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MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012

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Academic year: 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Liliane Mahalem de Lima

Patrimônio cultural imaterial, conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais coletivos sob a perspectiva socioambiental

MESTRADO EM DIREITO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Liliane Mahalem de Lima

Patrimônio cultural imaterial, conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais coletivos sob a perspectiva socioambiental

MESTRADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito das Relações Sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Professora Doutora Regina Vera Villas Boas.

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Data: ___/___/2012

BANCA EXAMINADORA:

________________________________ Orientadora

Professora Dra. Regina Vera Villas Boas

________________________________ Professor Dr.

Instituição

________________________________ Professor Dr.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que de alguma forma direta ou indiretamente contribuíram para este trabalho, mas não poderia deixar de fazer alguns agradecimentos pontuais.

Agradeço, inicialmente, à minha orientadora Professora Dra. Regina Vera Villas Boas, por ter me acolhido com carinho e dedicação, por nunca ter duvidado do meu potencial, pelas valiosas colaborações neste trabalho e também nas demais exigências desta pós-graduação.

Agradeço ao meu irmão Leandro, atualmente doutorando em Antropologia, pelas oportunidades de diálogos e pelas sugestões de leitura de algumas obras e artigos, os quais foram de suma importância para a elaboração deste trabalho.

Agradeço à Advocacia Geral da União, por ter me concedido uma licença capacitação para elaboração da Dissertação de Mestrado, a qual foi fundamental à feitura e conclusão deste estudo.

Agradeço aos demais professores dos créditos em que cursei pelas contribuições e debates: Professora Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida, Professor Marcio Pugliesi, Professor Nelson Nery Júnior, Professor Gilson Delgado Miranda, Professora Patrícia Miranda Pizzol e Professor Willis Santiago Guerra Filho.

Agradeço especialmente aos Professores Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida e Marcelo Gomes Sodré pelas sugestões e contribuições a este trabalho feitas no exame de qualificação.

Agradeço aos colegas de curso com quem tive a oportunidade de conviver, dialogar e trocar experiências.

Agradeço aos meus pais, por tudo que já fizeram por mim, pelo incentivo para estudar e para me tornar uma pessoa cada dia melhor.

Ao meu marido Thiago, pelo apoio, atenção, compreensão, parceria e paciência.

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RESUMO

Esta dissertação de mestrado aborda o patrimônio cultural imaterial sob o prisma do Direito, analisando a proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais e aos direitos intelectuais coletivos das populações tradicionais sob a perspectiva socioambiental. Parte de uma abordagem interdisciplinar, relacionando diversas áreas jurídicas como: Constitucional, Internacional, Ambiental e os Difusos e Coletivos, bem como procura levar em consideração algumas dimensões antropológicas. O estudo se inicia com um breve histórico sobre a consolidação do patrimônio cultural imaterial no Brasil, cotejado ao tratamento simultâneo recebido no âmbito da UNESCO. A partir daí, o patrimônio cultural intangível foi conceituado tendo por eixo central a Constituição Federal de 1988, bem como foram analisados os instrumentos jurídicos protetivos, que são: o Registro e o Inventário Nacional de Referências Culturais, desenvolvidos no âmbito do Instituto do Patrimônio Artístico e Nacional (IPHAN). Em seguida, desdobra e aprofunda o “bem cultural” tendo em conta as relações às noções jurídicas de bem ambiental, bem difuso e bem de interesse eminentemente público. Depois, são analisados os principais aspectos do socioambientalismo no Brasil tendo em conta a dualidade: sociodiversidade e biodiversidade. Na sequencia, o trabalho aborda o conceito de “Populações Tradicionais” e, em seu bojo, a Medida Provisória n° 2.186-16/2001 que confere, no direito brasileiro, proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Ao final, considera a proposta de construção de um regime jurídico “sui generis” para a proteção aos conhecimentos tradicionais e aos recursos genéticos presentes nas terras ocupadas pelas populações tradicionais e indígenas, bem como outros direitos coletivos relacionados a sócio e a biodiversidade.

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ABSTRACT

This dissertation addresses the issue of the intangible cultural heritage in the prism of Law. It analyses, thru a socioenvironmental perspective, the legal protection over the knowledges and the collective intellectual rights of traditional populations. As a interdisciplinary, it links diverse legal areas (Constitutional, International, Environmental, Diffuse and Collective) and attempts to take into account some anthropological dimensions. The study begins with a brief history of the consolidation of intangible cultural heritage in Brazil, collated with the simultaneous treatment within the UNESCO. Thereafter, the intangible cultural heritage is conceptualized taking the Federal Constitution of 1988 as is central axis, from which the protective legal instruments -the National Registry and Inventory of Cultural References, developed within the Institute of Artistic Heritage and (IPHAN) – are analysed. Then, the text unfolds and deepens the "cultural heritage" taking into account its relations with legal notions of environmental and diffuse heritage and its public concern. Then, it analyses the core concerns of socioenviromentalism in Brazil, taking into account its mais duality: the protection of bio and social diversity. In sequence, the work addresses the formal concept of “traditional peoples”, and in its wake, the Provisional Measure No. 2.186-16/2001 which, under the Brazilian law, confers protection over the traditional knowledges associated with biodiversity. At the end, this work considers the general proposal to build a “sui generis” legal system to protect the traditional knowledges and the genetic resources found in the lands occupied by traditional and indigenous populations, as well as other collective rights related to social and biodiversity.

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ABREVIAÇÕES

CDB – Convenção sobre Diversidade Biológica

CF – Constituição Federal

CNRC – Centro Nacional de Referência Cultural

CTA – Conhecimentos Tradicionais Associados

CGEN – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético

DPHAN – Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

EC – Emenda Constitucional

ECO 92 – Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

INPI - Instituto de Propriedade Industrial (INPI) no Brasil.

INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais

IPHAN – Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional

MinC – Ministério da Cultura

MP – Medida Provisória

OMC – Organização Mundial do Comércio.

