativas acabam por sublimar a dor destes sentimentos, ao permitirem o regresso ao contacto com o mundo e com a vida. A "História do Rei Ornar Al-Nemán" é um bom exemplo: de luto pelo assassinato violento e traiçoeiro de seu irmão Scharkán,

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envolto em sentimentos de tristeza e amargura que o faziam definhar de dia para dia e abandonar a sua costumada valentia, Daul'makan apela ao vizir Dandán, pródigo contador de histórias e fiel amigo da sua família real:

"Que farei, meu vizir, para olvidar as penas que me atormentam e pôr fim ao nojo que sobrecarrega a minha alma?"

Respondeu o vizir Dandán: "Ó rei, conheço um único remédio para a tua moléstia, e vem a ser o contar-te uma história de antigamente, daqueles famosos reis de que falam os anais. (...) Esta noite, quando o acampamento estiver completamente mergulhado no sono, contar-te-ei, se Alá quiser, uma história que te deixará maravilhado, e te dilatará o peito, e te fará achar demasiado curto o período do cerco."4

Começa aqui uma de entre muitas histórias dentro da história, a "História de Aziz e de Aziza e do Belo Príncipe Diadema", que surtirá os efeitos desejados, ao conduzir o rei Daul'makan para sentimentos de amor e paz, fazendo-o esquecer a perda do irmão e lembrando-lhe a necessidade de cuidar do seu povo e da sua família. No âmbito da narrativa principal, é o próprio rei Schariar o ouvinte-alvo desta história: ao narrar contos sobre contadores de histórias que conseguiram, pelo encantamento e pela mensagem implícita nas suas palavras, trazer para a vida e fazer esquecer a morte a ouvintes obcecados pelas ideias de vingança, saudade, desconfiança e amargura, Xerazade consegue, ao cabo de mil e uma noites, acalmar os intuitos de violência e ira do rei. Mais ainda, as suas histórias acabam por literalmente produzir a vida, já que só o seu poder lhe permitiu sobreviver o tempo necessário para dar ao rei três herdeiros. Daí o agradecimento de Schariar à sua salvadora, fonte de vida e esperança no futuro:

"Ó Xerazade, como esta história era esplêndida e admirável! Tu, sábia e inteligente, instuíste-me, fizeste-me ver o que sucedeu a outros que não eu e reflectir atentamente nos ditos dos reis e dos povos antigos, e nas coisas extraordinárias e maravilhosas ou tão-somente dignas de atenção que com eles se passaram. E, com ter-te ouvido durante estas mil noites mais uma, a minha alma ficou profundamente mudada e feliz e

4 J. C. Mardrus, As Mil e Uma Noites, trad. Manuel João Gomes (Lisboa: Temas e Debates, 1996),

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embebida do gosto de viver. Glória, pois, ao que te concedeu, filha do meu vizir, tantos dons escolhidos, ao que perfumou a tua boca e pôs na tua língua a eloquência e na tua fronte a inteligência."5

Como as histórias de Xerazade, também as obras ficcionais de Auster nascem da necessidade de sublimar o silêncio, a ausência, o luto, a própria morte, tentando de diferentes modos expressar e assimilar metaforicamente o que é, à partida, indizível e incompreensível, e, consequentemente, reconstruir sentidos para a vida. A própria poesia do autor aponta já este caminho, expondo a relação implícita entre a escrita, a morte e a vida. "S. A. 1911-1979", um poema dedicado a seu pai, é um bom exemplo:

From loss. And from such loss

that marauds the mind - even to the loss

of mind. To begin with this thought: without rhyme or reason. And then simply to wait. As if the first word comes only after the last, after a life

of waiting for the word that was lost. To say no more

than the truth of it: men die, the world fails, the words have no meaning. And therefore to ask

only for words.

Stone wall. Stone heart. Flesh and blood. As much as all this.

More.6

Perante a morte, o silêncio e a falência do mundo, que as palavras não conseguem expressar, é, contudo, à linguagem que o poeta recorre: é a própria consciência do sem-sentido da perda que dá lugar à expressão verbal, único meio (conscientemente fugaz e auto-limitado) de renovar o acesso à vida e à hipótese do

5 Mardrus, As Mil e Uma Noites, vol. 3, p. 942.

6Paul Auster, Ground Work: Selected Poems and Essays 1970-1979 (London/Boston: Faber and

Referências

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