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As bonecas de cerâmica Karajá e a pedagogia das ceramistas mestras: diálogos possíveis entre saberes de tradição oral e saberes baseados na escrita 1

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As bonecas de cerâmica Karajá e a pedagogia das ceramistas mestras: diálogos possíveis entre saberes de tradição oral e saberes baseados na escrita1

Rosani Moreira Leitão2

O reconhecimento das bonecas de cerâmica do povo Karajá, ou povo Inў – as ritxoko – como patrimônio cultural imaterial brasileiro, em fevereiro de 2012, pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio histórico e Artísitico Nacional conferiu maior visibilidade à cerâmica figurativa produzida pelas mulheres Karajá, já reconhecida por pesquisadores e instituições acadêmicas e museológicas como uma significativa porta de acesso aos muito significados do universo social, cultural e cosmológico desse povo, em suas várias dimensões. Expressão artística das mulheres Karajá Inў, ícones de uma tecnologia oleira do Araguaia, artesanato destinado à venda e fonte de renda para as famílias das ceramistas. As ritxoko são também formas especializadas e complexas de interpretação e, representação do mundo material e simbólico do povo Karajá, materializado pela arte de modelar o barro pelas ceramistas. Todas essas dimensões da cerâmica figurativa Karajá já foram apontadas por diversos pesquisadores. Neste trabalho, após breves considerações gerais acerca do povo Karajá e do contexto etnográfico de produção de sua cerâmica figurativa, pretendo trazer algumas contribuições a essa discussão, refletindo particularmente sobre o saber especializado das grandes ceramistas e o papel assumido por elas como mestras formadoras de novas gerações. Procuro mostrar que, se no passado o saber especializado desses reconhecidas ceramistas, era socializado e reproduzido, sobretudo no ambiente doméstico e no contexto das famílias extensas e seus segmentos familiares, atualmente elas também atuam em outros contextos, incluindo o espaço escolar. De modo particular, abordo possibilidades de diálogos entre os saberes especializados, de tradição oral, e saberes escolarizados baseados na escrita, dando especial atenção aos impactos, diálogos e conflitos ente esses saberes e suas distintas pedagogias.

Palavras-chave: ritxoko – ceramistas mestras Karajá– Karaja

Considerações Iniciais

O reconhecimento das bonecas de cerâmica do povo Karajá – as ritxoko – como patrimônio cultural imaterial brasileiro, em fevereiro de 2012, pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio histórico e Artísitico Nacional conferiu maior visibilidade à cerâmica

1 Trabalho aprovado para apresentação na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, a ser realizada entre os

dias 03 e 06 de agosto de 2014, em Natal/RN, no GT 063: Novas fronteiras do fazer antropológico:

diálogos entre pesquisadores, consultores e gestores das políticas indigenistas de educação, sob a

coordenação de Elizabeth Maria Beserra Coelho (UFMA) e Mariana Paladino (UFF). Dedico este artigo a etnóloga Edna Luísa de Melo Taveira, uma das minhas orientadoras, e principal responsável pelo meu encontro com os Karajá.

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2 figurativa produzida pelas mulheres Karajá, já reconhecida por pesquisadores e instituições acadêmicas e museológicas como uma significativa porta de acesso aos muito significados do universo social, cultural e cosmológico desse povo, em suas várias dimensões. Expressão artística das mulheres Karajá Inў, ícones de uma tecnologia oleira do Araguaia, artesanato destinado à venda e fonte de renda para as famílias das ceramistas. As ritxoko são também formas especializadas e complexas de interpretação e, representação do mundo material e simbólico do povo Karajá, materializado pelas mãos das ceramistas através da arte de modelar o barro.

Todas essas dimensões da cerâmica figurativa Karajá já foram apontadas por diversos pesquisadores, que, de modo geral, enfatizaram os saberes relacionados às bonecas como base para explicação e reprodução do mundo social e cosmológico Karajá. Em especial, o sentido educativo das ritxoko foi abordado por Castro Faria, Fenelon Costa, Darcy Ribeiro e Sandra Campos e, mais recentemente, pelo grupo de pesquisadores, que elaborou o Dossiê descritivo dos modos de fazer ritxoko, um dos produtos da pesquisa que fundamentou o pedido de registro acima mencionado3.

Neste artigo, após breves considerações gerais acerca do povo Karajá e do contexto etnográfico de produção de sua cerâmica figurativa, as ritxoko, procuro contribuir com essa discussão, refletindo particularmente sobre o saber especializado das grandes ceramistas e o papel assumido por elas como formadoras de novas gerações, motivo pelo qual foram denominadas no Dossiê citado acima ceramistas

mestras, em contraposição às aprendizes, ou aquelas que “ainda estão aprendendo”4. A maioria das informações etnográficas que subsidiaram a elaboração do artigo foi obtida entre anos de 2009 e 2011, no âmbito do projeto Bonecas Karajá: arte,

memoria e identidade indígena no Araguaia, realizado junto a comunidades Karajá da

3 Refiro-me ao projeto Bonecas Karajá: arte memória e identidade indígena no Araguaia, que resultou na

escrita do Dossiê mencionado e na produção do vídeo ritxoko. Além de mim, fizeram parte da equipe os antropólogos Nei Clara de Lima, Manuel Ferreira Lima Filho, Rosani Moreira Leitão. Também participaram como estagiárias: Michelle Nogueira de Resende e Núbia Vieira Teixeira. Na sua segunda fase, realizada no ano de 2011, o projeto contou com a participação de Sinvaldo Wahuka (tradução e revisão da língua Karajá); Dibexia Karaja, Terraluna Karaja e Tekwala Karaja (como interpretes e assistentes de pesquisa na aldeia de Santa Isabel do Morro) e com a parceria da empresa Olho Filmes, na elaboração do vídeo documentário Ritxoko, um dos produtos do projeto. A pesquisa contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e com a gestão financeira da Fundação de Apoio a Pesquisa da UFG (FUNAPE). Fizeram ainda parte da equipe, Maira Torres Correa, como representante do IPHAN, e Edna Luísa de Melo Taveira e Patrícia Mendonça Rodrigues, como consultoras eventuais.

