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45º Encontro Anual da ANPOCS. GT 42 Teorias do Autoritarismo

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Academic year: 2022

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45º Encontro Anual da ANPOCS

GT – 42 Teorias do Autoritarismo

Florestan Fernandes e a “teoria do autoritarismo”: autocracia burguesa e capitalismo dependente

Diogo Valença de Azevedo Costa Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

Muritiba,

2021

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Introdução

Na data de 22 de julho de 2020, comemorou-se o Centenário de nascimento de Florestan Fernandes. Foram vários eventos realizados ao longo do ano passado em sua homenagem, resgatando e avaliando-se o valor de sua obra sociológica para a compreensão dos dilemas brasileiros contemporâneos. No entanto, passou-se quase despercebido um dos debates que mais o aproxima da Ciência Política, o de suas críticas à “teoria do autoritarismo”, expressão escrita sempre entre aspas pelo autor. No início da década de 1970, referindo-se às ditaduras latino-americanas, o sociólogo paulistano ainda se valia das noções de autoritário e autoritarismo, as quais foram sendo abandonadas e substituídas pela noção de autocracia burguesa, especialmente em seu clássico A revolução burguesa no Brasil (FERNANDES, 1975). A proposta deste trabalho será analisar suas críticas à teoria do autoritarismo e seus argumentos a favor da noção de autocracia burguesa no estudo da situação política dos países de capitalismo dependente.

O principal trabalho de Florestan Fernandes, em que suas considerações críticas sobre as teorias liberais do autoritarismo se encontram densamente sintetizadas, foi escrito como apontamentos de aula no “último trimestre de 1977 para os alunos do terceiro ano de graduação do Departamento de Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo” (FERNANDES, 1979, p. XIX). Os originais datilografados, que serviram como roteiro de exposição, foram disponibilizados no formato digital pelo Fundo Florestan Fernandes da Unidade Multidisciplinar de Memória e Arquivo Histórico da Universidade Federal de São Carlos (UMMA/UFSCar). Um rápido exame desse documento já revela as intenções do autor em publicá-los no momento mesmo em que os redigia. Há também anotações manuscritas à margem, sinalizando possivelmente acréscimos ao texto final publicado em livro e com complementação das referências bibliográficas.

O resultado corresponde a um texto conciso, que procura apanhar os elementos essenciais do debate e dos conceitos sobre autoritarismo, convidando o leitor a avançar por conta própria nas conclusões. “O que fica, para os leitores, é o travejamento, o ‘essencial’, aquilo que guiou o meu pensamento e o diálogo com os estudantes” (FERNANDES, 1979, p. XX). Imerso como sociólogo-socialista na própria história em processo, suas reflexões informam a compreensão teórica do capitalismo dependente brasileiro em suas conexões com o sistema de dominação em nível internacional do capital monopolista. Apesar das diferenças de contexto político – pois hoje o que Florestan Fernandes chamaria de “cerco

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capitalista” se delineia pela retórica ideológica triunfante do fim do socialismo e pela ausência de experiências socialistas concretas que desafiem a própria lógica de produção e reprodução do capital como forma estranhada hegemônica das relações sociais – seu rigor conceitual serve como balizas para analisar a emergência de governos de extrema direita no mundo contemporâneo, como no atual caso brasileiro.

O objetivo será, nesse sentido, recuperar a contribuição de Florestan Fernandes para o debate sobre o autoritarismo, analisando sua fundamentação política e teórica a partir das categorias de “autocracia burguesa” e “capitalismo dependente”. De igual modo, o seu vínculo utópico, na acepção mannheimiana do termo, com o socialismo surge como um aspecto essencial de seu pensamento, sem o qual não se poderá compreender o teor de suas críticas às teorias liberais do autoritarismo. No plano metodológico, o presente trabalho se desenvolve em três níveis expositivos interdependentes: 1) o primeiro seria o da leitura analítico-sistemática dos principais livros de Florestan Fernandes referentes à temática do autoritarismo, dependência e autocracia burguesa, tais como Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo” (FERNANDES, 1979), a terceira parte de A revolução burguesa no Brasil (FERNANDES, 1975), Poder e contrapoder na América Latina (FERNANDES, 1981) e o terceiro ensaio de Circuito fechado (FERNANDES, 2010), intitulado “A ditadura militar e os papéis políticos dos intelectuais na América Latina”, além de alguns de seus artigos em jornais e seus manuscritos; 2) o da reconstituição de seu contexto político, caracterizado pela sua oposição à ditadura civil-militar brasileira; 3) por fim, valendo-se de uma perspectiva genético-conceitual, o da identificação de seus principais diálogos teóricos com autores clássicos da ciência política que o conduziram à crítica das teorias do autoritarismo e à formulação da noção de autocracia burguesa. Será dada uma ênfase especial ao nível expositivo analítico-sistemático dos conceitos, utilizando-se aqui os demais enfoques metodológicos numa perspectiva auxiliar.

O trabalho estará dividido em três partes. Na primeira serão abordadas as críticas de Florestan Fernandes às teorias do autoritarismo, indicando o modo como o autor as supera e, ao mesmo tempo, as incorpora reflexivamente. Na segunda, suas categorias de autocracia burguesa e capitalismo dependente serão recuperadas como instrumentos políticos e teóricos para o estudo das formações sociais capitalistas contemporâneas, nos planos nacionais e internacionais. Por fim, a terceira parte corresponderá a breves indicações de como se pode, a partir de Florestan Fernandes, examinar o bolsonarismo como uma das modalidades históricas do neofascismo. O atual governo será capaz de se

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consolidar no poder como uma forma totalitária de fascismo de massas no Brasil (hipótese cada vez mais remota, mas não de todo ainda debelada) ou o consórcio de poder burguês irá se rearticular nos termos de sua “democracia restrita”, ocultando mais uma vez os nexos autocráticos de sua dominação por meio de uma conciliação pelo alto? As ideias apresentadas nessa última parte serão sempre provisórias, sendo necessário dizer que elas se enlaçam ao desejo de uma solução efetivamente democrática, popular, ancorada nas classes trabalhadoras e nas massas marginalizadas, para a atual crise brasileira.

Existe uma teoria do autoritarismo?

O livro Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo” se divide em três capítulos, cada um deles com seus respectivos tópicos. O título desta parte do trabalho foi retirado do primeiro capítulo, pensado por Florestan Fernandes justamente na forma de pergunta: “existe uma teoria do autoritarismo?”. Suas subdivisões, “parte conceitual e crítica” e “o ponto de vista sociológico no estudo do problema”, se lançam a uma crítica das perspectivas liberais sobre o autoritarismo e, em seguida, a uma tentativa de propor caminhos de análise vinculados a um olhar estrutural e histórico dos fenômenos da dominação política e do Estado em diferentes sociedades capitalistas. Esse seria o capítulo mais curto do livro, no qual o autor se preocupa, sobretudo, com as questões interpretativas de caráter preliminar, que lhe permitem não apenas limpar o terreno das impregnações ideológicas de defesa da ordem capitalista em torno do debate, mas também indicar suas próprias posições políticas e epistemológicas socialistas, as quais conferem à sociologia histórica uma dimensão de análise prospectiva das tendências futuras.

