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Estudo dos processos de referenciação na construção do objeto de discurso "mulher"

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

SHEILLA MARIA RESENDE

ESTUDO DOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO NA

CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE DISCURSO “MULHER”

CAMPINAS,

2018

(2)

SHEILLA MARIA RESENDE

ESTUDO DOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO NA

CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE DISCURSO “MULHER”

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva

Este exemplar corresponde à versão final da Dissertação defendida pela aluna Sheilla Maria Resende e orientada pela Profa. Dra. Anna Cristina Bentes da Silva

CAMPINAS,

2018

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Resende, Sheilla Maria, 1985-

R311e Estudo dos processos de referenciação na construção do objeto de discurso "mulher" / Sheilla Maria Resende. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

Orientador: Anna Christina Bentes da Silva.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Referenciação (Linguística). 2. Categorização (Linguística). 3. Anáfora (Linguística). 4. Blogs. 5. Feminismo. I. Bentes, Anna Christina, 1963-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Study of the referential processes in the construction of the discursive object "mulher"

Palavras-chave em inglês: Referentiation (Linguistics) Categorization (Linguistics) Anaphora (Linguistics) Blogs Feminism

Área de concentração: Linguística Titulação: Mestra em Linguística Banca examinadora:

Anna Christina Bentes da Silva [Orientador] Lauro José Siqueira Baldini

Márcia Fonseca de Amorim Data de defesa: 26-03-2018

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BANCA EXAMINADORA

Anna Christina Bentes da Silva

Lauro José Siqueira Baldini

Márcia Fonseca de Amorim

IEL/UNICAMP

2018

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se

no SIGA – Sistema de Gestão Acadêmica.

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À memória das duas primeiras grandes mulheres da minha vida: minha avó, Maria, e minha madrinha, Dinha.

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AGRADECIMENTOS

Deixo registrado, em primeiro lugar, o meu agradecimento a Deus. Sua luz esteve comigo em cada momento da minha caminhada ao longo desses dois anos de estudos dedicados ao meu mestrado.

Agradeço à minha filha, Lavínia Resende, à minha mãe, Maria Claret, e ao meu namorado, André Soares, por estarem fortemente ao meu lado, empenhados na criação de condições para que eu pudesse desenvolver meu trabalho.

À minha orientadora, Professora Anna Christina Bentes, pela generosidade e compreensão dispensadas a mim desde o dia em que nos conhecemos.

À CAPES, pelo financiamento à minha pesquisa, fundamental para que eu conseguisse vencer essa etapa de minha formação.

À minha amiga de alma, Sirleidy Lima, pelo carinho, atenção e cuidado com que tem me contemplado desde a primeira página escrita para esta pesquisa.

Aos meus amigos queridos Moisés Inácio de Lima e Allysson Casais, que me deram suporte emocional nos momentos mais difíceis pelos quais passei para conceber este trabalho.

E, finalmente, ao meu amigo Eduardo Santos, por compartilhar as angústias e caminhar junto a mim nos bons e maus momentos.

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RESUMO

Baseando-nos em fundamentos da Linguística Textual numa abordagem sociocognitiva, nosso objetivo neste trabalho é investigar a construção do objeto de discurso “mulher” por meio dos processos de referenciação em textos predominantemente argumentativos retirados de dois blogs feministas brasileiros: o Blog da Marcha Mundial das Mulheres e o Blogueiras Negras. Partindo de uma discussão teórica que vai desde a Semântica Formal até a Cognição Situada, chegamos à noção de categorização e aos processos anafóricos como estratégias referenciais constitutivas e tributárias de concepções compartilhadas de mundo. Para dar conta desse percurso e de sua problematização, lançamos mão, especialmente, das contribuições de Frege (1978), Ducrot (1979), Lakoff e Johnson (1980), Varela, Thompson e Rosch (1993), Wittgenstein (1975), Kleiber (1990), Mondada (2015), Mondada e Dubois (2016), Koch (2014, 2015a, 2015b, 2016) e Marcuschi (2008, 2015). Sob um viés metodológico essencialmente analítico e interpretativo, concebido a partir de uma abordagem qualitativa, optamos pelo trabalho com textos retirados de blogs a fim trazer à tona discursos praticados por sujeitos que se engajam na produção e publicação de textos acerca de fatos noticiosos com vistas a expor seu ponto de vista e a ganhar a adesão de seus interlocutores, sob uma espécie de prática jornalística de natureza temática materializada em textos que dizem não apenas sobre a “mulher”, mas também através dela. Nossos análises apontam para a corroboração do pressuposto de que as coisas e estados de coisas no mundo não são significados de forma apriorística, abstrata e universal, eles são, afinal, objetos de discurso, construídos, desconstruídos e reconstruídos por meio processos cognitivos que acontecem tanto dentro do indivíduo quanto de fora dele, na sociedade, por negociações intersubjetivas, pela perspectivação, em um processo tão dinâmico e complexo que a vontade de delimitar quais aspectos da significação estariam dentro ou fora desse indivíduo, ou dentro ou fora da língua, seria correr o risco de perder de vista a ideia de que uma cognição situada realiza um entorno ao mesmo tempo em que é realizada por ele.