4 A denominação de ceramistas mestras foi utilizada no Dossiê descritivo dos modos de fazer ritxoko,

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3 Ilha do Bananal (TO.) e de Goiás, mais especificamente as aldeias Santa Isabel do Morro (TO) e Buridina e Bdè-Burè (Aruanã-Go)5. Também recorro as minhas notas etnográficas e experiências pessoais anteriores com os Karajá, com os quais tive os primeiros contatos ainda nos primeiros anos na década de 1990, quando realizei pesquisa de campo voltada para a elaboração de minha dissertação de mestrado no campo da educação intercultural indígena, na aldeia Santa Isabel do Morro6.

Os Karajá, o seu território e o contexto etnográfico de produção das ritxoko

O povo Karajá, ou o povo Inў, como se autodenominam, habitam todo o vale do rio Araguaia, na região Central do Brasil, abrangendo, de norte a sul, parte dos estados do Pará, Mato Grosso, Tocantins e Goiás. A maior parte da população está concentrada na Ilha do Bananal, considerada a maior ilha fluvial do mundo. São filiados à família linguística Karajá, ou Inўrybè, do tronco linguístico Macro-Jê, e somam um total aproximado de 5000 pessoas divididas em três subgrupos: Xambioá (situados ao norte), Javaé (que vive nas proximidades do rio Javaé, braço direito do Rio Araguaia) e os Karajá, propriamente ditos, que vivem mais ao sul contando aproximadamente com uma população de 3000 pessoas (FUNASA, 2011).

Como outros povos Jê do Brasil Central, os Karajá têm como unidade básica de organização social as famílias extensas matrilocais ou uxorilocais, que formam grupos ou segmentos familiares, tendo como referência as residências maternas das mulheres. Além dos grupos definidos pelas relações de parentesco, a sua organização social e politica também se orienta por uma marcada oposição entre mundos masculino e feminino, evidenciada na mitologia, nos rituais, na demarcação dos espaços nas aldeias, onde o privado diz respeito ao domínio doméstico, feminino, enquanto o espaço público estruturalmente e tradicionalmente está associado ao domínio masculino, este último

5 A pesquisa foi executada pelo Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, em parceria

com o IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional e teve como objetivo descrever os modos de fazer as bonecas de cerâmica – ritxoko – confeccionadas pelas mulheres Karajá, bem como conhecer seus diferentes usos e significados, visando oferecer subsídios para a fundamentação do processo de registro destas bonecas como patrimônio cultural imaterial brasileiro.

6 A pesquisa resultou na dissertação de mestrado Educação e Tradição: o significado da educação escolar

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4 representado simbolicamente pela casa dos homens, casa dos Ijasò, ou casa de Aruanã, espaço interdito às mulheres7.

A presença dos Karajá na região é imemorial, sendo comprovada por pesquisas arqueológicas que constatam a presença de cerâmica, cuja técnica de confecção é semelhante à usada hoje, há pelo menos 800 anos8. Essa imemorialidade também está presente em toda cosmologia Karajá, sobretudo nas narrativas míticas. Muitas dessas narrativas, inclusive o mito de origem Karajá, nas suas variadas versões, têm como principal referência a relação com o rio Araguaia, o Berohoky.

Segundo uma das versões do referido mito de origem, antes de virem para o plano terreno, os Karaja moravam numa grande aldeia, no fundo do rio Araguaia e formavam a comunidade dos Berahatxi Mahãdu, povo do fundo das aguas. Vieram para a terra como consequência da desobediência de Wokubedu, que saiu para caçar, quando devia guardar resguardo e se manter em reclusão, devido ao nascimento do seu filho9. Durante a caçada, o personagem mítico transgressor teria encontrado uma passagem e ficado muito curioso para saber o que existia do outro lado e atravessando a mesma, teria chegando à superfície da terra. Ficou encantado com a beleza das praias e riquezas do lugar. Havia espaço para correr e morar; a agua era fresca, o clima era agradável, havia muitas frutas nativas e muita caça. As gaivotas cantavam e muitos outros pássaros voavam no céu. Impressionado, ele voltou ao fundo do rio para contar o que vira e, depois de muito insistir com os demais, conseguiu convencer todo o povo a se mudar para a superfície. No fundo das aguas, permaneceu apenas Kboì e sua família, cujo formado gordo e arredondado não os permitiu sair pelo buraco que era muito estreito. Algum tempo depois, os que saíram começaram a ver árvores secas e animais mortos e a perceber que na terra havia doenças e morte. Tentaram voltar ao lugar de origem, mas a passagem havia sido fechada por ordem de Kboì, chefe do povo das aguas. Não

7 Apesar de estruturalmente marcada pela oposição entre mundo masculino e feminino e da suposta

prerrogativa dos homens no que refere às decisões políticas, principalmente nos dias atuais esses limites já não operam de forma tão rígida, sendo observada a presença e atuação das mulheres em espaços públicos e políticos importantes, como é o caso, por exemplo, das atividades xamânicas.

