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A reforma do sistema local na Itália e o papel das assembleias

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[Versão portuguesa do artigo “La riforma del sistema locale in Italia ed il ruolo delle assemblee municipale”, publicado por Claudia Tubertini no n.º 06 «Revista das Assembleias Municipais» (abril/junho de 2018), páginas 17 a 29]

A reforma do sistema local na Itália e o papel das assembleias municipais1

Claudia Tubertini

I. A incompleta transformação do sistema local italiano

O importante processo de reforma que atingiu muitos países europeus, especialmente da Europa meridional no recente período de crise, não poupou seguramente a Itália. O nosso país foi chamado a introduzir medidas de racionalização, que tiveram um forte impacto no próprio sistema administrativo e, em particular, no sistema das autonomias locais, na tentativa de operar uma racionalização que pudesse, em primeiro lugar, colocar sob controlo o deficit das contas públicas.

A partir de 2010, e depois, com maior intensidade, após 2012, numerosos atos legislativos modificaram e integraram o principal texto normativo estadual na matéria: o decreto-lei n.º 267 de 18 de agosto de 2000, ou seja, o Texto Único das leis sobre o ordenamento dos entes locais (TUEL), adotado antes da reforma constitucional de 2001, mas permanecendo o ponto de referência essencial para a disciplina dos entes locais italianos2. Muitas destas medidas foram introduzidas

através da via criticável do decreto-lei, tanto assim que foi necessária uma intervenção do Tribunal Constitucional, advertindo o Governo sobre a exigência de respeitar o papel do Parlamento sempre que se tencionasse propor medidas de grande reforma económico-social.

E assim se chegou à aprovação da lei n.º 56, de 7 de abril de 2014, contendo disposições sobre cidades metropolitanas, sobre províncias, sobre uniões e fusões de municípios, mais conhecida como “Legge Delrio” (do apelido do ministro proponente). Este importante e ambicioso texto normativo que deveria ter sido completado pela

1 Traduzimos “consigli comunali” por assembleias municipais por ser a expressão mais próxima. Os “consigli

comunali” correspondem às nossas assembleias municipais compostas pelos membros diretamente eleitos e sem os membros por inerência (presidentes de junta de freguesia). (N.T.)

2 Para uma visão abrangente destas leis numa perspetiva comparada, veja-se os estudos dedicados à Itália in

M. AMEIDA CERREDA, C. TUBERTINI, P. COSTA CONÇALVES (a cura di), La racionalización de la

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adoção de uma lei de revisão constitucional que, no entanto, foi rejeitada pelos eleitores em referendo3 e introduziu as mais significativas mudanças de todo o período

em consideração4. Em primeiro lugar, a lei confirmou a decisão de transformar as

províncias, entes constitutivos da República, nos termos do artigo 114.º da Constituição, em entes de representação do segundo grau, dando assim cumprimento a previsão já introduzida, mas não concretizada do decreto-lei n.º 201 de 2011 (o denominado “Decreto Salva-Italia”); em segundo lugar, instituiu, a partir de 1 de janeiro de 2015, 10 cidades metropolitanas, dando assim, finalmente, concretização à sua previsão constitucional (artigo 114.º da Constituição) e confiando também às regiões com um estatuto especial (em particular à Sicilia, Sardegna e Friuli Venezia-Giulia) a tarefa da sua instituição.

À mencionada lei deve-se também o início de um importante reordenamento da distribuição das competências administrativas entre os diversos níveis de administração local, confiado às leis regionais. Tal processo de reordenação funcional, que deveria ter conduzido a um aumento das competências dos municípios, em conformidade com o princípio constitucional da subsidariedade (artigo 118.º da Constituição), gerou, na maior parte dos casos, pelo contrário, uma transferência para as regiões de numerosas competências administrativas, antes exercidas pelas províncias e a um atraso no concreto desenvolvimento das novas competências confiadas aos novos entes metropolitanos5.

