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Paul Auster, In the Country of Last Things (London/Boston: Faber and Faber, 1989), p 89.

No documento Da ficção em Leviathan de Paul Auster (páginas 47-67)

Construindo histórias

17 Paul Auster, In the Country of Last Things (London/Boston: Faber and Faber, 1989), p 89.

relativização da verdade e à incapacidade da linguagem para expressá-la. E, contudo, é a própria obra que dá testemunho de que a comunicação ainda é possível, e, mais importante ainda, obrigatória para a sobrevivência humana: o caderno de Anna chega até nós e é lido (das mais variadas e antagónicas formas), pelo que a personagem principal sobrevive pela sua narrativa. No seu testemunho, ela fornece as pistas para o tipo de reconstrução do real que todos somos obrigados a fazer, através da descrição das actividades inerentes à profissão de caçador de objectos:

As an object hunter, you must rescue things before they reach this state of absolute decay. You can never expect to find something whole (...) but neither can you spend your time looking for what is totally used up. (...) Everything falls apart, but not every part of every thing, at least not at the same time. The job is to zero in on these little islands of intactness, to imagine them joined to other such islands, and those islands to still others, and thus to create new archipelagoes of matter. You must salvage the salvageable and learn to ignore the rest.18

Salvar o recuperável e integrá-lo numa estrutura de sentido e simultaneamente aprender a conviver com o que não pode ser assimilado por essa construção é a tarefa que Peter Aaron tenta, com dificuldade, levar a cabo. Para isso, procura ilhas de sentido nos mais variados quadrantes da experiência humana, e tenta-as integrar de uma forma subjectiva e frutuosa no âmbito dos seus objectivos (criando arquipélagos, já não de matéria, mas de significados para o percurso de Sachs). Recorre a todo o tipo de testemunhos: os episódios que guardou na sua memória; as histórias que ouviu a outras personagens; os depoimentos e escritos do próprio Sachs; as diferentes versões sobre o mesmo facto descritas por uma ou diferentes personagens; os dados obtidos através dos jornais e dos detectives. Como em "The Locked Room", texto com motivações paralelas a Leviathan, o que emerge

desta rede de histórias é uma multiplicidade de cadeias de relações que se tornam o único meio de compreensão da vida humana:

I got dozens of statements like this one - from letters, from phone conversations, from interviews. It went on for months, and each day the material expanded, grew in geometric surges, accumulating more and more associations, a chain of contacts that eventually took on a life of its own. It was an infinitely hungry organism, and in the end I saw that there was nothing to prevent it from becoming as large as the world itself. A life touches one life, which in turn touches another life, and very quickly the links are innumerable, beyond calculation.19

As ligações entre vidas multiplicam-se, os contextos e as motivações também, pelo que se torna impossível encontrar o significado e a justificação de uma vida. Surge, por isso, a necessidade de abranger e descrever o maior número de significados e justificações, o que transforma os projectos do amigo de Fanshawe e de Aaron em empresas irrealizáveis na sua totalidade. Daí a semelhança do passo anterior com a seguinte citação de Leviathan:

One thing leads to another, and whether I like it or not, I'm as much a part of what happened as anyone else. If not for the breakup of my marriage to Delia Bond, I never would have met Maria Turner, and if I hadn't met Maria Turner, I never would have known about Lillian Stern, and if I hadn't known about Lillian Stern, I wouldn't be sitting here writing this book. Each one of us is connected to Sachs's death in some way, and it won't be possible for me to tell his story without telling each of our stories at the same time. Everything is connected to everything else, every story overlaps with every other story. (51)

O encadeamento narrativo próprio d'As Mil e Uma Noites, com a sobreposição de contos que se iluminam mutuamente, é aplicado por Aaron à sua narrativa, já que só assim pode lutar para superar a necessária parcialidade e fragmentação de cada história individual. Em Real Presences, George Steiner descreve um tipo de leitura da arte que se pode aplicar à estruturação que Aaron cria para o real: "... no man can read fully, can answer answeringly to the aesthetic, whose

'nerve and blood' are at peace in sceptical rationality, are now at home in immanence and verification. We must read as if.'"20 Temos que 1er como se as interpretações que

construímos pudessem ser verificadas e fazer sentido, e é a este impulso que Aaron obedece. Mais do que um testemunho real, a narrativa de Aaron é uma tentativa de construir histórias que dêem significado ao passado, de acordo com os pressupostos do que Paul Auster considera ser a maior influência da sua ficção: os contos tradicionais.