Trata-se, em outros termos, de um sociólogo que não titubeia em realizar uma história do tempo presente e do futuro em construção, com todos os riscos de fornecer prognósticos com base em tendências a serem confirmadas ou negadas (parcial e/ou totalmente) pelos cursos posteriores dos acontecimentos. Passado, presente e futuro se influenciam reciprocamente nesse modelo de análise, o qual nunca se esgota num sistema conceitual fechado e estático. É assim que os outros dois capítulos do livro se dedicam aos fenômenos do autoritarismo em distintas formas históricas do capitalismo monopolista e nas fases de transição socialista, respectivamente. O segundo capítulo se intitula “o Estado sob o capitalismo recente”, acompanhado dos seguintes subtítulos: “classe e conflito de classe sob o capitalismo monopolista”; “o Estado capitalista na era atual”; “o Estado

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capitalista da periferia”. Já o terceiro capítulo, denominado “o Estado na «transição para o socialismo»”, revelando emblematicamente o contexto histórico da época, se desdobra nos tópicos “autoritarismo e socialismo”, “o cerco capitalista” e “as revoluções socialistas do século XX: os dilemas do «socialismo de acumulação»”.

Escrito em 1977, dificilmente Florestan Fernandes poderia ter projetado os acontecimentos da queda do Leste Europeu e o fim da União Soviética em fins da década subsequente e nos inícios dos anos de 1990. O sentido da história que se descortinava para o autor se configurava como uma luta de vida e morte entre dois polos antagônicos e irreconciliáveis, capitalismo e socialismo. Assim, suas críticas às chamadas versões liberais da teoria do autoritarismo só fazem sentido quando se examina o significado mais exato de sua visão de mundo socialista. Por isso, é melhor começar a exposição por elementos situados mais ao final do livro, pois neles residem a chave da interpretação histórica do autor e o modo como incorporava na análise sociológica os prognósticos socialistas (marxistas) das condições políticas de transformação do capitalismo em direção a uma ruptura com a ordem social da exploração e da dominação do capital (não entendida como uma evolução natural do modo de produção capitalista, mas como uma alternativa possível desde que as massas e as classes trabalhadoras desenvolvessem uma consciência de classes revolucionária em movimentos organizados para tais fins). É certo que, nessa atmosfera turbulenta, os ventos históricos sopraram várias ilusões e uma delas foi a de que o Estado socialista burocratizado poderia se regenerar e o aprofundamento da transição socialista conduziria às etapas mais avançadas da construção do comunismo.

A perspectiva histórica de Florestan Fernandes não estava isenta de ilusões, mas eram ilusões inevitáveis dado o contexto da época. Muito se fala do aspecto utópico do pensamento socialista e quase nunca se fala dos elementos ilusórios do liberalismo, ou mesmo do neoliberalismo. Quando se apanham as utopias do liberalismo clássico, as sociedades capitalistas existentes correspondem ao inteiro oposto das suas imagens idealizadas e o próprio neoliberalismo seria uma ideologia esgotada historicamente, pois nenhuma nação capitalista hegemônica a segue à risca, pois o seu Estado se torna máximo nos seus objetivos de imperializar outros povos e suas riquezas. O essencial, para Fernandes, não residia na presença de uma alternativa socialista palpável, um efeito de demonstração que pudesse competir com as sociedades capitalistas por um novo sistema de organização das relações econômicas, culturais, políticas e das demais esferas da vida social como um todo. O busílis, para utilizar uma de suas expressões favoritas, residia no

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caráter estrutural e histórico antagônico da ordem social capitalista, da sociedade de classes. Assim, são as condições de exploração, de extração combinada das mais-valias relativa e absoluta, do autoestranhamento dos indivíduos na produção, da violência política institucionalizada, da degradação da qualidade de vida etc., inerentes histórica e estruturalmente ao capitalismo como sistema hegemônico mundial, que repõem a alternativa socialista como possiblidade histórica inscrita na atualidade. Os princípios de negação da ordem existente nascem no interior dessa mesma ordem e, por isso, o movimento socialista não pode ser confundido apenas com algumas de suas experiências pretéritas, presentes e futuras.

Não seria o lugar aqui para discutir as reformulações de Florestan Fernandes das suas análises históricas sobre o futuro do socialismo. Assim o fará em escritos da primeira metade da década de 1990 (FERNANDES, 1995)1. O certo é que, em 1977, irá finalizar suas preleções com o seguinte ar esperançoso: “Mais do que um socialismo democrático, o que se espera da Rússia, neste último quartel do século XX, é uma demonstração da viabilidade do próprio comunismo” (FERNANDES, 1979, p. 107). Nos quarto e sexto capítulos do livro A natureza sociológica da sociologia (FERNANDES, 1980a), ambos resultantes de aulas ministradas no ano de 1978, também podem ser encontradas afirmações prospectivas de Florestan Fernandes sobre as características e potencialidades das etapas de transição socialista e da construção do comunismo. Tais escritos estão, por um lado, datados historicamente e, por outro, seriam atuais em termos de uma análise voltada para o futuro, no caso da emergência de novas e ainda mais radicais experiências socialistas. Apesar das críticas à degenerescência burocrática desses países e dos debates infindáveis se tais regimes poderiam ter sido caracterizados como de “capitalismo de Estado”2, a economia política do período de transição lidou com novas contradições históricas, irredutíveis às leis de desenvolvimento do modo de produção capitalista, mas que refletem as dificuldades de concretização da igualdade e liberdade socialistas.

A persistência do ancien régime capitalista na transição socialista e a ausência de uma democracia popular de base foram as condições centrais para a queda do bloco

1 Ver também o prefácio de Democracia e desenvolvimento (FERNANDES, 1994), em que a questão da democracia socialista já se coloca a partir dos horizontes da queda do Muro de Berlim.

2 Para uma caracterização desses regimes como “capitalismo de Estado”, ver Callinicos (1992). Florestan Fernandes discorda da designação de “capitalismo de Estado” (FERNANDES, 1979, p. 102). István Mészáros percebe a reprodução do sistema sociometabólico do capital nas sociedades pós-capitalistas e, por isso, o processo político de desalienação do trabalho estranhado ficou seriamente comprometido pela

“estrutura de comando extremamente centralizada de um Estado autoritário” (MÉSZÁROS, 2002, p. 29).

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soviético. Trata-se de um fenômeno complexo, no qual se combina uma série de fatores externos do “cerco capitalista” e internos, relativos às condições históricas e políticas anteriores das lutas de classes das nações socialistas. Florestan Fernandes não deixa de apontar o conjunto dessas contradições no período de transição. No caso da Rússia, por exemplo, os entraves de uma revolução socialista num país de desenvolvimento capitalista desigual e combinado, relativamente atrasado, o elo débil do sistema, se expressam nas designações conhecidas como socialismo de guerra, de acumulação, num só país etc. O

“cerco capitalista”, contrarrevolucionário, procurou a todo custo sufocar a construção de novas formas de sociabilidade, não mais moldadas pela relação antagônica do capital. A seguinte passagem seria elucidativa quanto à persistência do passado no socialismo:

Tomando-se essa situação histórica em conjunto, nela se encontra a base material da redefinição e persistência da divisão do trabalho social, do contraste entre trabalho manual e trabalho intelectual, da desigualdade de “salários” (ou equivalentes de salários), bem como, se não de uma

“nova classe” (como pretende M. Djilas), pelo menos de “grupos de status” ou “de prestígio” (pois, para que houvesse uma nova classe, seria necessário um enlace estrutural e dinâmico entre a apropriação dos meios de produção e o rateio social do excedente econômico através da circulação). Tudo isso quer dizer que ainda se está longe da contraparte socialista: a cada um de acordo com suas necessidades. A riqueza acumulada ainda não permite acoplar a produção socializada à circulação de modelo socializado. Isso não quer dizer, porém, que não se tenha instaurado, de fato, a transição para o socialismo. Tão-somente, que esta transição ainda se mantém em estágios insuficientes para desencadear a construção de uma sociedade na qual todos os componentes do capitalismo sejam liquidados e os principais componentes do socialismo em pleno florescimento (FERNANDES, 1979, p. 101).