OMPI – Organização Mundial de Propriedade Intelectual

ONG – Organização não governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

PCH – Programa de Cidades Históricas

PL – Projeto de Lei

PNPI - Programa Nacional do Patrimônio Imaterial

RG – Recursos Genéticos

SPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional

TRIPS – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio

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INTRODUÇÃO ... 9

Capítulo 1. Breve histórico do Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil e nas Convenções Internacionais...14

1.1. Breve histórico sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial no Brasil...14

1.2. O patrimônio imaterial no âmbito da UNESCO ... 22

1.3. A Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU ... 26

Capítulo 2. O conceito patrimônio cultural no Direito e os Instrumentos legais .... 28

2.1. Conceito de Patrimônio Cultural na Constituição Federal de 1988 ... 28

2.2. O Registro e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) . 45 Capítulo 3. Bem cultural ... 53

3.1. Bem cultural como bem ambiental ... 53

3.2. Bem cultural como bem de interesse público ... 58

3.3. Bem cultural como bem difuso ... 61

Capítulo 4. Socioambientalismo e Biodiversidade ... 66

4.1. Socioambientalismo ... 66

4.2. Biodiversidade ... 78

Capítulo 5. Conhecimentos tradicionais e os regimes jurídicos de proteção... 84

5.1. O conceito de populações tradicionais ... 84

5.2. Os conhecimentos tradicionais e as disposições da MP n° 2.186-16/2001 ... 91

5.3. Os conhecimentos tradicionais e a propriedade intelectual coletiva ... 94

5.4. Regime jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais e os direitos intelectuais coletivos ... 101

CONCLUSÃO ... 109

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação aborda o patrimônio cultural imaterial com ênfase na análise da proteção jurídica nacional, feita considerando a transdiciplinariedade entre as diversas áreas jurídicas, como Ambiental, Internacional e Difusos e Coletivos, tendo como base o texto da Constituição Federal de 1988. Enfatiza a proteção aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e das populações tradicionais. Tem por eixo o processo de consolidação, no espaço público, da preocupação socioambiental, a partir da qual se funda a associação entre a tradicionalidade dos povos e a defesa do ambiente de da biodiversidade.

Atualmente, no que tange à tutela do patrimônio cultural, o grande desafio reside na temática do patrimônio cultural intangível, tanto para estabelecer os termos objetivos de proteção como para essa proteção ser efetiva. Em relação, especificamente, às formas de proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e populações tradicionais esse tema tem se revelado extremamente controvertido e complexo. Embora este estudo também aborde a questão no âmbito da UNESCO e a Convenção sobre Diversidade Biológica, o foco concentra-se no direito brasileiro.

A despeito da relevância crescente do tema, ainda é relativamente escassa a bibliografia especializada que aborda o tema no Brasil, sob o prisma do direito. Além de reduzido, parte do material é sucinto, apenas citando alguns conceitos e tecendo algumas considerações sob o aspecto legal. Este estudo, eminentemente descritivo, pretende contribuir com o preenchimento desta lacuna de informações no campo do Direito.

A Constituição Federal de 1988, no art. 215, garantiu a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional. No artigo subsequente dispôs que patrimônio cultural abarca os bens materiais e os imateriais

“tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, (...)”.

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história, da memória e da identidade dos povos formadores da sociedade brasileira. Porém, além das dificuldades óbvias de uma época caracterizada pela economia de mercado e a massificação das relações sociais, há vários desafios conceituais a serem transpostos, tanto em relação às traduções culturais sob o aspecto antropológico, quanto em relação ao aspecto jurídico, tema de preocupação que nos cabe aqui.

Historicamente todo aparato legal e a doutrina especializada sobre proteção ao patrimônio cultural estiveram voltados aos bens de natureza material, sendo o tombamento o principal instrumento legal. Há tempos é evidente que este é insuficiente para a concretização de todos os direitos e garantias previstos nos artigos 215 e 216. Afinal, ele não se adéqua à compreensão contemporânea de centrar a proteção no aspecto intangível, ou seja, nos conhecimentos e nos modos de fazer, mas no bem em si, na materialidade.

Foi constatando essa lacuna legislativa que, quase após vinte anos da promulgação da Constituição Federal, a sociedade civil e alguns setores do governo começaram uma mobilização para a concretização e efetivação do direito cultural de valorização e preservação do patrimônio intangível.

Em 1997, em Fortaleza, foi realizado pelo IPHAN o “Seminário Patrimônio Imaterial: Estratégias de Formas de Proteção”, que discutiu as diretrizes para uma política pública de salvaguarda da cultura tradicional e popular. Do encontro, resultou o documento conhecido como “Carta de Fortaleza”, que resumiu as conclusões desse encontro e lançou as bases dos trabalhos para a elaboração e efetivação de uma nova política cultural. A partir deste ato, o governo federal, junto a representantes da sociedade civil, deu outras providências como a criação de um Grupo de Trabalho no Ministério da Cultura, sob a coordenação do IPHAN, e o estabelecimento do que se chamou de “Política Nacional de Preservação do Patrimônio Cultural”.

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Esse mesmo instrumento também dispôs sobre os termos do “Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”.

Paralelamente, discutia-se o projeto de lei da senadora Marina Silva, apresentado em 1995, que propunha a regulamentação por meio de lei federal ao acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados dos povos indígenas e populações tradicionais. Esses conhecimentos tradicionais são também parte do patrimônio cultural imaterial. Em 2001 a Medida Provisória n° 2.186-16 disciplinou a matéria, regulamentando internamente parte do previsto na Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992.

Em que pese o conjunto dos instrumentos jurídicos hoje existentes para a tutela do patrimônio cultual imaterial, é possível afirmar que os mesmos não têm sido suficientes e eficazes. Na prática nem sempre esses instrumentos são capazes de solucionar as demandas contemporâneas, sobretudo quando nos deparamos com casos mais complexos, tal como no caso da propriedade intelectual sobre conhecimentos tradicionais dos povos que vivem em territórios de ocupação tradicional e guardam aspectos culturais distintos em relação aos padrões nacionais.

O desafio reside em se construir um sistema normativo eficaz para a proteção dos direitos intelectuais coletivos no direito contemporâneo. As dificuldades estão em se identificar os titulares e os detentores dos conhecimentos tradicionais, bem como as dimensões territoriais e temporais relacionadas aos conhecimentos detidos pelas populações tradicionais e indígenas. Além disso, existe um distanciamento entre os modos como o direito, de sua parte, e detentores dos conhecimentos tradicionais, de outra, entendem o que seja o “sujeito”, a “cultura” e o “conhecimento”, que remetem ao cerne dos problemas comumente abordados no âmbito da antropologia.

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biodiversidade, com vistas a adquirirem vantagens comparativas em relação a seus concorrentes nos modernos mercados de biotecnologia.

A todos estes desafios, acresça-se o fato de que todo o sistema jurídico foi fundado com base em institutos civis e processuais civis que se alicerçam na clássica noção ocidental de indivíduo, que se opõe à sociedade, ao coletivo.

