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Aproximações agrorreformistas no Brasil: as derrotas dos projetos reformistas e o determinismo da condição de pobreza / Agrorreformist approaches in Brazil: the defeats of reformist projects and the determinism of the condition of poverty

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Academic year: 2020

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p.68842-68853 ,sep. 2020. ISSN 2525-8761

Aproximações agrorreformistas no Brasil: as derrotas dos projetos

reformistas e o determinismo da condição de pobreza

Agrorreformist approaches in Brazil: the defeats of reformist projects and the

determinism of the condition of poverty

DOI:10.34117/bjdv6n9-361

Recebimento dos originais: 08/08/2020 Aceitação para publicação: 16/09/2020

Reshad Tawfeiq

Doutor em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santa Amélia (UniSecal);

Endereço: Rua Marechal Deodoro, nº 258, Centro, Ponta Grossa/PR, CEP 84010-030; E-mail: reshadt@hotmail.com

Lenir Aparecida Mainardes da Silva

Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Professora associada da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG);

Endereço: Av. General Carlos Cavalcanti, 4748, Uvaranas, Ponta Grossa/PR, CEP 84030-900;

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RESUMO

Nos anos 1970, a Coréia do Sul avançou economicamente a partir de uma reforma agrária prévia ao seu projeto desenvolvimentista, tendo como principal efeito a desarticulação da elite agrária e a viabilização de maior autonomia ao Estado para implementar suas políticas. No caso do Brasil, o Estado vocalizou preferencialmente interesses dos grandes proprietários rurais, que concentraram suas bases de riqueza e consolidaram seu domínio, em diferentes momentos e contextos históricos. Neste sentido, o presente artigo tem por objetivo identificar os momentos de aproximação agrorreformista no Brasil, compreendendo-se que a identificação e análise destes momentos poderão oferecer importantes pistas sobre a natureza dos atuais fatores que obstam as mudanças fundamentais ao processo de desenvolvimento e de autonomia dos sujeitos e da sociedade brasileira, dentre elas a reforma agrária, culminando na manutenção de uma estrutura fundiária problemática e que possui papel central no determinismo da condição de pobreza no Brasil.

Palavras-chave: reforma agrária, antirreformas, condição de pobreza. ABSTRACT

In the 1970s, South Korea advanced economically from an agrarian reform prior to its developmentalist project, having as its main effect the disarticulation of the agrarian elite and the viability of greater autonomy for the state to implement its policies. In Brazil's case, the state gave preference to the interests of large landowners, who concentrated their wealth bases and consolidated their dominance at different times and in different historical contexts. In this sense, this article aims at identifying moments of agroreformist approximation in Brazil, understanding that the identification and analysis of these moments may offer important clues on the nature of the current factors that hinder the fundamental changes in the process of development and autonomy of Brazilian subjects and society, among them agrarian reform, culminating in the maintenance of a problematic land structure that plays a central role in determining the condition of poverty in Brazil.

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1 INTRODUÇÃO

Falar de questão agrária no Brasil, talvez mais do que em outros espaços, é falar, necessariamente, das relações de poder. Enquanto base material primária de riqueza social, é sobre a terra que residem as tensões e disputas pelo seu domínio. Para estas disputas é que se designa, então, a expressão “questão agrária”, que envolve todas as formas de concorrência social para o uso, posse e propriedade da terra.

Nos anos 1970, a Coréia do Sul avançou economicamente a partir de uma reforma agrária prévia ao seu projeto desenvolvimentista, tendo como principal efeito a desarticulação da elite agrária e a viabilização de maior autonomia ao Estado para implementar suas políticas. Por outro lado, no caso do Brasil, o Estado vocalizou preferencialmente interesses dos grandes proprietários rurais, que concentraram suas bases de riqueza e consolidaram seu domínio, em diferentes momentos e contextos históricos.

Neste sentido, a partir de uma perspectiva histórica mais ampla, o presente artigo tem por objetivo identificar os momentos de aproximação agrorreformista no Brasil, compreendendo-se que a identificação e análise destes momentos poderão oferecer importantes pistas sobre a natureza dos atuais fatores que obstam as mudanças fundamentais ao processo de desenvolvimento e de autonomia dos sujeitos e da sociedade brasileira, dentre elas a reforma agrária, culminando na manutenção de uma estrutura fundiária problemática e que possui papel central no determinismo da condição de pobreza no Brasil.