Ficaram sem modificação, pelo contrário, no fim deste processo de reordenamento as competências dos municípios que, todavia, o legislador entendeu inovar profundamente nas modalidades de concretização, incentivando o exercício associado através da cooperação intermunicipal e da agregação definitiva de municípios, especialmente os de pequenas dimensões, através de processos de fusão voluntária. As uniões de municípios são, atualmente, 540, envolvendo mais de 3.000 municípios (quase 40% do total); enquanto os processos de fusão realizados

3 A referência é ao projeto de lei constitucional aprovado definitivamente pelo Parlamento em 12 de abril de

2016, referente à modificação da parte II da constituição. O referendo popular decorreu no dia 6 de dezembro de 2016 e concluiu-se com uma larga vantagem de votos contrários à reforma que, além do mais, previa também a eliminação da garantia constitucional das províncias.

4 Entre as numerosas obras dedicadas a esta lei, v. F.FABRIZZI,G.M.SALERNO (a cura di), La riforma delle autonomie territoriali nella legge Delrio, Napoli, 2014; F.PIZZETTI, La riforma degli enti territoriali, Milano,

2015; A.STERPA (a cura di), Il nuovo governo dell’area vasta, Napoli, 2014; L.VANDELLI (con la collaborazione di P.BARRERA,T.TESSARO,C.TUBERTINI), Città metropolitane, province, unioni e fusioni di comuni, Rimini, 2014.

5 Para mais detalhes, permite-me remeter para “Il riassetto delle funzioni amministrative locali: cronaca di

una riforma solo in parte realizzata”, in L. VANDELLI, G. GARDINI, C. TUBERTINI (a cura di), Le autonomie territoriali: trasformazioni e innovazioni dopo la crisi economica, Rimini, 2017, p. 225 ss., e “L’attuazione regionale della legge 56/2014: verso un nuovo assetto delle funzioni amministrative”, in Le Regioni, 2017, p. 99 ss.

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conduziram a um número global dos municípios italianos de cerca de 7.950. Certamente que é um número ainda elevado, se se tomam em conta as dificuldades dos entes mais pequenos, ou se se comparam estes resultados com os bem mais radicais, conseguidos por estes processos numa grande parte dos países europeus (da Alemanha à Dinamarca, da Bélgica ao Reino Unido, ate à Grécia); mas se se considerar que, não obstante as tentativas realizadas pelo legislador na época republicana de diminuição do número de municípios, este não diminuiu, como até aumentou, chegando a 8.104, não deve ser desprezada a inversão de tendência que se verificou nestes últimos anos6.

A realização desta importante reforma gerou críticas e dificuldades, de tal modo que o processo de transformação da administração local italiana não pode dizer-se ainda completo. Recentemente iniciou-se uma nova legislatura a nível nacional, a qual parece que estará plena de intervenções legislativas em direção contrária à até hoje seguida. Em particular, a perspetiva de um regresso a um sistema de eleição direta dos órgãos das províncias, sustentada pelas associações representativas das autonomias, mas sobretudo por um dos partidos da coligação do governo (Liga Norte), poderia conduzir a mudanças drásticas também no âmbito das competências administrativas recentemente modificado, no cumprimento da citada lei 56/2014.

II. Os aspetos peculiares da forma de governo municipal

Neste cenário de tumultuosas transformações do sistema de governo local, poderia aparecer quase em contracorrente a decisão do legislador estadual de deixar substancialmente igual a disciplina dos órgãos de governo do município, quer na sua articulação e composição, quer nas respetivas competências. Entretanto, como se disse, as assembleias provinciais foram drasticamente redimensionadas na composição numérica e transformadas na sua natureza, tornando-se órgãos escolhidos e formados pelos deputados municipais e pelos presidentes de câmara. Por sua vez, as juntas provinciais foram suprimidas e o presidente da província perdeu a sua representatividade direta, sendo agora eleito pelos presidentes da câmara e de entre eles. Por fim, à assembleia provincial juntou-se um novo órgão colegial, a assembleia dos presidentes de câmara, com o qual compartilha algumas importantes competências. Nada - ou quase nada - disto sucedeu a nível municipal. As assembleias municipais7 apenas sofreram uma redução, embora não desprezível na composição

6 Sobre o tema, vejam-se os estudos contidos em W. GASPARRI (a cura di), L’associazionismo municipale.

Esperienze nazionali e europee a confronto, Torino, 2017.