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ABSTRACT

Basing ourselves on the fundamentals of Text Linguistics with a sociocognitive approach, our objective in this project is to investigate the construction of the discourse object "mulher" through the referential processes in predominantly argumentative texts taken from two blogs: Blog da Marcha Mundial das Mulheres and Blogueiras Negras. Based on a theoretical discussion that expands from formal semantics to situated cognition, we arrive at categorization notions and anaphoric processes as shared constitutive and contributory referential strategies of the world. To manage such trajectory and its problematization, we used, especially, the contributions of Frege (1978), Ducrot (1979), Lakoff e Johnson (1980), Varela, Thompson and Rosch (1993), Wittgenstein (1975), Kleiber (1990), Mondada (2015), Mondada and Dubois (2016), Koch (2014, 2015a, 2015b, 2016) e Marcuschi (2008, 2015). Under an essentially analytical and interpretative methodological vein, conceived from a qualitative approach, we chose to work with texts taken from blogs in order to bring forth discourses practiced by subjects that are engaged in the production and publication of texts about facts with the purpose of gaining the adherence of their interlocutors, through a type of materialitically thematic journalistic practice that not only talk about "mulher", but also through her. Our results point to the corroboration of the assumption that things and the state of things in the world are not signified in an abstract and universal manner; they are, after all, discourse objects, constructed, deconstructed, and reconstructed through cognitive processes that happen both inside the individual as well as outside him, in society, through intersubjective negotiations, through perspective, in a process so dynamic and complex that the desire to delimitate which aspects of signification are inside or outside this individual, or inside or outside language, would be to run the risk of losing sight of the idea that situated cognition makes a surrounding at the same time that it is made by it.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Recorte da página inicial do Blog da Marcha Mundial das Mulheres. ... 60

Figura 2 - Recorte da página inicial do blog Blogueiras Negras. ... 61

Figura 3 - Recorte da autodescrição de uma autora do blog da MMM. ... 63

Figura 4 - Recorte da autodescrição de outra autora do blog da MMM... 63

Figura 5 - Recorte do perfil social de uma autora do blog da MMM. ... 64

Figura 6 - Perfil de Aline Paes. ... 65

Figura 7 - Perfil de Layla Maryzandra. ... 66

Figura 8 - Perfil de Maria Clara Araújo. ... 67

Figura 9 - Fragmento de texto escrito em coautoria. ... 67

Figura 10 - Perfil social de grupo formado por mulheres que escrevem em coautoria. ... 68

Tabela 1 - Textos selecionados dos blogs. ... 70

Tabela 2 - Textos escolhidos para o corpus da pesquisa. ... 71

Quadro 1 - Cadeia referencial (a). ... 77

Quadro 2 - Cadeias referenciais (b) e (c), respectivamente. ... 78

Quadro 3 - Cadeia referencial (a) PEC 181/15. ... 82

Quadro 4 - Cadeias referenciais (b) e (c). ... 83

Quadro 5 - Cadeia referencial do objeto de discurso “Marcela Temer” ... 88

Quadro 6 - Cadeia referencial do objeto de discurso “Mulheres”... 89

Quadro 7 - Cadeia referencial no lado (a) do paralelo. Relação anafórica. ... 94

Quadro 8 - Cadeia referencial no lado (b) do paralelo. Relação catafórica. ... 94

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 PERCURSO TEÓRICO ... 17

1.1 Da referência à referenciação: de objetos de mundo a objetos de discurso ... 17

1.1.1 Sentido e referência em Frege: os objetos de mundo e sua “verdade” ... 17

1.1.2 Oswald Ducrot e os objetos de discurso: a significação na e pela língua ... 21

1.1.3 O viés da cognição: os objetos de discurso não preexistem à atividade cognitiva de um indivíduo sócio historicamente situado ... 24

1.2 É preciso organizar o “real”, nominando-o: a categorização ... 28

1.2.1 O salto teórico no estudo da categorização: a noção de protótipo... 29

1.2.2 Kleiber, Wittgenstein e o afastamento da proposta de análise discreta dos traços sêmicos definidores de uma categoria ... 31