2 DESENVOLVIMENTO

A compreensão da atual estrutura fundiária brasileira e suas múltiplas implicações econômicas, sociais, políticas e até mesmo ambientais exige, sobretudo, grande amparo da historiografia brasileira, que nem sempre tratou do assunto de forma específica, apesar da questão fundiária se apresentar quase sempre como o grande ponto de sensibilidade, influenciando direta e indiretamente as demais discussões.

Por isto, o estudo do processo de consolidação da elite agrária no Brasil é extraído da historiografia que trata principalmente das relações de poder e de suas disputas, emergindo a terra como o elemento fundamental. E isto faz todo sentido, já que, conforme assinalado, a terra, na perspectiva em que aqui é trabalhada, é compreendida não apenas como um fator de produção, mas de riqueza, prestígio e, sobretudo, de poder.

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Falar de questão agrária no Brasil é falar, então, necessariamente, das relações de poder. A terra é a base material da riqueza social e é sobre ela que residem as tensões e disputas. Para estas disputas é que se designa, então, a expressão “questão agrária”, que envolve todas as formas de concorrência social para o uso, posse e propriedade da terra.

Não é exagero afirmar, assim, que a questão agrária está presente desde os primórdios da colonização brasileira. Os portugueses, num processo de dominação capitalista que teve suas características políticas chamadas de “colonialismo”, aplicaram o direito de monopólio da propriedade da terra para a Coroa portuguesa. João Pedro Stédile narra, então, que “a partir desse direito absoluto sobre o domínio das terras, os portugueses foram entregando a posse e o uso hereditário àqueles que tivessem recursos (...), para poder explorar as terras e produzir os bens que o capitalismo comercial europeu necessitava”.1 Esta foi, então, a primeira forma de divisão e

distribuição de terras, chamado de “sistema de capitanias hereditárias”. A produção nas capitanias, que se destinava para o mercado externo europeu, foi batizada de plantation system2 (sistema de

plantação), que se caracterizava pelas grandes extensões de área cultivada em monocultivo.

Diferentemente dos países europeus e dos Estados Unidos, no Brasil deste período já emergia uma condição especial e extremamente emblemática para se ter acesso à terra: “ser amigo do rei, pertencer à nobreza e ter capital para investir na área”,3 num sistema que perdurou até meados

do século XIX.

A partir deste período, e preocupada com a inevitabilidade da libertação dos escravos, a Coroa portuguesa tratou de legislar para tornar o acesso à terra algo mais restrito. Promulgou-se, assim, a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como a “Primeira Lei de Terras”, que determinava que somente se consideraria proprietário da terra aquele que legalizasse seu domínio em cartório, mediante pagamento em dinheiro à Coroa. Com isto, “essa lei discriminou os pobres e impediu que os escravos libertos se tornassem proprietários, pois nem uns nem outros possuíam recursos para adquirir parcelas de terra da Coroa ou para legalizar as que já possuíam”,4 causando

grande onda de migração dos escravos libertos para as grandes cidades.

A partir da referida lei é que se inaugura a existência jurídica da propriedade privada no Brasil, que tem no latifúndio a sua estrutura básica:

1 STÉDILE, João Pedro. Questão agrária no Brasil. 11. ed. São Paulo: Atual, 2011, p. 14.

2 Caio Prado Júnior adverte que não se incluem nesse sistema relações de trabalho e produção próprias da economia

camponesa, como se dá com relação ao agrarismo feudal. Cf.: PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira; A

questão agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 47. 3 STÉDILE, João Pedro. Questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 15. 4 STÉDILE, João Pedro. Questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 16.