8 WUST, I. A cerâmica Karajá de Aruanã. Anuário de Divulgação Científica, v. 2, n. 2, p. 96-165, jun.

1975.

9 O mito de origem Karajá é recorrentemente mencionado em trabalhos acadêmicos, em versões que,

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5 podendo voltar, se instalaram rio acima e rio abaixo povoando todo o vale do Rio Araguaia e deixando no fundo das águas parte do povo que segue vivendo ali como Karajá (LIMA FILHO, 1991; TORAL, 1992, LEITAO, 1997). Assim, o povo Inў é, ao mesmo tempo, da terra e das águas.

A distribuição espacial das atuais aldeias Karajá ao longo do rio mantem uma associação simbólica com os lugares mencionados no mito, apontando para uma percepção e classificação do espaço territorial que tem o Araguaia, Berohoky, ou grande rio, como uma importante referência pra o povo Iny, para a configuração não apenas do território, como espaço físico, mas também como espaço social e cosmológico. E a produção cerâmica figurativa Karajá, está intimamente ligada a esse território, ao rio e a essa cosmologia.

A atividade oleira das mulheres Karajá é orientada pela alternância entre as duas estações caracterizadas pela presença ou ausência de chuvas. De outubro a março, devido à intensidade das chuvas as águas transbordam alagando todas as partes baixas da Ilha e do Vale do Araguaia. De abril a setembro, com a ausência das chuvas, o volume de águas diminui trazendo novamente a paisagem formada pelas praias, bancos de areia, lagos e margens, antes submersos. Esse movimento cíclico de alta e baixa das águas do Araguaia também determina o calendário ritual e define, em grande medida, a intensidade da produção cerâmica.

Na estação chuvosa, as águas inundam as margens do rio, dificultando e ás vezes impossibilitando o acesso aos barreiros, fontes da principal matéria prima para a atividade oleira das mulheres Inў. Principalmente nas grandes aldeias da Ilha do Bananal, é neste mesmo período que ocorre o mais elaborado ritual Karajá, a festa da casa grande, hetohoky, ritual de iniciação dos meninos à vida adulta, cujos preparativos e realização exige um investimento social de toda a comunidade10.

Embora a decisão e o planejamento das festividades do hetohoky ocorram anos antes, o período intensivo da iniciação dos meninos, tem início no final da temporada de baixa do Araguaia e início do período chuvoso, entre os meses de agosto e setembro e se encerra entre os meses de março e abril, no final do período das chuvas. De acordo com relatos Karajá, no passado esse período intensivo de aprendizado era maior. Atualmente, tem duração aproximada de seis meses, que coincidem com a estação chuvosa e com o período de cheia do Araguaia.

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6 Nos meses anteriores à cerimônia de encerramento do hetohoky, a produção artesanal cotidiana, se não é totalmente interrompida, diminui bastante a sua intensidade, dando lugar à produção dos artefatos considerados “originais” e destinados exclusivamente ao uso ritual. Toda a comunidade sai de um tempo profano e adentra a um tempo sagrado, em que o trabalho coletivo e os valores comunitários são prioridade: buscar doações e acumular alimentos para distribuir durante as festividades; confeccionar os “enfeites” próprios para a indumentária festiva, para o uso das pessoas da família; confecção das esteiras e dos banquinhos rituais; preparação das tintas para a pintura corporal; aquisição das matérias primas (palhas, pigmentos, penas, cera, madeiras etc); limpeza dos espaços públicos; construção das casas rituais e do mastro, preparação e distribuição de alimentos, entre outras providências11.

Encerradas as atividades do hetohoky, a partir do mês de abril, na estação seca, o volume de aguas do Araguaia diminui gradativamente, permitindo o acesso aos barreiros, locais de coleta da argila para a produção das bonecas, e facilitando os processos de secagem e queima das peças.

Assim, com a chegada da estação seca o ritmo de produção das ritxoko é retomado, chegando a sua alta entre os meses de junho e agosto, quando chegam turistas para aproveitar as temporadas de praias do Araguaia, que desejam levar alguma lembrança da região ou comprar alguma peça bonita para decorar suas casas. Mas, não apenas as praias trazem visitantes ao Araguaia e compradores para a cerâmica Karajá. Não são raras as encomendas destes artefatos, por parte de pesquisadores, colecionadores e museus. Durante as etapas de pesquisa de campo do projeto Bonecas

Karajá: arte memória e identidade indígena no Araguaia (2009 a 2012) foram

encontradas nas residências das ceramistas mais reconhecidas, cópias de catálogos e de fotografias de coleções de alguns museus, que foram trazidas ou enviadas pelos compradores direcionando a produção das ceramistas para determinados objetos e formas que desejavam adquirir. Algumas peças, classificadas por elas próprias como de modelos antigos e já não mais fabricados, voltam à cena e vão sendo reinseridas na produção, provocando comentários, despertando curiosidades dos mais jovens, motivando diálogos entre gerações e produzindo novas experiências e saberes que circulam entre as mulheres no interior de determinados grupos familiares12.