1.3 Referenciação: processo dinâmico e criativo sobre o objeto de discurso “mulher” ... 40

1.3.1. Referenciação, categorização e objetos de discurso ... 41

1.3.2 As anáforas diretas: linearidade correferencial ... 44

1.3.3 As anáforas indiretas: a rede de conhecimentos socialmente compartilhados e a construção de sentidos ... 48

1.3.4 O uso do artigo indefinido no processo anafórico: estratégia argumentativa ... 52

2 METODOLOGIA ... 55

2.1 Aspectos metodológicos ... 55

2.1.1 Os blogs ... 55

2.1.2 O Blog da Marcha Mundial das Mulheres e o Blogueiras Negras ... 57

2.1.3 A estrutura dos blogs ... 59

2.1.4 Quem escreve para os blogs ... 62

2.2 A constituição do corpus... 68

3 ANÁLISES ... 74

3.1 Os textos do blog da Marcha Mundial das Mulheres (MMM)... 74

3.2 Os textos retirados do blog Blogueiras Negras ... 90

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 105

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INTRODUÇÃO

Os estudos linguísticos têm se ocupado ao longo do tempo da compreensão do significado e da significação na e pela linguagem. Quando esta é tomada como “elo” entre o homem e seu entorno, portanto instrumento por meio do qual a humanidade tem acesso à realidade, às coisas mundanas, há presunção da correspondência entre as palavras e as coisas e estados de coisas no mundo: há uma “verdade” a ser alcançada pela língua.

A linguagem, sob essa perspectiva, é instrumento e o sujeito, mero suporte de linguagem. O que é instrumento, por sua vez, não comporta uma espessura própria de sentido, e encontra sua significação mesma a partir de uma –necessária- relação com o mundo. Essa linguagem mediadora seria, portanto, transparente, e funcionaria como meio pelo qual o homem “toca” o real. Há uma forte distinção, aqui, entre o sujeito, a língua e o “exterior”. Admite-se, sob esse viés, referencialista, defendido por Frege em seus estudos sob a perspectiva da Semântica Formal (1978), que a língua permite falar objetivamente do mundo, permite adquirir um conhecimento seguro, uma verdade sobre ele.

Se, sob um outro viés, não referencialista, tal qual o de Oswald Ducrot (1979), herdeiro do estruturalismo saussuriano, a linguagem é considerada como o lugar exclusivo a partir do qual e por onde significamos, então compreendemos que ela tem espessura própria, e que não há lugar para o mundo ou para o sujeito que enuncia, já que este, dentro do universo da linguagem, tem seu estatuto transformado: de sujeito para locutor, entidade linguística, não mundana. A “coisa no mundo”, nessa perspectiva, é indizível. Uma vez que algo é dito sobre um objeto, a ele é conferido o estatuto de objeto de discurso, cuja existência se dá na linguagem e pela linguagem: os objetos de discurso da teoria enunciativa ducrotiana.

Ou, ainda, se a linguagem é considerada em sua prática, conforme propõem Koch (2001, 2014, 2015a), Mondada (2015) e Mondada & Dubois (2016), isto é, como ação por meio da qual construímos o objeto, cognitivo e discursivo, que estamos referenciando, então compreendemos que a língua é lugar de encontro entre o homem e o mundo, entre “exterior” e “interior”, entre “mente” e “corpo”, ou melhor, entendemos que não há razão de ser para as dicotomias que permeiam o estudo linguístico da significação, e que não interessam os limites e fronteiras entre um e outro domínio, mas o processo por meio do qual um indivíduo sócio histórico diz do mundo, diz de si, constrói e reconstrói o real.

A atividade referencial, de (re)construção de objetos cognitivos e discursivos, atua, pois, sobre a referência, ao mesmo tempo em que a torna factual. Estamos, portanto, a todo momento colocando em funcionamento nossas referências: estabilizando-as, refutando-as, ampliando-as,

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enfim, materializando-as por meio de um processo dinâmico e criativo: a referenciação (Koch, 2001, 2014, 2015a; Mondada, 2015; Mondada & Dubois, 2016).

É considerando a língua como ação e não como instrumento ou representação que nos ocupamos do estudo da maneira como a mulher é referenciada – e (re)construída- em blogs feministas. Nesse sentido, elegemos essa categoria de blogs como corpus de trabalho porque os consideramos um tipo de prática jornalística de natureza temática, em que podemos verificar o empenho de mulheres na disseminação e apreciação de notícias e informações atuais que digam respeito direta ou indiretamente à condição sócio histórica feminina e à luta pela equidade, atividades que, em potencial, podem influenciar pensamentos e ganhar adesão de outras subjetividades, possibilitando a formação de comunidades de interesse.

Compreender o modo de ser e estar da “mulher” enquanto construção discursiva, sem presumir uma verdade de mundo, ajuda-nos e convida-nos, acreditamos, a um exercício de empatia, por meio do qual possamos perceber que a realidade ou a pretensa verdade sobre o lugar das mulheres presente nos discursos legitimados sobre elas são construções discursivas, baseadas em modelos de mundo de determinados atores sociais, e resultantes de suas vontades de dizer, quase sempre em detrimento de outros atores, especialmente das próprias mulheres.