Essa passagem é fundamental porque revela duas coisas no pensamento sociológico e socialista de Florestan Fernandes no momento em questão: primeira, a incorporação das teorias marxistas da transição em suas análises políticas e, segunda, sua visão de que essa transição estava se prologando indefinidamente. Em sua concepção, a dissolução da base estrutural e dinâmica (histórica) das classes sociais conduziria ao desaparecimento do autoritarismo, na medida em que se avançasse nas etapas da transição socialista. Num primeiro momento, dados os gargalos do socialismo de guerra e de acumulação, a dimensão autoritária poderia se intensificar: “Os resíduos do autoritarismo se preservam e até se exacerbam (o que parece impossível evitar: trata-se de uma resposta às várias modalidades de cerco capitalista ao movimento socialista e operário)” (FERNANDES, 1979, p. 68). No largo prazo, porém, o elemento autoritário iria perecer. “[...] o próprio

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autoritarismo como tal está condenado. Ele deve declinar sensivelmente nas fases mais adiantadas e complexas da transição para o socialismo – e desaparecer na «época comunista»” (FERNANDES, 1979, p. 68). Em termos históricos e sociológicos, essa hipótese política não se concretizou; já em termos lógicos, não apenas seria inteiramente coerente com a perspectiva teórica de Florestan Fernandes, mas também se apresenta como uma possibilidade não realizada da história em processo. Assim, essa perspectiva socialista irá informar as críticas do autor às teorias liberais do autoritarismo, bem como suas análises dos fundamentos autocráticos (e, também, autoritários) do capitalismo monopolista, nos centros imperiais e nas suas zonas de influência periféricas.

A reconstrução do pensamento socialista de Florestan Fernandes até agora avançada não foi exaustiva. Para ser ainda mais completa, seria preciso considerar, de um lado, sua concepção das vias múltiplas da revolução popular-democrática e transição para o socialismo; de outro, a sua qualificação/distinção entre os padrões históricos das democracias “burguesa” e “operária” ou “popular”. No que diz respeito ao primeiro aspecto, o sociólogo paulistano, escrevendo em 1977, considera a importância dos vários polos de irradiação de transformação socialista: “Hoje, existem vários polos de desenvolvimento, irradiação e interinfluenciação dos países que tendem para o socialismo” (FERNANDES, 1979, p. 106). Isso seria importante ressaltar, porque não poderia haver um modelo único e exclusivo de revolução. A teoria revolucionária, embora possa ter elementos gerais e comuns, pois os países capitalistas estão submetidos a formas de exploração em certos limites universais, deve ser construída em cada situação histórica concreta, tendo-se em vista as condições particulares das formações nacionais3. Isso não significa desprezar a construção de uma solidariedade internacional. Assim, as condições em que o autoritarismo se revela, nas sociedades capitalistas centrais e periféricas, devem

3 Respondendo a uma questão do público numa palestra proferida provavelmente em 1992, Florestan Fernandes irá dizer enfaticamente: “[...] não adianta pensar no passado revolucionário de outras nações.

Antes eu acreditava que, para o Brasil, o modelo de revolução seria o chinês, por causa de certas condições:

grande massa agrícola, a migração para a cidade, a densidade proletária de algumas metrópoles, provocando descontinuidades muito grandes entre regiões, o domínio linguístico e total das elites das classes dominantes, que equivalem ao do senhor feudal chinês, senhor da guerra. Cheguei a pensar que esse era o ‘modelo’, pois permitia garantir a hegemonia operária, associar a guerrilha ao Exército e basear a revolução na guerra prolongada! Mas logo ficou claro que semelhante opção seria impraticável. As revoluções que ocorreram na ciência e na tecnologia, que produziram a automação, os computadores, a energia nuclear e os meios de guerra, que foram aplicados no Japão (e, ainda agora, no Iraque), evidenciavam que a questão não se punha na repetição de um modelo explorado, porém em atinar a um modelo novo, adequado ao Brasil, à América Latina e aos requisitos da guerra atual” (FERNANDES, 1995, p. 239-240). Na fonte consultada não consta a data exata em que a palestra foi proferida, tendo sido publicada originalmente em Fernandes (1992). Essa longa citação foi necessária para ilustrar a saturação histórica das análises do sociólogo paulistano.

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ser examinadas no plano dialético das interações entre particularidades históricas nacionais e os contextos internacionais do sistema capitalista globalizado. Mesmo quando circunscrito à dimensão nacional brasileira, Florestan Fernandes implicitamente considera os dinamismos políticos do imperialismo e, nesse sentido, avança na reconstrução de uma visão sociológica das nações capitalistas centrais. Em Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”, esse nível internacional de análise se torna explícito em suas considerações sobre o Estado capitalista na era atual e o capitalismo monopolista.

Quanto ao segundo tópico, ele suscita algumas incompreensões sobre as definições políticas assumidas por Florestan Fernandes. A “democracia burguesa”, mesmo nas suas formas mais avançadas, oculta um elemento irredutível de violência institucional, dado pela relação de exploração entre capital e trabalho, sacramentado sob o manto do pluralismo e da divisão dos poderes. Nesses termos, Florestan Fernandes a define “como forma política da república democrática, uma ditadura de classe dissimulada com fundamento na representação, na divisão de poderes e nos direitos fundamentais dos cidadãos” (FERNANDES, 1980b, p. 14). Essas palavras foram escritas no contexto dos debates em torno do chamado “socialismo democrático”, como uma reação do mundo ocidental às distorções autoritárias dos Estados socialistas. No entanto, o sociólogo paulistano compreende tal expressão como o equivalente da incorporação dos partidos socialistas à ordem capitalista via acomodação com a “social-democracia” (FERNANDES, 1980b, p. 41), limitando-se à barganha com o capital e confundindo-se com o welfare state em alguns países da Europa ou com a reforma capitalista do capitalismo (FERNANDES, 1991). Na fase da crise final da União Soviética e do Leste europeu, dirá: “Tornou-se corrente [...] o uso do conceito ambíguo de ‘socialismo democrático’ após os acontecimentos do Leste europeu [...] e seria inconcebível qualquer manifestação do socialismo que não fosse democrática” (FERNANDES, 1991, p. 7). Ao contrário, o que entende por “democracia operária” ou “popular” seria o processo de “democratização total” (FERNANDES, 1979, p. 103) da transição socialista para o comunismo.