11 LEITAO, Rosani Moreira. Obra citada, 1998. 12

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7 Nas aldeias Karajá do município de Aruanã-GO (Buridina e Bdè-Burè), situadas dentro ou muito próximas da cidade, o crescimento urbano e a redução drástica do território pelo avanço dos não-indígenas levaram as ceramistas e suas famílias a quase total perda do acesso às fontes de matérias primas para sua produção artesanal, inclusive aos barreiros. Atualmente, para manter a sua produção estas ceramistas adquirem, através de compra, blocos de massa de argila já processada nas olarias da Cidade de Goiás, antiga capital goiana, situada a 170 quilômetros destas aldeias. Entretanto, graças à recente recuperação de parte desse território, as ceramistas estão empenhadas em retomar formas tradicionais de produção, iniciando um processo de localização dos antigos barreiros e de formação das crianças para explorá-los no futuro13.

Nestas aldeias, há muito não ocorre o ritual do hetohoky. Nos últimos anos, algumas famílias estão retomando, de forma mais sistemática, os intercâmbios com os parentes da Ilha do Bananal, especialmente com Hawalò Mahãdu, Santa Isabel do Morro e, em alguns casos, levando os jovens para participarem dos principais momentos cerimoniais deste ritual.

A técnica, a arte e o conhecimento complexo das ceramistas mestras

De modo geral, as boas ceramistas, reconhecidas internamente, são aquelas que além de dominarem as técnicas de confecção da cerâmica e de possuírem habilidades artísticas necessárias à modelagem e decoração dos artefatos que criam, também possuem um profundo conhecimento sobre o território e o meio ambiente que oferece as matérias primas para o seu ofício, bem como sobre o universo cultural Karajá e à sua cosmologia, já que os objetos representados através da cerâmica figurativa retratam esse universo cultural.

De uma massa plástica composta de uma mistura de barro, suù, e cinza,

mawysidè, umedecidos com agua, as ritxoko ganham forma, adquirindo coloração

específica, após a queima, conforme os locais de coleta do barro. O barro que produz uma cerâmica de cor clara, acinzentada; abundante na Ilha do Bananal, coletado nas margens e barrancos do Araguaia e trazido para as casas pelas próprias mulheres ou por

intervalos de tempo livre deixado pelas obrigações rituais, como pude observar, em março de 2011, nas residências de Mahuederu, Mayxà e Wrearu, que tentavam concluir um conjunto grande de peças para atender a um pedido de um colecionador francês.

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8 seus esposos, genros ou filhos; é o preferido pelas ceramistas de Santa Isabel do Morro,

Hawaló Mahãdu para modelar suas bonecas14.

Não existe uma forma única de fazer ritxoko. Cada ceramista procede conforme as propriedades do barro, as peculiaridades de seu processo de aprendizagem, o conhecimento acumulado sobre as matérias primas e o domínio das técnicas, bem como as suas habilidades artísticas e criativas, que, mesmo operando a partir de padrões dados culturalmente, vão conferir características singulares às suas pecas, as quais permitem, em muitos casos, a identificação da autoria das mesmas.

A secagem e a queima também exigem um saber especializado, que envolve, entre outros, conhecimentos acerca da temperatura e umidade do tempo, sobre madeiras próprias para a preparação do fogo e medidas de tempo referente às duas fases da queima. O não conhecimento das matérias primas e condições adequadas à produção comprometem a qualidade das peças, resultando em imperfeições como manchas e rachaduras. Esses problemas podem ser mais ou menos controlados, conforme a experiência e os conhecimentos acumulados pela ceramista.

A decoração das peças também requer conhecimentos especializados acerca das matérias primas, da preparação dos pigmentos e dos padrões gráficos, além de habilidades artísticas, que resulta em traços e desenhos mais ou menos perfeitos. Sem a pintura, as simples formas modeladas já são suficientes para uma identificação prévia das figuras representadas, mas são consideradas inacabadas pelas ceramistas. Os grafismos escolhidos completam a caracterização dos personagens e cenas que querem representar. “É a pintura que deixa a boneca bonita”, afirma Jandira, ceramista de Bdè-Burè, referindo-se a uma estética e a uma beleza contextualizada pelos valores e símbolos do mundo Iny, que vai permitir por meio dos detalhes gráficos a identificação de figuras masculinas e femininas, crianças, jovens, adultos ou idosos, solteiros e casados, guerreiros, cenas cotidianas, personagens míticos e rituais etc.

De modo geral, existe um saber sobre a tecnologia oleira Karajá que é compartilhado por todos, em especial pelas mulheres adultas, mesmo por aquelas que preferem confeccionar outros artefatos, já que o fazer cerâmica é um ofício feminino e que as meninas crescem vendo e acompanhando o trabalho de avós, tias e mães e outras mulheres adultas do seu grupo familiar. A técnica não é propriedade de uns e outros, em

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9 particular, e não é praticada de forma isolada do cotidiano das crianças e da comunidade em geral. Pelo contrário, está disponível, difusa e amplamente compartilhada.

A aldeia Santa Isabel do Morro, ou Hawaló Mahãdu, reconhecida pela excelência das suas ceramistas e apontada como centro difusor da cerâmica figurativa para as demais aldeias Karajá, conta com uma extensa lista de mulheres que fazem cerâmica.