Através da sua estrutura metafórica e simples, estes contos conseguem sublimar os pensamentos mais funestos e indescritíveis da mente humana. Daí as extensas referências que Auster faz a As Mil e Uma Noites em "The Book of Memory", e a admiração que manifesta pela voz revitalizante de Xerazade, capaz de provocar leituras profundas e respostas que já não pertencem ao mundo da ficção, mas ao da realidade do leitor. Em "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory", Auster explicita o papel deste tipo de contos na sua obra:

In the end, though, I would say that the greatest influence on my work has been fairy tales, the oral tradition of story-telling. The Brothers Grimm, the Thousand and One Nights - the kinds of stories you read out loud to children. These are bare-bones narratives, narratives largely devoid of details, yet enormous amounts of information are communicated in a very short space, with very few words. What fairy tales prove, I think, is that it's the reader - or the listener - who actually tells the story to himself. The text is no more than a springboard for the imagination.21

A influência da estrutura narrativa dos contos tradicionais na obra de Auster é visível, por um lado, na sua procura de fidelidade à simplicidade, à limpidez e à contenção que caracteriza estes contos; por outro, no tipo de expectativas que põe

George Steiner, Real Presences: Is there anything in what we say? (London/Boston: Faber and Faber, 1991), p. 229.

no seu trabalho de escrita: apesar de reconhecer o seu carácter ficcional, está sempre implícita a crença do autor nas suas potencialidades para ordenar e explicar o mundo em que vive (como nas histórias de Xerazade, é pela ficção que se consegue criar sentidos e transformar o real).

O próprio Auster explica o papel das histórias que conta no seu entendimento da realidade:

In the long run, I suppose, I tend to think of myself more as a storyteller than a novelist. I believe that stories are the fundamental food for the soul. We can't live without stories. In one form or another, everybody is living on them from the age of two until their death. (...) It's through stories that we struggle to make sense of the world. This is what keeps me going - the justification for spending my life locked up in a little room, putting words on paper. The world won't collapse if I never write another book. But in the end, I don't think of it as an entirely useless activity. I'm part of the great human enterprise of trying to make sense of what we're doing here in the world.22

Pelas histórias, o homem tenta dar sentido à sua existência, e daí que elas estejam necessariamente presentes em todas as etapas da sua vida. Como contador de histórias, o que Auster pretende é, antes de mais, criar narrativas que de alguma forma lhe possibilitem um melhor entendimento de si próprio e dos outros, e simultaneamente facultem também aos seus leitores um pequeno "alimento para a alma".

Em Leviathan, este interesse do autor pelo papel das histórias na estruturação da vida humana é mesmo explicitamente retratado na exploração do episódio da ida para a Califórnia de Sachs, em que este, após a descoberta da identidade de Dimaggio, se tenta penitenciar do seu erro através de Lillian Stern. Para além de todas as conotações explícitas e implícitas à construção central da identidade da

22 Mark Irwin, "Memory's Escape: Inventing The Music of Chance - A Conversation with Paul

cultura americana (a hipótese do recomeço e do sonho americano), são importantes as referências recorrentes às semelhanças desta viagem com um conto de fadas, uma "fairy tale". De facto, Sachs parece pretender enquadrar o seu percurso de vida e justificá-lo de acordo com os padrões de simplicidade e a riqueza de sentidos

metafóricos dos contos, transformando a viagem para oeste numa história que tenta seguir os trâmites desta literatura.