É preciso, assim, fazer ver outras e novas formas de construção da(s) mulher(es): aquelas que partem delas próprias, materializadas em textos que emergem e trazem novos sentidos para “ser” mulher, a despeito dos sentidos oriundos de dizeres produzidos e largamente reproduzidos socialmente, como, por exemplo, o dizer da “maternidade como critério para realização plena da mulher”, ou da “mulher desempenhando papel principal na organização e execução das tarefas domésticas”.

Assim sendo, acreditando que é por meio das práticas discursivas que construímos a realidade, colocamos a seguinte questão norteadora para esta pesquisa: de que maneira a(s)

mulher(es) são referenciadas em textos retirados de blogs feministas e como esse processo de retomada contribui para a construção do objeto de discurso “mulher” nesses blogs?

A questão apresentada parte da hipótese de que “a discursivização ou textualização do mundo por meio da linguagem não consiste em um simples processo de elaboração de informações, mas em um processo de (re)construção do próprio real” (KOCH, 2015, p. 33). Esse processo de (re)construção do real se dá, acreditamos, nas mais diversas práticas de linguagem, e conta, simultaneamente, tanto com operações cognitivas, quanto com os usos que os atores sociais fazem da linguagem nos mais diversos contextos. Dizendo de outro modo, esse processo dinâmico de construção e reconstrução da realidade é concebido na interação, no uso

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da língua, na (re)produção de discursos, da maneira como feitos por sujeitos sócio historicamente situados.

Assim, o modo como é referenciado o objeto de discurso “mulher” em textos feministas, por um lado, ativa conhecimentos compartilhados entre locutor e interlocutor e os coloca em questão para a produção dos sentidos do texto, por outro lado, propõe, por meio da prática referencial, uma ampliação do sentido já posto, sua negação ou corroboração, em função de uma intenção de dizer, com vistas a alcançar determinado propósito comunicativo. Logo, as práticas referenciais dos atores sociais em suas mais diversas atividades de linguagem não somente retomam e organizam o “referente” dentro do texto, mas o (re)constroem, e essa (re)construção discursiva aponta para subjetividades, e tem o potencial de captar várias outras para o compartilhamento de –novas- concepções da “mulher”.

Diante do que foi exposto, elaboramos os objetivos deste estudo: OBJETIVO GERAL

 Analisar o processo de referenciação presente em textos predominantemente argumentativos retirados de blogs feministas, observando o modo como essa atividade (re)constrói identidades para o objeto discursivo “mulher”.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

 Identificar a natureza da retomada do objeto discursivo “mulher” nas práticas referenciais presentes nos textos que compõem o corpus: anáforas diretas, por pronominalização ou nominalização, ou anáforas indiretas;

 Apontar as categorias utilizadas na construção do referido objeto de discurso a propósito da utilização dessa estratégia referencial junto às reativações anafóricas;  Analisar, à luz de uma abordagem sociocognitiva, o papel dos conhecimentos

socialmente compartilhados na ancoragem dos sentidos, os quais permitem interpretar as anáforas indiretas, bem como significar as categorias utilizadas nessa forma de anaforização, as quais têm o potencial de contribuir para a (re)construção de objetos discursivos tributários de determinadas ideologias e formas de estar no mundo.

Assim, esta investigação configura mais uma contribuição para os estudos em Linguística Textual associados aos estudos cognitivos ao trazer como objeto a referenciação, apostando que se trata de um processo cognitivo situado sociohistoricamente. Logo, esta

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abordagem corrobora o que postulou Mondada (2015) ao afirmar que observações analíticas1

que surgiram a partir de seus estudos sobre a atividade referencial convidam a

Um deslocamento teórico da problemática da referência de um quadro estático abstrato, em que as formas linguísticas são tratadas por si mesmas, tendo em vista sua correspondência ou não correspondência com referentes extradiscursivos, para um quadro dinâmico [...]. A distinção entre o que intra e o que é extradiscursivo não tem razão de ser neste quadro; esta atividade interfere na referência ao mesmo tempo que a apresenta eventualmente na sua factualidade e objetividade. É nesse sentido que se pode falar da referência como uma realização prática (MONDADA, 2015, p. 26).

Já no aspecto social, esta pesquisa é importante porque tem como corpus de análise textos retirados de blogs feministas brasileiros de dois vieses distintos. De sorte que uma pesquisa empreendida a partir de textos feministas de diferentes perspectivas, os quais trazem à tona a questão feminista, pode lançar luz sobre as distintas e convergentes formas de ser “mulher” no Brasil. Todas essas formas, por sua vez, são tributárias das atividades de referenciação, já que estamos a todo tempo falando sobre as coisas e sobre os estados das coisas no mundo, e é dessa maneira que o construímos. Falamos sobre mulheres, para mulheres e como mulheres. Concebemos e configuramos, pois, a nossa existência própria como objetos de discurso: retomando e organizando ao mesmo tempo em que nos desconstruímos, construímos e reconstruímos. Discursivamente.