Mas o conhecimento dessas mulheres varia muito e a maioria não domina as técnicas e saberes inerentes às ritxoko, por completo. Algumas são capazes de modelar uma variedade de figuras e cenas, abrangendo sequências inteiras de uma narrativa mítica, além de conhecerem os padrões gráficos que decoram a cerâmica. Outras executam modelagens perfeitas, mas não sabem muito bem as formas corretas de preparação da massa ou de execução do acabamento e da queima das peças. No interior de cada grupo familiar, ceramistas mais ou menos experientes trabalham juntas, sendo que algumas, sobretudo as mais jovens, desempenhem papéis auxiliares no processo.

Via de regra, os critérios de avaliação de uma boa cerâmica, se referem aos aspectos físicos das peças, tais como: textura lisinha, cores e tonalidades homogêneas, ausência de manchas de fuligem e rachaduras, decoração conforme os padrões gráficos, pintura cuidadosa, com traços firmes e delicados etc15.

No entanto, algumas ceramistas são recorrentemente destacadas como exímias ceramistas. Em muitos casos, ao apontarem essas especialistas, pessoas da comunidade reconstroem uma genealogia de mulheres que marcaram a história da cerâmica figurativa e ensinaram a outras mulheres até chegar a uma geração atual de mestras. Elas são definidas e, muitas vezes se auto definem como professoras. Status que frequentemente é legitimado pelos convites de instituições para ministrarem oficinas em eventos fora da aldeia; pra ensinar a mulheres de outras aldeias e alunos da escola de suas próprias aldeias e pelas muitas encomendas que recebem16.

Como alguns dos nossos mestres, na maturidade de suas carreiras acadêmicas, falam com propriedade, segurança e sabedoria plena, demonstrando um domínio completo do habitus inerente ao seu ofício e exortando os seus pupilos a buscarem a

15 Apesar de ocorrerem opiniões divergentes, a recorrência de alguns elementos na classificação dos

entrevistados, permitiu à equipe listar características e estabelecer parâmetros gerais preliminares para a compreensão do que é entendido como uma cerâmica de qualidade.

16 Claro que essas classificações não são puramente objetivas e nem isentas de critérios valorativos

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10 excelência naquilo que escolheram como profissão; as ceramistas mestras também observam meticulosamente o trabalho das suas aprendizes, apontam erros, fazem elogios, dão conselhos, reconstituem trajetórias históricas referentes às técnicas, matérias primas e instrumentos usados no passado na confecção da cerâmica, em comparação com o que se usa atualmente; citam exemplos de suas mestras, narram mitos, esclarecem sobre os significados das figuras e dos grafismos, chamam a atenção para detalhes que farão diferença numa avaliação de forma positiva ou negativa, exibem orgulhosamente o trabalho de suas melhores alunas e incentivam a busca da perfeição.

Entretanto, a despeito de apontar semelhanças, em muitos aspectos, entre as atitudes da ceramista mestra e as dos nossos grandes mestres acadêmicos, em outros aspectos, esses saberes diferem consideravelmente. Enquanto na nossa tradição ocidental buscamos a máxima especialização nas nossas disciplinas acadêmicas e campos do saber, estabelecendo fronteiras entre eles, de forma que dominamos muito pouco e, em alguns casos, quase nada, de outras especialidades; o saber da ceramista mestra, ao mesmo tempo em que é especializado, também abarca o universo Karajá na sua totalidade, materializando esse saber complexo através da cerâmica figurativa, que, a um só tempo, é representação do mundo Iny, importante instrumento pedagógico para a educação Karajá, e principal instrumento educativo de uma pedagogia própria das oleiras Karajá, sobretudo, das suas grandes mestras.

Trata-se de um conhecimento abrangente e complexo envolvendo aspectos referentes à natureza e ao meio ambiente, bem como aos domínios do social e do sobrenatural. Em A Ciência do concreto, Claude Levi-Strauss (1973), menciona os povos indígenas Bororo e os Nabikwara e se refere ao complexo e refinado sistema de classificação da natureza adotado pelas sociedades indígenas americanas, que a partir de uma diversidade de lógicas culturais, eu também diria de uma diversidade epistêmica, não se restringem às representações sobre o mundo natural, envolvendo também sistemas mitológicos e formas de compreender, de pensar, de classificar e de explicar o mundo na sua totalidade. João Pacheco de Oliveira, em seu texto Muita terra para

pouco índio? (1993), ao discutir a diferença entre terra e território, também observa

entre as sociedades indígenas, essa indissociabilidade entre mundo natural, social e espiritual17.

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LEVI-STRUSS.Claude. A Ciência do concreto, 1973 e OLIVEIRA, João Pacheco de. Muita terra para

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11 Nesse sentido, as ritxoko, condensam uma totalidade e podem ser entendidas como fato social total, dotado de um potencial socializador e educativo, que envolve várias dimensões da vida. Abarca a dimensão econômica, pois possui um valor de uso e um valor de troca. Diz respeito ao âmbito político, já que, muitas vezes, são instrumentos de negociação política, de empoderamento e reconhecimento, tanto das ceramistas diante de suas comunidades como do povo Iny, fora de suas aldeias. Possuem também sentido religioso, pois representam os mitos e os ritos, o sobrenatural e explicam os seus significados. São também expressão artística e estética, pois comunicam, difundem, reafirmam e reproduzem padrões culturais e de beleza, além de serem objetos de criação. Enfim, não se tratam de objetos puramente materiais, mas, sobretudo simbólicos, sínteses de relações sociais múltiplas e complexas, que envolvem uma reciprocidade entre todas as dimensões da vida, bem com entre as pessoas que operam nessas dimensões, implicando em trocas, conflitos, cisões e alianças18.