O essencial a reter aqui seria que, numa “economia fundada na generalização do valor de uso [em oposição ao valor de troca], na concepção socialista do trabalho e na satisfação das necessidades” (FERNANDES, 1979, p. 102), formas mais avançadas de democracia se concretizariam após a eliminação dos componentes estruturais e históricos da exploração de classes e da extração de mais-valor para retroalimentar o processo de valorização e acumulação capitalista. Experiências de democracia participativa direta no

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chão de fábrica, no campo, nos bairros etc. seriam as novas bases institucionais de uma sociedade autogerida pelos trabalhadores livremente associados e pelo conjunto das camadas populares. Na produção voltada para bens socialmente úteis, com o trabalho necessário reduzido ao mínimo possível, a liberdade atuaria como pressuposto do enriquecimento cultural, coletivo e multilateral das potencialidades humanas, não mais divididas nas rígidas hierarquizações entre trabalhos manual e intelectual. Como essa etapa mais avançada se faria possível, enquanto os recursos produtivos da coletividade estivessem voltados para os gastos militares de defesa contra o “cerco capitalista”? Na ótica de Florestan Fernandes, os valores utópicos do liberalismo clássico – a liberdade, a igualdade e a fraternidade – teriam mudado de mãos, passando das burguesias que se erigem como classes dominantes, reacionárias e contrarrevolucionárias (traindo sua própria revolução e ideais) para as novas classes revolucionárias. As condições para o desenvolvimento do “humanismo” socialista estariam dadas:

O que é preciso ressaltar é o elemento central. Enquanto o capitalismo coloca a sua pedra de toque na propriedade privada, no motivo da ambição pessoal e na competição institucionalizada pelo lucro e/ou pelo poder, o socialismo se volta para a liberação do ser humano, a solidariedade como fundamento do amor e da felicidade, a igualdade como força básica da personalidade e da sociedade. Para um, a riqueza e o poder constituem o dínamo da história e o motor do crescimento da civilização. Para o outro, enquanto existirem riqueza e poder, estamos em plena pré-história da civilização. O homem só pode surgir como

“senhor da natureza e da civilização”, combinar sua capacidade de fazer e de inventar, estabelecer uma relação recíproca entre “necessidade” e

“liberdade”, rompendo com a riqueza e o poder nos dois planos simultâneos do individualismo egoístico e da supremacia dos pequenos números (ou seja, o despotismo das minorias). (FERNANDES, 1979, p.

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[...] A polaridade utópica revolucionária equaciona o que deve ser o humanismo específico da civilização moderna quando se compatibiliza a liberdade, a fraternidade e a igualdade com a forma socialista de produção, de organização da sociedade e de auto-administração pela coletividade. (FERNANDES, 1979, p. 67)

No subtópico “autoritarismo e socialismo” do terceiro capítulo, Florestan Fernandes avança uma análise histórico-sociológica das bases reais das utopias burguesa e socialista, afirmando que somente esta última teria condições de se aprofundar pari passu à sua própria eliminação como forma transitória do poder político da nova classe revolucionária: “A classe trabalhadora substituirá [...] a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo, e não haverá mais poder político

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propriamente dito, pois que o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo da sociedade civil” (MARX apud FERNANDES, 1979, p. 69). Assim se tornam plenamente compreensíveis as críticas do autor ao “socialismo democrático”, sem que estas sejam confundidas com uma defesa do autoritarismo socialista, embora este fosse necessário no combate ao “cerco capitalista” externo e às persistências das ameaças internas dos grupos detentores de posições privilegiadas na antiga ordem. Ao contrário da

“hipocrisia burguesa” que esconde sob o manto da “democracia parlamentar” a ditadura de uma minoria, do grande capital, a ditadura de classes do proletariado revolucionário seria afirmada explicitamente e equacionada como democracia da maioria (FERNANDES, 1979, p. 68). Esse momento deveria ser provisório e encurtado o máximo possível, pois de outro modo a própria transição socialista estaria ameaçada4. Ao apontar as potencialidades históricas do socialismo para a realização da “democracia plena”, com o fim do próprio Estado como órgão de poder político, Florestan Fernandes não está afirmando que tais potencialidades irão se efetivar inevitavelmente, pois esse processo dependerá do conjunto das circunstâncias particulares e universais. Na condição de socialista, sua reflexão teórica não poderia ser outra e suas críticas aos limites da democracia representativa são totalmente opostas às visões fascistas, conservadoras e reacionárias. Estes últimos negam a democracia institucionalizada com o intuito de implantarem regimes totalitários, os socialistas querem radicalizar a própria democracia, acabando com a dominação burocrática das minorias e com a exploração de classe. Nas palavras de Florestan Fernandes, a relativização das formas históricas de democracia não significa em nenhum momento o seu rebaixamento valorativo:

Falar em socialismo “moderno” ou em socialismo “democrático” não passa de uma farsa. Só se moderniza o socialismo colocando-o em prática e forjando as fronteiras da revolução anticapitalista. Por sua vez, o socialismo é, por sua essência, a “democracia da maioria” e deve assegurar, quando esta se dissolve por desnecessária, a democracia plena.

(FERNANDES, 1995, p. 203)

[...] há na essência da concepção socialista uma relativização do conceito de democracia. A democracia é, sem dúvida, um valor; mas ela não

4 Em 1977 Florestan Fernandes tinha consciência de tal possibilidade histórica, embora o tom geral de sua avaliação fosse positivo em face das chances de concretização de uma “democracia plena” nas experiências socialistas de então. Falando do Estado socialista, dirá: “O Estado resiste, portanto, como um Estado político, o que significa que ele tem inimigos a enfrentar e que a transição não pode ser tão rápida (por motivos internos e por motivos externos). O que importa: a exacerbação do autoritarismo não só se prolonga; ela se desdobra e se intensifica, contribuindo de maneira direta e indireta para que esse Estado, que persiste como tal (embora representando, de direito e/ou de fato a maioria), se converta na estrutura política de prolongamento e de moderação da transição” (FERNANDES, 1979, p. 106).

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escapa às determinações da sociedade civil. Por isso, não pode ser representada como um valor em si e, muito menos, como um valor absoluto. Há uma tendência a ver com desconfiança o contraste entre democracia burguesa e democracia operária ou popular. [...] As carências e as vicissitudes brasileiras atropelaram as reflexões e as investigações mais sérias, e nos conduziram a uma visão míope da democracia, que não leva em conta que, se ela é essencial, como valor e como meio para outros fins (da grande burguesia, das classes intermediárias, dos trabalhadores e dos excluídos), ela jamais poderá ser convertida no que ela não é (nem pode ser) sob o capitalismo e sob o socialismo desvirtuado pela burocracia. Esse “culto da democracia” convém à reprodução da ordem e ajuda os partidos de esquerda a galgar posições na competição institucional. Todavia, ele não se cruza com as tarefas históricas das classes trabalhadoras em um país que se defronta com os dilemas sociais que imobilizam o Brasil. Daí ser tão imperioso afastar as conquistas democráticas da capitulação calculada inerente a fórmulas antioperárias de reforma social e de revolução dentro da ordem. (FERNANDES, 1995, p. 204-205)

O recurso a essa longa citação foi necessário para não dar margem a tergiversações que caracterizariam o autor como um marxista dogmático. Florestan Fernandes estava recolhendo o essencial da dominação de classe da burguesia, pois mesmo com toda complexificação da sociedade civil, do Estado e da dinâmica mundial, isso não afeta o seu caráter de classe e envolve uma multiplicidade de determinações históricas. No próprio opúsculo do qual a citação foi retirada – Em defesa do socialismo, material de campanha para seu segundo mandato na Câmara dos Deputados, em 1990 – irá afirmar que uma análise socialista exigente deveria apreender “a contingência introduzida pelas peculiaridades da situação histórica vigente”, procedendo-se “do particular ao geral” e, por meio das mediações dialética, chegando-se “ao concreto por meio da interpretação e da representação do real” (FERNANDES, 1979, p. 203). Isso não significa, contudo, que a atuação política na democracia burguesa, parlamentar, tenha que ser acessória. Para a conquista progressiva de reivindicações populares, sempre se faz preferível uma sociedade burguesa com alguma democracia do que sem democracia nenhuma. Apenas, a atuação parlamentar deve estar acoplada aos movimentos de massas, sem os quais, do ponto de vista das esquerdas, irá cair no ritualismo democrático. As observações de Florestan Fernandes ajudam a explicar por que setores da direita liberal, com um verniz democrático e civilizado, aderiram ao discurso de ódio desde 2013, fomentaram um sentimento visceral antipetista (o qual simboliza o repúdio geral às esquerdas, aos “comunistas”, aos negros, aos povos originários, às pessoas LGBTQIA+ etc.) e atuaram ativamente no Golpe jurídico e parlamentar de 2016 contra a Presidenta Dilma Rousseff. Dados os limites antagônicos,

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históricos e estruturais da sociedade capitalista, a visão idealizada, formalista, da democracia representativa, pluralista e pluripartidária, encobre as relações sociais de espoliação, expropriação e exploração das atuais formas históricas mais diversas de sociedades baseadas na hegemonia política do capital oligopolista.