Embora tenha a vantagem da distância temporal, o próprio Aaron subscreve este tipo de leitura, ao não deixar de fora da sua narração as referências que o protagonista lhe fizera aquando do relato da sua aventura:

That was the reason he had come to California in the first place: to reinvent his life, to embody an ideal of goodness that would put him in an altogether different relation with himself. But Lillian was the instrument he had chosen, and it was only through her that his transformation could be achieved. He had thought of it as a journey, as a long voyage into the darkness of his soul, but now that he was on his way, he couldn't be sure if he was traveling in the right direction or not. (198)

A viagem é considerada, por Sachs e por Aaron, como uma forma de expiação e redenção, e é vivida pelo primeiro em conformidade com os seus objectivos. Naturalmente, o real que ele encontra na Califórnia não se compadece com a forma que lhe pretendia dar a priori, pelo que os sentidos para a aventura se vão perdendo progressivamente. Desde o início, Sachs está consciente da impossibilidade de viver a vida como uma "fairy tale", mas nem por isso deixa de tentar criar significados para as contrariedades do seu percurso a partir dos quais possa viver o seu sonho de retribuição:

Once Maria had told him about Dimaggio and Lillian Stern, he understood that the nightmare coincidence was in fact a solution, an opportunity in the shape of a miracle. The essential thing was to accept the uncanniness of the event (...) He would go to California and give Lillian Stern the money he had found in Dimaggio's car. Not just the money - but the money as a token of everything he had to give, his entire soul. The alchemy of retribution demanded it, and once he had performed this act, perhaps there would be some peace for him, perhaps he would have some excuse to go on living.

Dimmagio had taken a life; he had taken Dimaggio's life. Now it was his turn, now his life had to be taken from him. That was the inner law, and unless he found the courage to obliterate himself, the circle of damnation would never be closed. (...) By handing the money over to Lillian Stern, he would be putting himself in her hands. That would be his penance: to use his life in order to give life to someone else; to confess; to risk everything on an insane dream of mercy and forgiveness. (167, sublinhado meu)

Perante o poder inexorável do acaso,23 Sachs opta pela construção de

sentidos, transformando as desgraças estranhas que sucessivamente lhe acontecem em elos de uma cadeia de necessidade, na qual baseia toda a sua acção posterior. O campo semântico do sonho e da redenção pela penitência, próprio dos contos tradicionais, começa então a ser explorado, como as palavras sublinhadas bem exemplificam, e será alargado ao longo de todo o episódio da estadia em Berkeley, lançando uma névoa de irrealidade sobre ele. De facto, a vivência da viagem como uma história padronizada, cujos passos estão ligados por uma lógica conhecida e visando resultados precisos, acaba por levantar a Sachs problemas graves, já que não consegue coadunar o que experiência com o percurso "ficcional" que estabelecera à partida. Daí que a sua primeira ideia de dar o dinheiro a Lillian de uma só assentada seja abandonada:

It was supposed to have been a quick, dream-like gesture, an action that would take no time at all. He would swoop down like an angel of mercy and shower her with wealth, and before she realized that he was there, he would vanish. Now that he had talked to her, however, now that he had stood face to face with her in the kitchen, he saw how absurd that fairy tale was. Her animosity had frightened him and demoralized him, and he had no way to predict what would happen next. If he gave her the money all at once, he would lose whatever advantage he still had over her. Anything would be possible then, any number of grotesque reversals could follow from that error. (177- 178, sublinhado meu)

Como não poderia deixar de ser, o esquema de acção em que baseara a ida para a Califórnia não consegue enfrentar o poder da contingência, mas nem assim

Sachs o abandona: perante situações imprevistas, ele faz ajustes ao seu modelo, na expectativa de assim poder controlar os acasos. Estes ajustes são, contudo, um sinal claro de que a sua posição é sempre diferente da que imagina, pelo que a sua decisão de dividir as dádivas de dinheiro não é o único "act of pure improvisation, a blind leap into the unknown" (178). Dai que, apesar de se assumir como um "anjo misericordioso", uma "fairy godmother" (179) que vem resolver todas as dificuldades de Lillian, esta se sinta justificadamente amedrontada pelas suas acções: Sachs começa por dar-lhe enormes quantidades de dinheiro, mas acaba por desaparecer com o resto; estabelece com ela uma relação amorosa para a vir depois a abandonar novamente na solidão; ocupa o papel de pai para a pequena Maria, mas troca-a pela defesa dos direitos das crianças em geral.