A relação Iny/Tori impressa nas ritxoko e narrada pelas ceramistas mestras

A cerâmica figurativa Karajá, conforma uma síntese, ao mesmo tempo êmica e histórica dos Karajá sobre si mesmos, para si mesmos e para os outros. Através desses artefatos os Karajá se representam, se vêm e se apresentam aos outros.

Mas, além de retratarem o povo Inў, para si e para os outros, como já apontado por vários pesquisadores (Costa, Ribeiro, Campos, Whan, 2008, e mais recentemente, pelo grupo de pesquisadores que produziram o trabalho Dossiê descritivo dos modos de

fazer ritxoko), esses objetos também narram o contato do seu povo com a sociedade

envolvente, visto que agregam elementos que sintetizam uma trajetória de mudanças estéticas e tecnológicas, que resultam dessas relações, com diversos segmentos da sociedade não indígena. Além de serem apontados pelas etnografias, esses elementos também aparecem nas narrativas de algumas ceramistas, como é caso de Kuanajiki, uma ceramista mestra, hoje anciã de aproximadamente 90 anos de idade.

Mesmo antes das ritxoko se tornarem objetos de interesse das expedições científicas que percorreram o Brasil Central, outras frentes de contato já haviam chegado aos Karajá. Missões jesuítas visitaram a região, primeiro em 1659, e depois, em 1671. Bandeirantes paulistas chegaram à região em 1725. Posteriormente, contatos

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12 esporádicos continuaram ocorrendo e se intensificaram no inicio do século XX, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Posteriormente, já nas décadas de 1940 a 1960, como parte dos esforços oficias de desenvolvimento do Centro Oeste, a região do Araguaia e os Karajá foram utilizados como ícones de integração nacional no contexto da política de interiorização do país representada pela Marcha para o Oeste e conduzida pela Fundação Brasil Central19. Santa Isabel do Morro, centro de referência da produção cerâmica atualmente e no passado, foi um dos principais alvos tanto das expedições científicas como de políticas de desenvolvimento nacional20.

Dos jesuítas aos viajantes e primeiros etnólogos, diferentes frentes de expansão e projetos de desenvolvimento nacional, bem como, mais recentemente, o comércio e o turismo provocaram mudanças em várias dimensões da vida Karajá, incluindo a sua cultura material e, como parte dela, as ritxoko.

As pequenas bonecas de barro cru, confeccionadas das sobras da mistura de argila usada pelas mulheres Iny, na confecção da cerâmica utilitária (potes, pratos, panelas, além das urnas funerárias, ou “panela para ossos”, entre outros), modeladas pelas próprias ceramistas ou por suas filhas, netas e sobrinhas pequenas, e usadas como brinquedos de meninas, datam de tempos imemoriais, tendo sido mencionadas por viajantes e etnólogos desde a segunda metade do século XIX21. Na literatura etnográfica, elas foram mencionadas pela primeira vez pelos etnólogos alemães Fritz Krauze (1988) e Paul Erenrheich (1908), que no contexto de expedições científicas, percorreram o Brasil Central, no final do século XIX e inicios do Século XX. A essas primeiras referências se seguiram muitas outras. Algumas são breves menções ou descrições que se referem às pequenas bonecas de barro cru, no conjunto maior de artefatos da cultura material Karajá, que despertaram a curiosidade dos primeiros etnólogos e foram também recolhidas por eles, sendo, depois incorporadas a coleções de diversos museus estrangeiros22.

19 Lima Filho, Manuel Ferreira. O Desencanto do Oeste. Giânia: Ed. UCG, 2001 e LEITÃO, OLIVEIRA

e RESENDE. Imagens e relatos de um sertão desconhecido: organização e tratamento técnico do acervo

Acary de Passos Oliveira. Goiânia: Museu Antropológico/UFG, 2013.

20 Fotografia, do acervo pessoal da família de Iwraro, e cuja cena é descrita na legenda como visita de

Lideranças Karajá a Brasília, na década de 1960, ocasião em que presenteiam bonecas de cerâmica ao presidente da República Juscelino Kubitschek (CAMPOS, obra citada, 2010).

21 CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte/ Rio de

Janeiro: Itatiaia, 2000. MAGALHÃES, Couto de. Viagem ao Araguaia. São Paulo, Editora Nacional, 1975.

22 As descrições mais antigas referem-se, via de regra, às pequenas figuras de barro cru, usadas pelas

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13 A boneca de cerâmica, ou de argila cozida, tal como a conhecemos hoje, surge como decorrência desse histórico de contato interétnico dos Karajá, com “o mundo dos brancos”,23

sendo a década de 1940 apontada como principal marco histórico para o surgimento da chamada fase moderna, ou estilo moderno (como prefere Chang Whan), nas formas e técnicas de confecção das ritxoko, como mostra a literatura antropológica e é reafirmado pela tradição oral Karajá.

A mudança estética ocorrida nesse período é tão perceptível que permitiu a Castro Faria (1959), a partir de um estudo de coleções, sob a guarda do Museu Nacional, classificar a produção da cerâmica figurativa em fase antiga e fase moderna.