7 Como dissemos, as assembleias municipais (consigli comunali) em Itália são compostas apenas por membros

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numérica8. Se antes destas leis, o número de deputados municipais variava entre o

máximo de 60 (nos municípios de mais de um milhão de habitantes) e o mínimo de 12 (nos municípios até três mil habitantes)9, atualmente o número varia entre o máximo

de 48 e o mínimo de 10 (devendo sempre somar-se o presidente da câmara, que é também membro da assembleia municipal).

O mesmo se pode dizer acerca dos outros órgãos do município, isto é, o presidente da câmara e a junta municipal continuam a ser, o primeiro eleito diretamente pelos cidadãos, ao mesmo tempo que a assembleia; a segunda nomeada pelo próprio presidente da câmara10, que a preside. Sem modificação resulta, também,

o diferente mecanismo de eleição previsto para os municípios até quinze mil habitantes, com a eleição da assembleia municipal e do presidente da câmara numa única volta, segundo o sistema maioritário; e para os municípios acima de quinze mil habitantes, com a eleição a duas voltas entre os dois candidatos a presidente de câmara que tenham obtido o maior número de votos na primeira volta, sem ter atingido, porém, a maioria absoluta11.

A manutenção da forma de governo municipal nas últimas leis de reforma constitui indubitavelmente a enésima prova da sua eficácia e do juízo globalmente positivo que os estudiosos, e também os atores institucionais, dela têm dado desde a sua introdução em 1993, com a aprovação da lei n.º 81 de 25 de março (eleição direta do presidente de câmara, do presidente da província, da assembleia municipal e da assembleia provincial)12. A eleição direta do presidente da câmara pelos cidadãos e a

atribuição ao mesmo dos poderes mais idóneos para a realização do programa de mandato13 tem contribuído, sem dúvida, para o reforço da estabilidade dos executivos

8 Sobre a redução do número de membros, o legislador interveio repetidamente nos últimos anos: cfr. a Lei

do Orçamento de 2010 (l. 191 del 2009), o decreto-lei 2 de 2010, convertido na lei 42 de 2010; o artigo 16, n.º17, do decreto-lei n.º 138 de 2011 (convertido na lei 148) e, por último, a própria lei 56 de 2014, número 135, em sentido contrário.

9 Artigo 57.º da TUEL.

10 Nos municípios com população superior a quinze mil habitantes, o cargo de assessor é incompatível com o

de deputado municipal, enquanto nos municípios de população inferior, os assessores são nomeados de entre os deputados municipais, salvo se o estatuto municipal prever essa incompatibilidade.

11 Sobre os efeitos do sistema eleitoral municipal nas relações entre a maioria e a oposição, veja-se o recente

estudo de P. MAZZINA, “Sistemi elettorali comunali e rappresentanza politica: un bilancio dei rapporti tra maggioranza e minoranza/e consiliare/i”, in Federalismi.it (www.federalismi.it), n. 12/2018.

12 Entre os numerosos estudos dedicados ao tema, v. F. PINTO, S. STAIANO, Il nuovo sindaco. Riflessioni

dopo la riforma, Torino, 1998; L. VANDELLI, Sindaci e miti, Bologna, 1997.