A metodologia utilizada nesta pesquisa é de caráter essencialmente analítico, teórico e interpretativo com base na abordagem qualitativa. Contudo, serão apresentados dados quantitativos significativos para compor a relação com as interpretações realizadas, pois a quantificação servirá para melhor organização dos dados coletados.

O trabalho será orientado a partir da análise de vinte textos predominantemente argumentativos, publicados nos anos de 2014 e 2017, retirados de dois blogs feministas brasileiros: o Blog da Marcha Mundial das Mulheres e o blog Blogueiras Negras. Esses dois blogs compartilham aspectos de suas respectivas pautas na luta pela equidade das mulheres, mas apresentam, contudo, vieses distintos. O primeiro blog convida à produção de sentido junto à condição sócio-histórico-cultural da mulher, ou seja, sob esse critério geral de susceptibilidade: o “ser mulher”, enquanto o segundo convida a essa produção junto a uma condição dupla de suscetibilidade sócio-histórico-cultural: o “ser mulher” e o “ser negra”.

1 Essas observações analíticas dizem respeito àquelas feitas por Mondada (2015) a partir da análise das atividades

referenciais desenvolvidas por locutores envolvidos em uma operação cirúrgica, conforme consta em seu artigo intitulado “A referência como trabalho interativo: a construção da visibilidade do detalhe anatômico durante uma operação cirúrgica”

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Dizendo de outra forma, uma vez que desejamos analisar a maneira como é construído o objeto de discurso “mulher”, faz-se relevante uma investigação de textos que circulam às margens dos discursos amplamente produzidos e reproduzidos sobre e para a mulher, o que faz vir à tona, desse modo, uma disputa discursiva sobre o que é “ser mulher” no Brasil, na qual diferentes formas de referenciar esse objeto está a serviço de uma percepção coletiva de mundo e de intenções de dizer.

Esta dissertação encontra-se dividida em três capítulos.

No tópico 1.1. do primeiro capítulo, que traz as bases teóricas sobre as quais esta pesquisa repousa, apresentamos um percurso histórico da referência à referenciação dentro dos estudos linguísticos. Começando pela concepção de referente em Frege e na Semântica Formal, chegando à ideia de objetos de discurso, cara à Linguística Textual, buscamos corroborar a tese de que construímos discursivamente as coisas e estados de coisas do mundo, e, dessa forma, concebemos nosso entorno. Assim, não há mais lugar para objetos de mundo, extralinguísticos, mas para objetos de discurso, de ordem linguística e sociocognitiva, construídos e reconstruídos nas práticas de linguagem nas quais os atores sociais estão irremediavelmente imersos, e cuja percepção depende do modo como esses objetos são previamente definidos por nossas práticas culturais:

A ‘realidade’ é fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais, que condicionam a própria percepção e que, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem, de modo que o processo de conhecimento é regulado por uma interação contínua entre práxis, percepção e linguagem (KOCH, 2015, p. 59).

No segundo tópico, 1.2., também no sentido de reforçar uma abordagem sociocognitiva na (re)construção de objetos de discurso, trazemos uma discussão sobre categorização e protótipos, elucidando que estes configuram-se como materializações linguísticas de conhecimentos socialmente compartilhados por determinados atores sociais, ou por atores sociais pertencentes a determinados grupos, e que contribuem para a linearização dos sentidos que podem advir a partir da interpretação de determinado objeto.

No terceiro tópico, 1.3., serão expostas as discussões teóricas acerca as anáforas diretas e indiretas de forma a explicitar os processos referenciais –e inferenciais- que se dão, respectivamente, por meio da relação entre elementos textuais e entre esses e o universo contextual, fazendo com que a compreensão de determinados termos referenciais dependa da interpretação de um objeto a partir da ativação de inscrições na memória dos atores sociais realizadas graças às suas práticas sensíveis de interação com o entorno. O que reforça a proposta de significação sociocognitiva de objetos.

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No segundo capítulo, será apresentada a metodologia desta pesquisa, com vistas a elucidar o conceito de blog com que estamos trabalhando, bem como a apresentar e descrever nosso corpus de trabalho, para, enfim, mostrar as etapas de concepção desta proposta.

No terceiro capítulo, das análises, serão apresentados os textos e fragmentos de textos mais relevantes para ilustrar a discussão acerca da (re)construção discursiva da identidade do objeto de discurso “mulher”, mostrando a maneira como as anáforas e as categorizações utilizadas pelos atores sociais refutam ao mesmo tempo em que propõem (novos) sentidos, sociocognitivamente situados, para “ser mulher”.