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Aqueles que tinham recebido as sesmarias regularizaram suas posses e transformaram-nas em propriedade privada, assegurando, assim o domínio da principal riqueza do país: suas terras. E o acesso às terras públicas não se baseou num direito ou na condição de querer explorar essas terras com trabalho, para produzir, o que daria ensejo à formação de uma classe de camponeses. Não. Somente poderia ser proprietário de terra quem tivesse dinheiro para comprar e legalizar a propriedade por meio de pagamento à Coroa, e não quem precisasse dela para trabalhar.5

Esta característica moldou fortemente a estrutura fundiária no Brasil, que continuou a ser, nas décadas seguintes, um país fundado na grande propriedade agrária.6

Consolida-se, então, até a última década do século XIX, uma minoria de detentores de títulos de domínios juridicamente válidos e eficazes; constituía-se uma elite que se destacava pela emergência da figura dos coronéis. No Brasil, ninguém explicou o nascimento deste fenômeno melhor que Vitor Nunes Leal, na obra “Coronelismo, enxada e voto”, onde se denunciou a troca de votos (garantidos pelos coronéis) por amplo reconhecimento oficioso de autoridade por parte dos governos estaduais e federais, incluindo-se a impunidade de seus desmandos e a violência de seus subordinados.7 Neste cenário da República Velha (1889-1930), ninguém na sociedade brasileira

ousou ou sequer imaginou questionar o domínio da elite agrária brasileira.

Não obstante há muito tempo a supremacia dos coronéis ser apenas um episódio de nossa história, suas nefastas consequências ainda se fazem sentir na arcaica distribuição fundiária do país e na atuação daninha das resilientes oligarquias políticas.8

A contribuição de Vitor Nunes Leal para o esforço deste trabalho diz respeito à relação identificada entre a propriedade da terra e os fatores de liderança política local: “a primeira observação de quem estuda o ‘coronelismo’ é, natural e acertadamente, atribuí-lo à hegemonia social do dono de terras”.9 E, com o enfraquecimento da agricultura neste período, Leal explica que

o “coronelismo” se constitui como um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos

5 STÉDILE, João Pedro. Questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 16-17.

6 A grande propriedade rural brasileira tem origem histórica diferente, e se constituiu na base da exploração comercial

em larga escala, isto é, não parcelaria, e realizada com o braço escravo introduzido conjuntamente com essa exploração, e por ela e para ela. Não houve aí, como nas origens do agrarismo feudal, a constituição do latifúndio na base e em superposição a uma economia camponesa preexistente e que se perpetuou em seguida como objeto da exploração pelos latifundiários feudais. Essa circunstância originária e característica do latifúndio feudal não tem paralelo no Brasil, nem podia ter ocorrido neste território praticamente deserto ou muito ralamente povoado que era o nosso, ao se realizar a descoberta e colonização. Cf.: PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira; A questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 46.

7 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o sistema representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo:

Companhia das Letras, 2012, p. 41.

8 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o sistema representativo no Brasil. Loc. cit. 9 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o sistema representativo no Brasil. Op. cit., p.

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senhores de terra. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.10

Inegável é, de toda forma, a direta ligação que se estabelece no Brasil entre as estruturas de relações de poder e concentração fundiária, mesmo com o fim do coronelismo e do período da República Velha, em 1930.

De acordo com José Murilo de Carvalho, a conjuntura econômica era decadente para os fazendeiros. Esta decadência enfraquecia o poder político dos coronéis em face de seus dependentes e rivais e a manutenção desse poder passava, então, a exigir a presença do Estado, que expandia sua influência na proporção em que diminuía a dos donos de terra.11 Mas o fim do coronelismo, entretanto, não significou a ausência das estruturas oligárquicas e personalizadas de poder, já que perdurou de forma marcante a característica do “mandonismo” nas relações políticas tradicionais e, principalmente, naquelas que envolviam a questão fundiária. Mesmo sem a figura do coronel, ainda prevalecia a figura do mandão, do poderoso e do truculento, enfim, aquele que “(...) em função de algum recurso estratégico, em geral a posse da terra, exerce sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre acesso ao mercado e à sociedade política”.12

Ainda que a origem da industrialização brasileira remonte às últimas décadas do século XIX, foi na década de 1930 que o crescimento industrial ganhou impulso, fazendo com que o Brasil ingressasse numa fase mais acentuada de industrialização que almejava expandir o mercado de consumo interno, por meio da “substituição de importações”, com o fim de estimular a indústria nacional.