13 Em particular, cabe ao presidente da câmara (art. 50 TUEL):

a) exercer a responsabilidade da administração do município; b) representar o ente local no pleno processual (em juízo);

c) convocar e presidir à junta municipal e, nos municípios nos quais não está previsto o presidente da assembleia, convocar e presidir a própria assembleia;

d) superintender no funcionamento dos serviços; e) superintender na execução dos atos;

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municipais. O delicado equilíbrio entre as funções de deliberação e controlo, atribuídas à assembleia municipal, por um lado, e as funções executivas atribuídas ao presidente da câmara e à junta municipal, por outro, tem sido assegurado pelos significativos poderes de recíproca intervenção e condicionamento entre os dois órgãos (entre os quais, o prémio de maioria na distribuição dos lugares a favor da coligação vencedora14; a eventual aprovação, por parte da assembleia, de moção de censura ao

presidente da câmara eleito15; a dissolução automática da assembleia, no caso de

demissão, impedimento permanente, remoção, queda ou morte do presidente da câmara16), que tornam tal forma de governo o único no panorama comparado17. É

evidente que tal equilíbrio entre o órgão deliberativo e o executivo pressupõe que a assembleia municipal tenha um conjunto de competências reservadas pela lei e as correspondentes prerrogativas para poder desenvolver efetivamente o papel de direção/deliberação e controlo político-administrativo, que lhe é atribuído pela lei, sem receber um excessivo condicionamento por parte do presidente da câmara. Para este fim, o Texto Único dos Entes Locais (TUEL) reconhece à assembleia adequados poderes de intervenção. Assim, o artigo 38.º estabelece que o funcionamento da assembleia, no quadro dos fins estabelecidos pelo estatuto, seja disciplinado por um regulamento aprovado por maioria absoluta dos membros da mesma assembleia, e que este regule as regularidades para a convocação, apresentação e discussão das propostas. A lei não prevê a periodicidade das sessões, em termos gerais, ainda que sejam reguladas as modalidades para a convocação e de desenvolvimento de sessões específicas (como a primeira sessão de instalação, a sessão dedicada à aprovação do orçamento, ou de outros documentos de natureza financeira, ou ainda a aprovação de uma moção de censura)18. Cabe sempre ao regimento/estatuto definir o número dos

membros da assembleia necessário para a validade das sessões que, pela lei, não pode, de nenhum modo, ser inferior a um terço dos membros determinado pela lei ao ente, sem contar, para esse fim, o presidente da câmara.

g) exercer todas as outras funções atribuídas pelas leis, por estatuto ou por regulamento, salvo as competências que estejam reservadas aos dirigentes municipais;

h) nomear os assessores (vereadores);

i) nomear os responsáveis dos serviços, atribuir e definir as tarefas dos dirigentes e as de colaboração externa; l) prover, no respeito das orientações da assembleia, à nomeação, designação e revogação dos representantes do município, junto de entes, empresas locais e instituições.

14 Artt. 71 e 73 TUEL. 15 Art. 52 TUEL. 16 Art. 53 TUEL.

17 L. VANDELLI (Il sistema delle autonomie locali, Bologna, 2016) define o sistema de governo local

«bicéfalo» porque baseado sob critérios de equiordenação; estreita ligação através da relação de confiança; repartição rígida de atribuições, tendo, todavia, tendência monocrática (pelos relevantes poderes atribuídos ao presidente da câmara).

18 Nos municípios de menor dimensão, a assembleia reúne, geralmente, uma vez por mês; nos maiores

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Quer a lei, quer o regimento completam, pois, a disciplina da organização e do funcionamento da assembleia, segundo a tradição típica dos órgãos colegiais, permitindo a sua articulação em comissões, formadas proporcionalmente ao respetivo peso dos grupos municipais (artigo 38) e confiando ao estatuto a tarefa de prever adequadas formas de garantia e de participação das minorias. Entre estas, é importante a previsão segundo a qual deve ser atribuída às oposições a presidência das comissões com funções de controlo ou garantia, quando constituídas. A assembleia municipal ou provincial, por maioria absoluta dos seus membros, pode, além disso, estabelecer internamente comissões de inquérito sobre a atividade da administração (artigo 44.º). É, também, importante a previsão da nomeação, nos municípios com população superior a 15.000 habitantes, de um presidente da assembleia em posição neutral relativamente à maioria em funções19, enquanto nos municípios abaixo deste limiar é

o próprio presidente da câmara a presidir à assembleia.