Assim, setores “esclarecidos” das elites das classes dominantes e as classes médias que temem o rebaixamento social, e por isso se apegam a ideologias autoritárias de contornos fascistizantes, preferiram apoiar em 2018 um candidato notoriamente saudosista da ditadura de 1964 e admirador de conhecidos torturadores. A esse assunto se voltará mais adiante no terceiro tópico deste trabalho. O mais importante é que, agora, se está em condições de explicitar as nuances das críticas de Florestan Fernandes às teorias liberais do autoritarismo e às formas históricas do capitalismo monopolista nos centros imperialistas, em sua superpotência e nas periferias. Em seguida, serão abordadas suas categorias de “autocracia burguesa” e “capitalismo dependente”, como noções mais fundamentais e explicativas do que “autoritário” e “autoritarismo”. No plano da análise genético-conceitual das categorias políticas de Florestan Fernandes, não se poderá avançar no presente momento bastante na identificação exaustiva das fontes teóricas de diálogo do sociólogo paulistano. Somente serão apresentadas algumas de suas referências à primeira vista mais importantes e mesmo outras que são consideradas fundamentais (Franz Neumann, Barrington Moore, Jr. etc.) serão deixadas de lado, pois não se pôde nesses casos consultar diretamente as anotações contidas nos livros que pertenceram ao sociólogo paulistano5. A exposição a partir de agora, como um subitem do tópico mais geral “existe uma teoria do autoritarismo?”, irá ser iniciada com o aprofundamento da noção de “cerco capitalista” interno e externo, categorias histórico-sociológicas com as quais Florestan Fernandes avança em suas investigações críticas do capitalismo monopolista.

As etapas dos cercos capitalistas e as “teorias do autoritarismo”

A noção de “cerco capitalista” não deve ser entendida apenas em relação aos países que vivenciaram processos de revolução nacional-democrática, popular, e foram

5 Para dar continuidade a esse tipo de investigação, seria indispensável retornar ao acervo de Florestan Fernandes e realizar um exame mais minucioso das suas anotações marginais contidas nos livros referenciados em Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”, em A revolução burguesa no Brasil e noutros de seus trabalhos pertinentes ao tema aqui em debate.

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conduzidos por circunstâncias bem distintas às etapas da transição socialista. O exemplo histórico mais notório continua a ser o de Cuba. Saída de uma situação que poderia ser caracterizada como neocolonial em 1959, iniciando seu processo como um movimento nacionalista situado nos limites políticos de uma radicalização democrática, irá ser declarado dois anos depois o caráter socialista de suas mudanças revolucionárias. No contexto da Guerra Fria, a reação da superpotência capitalista mundial, os Estados Unidos, foi apoiar econômica, logística e militarmente as forças políticas contrarrevolucionárias cubanas (invasão de Playa Girón, bloqueio econômico, leis Torricelli e Helms-Burton, asilo concedido a terroristas reconhecidos como Orlando Bosch e Luis Posada Carriles, base de apoio aos grupos anticastristas em Miami, a prisão dos cinco etc.). Assim, o “cerco capitalista” pode ser entendido como uma estratégia do imperialismo para impedir o aprofundamento democrático da revolução socialista e provocar crises econômicas e políticas suscetíveis de desestabilizá-la e restaurar a ordem capitalista. Esse mesmo cerco também se fecha internamente nos próprios países dos centros e periferias do sistema capitalista, com o intuito de impedir novas rupturas revolucionárias.

No amplo panorama histórico, que vai da consolidação das revoluções burguesas nos países de capitalismo central até o último quartel do século XX, Florestan Fernandes distingue “quatro tipos de cerco”. No primeiro, “a burguesia ainda aparece como classe em consolidação” (FERNANDES, 1979, p. 70). O exemplo paradigmático seria a república francesa, caracterizado pelas lutas entre as forças políticas interessadas na estabilização da ordem burguesa em ascensão e os setores sociais empenhados na radicalização dos seus ideais utópicos de “liberdade, fraternidade e igualdade”. “Por meio destas lutas, a classe trabalhadora iria aprender o que é uma classe oprimida, ou seja, a verdadeira natureza da opressão institucional, do «terrorismo burguês»” (FERNANDES, 1979, p. 70-71). De uma classe portadora de um projeto revolucionário contra as forças da antiga ordem feudal, a nobreza e as monarquias absolutistas, a burguesia ensaia os primeiros passos de sua transformação numa classe dominante e conservadora sob o capitalismo. O segundo momento histórico do “cerco capitalista” já se desenvolve “em escala europeia” como um confronto das classes oprimidas contra a “burguesia como classe dominante”. As primeiras, ao pressionarem por “reformas” e “transformações sociais”, passam a ameaçar de “modo direto ou indireto, pela pressão operária e pelo movimento socialista, o espaço público da classe dominante” (FERNANDES, 1979, p. 71). O acontecimento inesperado da Revolução Russa iria ocasionar uma reviravolta histórica, “graças à qual o socialismo

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deixa de ser uma «ameaça potencial»” (FERNANDES, 1979, p. 71). A terceira etapa do cerco se caracteriza pela tentativa de evitar o surgimento de novas Rússias. Os movimentos revolucionários passam a ser duramente reprimidos (a Hungria de 1919 e a Alemanha da República de Weimar), impondo-se o isolamento do “socialismo num só país” e produzindo-se um “novo modelo de cerco”, que se volta “contra a irradiação do comunismo, pela qual se procura fragmentar a ‘revolução social’ nos países capitalistas do centro e da periferia” (FERNANDES, 1979, p. 71). Com a expansão da “alternativa socialista” após a Segunda Grande Guerra, a quarta etapa do cerco se caracteriza pelo confronto de vida e morte entre socialismo e capitalismo. As rupturas revolucionárias em países como China, Vietnã, Iugoslávia e Cuba alimentam a perspectiva do “policentrismo socialista” (FERNANDES, 1979, p. 71) e tornam o combate sem tréguas ao perigo vermelho, à ameaça comunista, um meio de autodefesa do mundo capitalista. Todo o período da Guerra Fria até a derrocada do Leste Europeu corresponde ao da quarta etapa do “cerco capitalista” e termina com o triunfo da contrarrevolução mundial.

A quinta etapa do cerco capitalista, atualmente em curso, não esteve nos horizontes da “imaginação socialista” de Florestan Fernandes. A partir de suas sugestões, pode-se situar seu início na era ideológica do triunfo do neoliberalismo e do apregoado “fim da história” em fins do século XX, passando pela fase da guerra contra o “terrorismo” após os acontecimentos das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 até chegar nas intervenções abertas ou veladas sobre países que destoam dos valores e objetivos políticos da supremacia ocidental. Num contexto radicalmente diverso, China (com seu socialismo de mercado) e Rússia seriam os principais concorrentes dos Estados Unidos. Na América Latina, tenta-se evitar a todo custo a integração da região e o avanço de governos progressistas de esquerda ou centro-esquerda. O perigo vermelho não foi completamente exorcizado e exemplos como o da Venezuela (independentemente de suas contradições insuperáveis e apesar de toda campanha de desinformação) precisam ser prontamente destruídos, a fim de se evitar que as visões de mundo socialistas passem a contar com experiências concretas bem-sucedidas, um efeito demonstração pernicioso para a normalidade e estabilidade do capitalismo hegemônico e “finalizado” (FERNANDES, 1979, p. 89), sonhado como a última etapa possível de evolução da humanidade.