Imaginava-se que o crescimento do processo de industrialização fizesse surgir uma nova tensão fundiária, envolvendo a elite agrária e a nova elite industrial, o que não se confirmou, conforme se analisará na próxima seção. Com as eleições de 1946, elegeu-se pela primeira vez uma Assembleia Constituinte de forma democrática, a qual era composta de doze deputados e senadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Este partido contava com grande prestígio na época e teve um papel destacado naquela conjuntura, porque foi através de seus membros e intelectuais no Congresso Nacional que se falou, pela primeira vez, sobre a necessidade de uma reforma agrária, ou seja, denunciou-se a tese de que a propriedade das terras estava concentrada nas mãos de uma

10 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o sistema representativo no Brasil. Op. cit., p.

44.

11 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. DADOS – Revista de Ciências sociais. Rio de Janeiro, v. 40, nº 02, 1997, p. 231.

12 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Op. cit., p.

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minoria, e que isso se constituía num grave problema, que impedia o progresso econômico e distribuição de renda de forma socialmente justa.13 E de fato a concentração fundiária era acentuada,

conforme se pode aferir pelos dados do recenseamento de 1950, que se apresenta da seguinte forma:

TABELA 1

Recenseamento dos Estabelecimentos Agropecuários de 1950 Estabelecimentos

agropecuários:

% do número de

estabelecimentos de cada categoria, no número total:

% da área ocupada por categoria na área total:

Menos de 100 ha (pequenos):

85 17

De 100 a 200 ha (médios): 6 8

Mais de 200 ha (grandes): 9 75

Fonte: Adaptado de: PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira; A questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 292.

Denota-se, portanto, por meio desta tabela que, na época da Constituinte de 1946, enquanto os pequenos estabelecimentos, cujo número representa 85% do total, ocupavam somente 17% da área recenseada, os médios (6% do número total) ocupam 8% da área, e os grandes, que são apenas 9%, ocupavam 75% da área. Assim, o alto grau de concentração da propriedade agrária é aí patente.14 Isto sem mencionar que o recenseamento se referia apenas aos estabelecimentos e não aos proprietários, o que poderia agravar mais ainda a questão fundiária naquela época.

De toda forma, para o enfrentamento da concentração fundiária era preciso, portanto, uma medida que propusesse a redefinição dos modos de como a propriedade da terra se dividia, considerando-se em primeiro lugar aqueles que na terra quisessem trabalhar. E, na época, essa proposta partiu do senador Luiz Carlos Prestes, que, todavia, restou derrotada pela ampla maioria parlamentar.15

A proposta de Prestes foi inovadora também porque conduzia ao entendimento de que a propriedade da terra deveria estar vinculada ao “uso social” para produção, aparecendo pela primeira vez a preocupação com a “função social” da propriedade, pregada por Léon Duguit desde os meados do século XIX na Europa.16 Não obstante, o debate pioneiro trazido pela Constituinte de 1946 foi o responsável pela introdução de novidades e certos avanços na Constituição em relação à temática,

13 STÉDILE, João Pedro. Questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 18.

14 PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira; A questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 292. 15 STÉDILE, João Pedro. Questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 19.

16 Em “Fundamentos do Direito”, Duguit afirmava que a propriedade, enquanto direito subjetivo, deveria desaparecer

para dar lugar à propriedade com função social. Cf.: DUGUIT, León. Fundamentos do Direito. Tradução de Márcio Pugliesi. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 29.

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ao prever, por exemplo, a possibilidade de desapropriação por interesse social, ainda que mediante indenização prévia e em dinheiro.

As décadas de 1950 e 1960 testemunharam, por sua vez, o surgimento de novos atores políticos, de diferentes setores de trabalhadores rurais e movimentos sociais contestatórios,17 que se tornaram fortes e ganharam nova dimensão com a melhor organização de classe e também pela organização política e partidária. Suas propostas e exigências de reforma agrária imediata tiveram êxito em ingressar na agenda do governo do presidente João Goulart, que recepcionou positivamente a proposta de inclusão da reforma agrária entre as reformas de base de que o Brasil necessitava para buscar o desenvolvimento. Este talvez tenha sido o principal momento histórico de aproximação da reforma agrária no Brasil, dentro de uma perspectiva democrática e plural. No mesmo período, em 1962, criou-se a Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), justamente para desencadear o processo de distribuição de terras e implementar a reforma.