III. A irresistível tendência para o reforço dos poderes do presidente da câmara

1. Os novos poderes regulamentares

Se é verdade, de facto, considerar que as competências da assembleia municipal permaneceram formalmente sem modificação, assistiu-se, porém, a intervenções legislativas que reforçaram ulteriormente as competências do presidente da câmara, através da extensão de um poder que lhe era tradicionalmente reconhecido, na qualidade de representante do Estado no território em causa (como um “Agente do Governo”): o poder de emanar regulamentos contingentes e urgentes, com a finalidade de prevenir e eliminar graves perigos que ameaçam a segurança dos cidadãos.

A sobrevivência de poderes contingentes e urgentes no sistema constitucional tem sido contestada pela doutrina, ainda que se tenha corretamente observado que, mais do que com o princípio da legalidade, estes poderes chocam com o critério de tipicidade dos atos administrativos. Assim o problema não é o de negar radicalmente a legitimidade de poderes deste tipo, mas o de circunscrever o seu uso dentro de limites ajustados ao ordenamento constitucional. Nesta linha, colocou-se já a jurisprudência do Tribunal Constitucional italiano ao exigir o respeito por um núcleo mínimo de condições para os regulamentos (eficácia definida no tempo; motivação

19 Tendo em atenção esta peculiar posição, a jurisprudência maioritária exclui a legitimidade de uma

revogação do presidente da assembleia municipal, motivada por razões (políticas) diversas do mau exercício de tal função, desde que não esteja em causa a neutralidade.

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adequada; conformidade com os princípios do ordenamento jurídico). Estas mesmas condições foram confirmadas pelo tribunal constitucional na interpretação dos novos poderes regulamentares reconhecidos aos presidentes de câmara, para além da matéria de segurança pública na nova (e mais indefinida nos seus contornos) matéria da “segurança urbana” (lei n.º 125, de 24 de julho de 2008, conversão em lei com modificações do decreto-lei n.º 92, de 23 de maio de 2008, que previu medidas urgentes em matéria de segurança pública que reescreveu e substituído o artigo 154.º do TUEL). Ao lado da atribuição de poderes incisivos e amplos, e a uma casuística bastante variada de regulamentos adotados pelos presidentes de câmara, o tribunal afirmou vigorosamente as caraterísticas extra ordinem destes atos atípicos, que só podem ser justificados por circunstâncias imprevisíveis, ou situações de perigo e de urgência que não permitam regular pelas formas comuns20.

Todavia, a necessidade de assegurar aos presidentes de câmara a possibilidade de utilizar de modo flexível o poder regulamentar para fazer frente a um amplo leque de situações que requerem uma intervenção urgente levou o legislador a intervir novamente para alargar as tipologias dos regulamentos dos presidentes de câmara, concedendo aos regulamentos para a segurança urbana novos poderes de intervenção em caso de “urgente necessidade dirigida a recuperar situações de grave incúria ou degradação do território, do ambiente, ou do património cultural , ou de prejuízo para o decoro e para a vivência urbana, com particular referência às exigências à proteção da tranquilidade e do repouso dos residentes, mesmo intervindo sobre os horários de venda de bebidas alcoólicas e super-alcoólicas” (decreto-lei n.º 14, convertido em lei n.º 48, de 2017 – artigo 8.º, n.º 1, al. a), que modifica, neste sentido, o artigo 50.º do TUEL21).

