Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto
Sobre o sintético a priori e o
necessário a posteriori
Problema central
As descobertas científicas fundamentais
são verdades necessárias ou contingentes?
– A água é H2O
Esclarecimento conceptual
Necessidade / contingência
– Noções metafísicas sobre modos da verdade (e não sobre modos de conhecer verdades) – Uma verdade é necessária quando não
poderia ter sido falsa
– Uma verdade é contingente quando poderia ter sido falsa
Exemplos de verdades necessárias
Verdades lógicas
– Se a neve é branca, é branca
Verdades aritméticas
– 7+5=12
Verdades conceptuais
Exemplos de verdades contingentes
Verdades históricas
– Platão era grego
Verdades geográficas
– Em África, há um deserto imenso
Outras verdades
David Hume
“The contrary of every matter of fact is still possible; because it can never imply a
contradiction, and is conceived by the mind with the same facility and distinctness, as if
ever so conforming to reality. That the sun will not rise tomorrow is no less intelligible a
proposition, and implies no more contradiction, than the affirmation, that it will rise.” (An
Enquiry Concerning Human Understanding,
Teses centrais de Hume
Todas as questões de facto (verdadeiras)
são verdades contingentes
Só as relações de ideias (verdadeiras) são
Consequência da tese
Como todas as verdades científicas,
incluindo as fundamentais, são questões de facto, segue-se que todas as verdades científicas são contingentes
– A água é H2O, mas poderia não o ser
– O peso atómico do ouro é 196,96654, mas poderia não o ser
Kant contra Hume
A física não pode ser sobre contingências
do mundo, nomeadamente porque só há ciência do universal
Kant pensava erradamente que o
estritamente universal e o necessário eram a mesma coisa
Em qualquer caso, é contra-intuitivo
afirmar que a água poderia não ter sido H2O
Revolução coperniciana de Kant
A nossa faculdade de conhecer regula-se pelos objectos Os objectos regulam-se pela nossa faculdade de conhecerAntes de Kant
Necessário
A priori Analítico
A proposta de Kant
Nem todos os juízos sintéticos são a
posteriori
Alguns juízos sintéticos são a priori Assim, as verdades científicas
fundamentais podem ser sintéticas, mas necessárias — porque Kant pensava que tudo o que era a priori era necessário
Consequência: idealismo
O mundo dos fenómenos é uma projecção
da faculdade humana de conhecer, e não uma realidade independente de nós
A ALTERNATIVA KRIPKIANA
A KANT
Distinções conceptuais
Necessário / contingente
– Categorias metafísicas sobre o modo da verdade
A priori / a posteriori
– Categorias epistémicas sobre o modo de conhecer a verdade
Analítico / sintético
– Categorias semânticas sobre o modo como os significados estão concatenados
Primeiro passo
Mesmo que todas as verdades necessárias
sejam analíticas e conhecíveis a priori;
Mesmo que todas as verdades
contingentes sejam sintéticas e conhecíveis apenas a posteriori;
Segundo passo
Teorema da lógica modal
– a = b □ (a = b)
– Se António Gedeão é Rómulo de Carvalho, então António Gedeão é necessariamente Rómulo de Carvalho
Terceiro passo
Só podemos saber a posteriori que
Eis o necessário a posteriori
1. Se AG é RC, então AG é necessariamente
RC.
2. AG é RC.
Do trivial para o substancial
1. Se a água é H2O, a água é
necessariamente H2O.
2. A água é H2O.
Comparação
Trivial
Se a = b,
necessariamente a = b
Trata-se de uma verdade
lógica
Substancial
Se Fa, então
necessariamente Fa.
Trata-se de uma hipótese
Defesa da hipótese
A hipótese metafísica orienta o trabalho
científico
Procuramos a composição química da
água porque pensamos que isso é de algum modo fundamental, e não uma mera contingência
Kripke ou Kant?
Necessário a posteriori
Compatível com a ideia
pré-teórica de que a realidade é independente do nosso conhecimento dela Há motivação independente para
pensar que há verdades necessárias a posteriori
Sintético a priori
Conduz à ideia
contra-intuitiva de que a ciência não é sobre a realidade última, mas antes sobre a realidade tal como é para nós
Não há motivação
independente para
pensar que há verdades sintéticas a priori
DOIS ERROS DE HUME
E os argumentos de Hume?
Aceitemos Kant ou Kripke, é preciso
explicar o que há de errado nos argumentos de Hume
O argumento da negação
O contrário de toda a questão de facto é
possível porque a sua negação não é uma contradição
Motivação: quando negamos uma verdade
lógica, obtemos uma contradição
– Por isso, dever-se-ia obter uma contradição sempre que se negasse qualquer verdade necessária
Refutação
Só quando negamos verdades lógicas é
que é de esperar obter uma contradição lógica
Se uma verdade for necessária, mas não
for logicamente necessária, não é de esperar que a sua negação seja uma contradição lógica
Exemplo
Não é uma contradição lógica afirmar que
António Gedeão não é Rómulo de Carvalho
No entanto, António Gedeão é
A inferência da possibilidade
É logicamente possível que p. Logo, é possível que p.
O argumento é inválido. A possibilidade
irrestrita não se segue da possibilidade lógica.
Circularidade
Hume pressupõe que tudo o que é
logicamente possível é possível
Mas isso é o que ele quer demonstrar e
por isso não pode pressupô-lo
É trivial que as leis da física são
logicamente contingentes
O que queremos saber é se por isso são
Possibilidades
Possibilidade física Possibilidade metafísica Possibilidade lógicaNecessidades
Necessidade lógica Necessidade metafísica Necessidade físicaConclusões
Os argumentos originais de Hume não
funcionam
A solução de Kant implica uma forma de
idealismo
A solução de Kripke não implica qualquer
forma de idealismo
Sabemos hoje muito mais sobre o
problema e as possibilidades de resposta do que sabiam Hume e Kant