Este trabalho está dividido em cinco partes, pensadas com o objetivo de facilitar a didática, posto que, esta é uma abordagem interdisciplinar, que se supõe interessar não apenas ao direito, mas também à especialistas de outras áreas e até aos próprios detentores dos conhecimentos e práticas culturais imateriais. O objetivo deste estudo não é propor soluções, mas apresentar um panorama da situação atual e uma descrição dos modos como estes desafios estão colocados no direito contemporâneo.

Como de costume, o primeiro capítulo tem um caráter introdutório, foi abordada a parte histórica da tutela do patrimônio cultural intangível no Brasil e no âmbito da UNESCO. O último item trata da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, em razão das disposições relativas aos conhecimentos tradicionais.

No segundo capítulo, foi elucidado o conceito de patrimônio cultural imaterial, com ênfase no disposto na Constituição Federal de 1988, bem como os instrumentos legais para a proteção do patrimônio imaterial, ou seja, o Registro e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).

No terceiro capítulo, foi estudado o bem cultural e seu caráter ambiental, de interesse público e difuso.

No quarto capítulo, tratou-se novamente da relação com o Direito Ambiental, mas enfocando o patrimônio cultural imaterial sob o aspecto do socioambientalismo e da biodiversidade.

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Capítulo 1. Breve histórico do Patrimônio Cultural Imaterial no

Brasil e nas Convenções Internacionais

O presente capítulo é introdutório ao fazer um apanhado histórico sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial no Brasil e também levando em conta as Convenções Internacionais sobre essa temática, especialmente a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003 e a Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005, ambas assinadas no âmbito da UNESCO. O último item aborda rapidamente a Convenção sobre a Diversidade Biológica da ONU, assinada durante a ECO-92, em razão do tratamento concedido à proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, os quais fazem parte do patrimônio cultural imaterial.

1.1. Breve histórico sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial no Brasil

Foi na Semana de Arte Moderna de 1922 que Mário de Andrade, precursor dos estudos e reflexões sobre o patrimônio cultural imaterial, lançou e iniciou a propagação de suas ideias sobre a importância de se estudar e de documentar, principalmente através da etnografia, as diversas formas culturais, tradicionais e populares, existentes no Brasil.

As ideias de Mário de Andrade eram inovadoras. Ele propunha uma conceituação da cultura que abrangesse tanto as artes eruditas e a alta cultura, como a cultura popular. Indígenas, negros e demais populações pauperizadas contribuem tanto para a formação cultural do povo brasileiro, como as elites econômicas.

Entre os anos de 1927 e 1929, o intelectual realizou duas viagens etnográficas nas regiões norte e nordeste do Brasil para estudar e documentar danças, lendas, músicas, festas, entre outros costumes1. Na década de 30, ele integrou e dirigiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, permanecendo até 1938, pouco após o Estado Novo em 1937.

1 Esse material foi publicado em “Na Pancada do Ganzá”, obra inconclusa em razão da morte

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Conforme o Grupo de Trabalho para o Patrimônio Imaterial do Iphan:

Seu principal objetivo era a busca das raízes da nacionalidade e, na pesquisa sobre o folclore, procurava não só o rigor científico, como também assegurar o caráter coletivo e sistemático desses trabalhos, para o que considerava indispensável a criação de instituições que se dedicassem a pesquisar, guardar e difundir as informações sobre o assunto.

A preocupação de Mário de Andrade não era tanto com a proteção dessas manifestações culturais que, nos anos vinte e trinta ainda não estavam ameaçadas de desaparecimento, mas com seu conhecimento e reconhecimento enquanto cultura brasileira. Nesse sentido, considerava fundamental a divulgação e o acesso a esses registros, o que procurava desenvolver através das atividades do Departamento de Cultura. 2

Em 1936, a pedido do ministro de Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, o escritor de Macunaíma elaborou um anteprojeto para a implantação de uma política de proteção e preservação do patrimônio cultural nacional. Neste documento previu a criação de um órgão de proteção ao patrimônio cultural, o qual viria a ser o SPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, bem como reconheceu as expressões populares como modos de formação da identidade nacional3.

No que se refere a uma política pública para o patrimônio cultural imaterial, o anteprojeto era bastante avançado para seu momento histórico . Tem, inclusive, diversos paralelos com as atuais políticas de proteção ao patrimônio cultural intangível. Provavelmente, o pioneirismo de Mário de Andrade foi uma das razões pelas quais seu texto não foi efetivamente levado adiante por décadas. Somente foi retomado na década de 70, com o Centro Nacional de Referência Cultural.

2 Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 109/110.

3 “No Brasil, o reconhecimento do papel das expressões populares na formação de nossa identidade

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Com base neste mesmo anteprojeto de Mário de Andrade foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937, que foi o primeiro órgão governamental com o objetivo de proteger o patrimônio cultural do Brasil. Em 1946 o nome foi alterado, pela primeira vez, para Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN). Em 1970 passou ser denominado como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Embora tenha havido mudanças nos nomes oficiais, até a década de 80 o órgão se dedicou exclusivamente à preservação do patrimônio cultural material. Não incluía em suas atividades os bens que não se encaixassem em determinados critérios históricos, artísticos e de “excepcionalidade referentes ao tombamento”. Esse, aliás, era o único instrumento jurídico disponível à época para a proteção do patrimônio cultural4.

Na década de 70 a atuação do IPHAN e os critérios por ele adotados começaram a ser reavaliados por setores externos ao órgão. Pessoas ligadas ao “design”, à indústria e à tecnologia propuseram mudanças nas políticas de patrimônio, enfatizando a necessidade de se reconhecer também a cultura popular e tradicional e propondo um sistema baseado na noção de referência cultural. De acordo com Maria Cecília Londres Fonseca: “Entre outras mudanças, foi introduzida, no vocabulário das políticas culturais, a noção de referência cultural, e foram levantadas questões que, até então, não preocupavam aqueles que formulavam e implementavam as políticas de patrimônio”5.

Aloísio Magalhães, um respeitado designer gráfico, foi o principal idealizador e responsável pela criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) em julho de 1975. Ele se aproximou de integrantes do governo militar que eram, digamos, mais sensíveis a estes temas, como o Ministro da Indústria e Comércio Severo Gomes, o Ministro da Educação e Cultura Eduardo Portella, e os generais

4 “Era preciso buscar as raízes vivas da identidade nacional exatamente naqueles contextos e bens

que o SPHAN excluíra de sua atividade, por considerar estranhos aos critérios (histórico, artístico, de excepcionalidade) que presidiam os tombamentos.” FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 91.