E, em histórico discurso em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, Goulart anuncia, então, que enviaria ao Congresso uma Lei de Reforma Agrária com o objetivo de desapropriar grandes propriedades inutilizadas ou subutilizadas, que se localizassem a até 100 quilômetros de cada lado das rodovias federais. Contudo, algumas semanas depois, em 31 de março de 1964, o governo Goulart foi derrubado e implantou-se a ditadura militar que pôs fim a qualquer esperança de reforma agrária por mais de vinte anos. De forma contraditória, o regime militar editou o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 1964) e são criados o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA), em substituição à SUPRA. Em verdade, a proposta militar não objetivava a redefinição das estruturas fundiárias, mas sim fomentar e modernizar a agricultura:

Do ponto de vista das teses de desenvolvimento do meio rural, o modelo adotado pelos governos desse período foi muito claro: estimular o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, baseando-se na grande propriedade latifundiária e atrelando-se aos interesses do capital estrangeiro, vinculado a um processo acelerado de industrialização na cidade, também baseado nos investimentos de empresas multinacionais.18

Com o fim dos regimes militares, na década de 1980, a questão agrária retorna ao debate político, inaugurando uma nova etapa, com diversas e novas propostas apresentadas, mas com fortíssima resistência dos grandes latifundiários e seus representantes políticos. Tancredo Neves, eleito em 1985, havia se comprometido em priorizar e ampliar o projeto agrorreformista, a partir da

17 Destacaram-se principalmente as principais as Ligas Camponesas, a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas

do Brasil (ULTAB), o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER).

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formulação do primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que serviu de substrato a partir do qual se debateu a temática na Constituinte de 1986-1988. Esta, por sua vez, “(...) regrediu a legislação maior à época anterior ao Estatuto da Terra”,19 ainda que marcada pela aprovação do

condicionamento do direito à propriedade rural ao cumprimento de sua função social, o que posteriormente seria facilmente contornado mediante manobras “antidesapropriação”, formuladas com auxílio de técnicos.20

Não obstante, ainda que tenha fracassado em termos práticos, o PNRA certamente representou um importante ponto de aproximação com a reforma agrária, porque tinha a “(...) preocupação de neutralizar alguns setores de grandes proprietários mediante o fio condutor da penalização da propriedade especulativa, desapropriando o que foi definido como terras improdutivas”.21

Concomitantemente à criação do PNRA surgia um novo sujeito social: a “Bancada Ruralista”, que foi liderada pela União Democrática Ruralista (UDR) e que se constituía como uma agremiação de interesses de grupos dominantes agrários visando a manutenção da estrutura agrária no Brasil, fato que se mostrou exitoso desde então.

Do curral ao plenário, a bancada ruralista fez sua atuação política por dois tipos de componentes: 1) O crescimento de seu prestígio como força promotora do mais poderoso lobby junto à Assembleia Nacional Constituinte e; 2) Ampliação do espectro de alianças políticas em que esteve envolvida, terminando o processo constituinte na qualidade de efetiva porta-voz – ainda que não formalmente – das frações da classe dominante agroindustrial.22 Além destas estratégias, a bancada negava a reforma agrária no Brasil sob o argumento de ser desnecessária do ponto de vista econômico e distributivo, pois se argumentava que um processo de modernização tecnológica seria suficiente para o aumento da produção, sem a necessidade de se alterar a estrutura fundiária, assim como já havia ocorrido no período do regime militar.

A Constituinte de 1986-1988 se traduziu, assim, no último momento mais estreito de aproximação de uma efetiva reforma agrária. Após este momento houve apenas movimentos pontuais que, apesar de terem se comprometido com a agenda, na prática se afastaram do debate ao proporem medidas que em nada contribuíram para uma redistribuição mais justa da propriedade no

19 GRAZIANO NETO, Francisco. A tragédia da terra: o fracasso da reforma agrária no Brasil. São Paulo: Iglu;

Jabuticabal/SP: Fundação de Estudos e Pesquisas em Agronomia, Medicina Veterinária, Zootecnia, 1992, p. 84.