Cada viragem dos acontecimentos acarreta, assim, um afastamento da "fairy tale" que imaginara antes da partida, mas isso não o impede de continuar a criar novos padrões interpretativos pelos quais nortear a sua actuação. É mesmo das próprias ruínas deste sonho que Sachs cria uma nova história para dar sentido à vida:

Not only would I be using it [the money] to carry out Dimaggio's work, but I would be using it to express my own convictions, to take a stand for what I believed in, to make the kind of difference I had never been able to make before. All of a sudden, my life seemed to make sense to me. Not just the past few months, but my whole life, all the way back to the beginning. It was a miraculous confluence, a startling conjunction of motives and ambitions. I had found the unifying principle, and this one idea would bring all the broken pieces of myself together. For the first time in my life, I would be whole. (228)

Surge uma nova hipótese de recomeço, uma nova "fairy tale" de enquadramento da acção futura, um novo "milagre" do acaso, que o desenrolar dos acontecimentos vem provar ser, de facto, apenas mais um elemento do que Aaron

chama uma "valsa de desastres".24 É com ironia que o narrador recorda as palavras

de Sachs, já que o próprio início da narrativa se deve principalmente à fragmentação causada por esta viragem para Dimaggio e para a Estátua da Liberdade. Ao contrário do que o protagonista afirma, a escolha do princípio do terrorismo não será unificadora, mas destruidora da sua identidade: também esta história não consegue contrariar o poder do acaso.

Sachs, contudo, não parece aprender a lição do fracasso da viagem para a Califórnia e da estruturação da vida de acordo com "contos de fadas" simplificadores e redentores. Pelo contrário, continua até ao fim a criar histórias pelas quais guia a sua existência, pois elas permitem-lhe encontrar, pelo menos provisoriamente, o "princípio unificador" que dá sentido à vida. O próprio Aaron, que tem a vantagem de conhecer toda a história, embora relate o auto-engano do amigo, acaba por seguir o tipo de estruturação da vida proposto por Sachs na sua narrativa. A mensagem implícita do autor é clara: apesar de todas as suas limitações e decepções, o homem não consegue viver sem as histórias, como ele próprio diz. Arthur Saltzman afirma:

Leviathan is riddled with Aaron's disclaimers and misgivings, so much so that the

story of Benjamin Sachs quickly evolves into a book-long delineation of the inevitability of storification. For every insight there is an apology. (...) Indeed,

Leviathan, whose title Aaron appropriates from Sachs's own book-in-progress "to

mark what will never exist" [142], does not conclude so much as capitulate to the fact that "the story would go on and on, secreting its poison inside me forever. The struggle was to accept that, to coexist with the forces of my own uncertainty" [242],25

A historificação do percurso de Sachs pressupõe que não há hipótese de conhecer o real na sua totalidade, ou, ainda que parcialmente, de forma objectiva. Daí

Ver página 71.

25 Arthur Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook: Essays on Paul

que o final da narrativa não corresponda à conclusão da história, mas sim, como diz Saltzman, à capitulação perante o facto de que ela não tem fim. Como os contos tradicionais, que sofrem desenvolvimentos e alterações e ganham significados a cada nova leitura (ou transmissão oral), a historificação do percurso de Sachs pressupõe que o livro que Aaron escreve nunca consiga dizer tudo sobre ele.

Em "The Locked Room", o narrador afirma: "Stories without endings can do nothing but go on forever, and to be caught in one means that you must die before your part in it is played out."26 É isto que parece acontecer com a narrativa de

Aaron: a própria construção em sucessivas fases de esboço, sob a ameaça da chegada iminente dos detectives com as provas da ligação de Sachs ao acidente em Wisconsin, é evidência de que Aaron tem ainda muito para narrar, apesar de o tempo se ter esgotado.

I wrote a short, preliminary draft in the first month, sticking only to the barest essentials. When the case was still unsolved at that point, I went back to the beginning and started filling in the gaps, expanding each chapter to more than twice its original length. My plan was to go through the manuscript as many times as necessary, to add new material with each successive draft, and to keep at it until I felt there was nothing left to say. Theoretically, the process could have continued for months, perhaps even for years - but only if I was lucky. As it is, these past eight weeks are all I will ever have. (...) I was forced to stop writing. That was yesterday, and I'm still trying to come to grips with how suddenly it happened. (243)

O esqueleto da narrativa (os momentos essenciais da vida do seu protagonista) pode, assim, ser enriquecido com o relato de infinitas coincidências e inúmeros episódios e com a criação, a partir deles, de pequenas histórias capazes de

No documento Da ficção em Leviathan de Paul Auster (páginas 47-67)