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Golbery do Couto e Silva e Rubem Ludwig, que colaboraram para que o projeto seguisse adiante6Também participou do projeto de idealização e de implantação do CNRC o diplomata e Secretário de Cultura do Distrito Federal, Wladimir Murtinho. Contudo, a instituição desse centro por um governo de ditadura militar foi vista com desconfiança e descrédito por vários setores da sociedade civil, fazendo com que ficasse esvaziado de novas e inovadoras iniciativas.

O CNRC foi criado por um convênio multiinstitucional firmado por órgãos estatais como o Ministério da Indústria e Comércio, o Ministério da Educação e Cultura, a Fundação Cultural do Distrito Federal e também instituições como a Caixa Econômica Federal e a Universidade de Brasília.

O projeto de Aloísio Magalhães retomava as idéias para a proteção do patrimônio imaterial do modernista Mário de Andrade, as quais foram deixadas de lado pelo IPHAN. O centro tinha como objetivo “o traçado de um sistema referencial básico para a descrição e análise de dinâmica cultural brasileira.” 7. A proposta era

apreender a cultura em sua dinamicidade, em sua diversidade, a cultura viva. Procurou distância da noção inicial de uma cultura oficial, vinculada aos valores das elites dominantes, estática e museificada.

Além disso, Magalhães, seguidor da obra andradiana, defendia a gestão participativa das questões referentes ao patrimônio imaterial. Não cabe ao Estado decidir sozinho o que deve ser preservado e registrado. Este trabalho deveria ser feito junto à sociedade civil, aos especialistas, mas, sobretudo, junto às comunidades envolvidas com os projetos culturais. Ou seja, o intelectual se referia a um modelo em que as decisões deviam ser tomadas em conjunto com os sujeitos que produzem e mantém um determinado “bem cultural”.

Em 1979, Aloísio Magalhães foi convidado a presidir o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Neste ano, foi decidido que o CNRC deveria ser

6

FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 91.

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institucionalizado. Assim como Programa de Cidades Históricas (PCH) foi fundido às atribuições do IPHAN.

A gestão de Magalhães teve o mérito de conseguir que a política cultural se voltasse em efetivo para a proteção do patrimônio cultural popular e afro-brasileiro, embora vivesse sob regime ditatorial. Suas ações ampliaram, em novas práticas institucionais, a importância do patrimônio cultural, para além da alta cultura.

O texto institucional, Os Sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois. A trajetória da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil, formulado pelo IPHAN, destaca que:

Um dos grandes feitos de Aloísio Magalhães no comando do CNRC e, posteriormente, da FNPM, foi a ampliação da proteção do Estado em relação ao patrimônio não-consagrado, vinculado à cultura popular e aos cultos afro-brasileiros. Em Alagoas e na Bahia, o Iphan tombou, respectivamente, a Serra da Barriga, onde os quilombos de Zumbi se localizaram, e o Terreiro da Casa Branca, um dos mais importantes,antigos e atuantes centros de atividade do candomblé baiano. 8

O Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) aprofundou e detalhou as propostas de Aloísio Magalhães para a proteção do patrimônio cultural imaterial. Em seu âmbito foi desenvolvido a noção e o instrumento conhecido como “referência cultural”.

A incorporação e o desenvolvimento desses conceitos na política cultural do país se refletiram nos trabalhos da Assembléia Constituinte, de modo que os artigos constitucionais que tratam da cultura contemplaram o patrimônio imaterial juntamente com a noção de referência cultural.

O “caput” do artigo 216 da Constituição Federal previu expressamente a proteção ao patrimônio cultural material e imaterial, sendo que ambos devem ser “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Ou seja, incorporou, decisivamente, texto constitucional a noção de referência cultural. O parágrafo primeiro dispõe sobre as

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formas de proteção, registro, inventário e outros modos de acautelamento, além do tradicional tombamento.

Assim, a Constituição Federal de 1988 foi um marco para as políticas culturais, pois dedicou, finalmente, ao patrimônio cultural uma definição que estava em sintonia com as propostas e ideias mais modernas de preservação da cultura tradicional e popular em suas dimensões intangíveis.

Porém, apesar da disposição constitucional, pouco se fez, nos anos subseqüentes, para o aprimoramento da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil. Não havia políticas públicas adequadas. A principal crítica dos estudiosos e das populações tradicionais residia no fato de que não existia um instrumento jurídico capaz de proteger, em efetivo, o patrimônio intangível. Afinal, neste momento já era de amplo consenso que “tombamento”, é um instrumento totalmente inadequado para desempenhar esta função.

Em novembro de 1997, na ocasião da comemoração aos sessenta anos de criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), foi realizado em Fortaleza o seminário “Patrimônio Imaterial: Estratégias de Formas de Proteção”, que contou com a participação de gestores, acadêmicos, ativistas, representantes da UNESCO. O encontro teve por objetivo discutir as diretrizes para uma política de proteção e as formas de acautelamento legais e administrativas, o que possibilitaria a efetivação dos dispositivos constitucionais que previam a proteção ao patrimônio cultural imaterial. O resultado final foi o documento que se convencionou chamar de “Carta de Fortaleza”9.

Dentre as recomendações constantes neste documento está o aprofundamento do conceito de bem cultural de natureza imaterial; a promoção do inventário dos bens culturais em parceria com instituições estaduais e municipais de cultura e órgãos de pesquisa; a criação de um Grupo de Trabalho no Ministério da Cultura sob a coordenação do IPHAN para propor a criação do instituto jurídico

9

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registro, necessário à proteção dos bens culturais imateriais; a criação de banco de dados integrado; e o estabelecimento de uma Política Nacional de Preservação do Patrimônio Cultural.

Em 1998, acolhendo as recomendações da “Carta de Fortaleza”, o Ministro da Cultura Francisco Weffort editou a Portaria n° 37 que instituiu uma Comissão interinstitucional para “elaborar proposta visando ao estabelecimento de critérios, normas e formas de acautelamento do patrimônio imaterial brasileiro” 10 e também criou um Grupo de Trabalho para prestar assessoria à comissão, composto por técnicos do IPHAN, da Funarte e do Ministério da Cultura. 11

A Comissão e Grupo de Trabalho designados pelo Ministério da Cultura produziram resultados. Em 2000 foi editado pelo Executivo o Decreto n° 3.551 que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). Neste ano, também foi institucionalizada pelo IPHAN, a metodologia denominada Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).