O exercício destes novos poderes coloca inevitavelmente problemas de convivência com os poderes reservados às assembleias municipais e, em particular, o poder de ditar preceitos urbanísticos, normas para regulamentar o exercício da atividade sobre o território e o uso dos espaços públicos, e pode constituir, sem mais, um instrumento destinado a realizar uma ulterior passagem de decisão para o chefe do executivo, em vez da assembleia. A primeira aplicação destas disposições revela,

20 Tribunal Constitucional, Sentença n.º 115 de 2011, que declarou inconstitucional o artigo 54.º, n.º 4 do

TUEL, limitando o poder de emanar regulamentos para garantia da segurança pública e urbana, nos casos em que existam pressupostos de contingência e urgência com a condição da temporalidade dos seus efeitos e, ao mesmo tempo, nos limites da concreta situação de facto que se trata de enfrentar.

21 Sobre a interpretação desta novidade legislativa relativamente aos diferentes tipos de regulamentos dos

presidentes de câmara, v. A. MANZIONE, “Potere di ordinanza e sicurezza urbana: fondamento, applicazioni e profili critici dopo il decreto-legge n. 14 del 2017”, in Federalismi.it, 17/2017; T. GIUPPONI, “Sicurezza integrata e sicurezza urbana nel decreto legge n. 14/2017”, in Istituzioni del Federalismo, 2017, p. 5 ss.

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por outro lado, um recurso frequente dos presidentes de câmara aos novos poderes regulamentares com o inevitável prosseguimento do contencioso em sede jurisdicional.

2. Os novos poderes de representação nos entes de área territorial mais ampla

Sempre na direção do reforço das prerrogativas dos presidentes de câmara, acabaram por atuar, de resto, não só as muito discutidas reformas que, como acima referido, modificaram o sistema de governo das províncias e levaram à instituição das cidades metropolitanas, também elas caraterizadas pelo estabelecimento de uma assembleia eleita e formada pelos membros das assembleias municipais e presidentes de câmara, assim como por um presidente de câmara metropolitano, que é, nos termos da lei, o presidente da câmara do município da capital22.

Desde há três anos, mais de 4.200 presidentes de câmara estão empenhados (como membros das assembleias provinciais ou metropolitanas, ou como presidentes da província, ou ainda como presidentes de câmara metropolitanos) no governo, não só da comunidade municipal, mas também do governo da denominada “área vasta23”,

com a difícil tarefa de articular os interesses de proximidade com os do território circundante, numa lógica de integração e não de sobreposição ou contraposição entre os diversos níveis; isto sem considerar que todos os presidentes de câmara fazem parte dos novos órgãos colegiais (assembleia dos presidentes de câmara, na província; conferência metropolitana nas cidades metropolitanas) que participam na adoção de alguns atos fundamentais da competência das assembleias24. A atual composição das

assembleias provinciais e metropolitanas revela, por outro lado, como uma boa percentagem dos eleitos seja representada pelos presidentes de câmara, sinal evidente da sua influência e da sua autoridade, que leva as forças políticas e propô-lo como representante dos interesses municipais, também nos órgãos colegiais nos entes de “área vasta”.

22Nos termos do artigo 1.º, n.º 22, da lei n.º 56 de 2014, o estatuto da cidade metropolitana pode prever a

eleição direta do presidente e da assembleia municipal com o sistema eleitoral determinado por lei estatal, mas é, porém, condição necessária para que se possa realizar a eleição do presidente e da assembleia metropolitana, por sufrágio universal, que entre a data da indicação das eleições se tenha adequado o território do município-sede em vários municípios. Esta condição não se aplica às cidades metropolitanas com mais de três milhões de habitantes.

23 Esta é a expressão utilizada pela lei n.º 56 de 2014 para definir, quer a província, quer a cidade

metropolitana.

24 Em particular, o orçamento é aprovado pela assembleia (provincial ou metropolitana), depois do parecer

expresso da assembleia dos presidentes de câmara (ou da conferência metropolitana) com os votos que representam pelo menos um terço dos municípios compreendidos no ente de “área vasta” e a maioria da população residente. A conferência metropolitana, por outro lado, tal como a assembleia municipal, aprova, de modo definitivo, o estatuto e as suas eventuais modificações, propostas pela assembleia (artigo 1.º, n.º 8, 9 e 55 da lei 56 de 2014).