Finalmente, nas considerações finais, retomamos o objetivo geral da investigação empreendida com vistas a amarrá-lo às questões teóricas e práticas colocadas neste estudo. Colocamos, ainda, algumas reflexões acerca das análises empreendidas objetivando provocar e estimular novos olhares sobre a referenciação e a construção de identidades.

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1 PERCURSO TEÓRICO

1.1 Da referência à referenciação: de objetos de mundo a objetos de discurso

“Se a referência de um sinal é um objeto sensorialmente perceptível, minha representação é uma imagem interna, emersa das lembranças de impressões sensíveis passadas e das atividades, internas e externas, que realizei” (FREGE, G., 1978, p.64)

Este primeiro tópico do percurso teórico que será apresentado neste trabalho traz uma breve discussão acerca do modo como diferentes perspectivas de estudo dentro da Linguística lidam com o significado e a significação nas línguas naturais. Acreditamos que seja importante elucidar os diversos vieses pelos quais passam a significação e o(s) sentido(s): ora pela inspeção dos fatos no mundo, em busca de uma “verdade”, ora pela volta à língua enquanto sistema, dimensão de espessura própria, em que não há lugar para o mundo, para chegarmos à dimensão cognitiva da linguagem, e, finalmente, à condição situada dessa cognição.

De objetos de mundo a objetos de discurso, vale trazer à tona as dicotomias que subjazem a teoria e o método nas diversas áreas da linguística quando o assunto é abordar a “referência”. Almejamos, enfim, que, a partir do percurso aqui colocado, consigamos deixar claro o lugar mesmo desta proposta: o trabalho com objetos de discurso cujo(s) sentido(s) são produzidos por atos interpretativos individuais condicionados por pressupostos sociais.

1.1.1 Sentido e referência em Frege: os objetos de mundo e sua “verdade”

A Semântica Formal, cujo expoente é o alemão Gottlob Frege, ocupa-se da descrição do significado2 dos nomes próprios e das sentenças. A esse estudo lógico da significação são fundamentais as noções de sentido e referência.

O sentido, para Frege (1978), seria o modo de apresentação do objeto [de mundo], o qual está unido a um sinal, forma linguística (letras, nomes, palavras ou combinação delas):

Certamente deveria corresponder, a cada expressão, que pertença a uma totalidade perfeita de sinais, um sentido determinado; mas, frequentemente, as linguagens

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naturais não satisfazem a esta exigência e deve-se ficar satisfeito se a mesma palavra tiver sempre o mesmo sentido num mesmo contexto (FREGE, 1978, p. 63).

Assim sendo, a partir do sinal, linguístico, depreendem-se um (ou mais) sentido(s)3, que configura(m)-se como “caminho(s)” por meio do(s) qual(is) temos acesso à referência, objeto de mundo, extralinguístico, sobre a qual será emitido um juízo de valor - verdadeiro ou falso. Para emitir esse juízo de valor, por sua vez, há que se inspecionar os “fatos” no mundo, para que, então, uma “verdade” possa ser apreendida. Sob esse viés lógico-semântico, a verdade não está, pois, na linguagem, mas no mundo, local para onde devemos nos voltar caso queiramos “checar” as condições de verdade relacionadas à determinada referência.

Trazendo para esta discussão o exemplo clássico de Frege acerca da relação entre sinal, sentido e referência, vamos à “Estrela da tarde” e à “Estrela da manhã”. Duas expressões nominais – sinais- que carregam consigo duas distintas formas de apresentação do objeto, ou seja, diferentes sentidos, os quais apontam para um mesmo referente, para um mesmo objeto no mundo: o planeta Vênus.

Indo ao “mundo” para checar a condição de verdade dessa referência, até o presente momento, não se pode negar a existência de um planeta denominado “Vênus”, logo, por meio dessas duas expressões nominais, chegamos a uma “verdade” de mundo.

Assim, podemos admitir que a referência de “Estrela da tarde” e de “Estrela da manhã” é a mesma, o objeto Vênus, mas os sentidos relacionados a essa referência são distintos. Dessa maneira, segundo o viés semântico formal, aprendemos algo “novo” sobre o “real”, já que, por meio de duas formas distintas de apresentação de um objeto, tivemos acesso a uma mesma referência, a uma mesma “coisa” no mundo: a primeira luz no céu que aparece pela manhã e a primeira luz que aparece ao entardecer correspondem igualmente a Vênus.