O Registro e o INRC foram duas importantes conquistas das instituições envolvidas e de toda sociedade civil. A partir desse momento o sistema jurídico nacional passou a contar com instrumentos adequados à salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, um passo importante na efetivação dos dispositivos constitucionais que tratam da cultura (artigos 215 e 216 CF).

Em 2002, o IPHAN fez os seus dois primeiros registros de bens culturais de natureza imaterial. Um, o “Ofício das Paneleiras” de Goiabeiras no Espírito Santo. Outro, a “Arte Kusiwa” (pintura corporal e arte gráfica Wajãpi). Este foi declarado, no ano seguinte, a primeira “Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade” reconhecida pela UNESCO, no território nacional.

Os especialistas brasileiros tiveram um papel relevante nas mesas de discussão internacionais. No ano seguinte, estes debates redundaram na

10

Portaria nº 37 do Ministério da Cultura, de 04 de março de 1998. Idem. P. 61.

11 O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de

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aprovação, pela UNESCO, da “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial”.

No Brasil, também em 2003, o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular foi integrado à estrutura do IPHAN. Em 2004 foi criado no IPHAN o “Departamento do Patrimônio Imaterial e Documentação de Bens Culturais”, pelo Decreto n° 5.040, que substitui o “Departamento de Patrimônio Imaterial e Documentação de Bens Culturais”. Na reforma, o antigo Centro de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) criado em 1958 também passou à gestão do novo departamento.

Internacionalmente também vale ressaltar que em 2005, foi aprovada pela UNESCO a “Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais”. Neste mesmo ano, a UNESCO inscreveu o Samba de Roda do Recôncavo Baiano na lista das obras primas do patrimônio oral da humanidade.

No que tange à tutela do patrimônio cultural imaterial é oportuno incluir no histórico a questão da proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade na esfera nacional e internacional.

Em 1992 foi realizada no Rio de Janeiro a “Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento”, a ECO-92. Dentre os documentos internacionais resultantes dessa conferência está a “Convenção de Diversidade Biológica” (CDB), que dispõe sobre a proteção aos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio cultural imaterial. A citada Convenção estipula que cada Estado deve regular por legislação interna os meios e as formas de distribuição equitativa dos benefícios decorrentes do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais das populações tradicionais.

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Em razão da relevância para o tema, este trabalho aborda com destaque, em itens subsequentes, as Convenções da UNESCO e a “Convenção sobre Diversidade Biológica”.

1.2. O patrimônio imaterial no âmbito da UNESCO

Outro ponto importante para este estudo é o reconhecimento do patrimônio intangível na esfera internacional, principalmente no âmbito da UNESCO, órgão especializado da ONU para a educação, a ciência e a cultura, cuja criação foi em 1945. Essa instituição tem tido relevante papel ao difundir, incentivar a promover mundialmente a necessidade de se salvaguardar o patrimônio imaterial.

No Brasil, como na UNESCO, os dispositivos e as ações se voltavam, inicialmente, à proteção do patrimônio material. Em 1972 foi firmada por diversos países da Convenção da UNESCO sobre a “Salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural”, a qual apenas tutelou os bens materiais (móveis, imóveis, sítios urbanos ou naturais e conjuntos arquitetônicos).

Somente anos mais tarde, na década de 80, um grupo de países em desenvolvimento, signatários da Convenção, liderados pela Bolívia, iniciou um movimento para o reconhecimento como patrimônio cultural imaterial das populações indígenas e tradicionais. Como destaca Márcia Sant’Anna, eles “solicitaram formalmente à Unesco a realização de estudos que apontassem formas jurídicas de proteção às manifestações da cultura tradicional como um importante aspecto do Patrimônio Cultural da Humanidade”. 12

Foi uma reação ao documento inicial que não contemplava as necessidades desses países, pois se constatou que os bens culturais a serem preservados nos termos da Convenção de 1972 estavam predominantemente nos países ricos e eram essencialmente materiais. Isto é, havia uma prioridade e uma preocupação com a tutela dos bens culturais da sociedade ocidental dominante, principalmente da Europa e da América do Norte. A Convenção de 1972 não dispensou qualquer

12 SANT’ANNA, Márcia. Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho

(24)

proteção aos saberes, às tradições, às línguas, às crenças populares, às danças, aos modos de fazer, entre outros.

A UNESCO, em resposta a demanda formalizada por esse grupo de países, emitiu em 1989 a “Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular”, que reconhece a necessidade de se identificar e proteger as culturas, tradicionais e populares, por meio de ações conjuntas entre a UNESCO e os países membros. Note-se que, neste momento, o termo utilizado nos documentos era “cultural tradicional e popular” e não “patrimônio cultural imaterial”.

O documento define “cultura tradicional e popular” nos seguintes termos:

A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundada na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem à expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes.

Quando foi emitida a “Recomendação de 1989” muitos dos países integrantes da UNESCO ainda não tinham amadurecido os termos com relação à importância da proteção às culturas tradicionais, indígenas e populares. Por esta razão foi aprovada apenas como recomendação.

As recomendações e as declarações são diferentes das convenções ou dos tratados 13. As primeiras, como bem formula Elder P.M. Alves, “são destinadas à

disseminação de idéias e valores, a convenção tem força de lei, pois cria, além do compromisso de cumprimento entre os países signatários, o compromisso de difusão e promoção” 14.

13 “A Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, embora não tenha eficácia

legal no âmbito do direito internacional, cumpriu a função de instrumento de disseminação de ideias e valores. Como tal, tanto as medidas de sensibilização presentes no texto, quanto o conceito de

cultura tradicional e popular definido na recomendação da Unesco de 1989, informaram sobremaneira as duas convenções da Unesco assinadas pelos países membros nesta década.” Idem, p. 550.

(25)

A partir da década de 1990, os debates sobre a diversidade cultural e sobre as políticas públicas para sua defesa foram ganhando espaço e as pressões sobre os governos dos países em desenvolvimento e dos organismos internacionais se intensificaram. Ainda de acordo com o autor:

É em nome da preservação e promoção da diversidade e da identidade cultural que muitos estados nacionais e instituições transnacionais passaram a defender a elaboração e execução de novas políticas públicas de cultura. No entanto, como sustenta o próprio Mattelart, foi a consecução de uma rede global de defesa e promoção da diversidade e da identidade

que produziu uma grande pressão junto aos governos nacionais (sobretudo os governos dos chamados países em desenvolvimento) e organismos transnacionais (BID e UNESCO), no sentido da adoção de novas políticas culturais que pudessem ressemantizar e ressignificar um conjunto de conceitos, como o conceito de exceção cultural (Mattelart, 2005: 102). 15

Nesse contexto, em 2001 foi aprovada na UNESCO a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. A despeito de não ter força de lei, foi um importante documento preparatório para a aprovação das duas convenções subseqüentes, e hoje vigentes, sobre a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial (2003) e a Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais (2005).