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Sobre esta inédita forma de governo, são muitas as críticas colocadas, quer pelos que realçam as dúvidas de legitimidade, apesar da clara tomada de posição do Tribunal Constitucional25, seja daqueles que, pelo contrário, tendem a concentrar as suas

críticas sobre os defeitos de funcionamento, numa ótica construtiva e não destrutiva26.

Permanece o facto de que a decisão, operada pelo legislador se confiou aos membros das assembleias municipais um novo direito de eleitorado ativo e passivo a nível provincial e metropolitano, não está em condições de garantir um correto equilíbrio entre membros das assembleias e presidentes da câmara; também ao nível da “área vasta”, tende a perpetuar-se (o fenómeno é particularmente evidente nas cidades metropolitanas) o balanceamento a favor do chefe do executivo pelo equilíbrio de poderes entre os órgãos, que já se assinalou a nível municipal; com a agravante de que quase sempre a composição da assembleia (provincial ou metropolitana) não representa adequadamente todo o território considerado.

IV. Considerações conclusivas

A sintética reconstrução realizada dos principais fatores de transformação na forma de governo municipal italiano e, em particular, das relações entre as assembleias municipais e o poder executivo permitiu evidenciar como – para além das modificações diretamente introduzidas pelo legislador – numerosos elementos de contexto acabaram por incidir sobre a capacidade efetiva das assembleias municipais de desenvolver corretamente a própria função de direção sobre o presidente da câmara. Esta última figura tende a reforçar-se de modo imparável, pondo em perigo a funcionalidade de uma forma de governo que, por muito tempo assegurou a estabilidade e a eficiência a nível local.

O atual momento político não parece, por outro lado, o mais favorável para a aprovação de intervenções corretivas sob a forma de governo municipal, dada a incerteza que atualmente existe sobre aspetos cruciais do sistema local, como a forma de governo das províncias e das cidades metropolitana (que, como se viu, apresentam numerosas conexões com os municípios) e os respetivos poderes e funções.

25 Na sentença n.º 50 de 2015, o Tribunal Constitucional confirmou a plena compatibilidade de um mecanismo

eletivo de segundo grau com os princípios democrático e autonomístico, excluindo que o caráter representativo e eletivo dos órgãos de governo de um território diminua em caso de eleições de segundo grau que, além do mais, estão previstas pela constituição exatamente pelo mais alto do Estado (o Presidente da República). Sobre o tema, permito-me remeter para “La riforma degli enti locali dopo il giudizio di legittimità costituzionale”, in Giornale di diritto amministrativo, 2015, p. 489 ss.

26 Para uma visão global das diversas posições e propostas da mais recente doutrina, v. G.C. DE MARTIN,

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Na esperança de que estas incertezas se dissipem é desejável que os representantes eleitos dos cidadãos no seio das assembleias municipais procurem reafirmar o seu papel no processo democrático, sobretudo através de um mais estreito contacto com as comunidades administradas, fazendo da sua direta investidura – num sistema que, como se viu, tende a reduzir os níveis eletivos – uma forma de afirmação. Nesta direção podem resultar muito úteis os novos métodos e instrumentos de participação cívica, que implicam especialmente as assembleias municipais e que se estão elevando por todo o país, dando vida um novo “direito da cidade”27, caraterizado

por um forte envolvimento dos cidadãos, individualmente e associados nas decisões fundamentais da administração, na busca do cuidado e da regeneração dos bens comuns, da inclusão social, da luta contra as desigualdades. É este, talvez, o domínio no qual as assembleias municipais – sem esperar novas intervenções do legislador – possam recuperar um espaço adequado, que justifique a sua sobrevivência e restitua dignidade ao seu papel28.

27 A referência é a J.B. AUBY, Droit de la ville, Paris, 2013.

28 Para uma panorámica da difusão destas novas experiências em Itália, v. F. DI LASCIO, F. GIGLIONI (a

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