O problema, contudo, é que a história irá cobrar a fatura àqueles que a julgam ser eterna no atual ponto de chegada. A predominância do capital financeiro, na sua fração fictícia e parasitária, não apenas exige a exacerbação do elemento político autoritário,

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como também vincula à normalidade do próprio sistema o controle tecnocrático – por parte de minorias ocultas nos aparelhos estatais, em geral associadas com as grandes corporações transnacionais – das decisões centrais que interessam à toda coletividade. Os elementos analisados por Florestan Fernandes no segundo capítulo de Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”, presentes no capitalismo monopolista dos centros e periferias, foram intensificados e, por assim dizer, universalizados. O uso abusivo da autoridade e o próprio autoritarismo não seriam desvios patológicos da ordem social do capital-imperialismo e, sim, elementos de sua constituição normal, na acepção durkheimiana. As elites das classes dominantes no capitalismo se tornam mais flexíveis na manipulação de uma tecnologia social contrarrevolucionária, em sua utilização teleguiada dos meios de comunicação de massa, de maneira a reforçar “os efeitos da socialização básica de conformismo produzida pela educação pré-escolar e escolar” (FERNANDES, 1949, p. 23). Porém, se fazem mais rígidas quando o livre jogo político e o “caráter aberto da democracia liberal ou parlamentar” (FERNANDES, 1979, p. 24) avançam mais longe, elevando as chances de uma participação ampliada de outras classes e setores sociais nas decisões sobre os rumos das sociedades nacionais. “A democracia só é legítima quando encontra ou recebe o consenso «burguês»” (FERNANDES, 1979, p. 26). Se necessário, as regras da democracia formal podem ser burladas: os próprios setores de classe da burguesia se encarregam de corromper as instituições sagradas do seu Estado democrático de direito6.

O wishful thinking liberal ressignifica o Estado capitalista a partir da inversão ideológica de seus valores ideais. “A ótica liberal tem reduzido o Estado constitucional e representativo a um estado neutro e fraco, movido pela filosofia do ‘laissez-faire’, como se a vida econômica, social e política sob o capitalismo fosse determinada ao nível privado e das relações jurídicas privadas” (FERNANDES, 1979, p. 29). Tendo como fundamento a “propriedade privada dos meios de produção” e pela própria “base estrutural-dinâmica do crescimento do capital (apropriação da mais-valia relativa)”, o assim chamado Estado democrático de direito “sempre foi, ao mesmo tempo, um instrumento de poder e de dominação de classe” (FERNANDES, 1979, p. 29). Inspirando-se nas observações contidas em Estado democrático e Estado autoritário (NEUMANN, 1969) para a crítica da perspectiva liberal, Florestan Fernandes caracteriza o Estado capitalista da era atual

6 A análise da combinação entre elementos flexíveis de luta pela hegemonia capitalista e os aspectos coercitivos da dominação burguesa se encontra no tópico do segundo capítulo intitulado “classe e conflito de classes sob o capitalismo monopolista” (FERNANDES, 1979, p. 19-28).

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como uma estrutura tecnocrática e burocratizada modelada pela hegemonia do capital financeiro internacionalizado. Esse Estado seria fascista na sua forma e conteúdo, capaz de prescindir, inclusive, dos movimentos de massa nos exemplos clássicos de fascismo e nazismo na Itália e Alemanha, respectivamente. A esse respeito, debatendo a noção gramsciana de “bloco histórico”, irá afirmar:

O que deve ser posto em relevo é que, em sua forma atual, o capitalismo monopolista engendrou uma hegemonia de tipo especial, graças à qual as elites das classes dirigentes utilizam o monopólio das posições-chaves no Estado para deprimir ou anular os conflitos que não emanem de seus interesses diretos (nacionais ou mundiais) e para obter um consenso por arregimentação indireta inteiramente dissociado da filosofia política básica da “democracia representativa”. Essa modalidade de consenso é, pois, claramente parafascista em sua forma e funcionalmente fascista em seus resultados (o que tem sido advertido, com maior ou menor ênfase, por autores da responsabilidade de Wright Mills, Marcuse e Domhoff).

Ela prescinde de “convergências negociadas” e, portanto, das complicações e imprevistos das “alianças de classes”. Ela torna, por sua vez, a noção de bloco histórico tão obsoleta quanto a noção de democracia liberal: o consenso por arregimentação indireta vincula a

“hegemonia da classe dirigente” à capacidade das elites no poder de transformar in puts “autoritários” em out puts “democráticos”

(FERNANDES, 1980, p. 72).

As contradições entre as “funções de acumulação e de legitimação” certamente impõem limites máximos e mínimos à atuação desse Estado Behemoth7, porém isso não impede que esse processo descarregue “sobre o Estado um verdadeiro desafio de autoritarização crescente” (FERNANDES, 1979, p. 34). De um lado, os gastos sociais improdutivos para o capital são necessários como fontes de legitimação do sistema; de outro, os objetivos irracionais e incontroláveis de acumulação crescente e valorização do valor se impõem na estrutura da sociedade. Os dois polos se refletem nas tensões políticas no interior do Estado e nos interesses das “classes privilegiadas e de suas elites”, “dos consumidores e das camadas pobres ou miseráveis” e “dos descontentes” (FERNANDES, 1979, p. 34). Os choques e contrapesos entre executivo, legislativo e judiciário podem ser interpretados em termos das predominâncias das funções de legitimação ou das funções de acumulação do Estado capitalista. Quando as primeiras se esgotam nos momentos de crise de autorreprodução e/ou realização, atualmente intensificados pela complexidade científica, tecnológica e informacional da divisão internacional do trabalho entre países,

7 Para um debate sobre a face Behemoth do Estado capitalista dependente, ver o instigante artigo de Ricardo Ramos Shiota e Sara da Silva Freitas (2021).

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regiões e continentes, as segundas ganham a proeminência. No entanto, as funções de acumulação e de preservação da ordem no Estado capitalista devem ser asseguradas em última instância, pois de outro modo o próprio sistema se veria ameaçado pelas forças sociais progressistas e democráticas potencialmente anticapitalistas. São justamente as funções de acumulação que tensionam o Estado numa direção autocrática, impregnando-o com uma organização baseada em tecnoestruturas verticalizadas, burocratizadas e militarizadas. O gigantismo seria uma de suas características, pois suas “funções militares, policial-militares, diplomáticas e políticas” se tornam essenciais para o apoio da expansão imperialista das grandes corporações transnacionais e a hegemonia mundial do capital financeiro. Preventivamente, os Estados das nações capitalistas centrais procuram debelar os focos de resistência em outros países. “O sistema de dominação burguesa é agora também internacionalizado” (FERNANDES, 1979, p. 36). Exemplos históricos são inúmeros, como nos casos do Brasil em 1964, do Chile e Uruguai em 1973 e da Argentina em 1976; mais recentemente, as invasões militares dos países do Oriente Médio se situam em contextos diversos de um suposto combate ao terrorismo fundamentalista religioso e antiocidental, não mais de luta contra o comunismo. O importante a ressaltar aqui seria que, para Florestan Fernandes, não pode haver ilusões quanto ao caráter histórico e estruturalmente autoritário do Estado na era do capitalismo oligopolista. Um de seus objetivos seria, inclusive, resguardar a contrarrevolução permanente e preventiva em escala mundial, atualizando e internacionalizando formas cada vez mais sofisticadas de dominação nos países centrais e periféricos.