A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial foi aprovada pela UNESCO em 17.10.2003, a qual ratificou a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989) e a Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural (2001). 16

Internamente, o Congresso Nacional aprovou o texto da Convenção de 2003 em 01.02.2006 por meio do Decreto Legislativo n° 22; em 15.02.2006 o Governo Brasileiro ratificou a Convenção; em 12.04.06 o Presidente da República a

15 ALVES, Elder Patrick Maia.Op. cit. P. 544. 16

(26)

promulgou por meio do Decreto n° 5.733. A vigência interna é a partir de 01.06.06 e internacionalmente a partir de 20.04.2006. 17

A supracitada Convenção considera o patrimônio cultural imaterial como fonte de diversidade cultural 18 e também como garantia de desenvolvimento

sustentável19. O patrimônio imaterial foi conceituado no art. 2° da seguinte forma:

Entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. 20

Em seguida, no mesmo artigo adiciona que a manifestação ocorre nos seguintes campos:

a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial;

b) expressões artísticas;

c) práticas sociais, rituais e atos festivos;

d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais. 21

Em 2005, a UNESCO aprovou a “Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais”. Oportuno mencionar que o texto base desta Convenção estava pronto antes do texto da Convenção de 2003, mas acabou por ser aprovado somente dois anos mais tarde22.

17 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5753.htm, acesso em

29.12.2011.

18

“Reconhecendo que as comunidades, em especial as indígenas, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos desempenham um importante papel na produção, salvaguarda, manutenção e recriação do patrimônio cultural imaterial, assim contribuindo para enriquecer a diversidade cultural e a criatividade humana,” Convenção para a Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, UNESCO, 17.10.2003, disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf, acesso em 29.12.2011.

19 “será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os

instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável” Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural da Humanidade. Idem.

20 Idem. 21 Idem. 22

(27)

No âmbito do direito interno, o Congresso Nacional aprovou o texto da Convenção de 2005 em 20.12.2006 por meio do Decreto Legislativo n° 485; em 16.01.2007 o Governo Brasileiro ratificou a Convenção; em 01.08.2007 o Presidente da República a promulgou por meio do Decreto n° 6.177. A vigência interna é a partir de 01.08.07 e internacionalmente a partir de 18.03.2007. 23

1.3. A Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU

Outro documento internacional essencial ao presente estudo é a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU. Este é um dos documentos resultantes da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992.

Seu texto reconheceu explicitamente a importância de se proteger os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

O artigo 1° trata dos objetivos da Convenção, os quais são “a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e repartição justa e equitativa dos benefícios derivados dos recursos genéticos”. Além da proteção aos recursos genéticos, consta também que o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica devem ser repeitados, preservados e mantidos, em conformidade com a legislação nacional, devendo os benefícios oriundos da utilização desses conhecimentos serem repartidos equitativamente (art. 8, j).

Apesar de ser um documento com vistas à proteção da biodiversidade no planeta, em razão da íntima relação que as comunidades tradicionais têm com a conservação da biodiversidade, tutelou-se, igualmente, os conhecimentos tradicionais associados, os quais integram o patrimônio cultural imaterial.

Maia. Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. In Revista Soc. Estado, vol. 25, n° 3, Brasília: Departamento de Sociologia UNB, 2010. P. 544.

23

(28)

A Medida Provisória n° 2.186/2001, que tratou do acesso ao patrimônio genético e a proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado, assim o definiu: “informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético;” (art. 7°, inc. II). Por ora, nos basta essa conceituação, pois iremos nos aprofundar neste ponto em item posterior.

Em linhas gerais, o patrimônio cultural imaterial constitui-se das práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades e grupos reconhecem como integrante do seu patrimônio cultural, portanto, os conhecimentos tradicionais associados se encaixam perfeitamente nesta definição. Tais conhecimentos se diferem dos demais por terem valor potencial ou real associado ao patrimônio genético.

No âmbito do direito interno, o Congresso Nacional aprovou o texto da Convenção de Diversidade Biológica em 03.02.1994 por meio do Decreto Legislativo n° 02; em 28.02.1994 o Governo Brasileiro ratificou a Convenção; em 16.03.1998 o Presidente da República a promulgou por meio do Decreto n° 2.519. A vigência interna é a partir de 29.05.1994 e internacionalmente a partir de 29.12.1993. 24

(29)

Capítulo 2. O conceito patrimônio cultural no Direito e os

Instrumentos legais

No panorama da proposta desta dissertação, este capítulo se dedica ao conceito de “patrimônio cultural imaterial” à luz das disposições previstas na Constituição Federal de 1988. Se comparada às constituições brasileiras anteriores, a conceituação ganhou dimensões mais abrangentes e maior especificidade técnica. Além disso, o texto atual passa a associar o conceito formal de “patrimônio” e a noção de “referência cultural”, que contribui para alterar os modos como os bens culturais são reconhecidos. Sair da visão na qual o Estado o define e conceitua os “tipos humanos” ou “culturais”, para entrar no paradigma participativo, no qual, de modo democrático, os sujeitos, alvo do processo, ocupam posição simétrica em relação a especialistas e agências de Estado.

O conceito de “patrimônio cultural”, conforme o texto constitucional atual, leva à análise dos dois instrumentos legais hoje disponíveis no Brasil para a proteção do patrimônio cultural imaterial, que detalham os termos e as etapas objetivas para o registro e o inventário de referências culturais. Esta metodologia foi consolidada em torno do que os envolvidos em sua formulação passaram a denominar “Inventário Nacional de Referências Culturas” (INRC).

2.1. Conceito de Patrimônio Cultural na Constituição Federal de 1988

(30)

técnicas relativas ao “patrimônio cultural” mais adequada à proposta “cidadã” disposta na atual Carta Constitucional.

No âmbito internacional, as primeiras referências constitucionais à proteção da cultura, feitas em títulos que tratavam também da ordem econômica e social e da educação, constam na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de 1918. Ambas constituem marcos na história do constitucionalismo ocidental, por terem assegurado, de modo pioneiro, estes direitos em cartas constitucionais. 25.