Se, por outro lado, lidamos com a sentença “O unicórnio é azul”, atribuiremos a ela um valor de verdade indeterminado, já que não há no mundo objeto que represente o sintagma nominal “o unicórnio”. A esse sinal corresponde um sentido, mas não há referência a ele relacionada. Logo, não podemos ter acesso à “verdade” a partir de um nome sem referência. A partir da linguagem sem sua correspondência no “real”.

Assim, a referência, para Frege e sua perspectiva lógica de compreensão das línguas naturais, pode ser esquematizada conforme proposta abaixo:

3 Conforme admitido por Frege na citação acima. O “problema” das línguas naturais: há mais “sentidos” em um

sinal do que o estudo lógico da linguagem pode predizer. Isso levaria à pressuposição da existência de algo que “não existe”.

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Referente (objeto/mundo) I. REFERÊNCIA

Relação de apontamento

Esquema 1: A referência em Frege (1978)

Φ (não há referência)

II. Todo SINAL tem um SENTIDO

objeto (há referência)

Esquema 2: A inspeção da “verdade” no mundo: relação entre sinal, sentido e referência em Frege (1978)

Já o esquema abaixo coloca em relação as categorias sentido e referência de Frege, relevantes, acreditamos, para a compreensão dos caminhos percorridos pelos estudos linguísticos acerca da significação dos nomes.

Esquema 3: Categorias-chave de Frege (1978) para a Semântica Formal

Ao sinal e sentido de Frege podemos tentar fazer uma aproximação, respectivamente, às categorias saussurianas (2004) significante e significado, elucidando, todavia, as diferentes perspectivas de cada um dos pesquisadores para lidar com a relação entre essas categorias. Em Frege, sinal e sentido comportam uma relação referencial, já que a língua designa algo exterior e ela, o referente, alvo da relação de referência, e é a existência desse objeto no mundo que conferirá o estatuto de verdade a um nome ou a uma sentença. Já em Saussure, não há entre significante e significado uma relação referencial, uma vez que se constrói a partir dessas categorias a noção de valor, obtida dentro do sistema linguístico, por meio de relações

SENTIDO  REFERÊNCIA (objeto de mundo)  JUÍZO DE VALOR (inspeção no mundo)

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opositivas entre signos, os quais, para o pesquisador genebrino, são arbitrários. Sob essa perspectiva estruturalista, a língua não coincide nem com as coisas do mundo, nem com as coisas do pensamento. É a autonomia da língua.

A distinção entre o que é linguístico e extralinguístico apresenta-se clara não somente na semântica formal ou no estruturalismo saussuriano, mas também em Jakobson (2005), quando, ao propor a função referencial- ou denotativa- da linguagem, o pesquisador sugere que a língua pode designar algo externo a ela mesma: “Para ser eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere, apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização (ibid., p. 82)”.

O linguista russo observa, ainda, o “pendor” da linguagem para o referente, “uma orientação para o CONTEXTO- em suma, a chamada função REFERENCIAL, ‘denotativa’, ‘cognitiva’.”(ibid, p. 82)

Nesse sentido, a utilização, por vieses diversos dos estudos linguísticos, de termos como “designa” e “denota” aponta necessariamente para uma relação com a referência, do que podemos depreender, portanto, que, sob esses vieses, há uma preocupação com a verdade4. Sob essas perspectivas de estudo, chamadas referencialistas, é possível fazer corresponder às coisas do mundo a linguagem. Dessa forma, haveria uma “verdade”, “alcançável” pela língua.

Se à referência de Frege, cujo alvo é o referente, objeto de mundo, corresponde um sentido, ou seja, um modo de apresentação do objeto, materializado linguisticamente por um sinal, a representação que cada indivíduo faz dessa referência não interessa a seus estudos, uma vez que se trata de algo subjetivo, individual, que emerge das experiências sensíveis de cada um.

O sentido na semântica formal fregeana, portanto, não passa pelo sujeito. Tem estatuto coletivo, visto que não depende nem do espaço do subjetivo, nem do objetivo: é coletivamente compartilhado:

A representação5 é subjetiva: a representação de um homem não é a mesma de outro.

Disto resulta uma variedade de diferenças nas representações associadas ao mesmo sentido. [...] A representação, por tal razão, difere essencialmente do sentido de um sinal, o qual pode ser a propriedade comum de muitos, e, portanto, não é uma parte ou modo da mente individual; pois dificilmente se poderá negar que a humanidade

4 Conforme discutido anteriormente, a verdade, sob as perspectivas referencialistas de linguagem, deve ser

investigada no “real”, no mundo, a partir da verificação da existência do objeto [de mundo] designado pela língua.

5 Grifo nosso. A utilização da palavra “representação” em Frege para designar algo tão essencialmente diverso

daquilo que ele propõe é inadequada, conforme versa Alcoforado, editor da obra fregeana “Lógica e Filosofia da Linguagem”, em sua edição de 1978.