A primeira fase abrangendo toda a produção de bonecas documentadas pela literatura etnográfica e presentes em acervos de museus nacionais e estrangeiros, desde o final do século XIX e inicios do século XX indo ate por volta da década de 1940. São pequenas figuras humanas estilizadas, tendo o corpo modelado em argila crua e cabeleiras moldada em cera de abelha. Possuem formato triangular (esteatopígico) com bases mais largas24, representando nádegas e membros inferiores com formas arredondadas e volumosas e não possuindo pernas e braços definidos. A segunda fase ou a fase moderna, moderna resulta da incorporação da queima no processo de confecção da ritxoko, transformando a boneca de barro cru em boneca de cerâmica, o que ocorre a partir da década de 194025.

A queima, segundo Castro Faria, possibilita uma “verdadeira explosão criativa” na arte figurativa Karaja e resulta em formas diversificadas e complexas, incluindo cenas completas que retratando a vida cotidiana, ritual e cosmológica Karajá. Esta fase também se caracteriza pelo uso das cores na decoração e em formas mais delgadas e

transitam pela aldeia e enfatiza que até as meninas usam miniaturas desses artefatos para vestir suas bonecas de barro. ERENREICH, Paul, 1948. Revista do Museu Paulista, v. II 88 (tradução de Egon Shaden e apresentação de Herbert Baldus).

23 Expressão criada pro Cardoso de Oliveira e seu livro O índio e o Mundo dos Brancos dos Brancos,

quando analisa a situação de contato interétncio entre o povo Ticuna do Amazonas e demais segmentos da sociedade brasileira.

24

FARIA, Luís de Castro,

25 As primeiras ritxoko eram confeccionadas em cera de abelha pelas mulheres mais velhas da família

(14)

14 delicadas marcando uma mudança tecnológica e estética nas figuras humanas modeladas no barro.

As fases são, em estudo mais recentes, tratadas como estilos, pois novos estudos mostram que as ritxoko modernas não substituíram as de modelo antigo e que ambos os modelos coexistem ainda hoje. As inovações estéticas introduzidas na produção das bonecas com a adoção da queima, não resultam na substituição dos considerados modelos antigos. Chang Whan (2010) em sua tese de doutoramento, o que também foi observado pelos pesquisadores que produziram o Dossiê descritivo dos modos de fazer

ritxoko, ressalta que apesar do surgimento das wijina bede ritxoko – bonecas do tempo

atual, as chamadas hakana ritxoko – ritxoko do tempo antigo – continuam presentes – na produção da cerâmica figurativa e nas preferencias das ceramistas. Por isso, Whan opta pelo termo estilo, em lugar de fases para caracterizar os dois modelos de ritxoko, o antigo e o moderno26.

Mas esse processo não é narrado apenas pelos pesquisadores, que, fazendo releituras das etnografias pioneiras, realizando estudos de coleções etnográficas, acrescentando novos dados a essas etnografias, a partir de suas observações diretas e das narrativas nativas sobre o assunto, constroem descrições e sínteses interpretativas desse processo, o qual sofre influências não apenas internas e próprias da dinâmica cultural Karajá, mas também externas e decorrentes de contatos e relações que eles estabeleceram / estabelecem com os seus muitos “outros”.

Esse processo está registrado na tradição oral Karajá e é especialmente elaborado como saber histórico, que inclui a presença dos não-indígenas, nas narrativas das ceramistas mais velhas, sendo que algumas delas constroem descrições detalhadas e sínteses sobre o assunto, que abrangem desde a origem da boneca como brinquedo de menina, até suas características atuais, dando destaque aos períodos mais marcantes dessa trajetória27.

26 WHAN Chang. Ritxoko. A voz visual das ceramistas Karajá. Universidade Federal do

Rio de Janeiro. Escola de Belas Artes, 2010. (Tese de Doutorado)

27 Em notas etnográficas datadas de 1959 (organizadas e publicadas por Lima Filho e Eugênia... , em 19),

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15 Kuanajiki, apontada como exímia ceramista no passado, vivendo a maturidade dos seus 90 anos, já não tem energia e força física para trabalhar com o barro. Entretanto, guarda na memória, um saber especializado sobre os modos de fazer a cerâmica e outros saberes a ele inerentes, além de apresentar uma narrativa coerente e articulada da trajetória tecnológica e social das bonecas Karajá, tendo ela própria não só assistido esses momentos de grande mudança, mas também neles atuado, como personagem principal dessa história/memória e como agente ativa dessas mudanças.

Em uma entrevista realizada com o objetivo de captar imagens e depoimentos para o documentário ritxoko, ela não só evidencia o conhecimento das fases identificadas por Castro Faria, como também traz reflexões e críticas sobre esse processo, ressaltando tanto o uso lúdico educativo e socializador das ritxoko, mas também a influência do contato com o “branco” sobre as mesmas, que também são percebidas como mercadorias, objetos confeccionadas para fins comerciais.

Tal como aponta Castro Faria, a fala de Kuanajiki demonstra uma compreensão de que as mudanças estéticas na cerâmica figurativa, bem como nos processos tecnológicos de confecção das mesmas sofreram influencia desse contato interétnico, e que foram operadas nessa zona de fronteira entre o mundo Iny e o “mundo dos tori, sobretudo representadas pelas demandas de compradores externos.

Assim, por um lado, ela afirma que as mulheres Karaja começaram a fazer as bonecas por causa das crianças “se não houvesse crianças, não haveria ritxoko”28

. Por outro lado, também lembra que, quando era jovem e trabalhava junto com suas tias, com quem tinha aprendido o ofício, os tori foram chegando, cada vez mais. Eles achavam as bonecas bonitas e queriam compra-las. Por isso, elas e as outras ceramistas começaram a produzir quantidades maiores para atender a essas demandas e, ao mesmo tempo, começaram a queimá-las (como milenarmente já faziam com os objetos utilitários). O relato de Kuanajiki sugere que o que ocorre não é a criação de uma técnica nova e sim o uso de uma técnica que já conheciam bem, já que também eram excelentes fabricantes da cerâmica utilitária e que a queima era um procedimento usado nas mesmas desde tempos imemoriais. Ela diz que a notícia da queima das ritxoko se espalhou rapidamente.