No Brasil, as Constituições de 1824 e a de 1891 sequer fazem referências ao tema. A primeira Constituição nacional a versá-la foi a de 1934 no art. 10, inciso III, já sob a inspiração dos modelos alemão e mexicano. Foi uma abordagem tímida, pois apenas previu a competência concorrente entre a União e os Estados para a proteção das belezas naturais e dos monumentos de valor histórico ou artístico, com a possibilidade do Estado impedir a evasão de obras de arte.

Por sua vez, a Constituição de 1937 abordou o tema de forma pouco mais ampla no art. 134, atribuindo competência também para os municípios e equiparando os atentados contra os monumentos históricos artísticos e naturais aos cometidos contra o patrimônio nacional. Foi durante a vigência desta Constituição que foi editado o Decreto Lei 25 que dispôs sobre o patrimônio cultural, bem como acerca do instituto do tombamento.

Já a Constituição de 1946 contemplou a questão da cultura de forma sucinta e pouco efetiva no art. 175, o qual previu que: “As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza, ficam sob a proteção do Poder Público.”

A Constituição de 1967 no art. 172 e a Emenda Constitucional 01/69 no art. 181 (o qual repetiu o art. 172) também abordaram o assunto, não inovando em relação às Constituições anteriores, salvo pela novidade de incluir sob a proteção estatal as jazidas arqueológicas. A previsão foi nos seguintes termos: “O amparo à cultura é dever do Estado. Parágrafo único: Ficam sob a proteção especial do Poder

25

(31)

Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.”

A atual Constituição da República Federativa do Brasil foi elaborada e promulgada após o fim do regime militar, tendo recebido influências das Constituições contemporâneas da época, como a Constituição Portuguesa de 1976 e a Constituição Espanhola de 1978 e na América Latina, a Constituição do Panamá de 1985. O tema da cultura foi tratado em todas essas cartas constitucionais.

A partir da década de 70 os direitos culturais passaram a constar nas Constituições, sendo reconhecidos como direitos fundamentais do homem, de acordo com o constitucionalista José Afonso da Silva:

As Constituições contemporâneas – ou seja, aquelas que vieram da derrocada dos regimes fascistas e militares após a década de 70 – alargaram os horizontes da proteção da cultura, surgindo daí a idéia dos direitos culturais como dimensão dos direitos fundamentais do homem, o que tem sua matriz já na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, cujo art. 27 estabelece que toda pessoa tem direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que dele resultam, e toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais que lhe correspondem por razão das produções científicas, literárias ou artísticas de que seja autor. 26

De acordo com Norberto Bobbio, o reconhecimento e o desenvolvimento dos direitos humanos decorrem do processo histórico, sendo esses direitos variáveis e mutáveis, que se alteram para se adequar aos interesses, às relações econômicas e às necessidades das sociedades.

Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas

26

(32)

liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. 27

Portanto, alguns direitos que eram considerados absolutos no final do século XVIII foram restringidos por declarações de direitos contemporâneas, por exemplo, o direito de propriedade deve ser exercido atendendo sua função social. Atualmente, a função social da propriedade é princípio constitucional expresso na Carta brasileira de 1988 (art. 5°, inciso XXIII).

Por outro lado, direitos que antes nem existiam e eram impensáveis surgiram como fruto desse processo histórico e passaram a integrar as declarações internacionais e as Constituições de diversos países, tal como é o caso dos direitos sociais e os direitos relativos à defesa do meio ambiente.

De acordo com Noberto Bobbio são diversas as categorias de direitos que, hodiernamente, integram as declarações de direitos humanos de vários países.28 Ele acrescenta que os direitos humanos são mutáveis e heterogêneos, de modo que a coexistência entre eles implica em autolimitação. Veja-se:

Quando digo que os direitos do homem constituem uma categoria heterogênea, refiro-me ao fato de que – desde quando passaram a ser considerados como direitos do homem, além dos direitos de liberdade, também os direitos sociais – a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteção de outros. 29

Nesta toada, o autor propõe uma classificação dos direitos em gerações levando em conta a natureza de cada um deles, bem como o momento histórico em

27

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P. 5.

28 “Todas as declarações recentes dos direitos do homem compreendem, além dos direitos

individuais tradicionais, que consistem liberdades, também os chamados direitos sociais, que consistem em poderes. Os primeiros exigem da parte dos outros (incluídos aqui os órgãos públicos) obrigações puramente negativas, que implicam a abstenção de determinados comportamentos; os segundos só podem ser realizados se for imposto a outros (incluídos aqui os órgãos públicos) um certo número de obrigações positivas.” BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P. 21.

(33)

que surgiram. 30 Convém abordar essa classificação de forma sucinta para situarmos

nela o objeto deste estudo, que é o direito à cultura.

A primeira geração é composta pelos direitos referentes às liberdades negativas, pois implicam uma abstenção estatal para se efetivarem, como exemplo: o direito à vida, à liberdade civil ou religiosa.

Na segunda geração foram agrupados os direitos que ensejam uma prestação positiva estatal para sua efetivação, são os direitos sociais, econômicos e culturais. Historicamente, tais direitos surgiram a partir das influências das doutrinas socialistas e com o advento do Estado de bem estar social (Welfare State).

A terceira geração é integrada por direitos coletivos, dentre os quais podemos citar o direito ao meio ambiente sadio e a proteção ao consumidor. A quarta geração relaciona-se com o desenvolvimento tecnológico no Estado contemporâneo e se refere aos direitos para a proteção do patrimônio genético. 31

Convém salientar que a classificação dos direitos em gerações proposta por Bobbio recebeu críticas. Alguns doutrinadores como Paulo Bonavides 32 e Joaquim

José Gomes Canotilho 33 discordam da terminologia utilizada por Bobbio, propondo

a substituição do termo geração por dimensão, por entenderem que ele nos induz a pensar em sucessão cronológica dos direitos e em caducidade dos direitos das gerações antecedentes. De acordo com Canotilho:

“É discutida a natureza desses direitos. Critica-se a précompreensão que lhes está subjacente, pois ela sugere a perda de relevância e até a substituição dos direitos de primeiras gerações. A idéia de generatividade

30 Idem. P. 05,06. 31

“Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.” Idem. P. 06.

32

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 571, 572.

33 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6ª. Ed.

(34)

geracional também não é totalmente correta: os direitos são de todas as gerações. Em terceiro lugar, não se trata apenas de direitos com um suporte coletivo – o direitos dos povos, o direito da humanidade. Neste sentido se fala da solidarity rights, de direitos de solidariedade, sendo certo que a solidariedade já era uma dimensão “indimensionável” dos direitos económicos, sociais e culturais. Precisamente por isso, preferem hoje os autores falar de três dimensões de direitos do homem (E. Riedel) e não de “três gerações”. 34

Em que pesem as considerações e as críticas feitas pela doutrina especializada, não é necessário para o presente estudo o aprofundamento em relação às diversas teorias sobre os direitos fundamentais.

