• Nenhum resultado encontrado

Biografia, autobiografia e o espelho de Thoreau

No documento Da ficção em Leviathan de Paul Auster (páginas 104-108)

Jogos de espelhos

1. Biografia, autobiografia e o espelho de Thoreau

Autobiography is what genius makes of it.'

De maneiras diferentes, Leviathan relata dois processos de historificação: o primeiro, explicitamente representado, corresponde à reconstrução abonatória da imagem de continuidade de Sachs, levada a cabo por Aaron; o segundo diz respeito ao trabalho de investigação dos detectives, que ameaça implicitamente todo o esforço do narrador. Do mesmo modo que Aaron tenta integrar na sua narrativa a pesquisa e a criação, também eles, apesar do seu estatuto de "profissionais da verdade", vão ter que ultrapassar o seu papel de investigadores e tornar-se intérpretes dos elementos que descobrem, construindo uma realidade que só parcialmente se sobreporá à "verdade":

It was a curious way for the visit to end - writing down the titles of my books for an FBI agent. Even now, I'm hard-pressed to know what he was after. Perhaps he thinks he'll find some clues in them, or perhaps it was just a subtle way of telling me that he'll be back, that he hasn't finished with me yet. I'm still their only lead, after all, and if they go on the assumption that I lied to them, then they're not about to forget me. Beyond that, I haven't the vaguest notion of what they're thinking. (...) They know nothing, and therefore they could be working on that premise [that I'm a terrorist], furiously searching for something that would link me to the bomb that went off in Wisconsin last week. And even if they aren't, I have to accept the fact that they'll be on my case for a long time to come. They'll ask questions, they'll dig into my life, they'll find out who my friends are, and sooner or later Sachs's name will come up. It will be my story, and once they've finished it, they'll know as much about me as I do myself. (7)

Como Aaron, os detectives procuram ligações entre os acontecimentos, partem para a sua reconstrução com intuitos bem definidos que influenciam a sua percepção da história do narrador. Os vestígios que procuram não estão, no princípio, à sua disposição, ao contrário do que acontece com Aaron quando começa

o seu relato, pelo que são obrigados a desenvolver um esforço de investigação muito superior ao do narrador, apesar de os objectivos de ambos serem semelhantes: construir histórias explicativas de uma realidade que não conseguem compreender. Os investigadores descobrem, através do seu trabalho de pesquisa e reconstituição, a história de Peter Aaron, ficando a saber tanto sobre o narrador como ele próprio, mas isto não significa que a história que encontram seja igual à auto-percepção de Aaron. Pelo contrário, o final vem mostrar que há aspectos da sua vida e das suas relações que o narrador desconhece, assim como as descobertas dos detectives têm que ser complementadas com o testemunho abonatório que aquele faz por meio de Leviathan.

Harris consegue, de facto, desvendar o mistério da explosão da bomba em Wisconsin e ligá-lo a outros aspectos obscuros da história que vai construindo:

Ben's name must have been known to them already, and since Harris was a crafty fellow, he wouldn't have missed the connection. One thing led to another, and by the time he showed up here yesterday, he had already fit the pieces together. Sachs was the man who had blown himself up in Wisconsin. Sachs was the man who had killed Reed Dimaggio. Sachs was the Phantom of Liberty. (244)

É pelo uso do seu poder imaginativo e interpretativo que Harris consegue juntar os fragmentos que conhece, mas mesmo após a descoberta está consciente das limitações da história que criou. "Maybe you can tell me something more about him" (244), pede o detective no seu último encontro com Aaron, e este entrega-lhe então o manuscrito da sua obra, a outra metade da história de Sachs, mas também da do narrador. É que, se a história construída pelos detectives se centra em Peter Aaron para encontrar a identidade do homem morto na explosão, o testemunho do narrador,

que tenta representar o percurso de Benjamin Sachs, acaba por dar coerência e estruturar pelo discurso a presença do próprio Aaron.

As duas personagens parecem, de facto, surgir lado a lado em ambas as histórias, como se o espaço biográfico de reconstrução da imagem de uma estivesse necessariamente dependente da (auto)representação da outra. A distinção estabelecida por Philippe Lejeune entre autobiografia e o que designa como "espaço autobiográfico" da obra de um autor é importante para a compreensão dos motivos que conduzem a esta situação. Em "Gide et l'espace autobiographique", Lejeune chama a atenção para a importância da leitura do conjunto de textos deste autor como uma exploração necessariamente ambígua mas enriquecedora da história da sua vida e das suas ideias, que o próprio Gide parece favorecer em detrimento da compartimentalização da sua obra de acordo com o seu carácter explicitamente autobiográfico, ficcional ou crítico:

Le but de Gide est donc de produire (au double sens d'inventer et de manifester) l'image de soi, celle d'un être vivant avec toute sa complication et son histoire; mais le moyen de ce but n'est pas l'emploi du récit autobiographique strictu sensu. C'est à une architecture de textes, certains de fiction, d'autres de critique, d'autres intimes certes, que Gide remet la tâche de manifester son image. Tout se passe comme s'il n'avait pas à écrire qui il est, mais à l'être en écrivant. L'image de soi n'a rien à voir avec un contenu d'énoncé, c'est un effet d'énonciation. Pour être produite, l'ambiguïté autobiographique ne passe pas nécessairement par l'autobiographie. Au contraire.2

De facto, uma autobiografia propriamente dita está marcada por um conjunto de intenções e restrições que não permitem ao seu autor a expressão das contradições intrínsecas à sua identidade. Se, contudo, a sua obra for tomada como um todo e interpretada como um "espaço autobiográfico" amplo, conseguir-se-á pelo menos encontrar sinais da ambiguidade inerente à sua condição humana.

Leviathan não é, na verdade, uma autobiografia, nem sequer um romance autobiográfico,3 mas faz parte deste "espaço" em que a presença do seu autor se

afirma indirectamente, como um "efeito da enunciação"- quer ao nível intradiegético, quer relativamente ao autor "real", Paul Auster. Ao reflectir sobre a influência do episódio da visita à Estátua da Liberdade do jovem Sachs na origem de The New Colossus, Aaron explica como este "espaço autobiográfico" funciona:

If not for Sachs's novel (...), I might have forgotten all about it. But since that book is filled with references to the Statue of Liberty, it's hard to ignore the possibility of a connection - as if the childhood experience of witnessing his mother's panic somehow lay at the heart of what he wrote as a grown man twenty years later. I asked him about it as we were driving back to the city that night, but Sachs only laughed at my question. (...) In the end none of that matters. Just because Sachs denied the connection doesn't mean that it didn't exist. No one can say where a book comes from, least of all the person who writes it. Books are born out of ignorance, and if they go on living after they are written, it's only to the degree that they cannot be understood. (35-36)

Estranhamente, só ao nível extradiegético se pode entender todo o alcance das palavras de Aaron. As ligações ambíguas entre a vida e a literatura tornam-se evidentes quando o que o escritor-narrador escreve sobre o papel de um episódio "verídico" na obra da personagem principal descreve o processo pelo qual o escritor- autor usa elementos autobiográficos na obra que cria através de Aaron, Leviathan. De facto, os livros nascem da ignorância, principalmente o que Aaron concebe, pois, para além das suas obsessões, integra também as do autor, Paul Auster, de que ele é apenas um veículo inocente. É o caso do episódio em questão, já retratado por A. em

3 Para Lejeune, a autobiografia pressupõe que autor, narrador e personagem tenham a mesma

identidade, mesmo que implícita, enquanto o romance, ainda que possua raízes autobiográficas, assenta na distinção entre estas posições: "Pour n'importe quel lecteur, un texte à allure autobiographique, qui n'est assumé par personne, ressemble comme deux gouttes d'eau à une fiction. (...) Ce qui définit l'autobiographie pour celui qui la lit, c'est avant tout un contrat d'identité qui est scellé par le nom propre. Et cela est vrai aussi pour celui qui écrit le texte. Si j'écris l'histoire de ma vie sans y dire mon nom, comment mon lecteur saurait-il que c'était moil II est impossible que la vocation autobiographique et la passion de l'anonymat coexistent dans le même être" - Lejeune, Le pacte autobiographique, p. 33.

The Invention of Solitude: "He remembers visiting the Statue of Liberty with his mother and remembers that she got very nervous inside the torch and made him go back down the stairs sitting, one step at a time."4

O mesmo acontece com um outro episódio autobiográfico de Auster inscrito na obra. Em The Red Notebook, o autor descreve o modo como o seu pai escapou à morte devido à intromissão casual de uma corda de roupa:

A year or two after that, my father was working on the roof of a building in Jersey City. Somehow or other (I wasn't there to witness it), he slipped off the edge and started falling to the ground. Once again, he was headed for certain disaster, and once again he was saved. A clothesline broke his fall, and he walked away from the accident with only a few bumps and bruises. Not even a concussion. Not a single broken bone.5

O acidente de Sachs é retratado de forma em tudo idêntica à queda do pai de Paul Auster, mas a leitura que o narrador faz dele é muito diferente da objectividade dos factos relatados em The Red Notebook. O tratamento dado em Leviathan possibilita, assim, que o autor explore as implicações e consequências (reais ou imaginárias) do acaso na construção da vida humana, nomeadamente na procura de sentidos para a estranheza e distanciamento manifestados no comportamento do seu pai.

Leviathan fiinciona, pois, como um campo de exploração do "espaço autobiográfico" de Auster através de um narrador criado para espelhar este processo. Para isso, toraa-se necessário revelar em que medida a narrativa de Aaron sobre Sachs não é estritamente uma biografia, mas um trabalho através do qual Aaron torna visível (cria) uma imagem de si próprio ao escrever sobre o amigo. Daí que desde o

No documento Da ficção em Leviathan de Paul Auster (páginas 104-108)