20 MENDONÇA, Sonia Regina; STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: a classe dominante agrária - natureza e comportamento 1964-1990. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 156.

21 MENDONÇA, Sonia Regina; STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: a classe dominante agrária - natureza e comportamento 1964-1990. Op. cit., p. 21.

22 MENDONÇA, Sonia Regina; STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: a classe dominante agrária - natureza e comportamento 1964-1990. Op. cit., p. 152.

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país, levando à supremacia dos interesses do agronegócio e dos ruralistas, avalizados pelos governos seguintes.23

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, nota-se que, mesmo a despeito de tantos movimentos e momentos com capacidades reformistas, a concentração fundiária no Brasil se manteve praticamente intacta, revelando, de forma flagrante, o seu fracasso em termos reais.

Assim, no Brasil, a reforma agrária definitivamente não deu certo. Depois de décadas, a questão agrária, “(...) o grande e fundamental problema brasileiro (...)”,24 continua pendente. E a

reforma não deu certo porque em diferentes momentos históricos os interesses dos grandes proprietários preponderaram: a primeira Lei de Terras conferiu a propriedade somente àqueles que pudessem pagar por ela, excluindo a maioria da população brasileira; os coronéis mantiveram seu domínio à base da violência e da repressão; a derrocada dos agricultores, ao invés de resultar numa reforma ampla da propriedade, marcou uma aliança com a nova elite industrial, com o agravamento da questão; posteriormente, vieram as derrotas da proposta reformista na Constituinte de 1946 e do projeto de Goulart, drasticamente abortado pelo golpe militar de 1964.

A modernização do campo e a técnica impregnada de intencionalidade e poder negaram, por outro lado, quaisquer alternativas para a questão agrária e afirmaram um modelo como sendo um

standard narrative.25 Como resultado, “ao final de 50 anos da revolução verde, a fome se ampliou em todo mundo, assim como a pobreza e a migração”;26 por fim, com a redemocratização,

inaugura-se uma disputa de projetos que teve na Constituinte de 1986-1988 inaugura-seu locus e no qual restou vitoriosa a proposta da chamada “bancada ruralista”.

Contudo, reafirma-se a necessidade de uma reforma agrária que seja comprometida com a efetiva elevação e humanização na base civilizatória de nossos dias e, em particular, com a reparação do baixo nível social da grande maioria da população brasileira e que diminua o abismo que separa as camadas da sociedade, circunstâncias essas que constituem fatores fundamentais para obstacularizar o desenvolvimento,27 na conotação que se tem trabalhado neste artigo.

23 Sobre o insucesso das tímidas medidas reformistas gestadas no período posterior à Constituição Federal de 1988, ver:

COSTA, Sandra Helena Gonçalves. A questão agrária no Brasil e a bancada ruralista no Congresso Nacional. 325 f. Dissertação – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

24 PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira; A questão agrária no Brasil. Op. cit., p. 283. 25 Narrativa modelo, em tradução livre.

26 STÉDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil: debate sobre a situação e perspectivas de reforma agrária na década de 2000. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p.13.

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É neste sentido que se considera a reforma agrária – como, aliás, todo o fundamental e essencial desta problemática – na marcha do país para o seu futuro, isto é, no sentido da valorização do ser humano,28 a partir da divisão justa da riqueza primária que se consubstancia na terra.

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REFERÊNCIAS

CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual.

DADOS – Revista de Ciências sociais. Rio de Janeiro, v. 40, nº 02, 1997.

COSTA, Sandra Helena Gonçalves. A questão agrária no Brasil e a bancada ruralista no

Congresso Nacional. 325 f. Dissertação – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

DUGUIT, León. Fundamentos do Direito. Tradução de Márcio Pugliesi. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2009.

GRAZIANO NETO, Francisco. A tragédia da terra: o fracasso da reforma agrária no Brasil. São Paulo: Iglu; Jabuticabal/SP: Fundação de Estudos e Pesquisas em Agronomia, Medicina Veterinária, Zootecnia, 1992.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o sistema representativo no

Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

MENDONÇA, Sonia Regina; STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: a classe

dominante agrária - natureza e comportamento 1964-1990. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira; A questão agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Referências

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