O direito à cultura foi previsto no art. 215 da Constituição Federal, nos seguintes termos: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” Trata-se de um direito constitucional fundamental, pertencente à segunda geração de direitos, o qual exige uma postura estatal positiva para sua efetivação. O Estado deverá implementar políticas públicas culturais a fim de possibilitar aos cidadãos o exercício deste direito em sua integralidade.

O citado artigo é composto por duas normas, a primeira prevê a garantia ao exercício do direito cultural e o acesso às fontes de cultura, a segunda dispõe sobre o apoio e o incentivo à valorização das manifestações culturais.

De acordo com José Afonso da Silva:

Assim se delineia a dupla dimensão da expressão “direitos culturais”, que consta do art. 215 da Constituição: de um lado, o direito cultural, como

norma agendi (...), e o direito cultural, como facultas agendi (...). O conjunto de normas jurídicas que disciplinam as relações de cultura formam a ordem jurídica da cultura.

Esse conjunto de todas as normas jurídicas, constitucionais ou ordinárias, é que constitui o direito objetivo da cultura; e quando se fala em direito da cultura se está referindo ao direito objetivo da cultura, ao conjunto de

(35)

normas sobre cultura. Pois bem, essas normas geram situações jurídicas em favor dos interessados, que lhes dão da faculdade de agir, para auferir vantagens ou bens jurídicos que sua situação jurídica produz, ao se subsumir numa determinada norma. 35

Além do art. 215, o art. 216 da Constituição Federal também trata do tema da cultura ao definir patrimônio cultural e fixar algumas diretrizes em seus parágrafos, especialmente no que tange às políticas culturais. Ambos artigos estão inseridos no Capítulo Da Educação, Da Cultura e do Desporto.

Porém, outros dispositivos também o abordam, são eles: o art. 5°, inciso LXXIII, que prevê a ação popular para anular qualquer ato lesivo ao patrimônio histórico e cultural; o art. 23 dispõe sobre a competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para a proteção da cultura nos incisos III e IV, bem como para que sejam proporcionados os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência no inciso V; o art. 24 trata da competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico no inciso VII e sobre cultura no inciso IX; o art. 30, no inciso IX prevê que compete ao município “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.” Além dos acima citados há ainda outros dispositivos que se referem ao tema da cultura: os artigos 4°, § único; 210; 219; 221, incisos I, II e III; 227; 231, § 1°; 242, § 1° e 243.

O artigo 216 caput e incisos I a V da CF definiu o patrimônio cultural brasileiro nos seguintes termos:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

(36)

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Como já mencionado, a redação deste artigo, que dispõe sobre os bens que devem ser “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, inova em relação às Constituições brasileiras anteriores.

Incorpora, pela primeira vez, os conceitos “patrimônio cultural material e imaterial brasileiro” e “referencias culturais” ao invés de “patrimônio histórico e artístico nacional”, disposto desde o previsto no art. 1º do Decreto Lei 25 de 1937.

O constitucionalista José Afonso da Silva, em revisão sobre o ordenamento da cultura, destaca as razões pelas quais o novo arcabouço representa um avanço:

Patrimônio cultural é expressão mais adequada e mais abrangente do que

patrimônio histórico e artístico. Menos adequado, embora não menos abrangente, é falar-se em patrimônio histórico, artístico ou cultural, porque o “cultural” já inclui o “histórico” e o “artístico”, por isso a Constituição andou bem empregando a expressão sintética “patrimônio cultural”, no art. 216, embora já não o tenha feito tão bem quando se refere a bens de valor histórico, artístico ou cultural, nos arts. 23, III e IV, e 24, VII. 36

Ao empregar a expressão “patrimônio cultural brasileiro”, importante destacar, não deixa dúvidas de que engloba além do patrimônio da União, também o dos Estados e dos Municípios. Não se refere apenas ao patrimônio cultural da União, pois se assim se pretendesse a formulação deveria constar algo como “patrimônio cultural nacional ou da União”. 37 A leitura sistemática do artigo não deixa dúvidas ao dispor no §1º que a comunidade deve colaborar com o Poder Público na promoção e na preservação deste patrimônio.

A palavra patrimônio tem origem latina (patrimonium) e nos remete a bens transmitidos por linhas de descendência entre consangüíneos, não importando se

36

SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 100.

37

(37)

por linha paterna ou materna. Portanto, a palavra alude a um conjunto de bens cujo critério primeiro de transmissão de direitos e deveres é o vínculo das gerações presentes com seus antepassados.38

Isto é, quando a Constituição no art. 216 emprega a expressão “patrimônio cultural”, é porque se propõe a delimitar conjuntos de sujeitos de direito compostos por aqueles bens, de natureza material ou imeterial, que ostentem essa característica; que tenham sido transmitidos ao longo do tempo entre sucessivas gerações. Apenas sobre estes conjuntos versa o regime de proteção e salvaguarda nela previsto e em outros diplomas legais que o normatizam.

De acordo com Marés39 os “bens culturais”, ao contrário dos bens que integram o patrimônio civil de uma pessoa, não precisam ostentar valor econômico e nem ter o mesmo titular. E complementa:

Isto quer dizer que o conceito de patrimônio cultural, patrimônio genético, ambiental, florestal, e até mesmo patrimônio nacional – da Nação e não do Estado -, são atécnicos, como diziam Alibrandi e Ferri, mas servem para identificar uma universalidade juridicamente protegida sob as mesmas condições.40

Em outro texto o citado autor melhor explica essa atecnia do termo patrimônio cultural ao mencionar que este é qualificado por critérios diversos, por exemplo, os valores socioambientais associados: “cada um desses patrimônios é o conjunto de bens agregados por valores especiais (socioambientais) que se compõem e se integram por bens de diversos patrimônios individuais (públicos e privados).” 41

Retomemos aqui o emprego da expressão “bens de natureza material e imaterial”. Como já mencionado a formulação se propõe a não deixar dúvidas de que

38 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; MELLO FRANCO, Francisco Manoel de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. P. 1447.

39 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed., 6ª.

Reimp. Curitiba: Juruá, 2011. P. 47.

40

Idem.

41 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Introdução ao Direito Socioambiental. In: LIMA, André

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