No próximo tópico será analisado o Estado capitalista na periferia e suas formas históricas de contrarrevolução, bastando agora apresentar as principais críticas de Florestan Fernandes às teorias liberais do autoritarismo. Aqui será preciso remeter às duas seções do capítulo primeiro de Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”, pois a estratégia expositiva escolhida foi iniciar pelas argumentações finais do autor, dado que elas permitem explicitar com maior propriedade suas concepções teóricas, conceituais, políticas e epistemológicas. Florestan Fernandes diferencia entre as formulações de autores mais próximos do liberalismo clássico, nas quais consegue vislumbrar contribuições relevantes para a análise política do Estado, e as mistificações ideológicas dos intelectuais orgânicos da ordem capitalista, vinculados à sociologia formalista ou à “ciência política comparada” produzida nos Estados Unidos em meados do século passado. A ambiguidade e imprecisão do conceito de autoritarismo sinalizam os limites da ótica liberal, ora levando

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a crer que os comportamentos autoritários estariam em contradição com todo o aparato institucional e formal do Estado democrático de direito, ora considerando (às vezes chegando mesmo a justificá-los) que os momentos de exacerbação do autoritarismo e o uso indiscriminado da violência política contra os grupos dissidentes seriam passageiros ou situações excepcionais, necessárias para a “defesa da democracia”, do mundo livre, cristão e ocidental. Em relação a esse último aspecto, há autores como Friedrich e Brzezinski (1965) que “consideram ditaduras como as de Franco e Salazar ‘ditaduras técnicas’ e instrumentais para a defesa da democracia” (FERNANDES, 1979, p. 5). Tais confusões conceituais servem apenas para encobrir as impregnações ideológicas conservadoras e reacionárias da “ótica liberal” (FERNANDES, 1979, p. 8). Baseando-se em Weber, entretanto, Florestan Fernandes se preocupa em resgatar algum núcleo racional das teorias liberais do autoritarismo. Situando essa e outras formulações mais clássicas no contexto histórico em que o “cerco capitalista” já contava com uma burguesia como classe dominante, mas ainda não na sua versão reacionária sob o capitalismo monopolista, com espaços ainda para incorporação seletiva de ideais progressistas, o sociólogo paulistano assim irá delimitar, a partir de Weber, a esfera mais específica da autoridade:

O conceito de autoritarismo é um conceito logicamente ambíguo e plurívoco (Max Weber o chamaria de “amorfo”). O que ele tem de pior é uma espécie de perversão lógica, pois está vinculado ao ataque liberal aos “abusos de poder” do Estado e à crítica neokantiana da “exorbitância da autoridade”. [...] não se busca o desmascaramento do Estado burguês, mas a denúncia de sua versão tirânica mais completa [aqui o autor faz referência direta ao livro de Ernst Cassirer, The myth of the State, em edição de 1946].

No aparecimento das ciências sociais o termo acabou sendo corrente na psicologia, na sociologia e nos tratadistas do direito, sempre numa dessas linhas de compreensão do que se poderia chamar de “aspectos sociopáticos” da autoridade constituída e da “irracionalidade do comportamento humano” na época do liberalismo. [...]

De início, houve uma tentativa de delimitar a esfera da autoridade com referência às manifestações do poder em geral. Max Weber encarna de modo preciso essa tentativa: ele define como poder “a probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”

e como dominação “a probabilidade de encontrar obediência a um mandato determinado contido entre pessoas dadas” [...]. Por aí ele contrapõe autoridade e poder, pois inclui a autoridade entre as relações de dominação. Como diz: [A dominação]8 “Não é, portanto, toda espécie de probabilidade de exercer ‘poder’ ou ‘influência’ sobre os outros

8 Esses colchetes são do próprio Florestan Fernandes e as citações de Weber foram retiradas da edição em espanhol do volume I de Economia y sociedad, da Fondo de Cultura Económica (1944).

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homens”. “No caso concreto, esta dominação (‘autoridade’), no sentido indicado, pode descansar nos mais diversos motivos de submissão: desde o hábito inconsciente até o que são considerações puramente racionais com relação a fins. Um determinado mínimo de volume de obediência, ou seja de interesse (externo ou interno) em obedecer, é essencial em toda relação autêntica de autoridade” (FERNANDES, 1979, p. 3-5).

A circunspecção conceitual weberiana contrasta e se opõe diretamente aos abusos ideológicos, conservantistas e reacionários, “do conceito de autoritário e autoritarismo (as derivações mais empregadas do conceito de autoridade)” (FERNANDES, 1979, p. 5). A consolidação da burguesia como classe dominante e, sob o capitalismo monopolista, como uma classe profundamente reacionária e fascista em sua visão de mundo transformou determinados setores da ciência política num ersatz panfletário de apologia e defesa da ordem social imperialista. Assim, no “período quente da guerra fria” os regimes autoritários seriam vistos como “democracias fortes” e os regimes de transição para o socialismo “podiam ser postos no mesmo saco do totalitarismo”, certamente por cientistas sociais (ou ideólogos?) “que se identificam com o papel de ‘paladinos da liberdade’ e advogados do liberalismo ou do «pluralismo»” (FERNANDES, 1979, p. 5-6). Não são de hoje as tentativas esdrúxulas de confundir fascismo, nazismo e comunismo. No refinado prefácio de Heloísa Fernandes a Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”, diz-se que o livro “se inicia pela crítica contundente e definitiva não só à própria teoria que empresta realidade ao conceito e ao tema, como denuncia as forças sociais subjacentes a esta teoria” (FERNANDES, 1979, p. XI-XII). Um dos objetivos de Florestan Fernandes foi certamente o de desmascarar ideologicamente a incrustação reacionária da “ciência política” calcada na “defesa da ordem” sob o capitalismo monopolista:

[...] a ciência política fecha-se dentro do universo burguês e introduz o elemento autoritário na substância mesma do “raciocínio científico”. Ou tal defesa da ordem não se funda na ideia de que a autoridade da “ciência”

confere um caráter racional, definitivo e eterno ao modelo de democracia que resultou do capitalismo? (FERNADES, 1979, p. 10-11; o mesmo podendo ser dito dos economistas neoliberais).

Isso é certo. Contudo, Florestan Fernandes foi muito além e recompôs a possível lógica conceitual da utilização das noções liberais de autoritário e autoritarismo, passando a inseri-las numa compreensão sociológica estrutural e histórica (uma de suas formas muito peculiar de caracterizar a abordagem dialética nas ciências sociais) das dimensões políticas e ideológicas do Estado burguês sob as condições do capitalismo monopolista. Feito o

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acerto de contas com as mistificações de certas variantes conservadoras e reacionários do pensamento liberal, Florestan Fernandes passa a se valer das noções de autoritário e autoritarismo, mas passa também a subsumi-las (para utilizar uma linguagem de inspiração hegeliana) na categoria mais radical de “autocracia burguesa”. Essa última e exigente construção teórica não teria sido possível sem suas investigações histórico-sociológicas sobre o subdesenvolvimento e o capitalismo dependente. A próxima seção irá discorrer em linhas gerais sobre a construção da categoria de “autocracia burguesa” (apresentando-se apenas algumas conclusões provisórias) e suas contribuições para se pensar não somente o capitalismo dependente, mas o capitalismo mundial em conjunto. Logo depois, à guisa de breves considerações finais, a crise política brasileira atual será problematizada a partir das noções teóricas de “autocracia burguesa” e neofascismo.