Nas suas palavres, os compradores: “jogaram nossos nomes pra lá e pra cá,

dizendo que as ceramistas estavam fazendo bonecas assadas e bonitas”, o que só

(16)

16 ampliou a procura e motivou maior produção. Ela sugere que a demanda do tori pelas

ritxoko, foi um elemento importante, não só para o aumento da produção, mas também

para o surgimento de uma variedade maior de formas e para o aperfeiçoamento das técnicas de confecção incorporando a queima, já usado para cerâmica utilitária.

O que Castro Faria define com explosão de criatividade, kuanajiki narra dizendo que as hakana ritxoko, bonecas antigas eram “lisas”, como “um toco”, não tinham braços e nem pernas. As pernas simples formas arredondadas. Diz ainda que as ceramistas de hoje fazem qualquer coisa, representam o que tem vontade, modelam qualquer figura ou cena do mundo Iny. Gargalhando jocosamente ela encerra dizendo que as “ritxoko de hoje tem até orelhas”. Assim, a explosão de criatividade mencionada por Castro Faria é também narrada por Kuanajiki com um fenômeno que ampliou também as possibilidades de expressão das mulheres Iny, que passam a contar com instrumentos pedagógicos mais complexos e eficientes e a ter o poder de falar sobre o que quiserem através de suas bonecas de cerâmica29.

Palavras finais: reafirmando a identidade Iny, demarcando espaços políticos e formando novas gerações

Embora as ritxoko sejam brinquedos de meninas, a sua natureza educativa abarca a todos. As crianças Karajá, meninos e meninas, na sua primeira infância, passam os dias na companhia de mulheres do seu grupo familiar materno, mães e irmãs das mães, avós e irmãs das avós. As crianças não são objetos passivos de um processo educativo dado a priori. Elas estão sempre por perto dos adultos vendo, observando e acompanhando tudo. Brincam com a argila que sobra do trabalho das mulheres adultas, fabricam miniaturas das peças feitas por suas mães e avós, criam e vivem realidades próprias infantis, de cujas brincadeiras os irmãos menores, que ajudam a cuidar, também participam, desempenhando papéis auxiliares, o que não é diferente dos papéis adultos masculinos no processo de produção da cerâmica.

29 Etnografias mais direcionadas ao cotidiano feminino apontam para uma ampliação do poder

(17)

17 Para além das brincadeiras, dos brinquedos e do mundo infantil, a cerâmica figurativa fabricada pelas mulheres Karajá, mesmo quando confeccionada sob encomenda e deliberadamente voltada para o comércio, traz para o cotidiano de toda a comunidade os modelos culturais do mundo Iny, torna esses modelos acessíveis a todos. Novamente recorrendo ao exemplo das ceramistas mestras e de suas narrativas, recorro às palavras de Mahuederu que ressalta que as suas bonecas representam o povo Iny, além dos mitos e das figuras sobrenaturais. Ela explica o motivo para a existência desses artefatos: “a gente faz as bonecas para ensinar aos jovens: hirari (meninas), hirarihyky (meninas grandes), weriri (meninos), weririhyky meninos grandes), ijadokomy (moças), wekiribò (rapazes), para que eles conheçam e aprendam a história do povo Iny”. As palavras de Mahuederu revelam claramente uma postura professoral, em que está presente uma atitude consciente e assumida de uma educadora, militante e intelectual orgânica da cultura Iny, recorrente nos discursos das grandes mestras.

Da mesma forma Kuanajiki, ressalta que já está velha e já não pode modelar o barro e confeccionar bonecas. Por isso, está sempre ensinando e falando para as novas gerações que elas devem aprender. Precisam aproveitar o seu saber enquanto ela, a mestra, ainda está viva e aprender o máximo possível, pois futuramente, quando já não estiver ali serão elas, as mulheres mais jovens que devem buscar o reconhecimento como boas ceramistas.

Jandira, a única ceramista de Bdé-Burè (aldeia que resultou de uma cisão da aldeia Buridina, ambas situada no município de Aruanã-GO), ainda em fase de instalação, se referindo ao seu ofício e aos jovens da sua comunidade, ressalta, no seu português marcado pela estrutura da língua Karajá o iny ribè, que vai “aprender essa meninada toda”, se referindo à geração jovem da aldeia recém-criada. Assumindo o papel de educadora, Jandira demonstra, no seu discurso, a consciência do valor do seu saber especializado e do seu papel como ceramista mestra responsável pela formação de novas gerações, ao mesmo tempo em que também demarca espaço territorial e político de legitimação da nova aldeia em construção, e ainda em busca de reconhecimento junto a agentes e agências/instituições oficiais da sociedade nacional.

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18 referir ao valor comercial das suas bonecas, cuja venda permite a aquisição de bens do mundo do tori muito valorizados pelos iny, a função educativa voltado par aos jovens, também muitas vezes ressaltada por ela, pode ser usada para pensar não apenas este valor de troca monetária, mas também o valor social e pedagógico das ritxoko.

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