Autocracia burguesa e capitalismo dependente

A chave metodológica para compreender a elaboração política e teórica da categoria de autocracia burguesa em Florestan Fernandes pode ser apanhada num de seus comentários sobre as obras históricas de Marx e Engels. Numa observação sobre O 18 Brumário de Luís Bonaparte, irá tecer considerações sobre as aplicações dos conceitos cesarismo e bonapartismo em contextos políticos diversos:

No prefácio à segunda edição, K. Marx afirma categoricamente que o conceito de cesarismo, em voga na Alemanha, era equivocado. Ele demonstra que não existia paralelo possível entre Roma antiga e a Europa capitalista. Nisso, ele tinha razão. Fica, não obstante, a sugestão implícita: bonapartismo como conceito adequado para designar a ditadura militar sob o capital (ou, em sentido mais amplo, para exprimir a autonomia do Estado sustentada em um despotismo que põe a força militar a serviço das classes dominantes). [...] Tenho a segura convicção de que Marx formulara o seu pensamento com vistas à forma concorrencial ou competitiva de capitalismo e que ele, pela tendência a pesar as palavras que empregava, não endossaria a transformação subsequente de um conceito histórico em um conceito abstrato e de validade geral. (FERNANDES, 1989, p. 67).

O essencial, no método dialético, não são os aspectos comuns – a “ditadura militar, em qualquer circunstância, sempre terá algumas (ou várias) semelhanças estruturais e funcionais com o tipo de ditadura militar que se configurou na França graças a uma crise histórica evolutiva da democracia burguesa (FERNANDES, 1989, p. 67) – e, sim, os

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elementos diferenciadores e específicos, capazes de reproduzir a totalidade concreta como uma “síntese de múltiplas determinações”. Assim, suas investigações se voltam para a caracterização sociológica do processo de autocratização – que se desenvolve com maior nitidez e virulência nas periferias, embora sendo um fenômeno universal – do sistema internacional de poder burguês:

No contexto mundial do presente – no qual as grandes corporações multinacionais, as nações capitalistas hegemônicas, com sua superpotência à frente, e instituições internacionais a serviço do capitalismo monopolista recorrem à contra-revolução (sic) em escala mundial – a ditadura militar não só se relaciona com um novo contexto histórico, ela própria se torna uma nova categoria histórica. Como dar livre uso ao conceito de bonapartismo? As mesmas razões que levaram Marx a repudiar o conceito de cesarismo evidenciam que o conceito de bonapartismo ficou relativamente vazio perante o presente. [...] Na verdade, o sistema capitalista de poder converte-se, com grande rapidez, em uma forma política autocrática, embora isso seja mais visível na periferia do mundo capitalista. O que quer dizer que não se está diante de uma “crise de crescimento” da democracia, mas de uma tendência histórica inexorável que, se for descrita como “bonapartismo”, ocultará a sua face mais nociva e as suas consequências mais nefastas graças a uma concessão ideológica “marxista” (FERNANDES, 1989, p. 67-68; o texto foi publicado originalmente em 1983).

É certo que Florestan Fernandes se apropria da noção leninista de autocracia9, mas a ressignifica e atualiza num contexto político radicalmente diverso em comparação à última fase do poder czarista na Rússia. Assim, no desenvolvimento das ideias que irão desaguar na redação da terceira parte de A revolução burguesa no Brasil (FERNANDES, 1975), pode-se aventar a hipótese de que o autor abandona rapidamente o uso da noção de autoritarismo e passa a se valer do conceito de “autocracia burguesa”. Num texto redigido entre 1969 e 1970 (FERNANDES, 2010), na época de sua passagem pela Universidade de Toronto, irá utilizar duas vezes a palavra autoritarismo sem qualquer indício das suas considerações críticas elaboradas alguns anos depois. Entretanto, já num texto de 1971 sobre a natureza do fascismo na América Latina já começa a falar de “dominação

9 Procurei estabelecer a genealogia da noção de “autocracia burguesa” em Florestan Fernandes a partir de seu diálogo com a obra de Lênin (COSTA, 2021a). Carlos Nelson Coutinho relata o seguinte diálogo que teve com o sociólogo Octávio Ianni sobre a categoria de autocracia: “Indagado sobre as razões do uso desse termo por Florestan, o amigo Octávio Ianni me deu uma explicação convincente: o autor de RBB [Revolução Burguesa no Brasil] teria se valido de uma expressão cunhada por Lênin para caracterizar a autocracia czarista em sua última fase, quando – sem deixar de ser autocrático (o czar se dizia mesmo ‘autocrata de todas as Rússias’) – o czarismo já atuava essencialmente como um Estado burguês” (COUTINHO, 2000, p.

258). Este autor apresenta algumas discordâncias em relação a Florestan Fernandes quanto ao uso da noção de autocracia e à interpretação do processo de redemocratização no Brasil da década de 1980.

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autocrática de classe” e “Estado burguês autocrático” (FERNANDES, 1981, p. 18). Porém, cumpre informar que na nota de rodapé no início deste último ensaio, afirma que “as ideias expostas se mantiveram presas à última metade da década de 1960 e ao início da década de 1970” (FERNANDES, 1981, p. 13), sendo bastante provável que já tenha utilizado em escritos de fins dos anos 60 a noção histórica de autocracia. Somente a releitura de seus livros atenta a esse detalhe poderá resolver a questão. O mais importante, contudo, seria verificar que a noção de autocracia se torna central em seu pensamento e lhe servirá para interpretar os movimentos históricos, no último quartel do século XX, da sociedade brasileira e dos capitalismos dependentes latino-americanos.

Por fim, a categoria de “autocracia burguesa” assume uma dimensão ao mesmo tempo estrutural e histórica, pois a estrutura compósita de poder burguês que se constitui na simbiose entre dependência e imperialismo – forjada tanto pelo processo interrompido de descolonização, como pela combinação de formas de exploração e dominação de princípios valorativos incompatíveis, mas com fortes influências entre si reversíveis na realidade material concreta (mais-valia relativa, mais-valia absoluta, divisão racial e sexual do trabalho, vínculos pessoais e patrimonialistas colonialistas etc.) – reforça as tradições autoritárias brasileiras, não importando se uma ditadura aberta lhes torne explícitas ou se uma aparente democracia pluralista seja capaz de ocultá-las. Para sobreviver em sua expropriação dual do excedente econômico, o capitalismo dependente necessita de uma modalidade ou outra da “democracia restrita”. Esta assume um caráter autocrático porque tende a resguardar os interesses egoísticos e quase absolutos de uma rala minoria, as elites das classes dominantes e as frações hegemônicas, externas e internas, dos capitais monopolista e financeiro internacionalizados. Atendo-se ao caso brasileiro atual: apesar das conquistas como a Constituição e dos avanços das lutas sociais desde o período da redemocratização, a “autocracia burguesa” se empenhou na mudança de forma e conteúdo para se atualizar aos novos cenários nacionais e mundiais. O bolsonarismo ainda se configura como o risco de ascensão de um fascismo de “manipulação das massas”.

À guisa de conclusão: fascismo de massas ou conciliação pelo alto?

Falar de um fascismo de massas seria redundância. Os casos clássicos (Alemanha e Itália) apresentavam inequivocamente essa dimensão. No modo como Florestan Fernandes caracterizou o fascismo latino-americano em 1971, o caráter de massificação

Referências

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