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possui um tesouro comum de pensamentos, que é transmitido de uma geração para outra. (FREGE, 1978, p. 65)

Pelas representações, que se encontram no campo das subjetividades, devem se interessar os estudos voltados à compreensão das conotações, pelas quais perpassa necessariamente um sujeito, ou os estudos de estilística, que se ocupam da investigação da utilização particular da língua. À semântica formal interessa a “verdade” de mundo, “acessível” pela inspeção da correspondência entre este e a língua.

Afastando-se tanto do viés semântico lógico-formal de Frege, que pressupõe que a experiência do indivíduo com o mundo seria de caráter representacional, em que a linguagem funcionaria como “ferramenta” para o “alcance” dos objetos de mundo, quanto da ideia máxima de Saussure, a língua como sistema autônomo, que pode ser estudado em si mesmo e por si mesmo (MARCUSCHI & SALOMÃO, 2005), a perspectiva cognitivista, de fundamental entendimento para o estudo aqui empreendido, compreende a experiência dos indivíduos com o mundo como uma relação de natureza sensível.

Partindo, inicialmente, de uma perspectiva cognitiva clássica, (pre)ocupada com os aspectos internos, mentais, individuais, inatos e universais do processamento linguístico, para chegar à sociocognição, que compreende que “o processamento [linguístico] é altamente situado e sensível ao contexto sócio-histórico, bem como à situação imediata em que os eventos verbais acontecem” (KOCH & CUNHA-LIMA; 2005, p. 255), acreditamos na língua como atividade, não desprendida de um indivíduo e de sua forma de ser e estar no mundo, nem de um “real”, de um “universo” em que somos e estamos.

Trataremos a partir deste momento não de objetos de mundo, mas de discurso. Em um primeiro momento, discutiremos a noção de objetos de discurso sob a perspectiva da semântica enunciativa, herdeira do estruturalismo saussuriano. Sob esse viés, por meio da língua não alcançamos o mundo, conforme propuseram os estudos lógico-formais, mas sim a própria linguagem, que contém sua espessura intrínseca. Em seguida, traremos os objetos de discurso da maneira como os concebem os estudos cognitivos, para chegar, finalmente, à ideia cara a este trabalho: a de que esses objetos não preexistem naturalmente, acreditamos, à atividade cognitiva de um indivíduo situado sócio-historicamente, ou preexistem, mas não como objetos de mundo.

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Diferentemente de Frege, Oswald Ducrot, nos estudos da enunciação, trabalha sob uma perspectiva não referencialista de linguagem. O autor (1979) defende a ideia de que o referente é indizível, já que não é possível dizer do objeto em si [tal e qual se apresenta no mundo], é possível, sim, dizer do objeto de discurso, já que o que é externo à linguagem não pode definir o sentido nas línguas naturais.

Para Ducrot, conforme observa Pires (2012), a Semântica Formal cai na ilusão criada pela própria linguagem de que ela se referiria a algo externo a ela mesma, quando, na verdade, ela nada mais é do que um jogo argumentativo enredado em si próprio. Portanto, ainda que seja veiculada alguma informação por meio de um enunciado, essa informação é derivada do movimento argumentativo dentro da própria língua, e não estabelecida a priori.

Também na Semântica Enunciativa, em seu texto “Da subjetividade na linguagem”,

Émile Benveniste (2005) propõe que a significação de um enunciado deva necessariamente passar pelo sujeito, indivíduo que coloca em funcionamento o sistema da língua que, antes da enunciação, seria apenas uma possibilidade. A enunciação, para o autor, seria, portanto, um ato individual de apropriação da língua. Ducrot, por sua vez, concebe a enunciação como sendo um acontecimento histórico de aparição do enunciado, não reclamando, pois, um sujeito para a significação.

Assim sendo, para a Semântica Enunciativa ducrotiana, os objetos de discurso são concebidos nas e pelas cadeias linguísticas, e seus sentidos são resultantes de suas respectivas e variadas aparições em enunciados diversos. Já o sujeito, em Ducrot, é materialidade empírica6,

e não interessa à Linguística, já que não interfere na significação, a qual, por sua vez, é concebida dentro do “sistema” da língua.

De maneira análoga, os objetos de discurso, em Ducrot, tampouco teriam o estatuto de materialidades empíricas (cuja existência não é negada pelo pesquisador: há um “real”). Uma vez que algo é dito das coisas e estados de coisas do mundo, eles passam a pertencer a uma realidade linguística, discursiva. Assim, um objeto de discurso será tudo aquilo que é dito sobre ele no universo discursivo. Afinal, não há verdades apriorísticas, há um jogo argumentativo dentro da língua. Não falamos sobre o mundo, mas para constituir o mundo e convencer nosso interlocutor da nossa verdade.

6 Ficando nas dicotomias, pensemos o empirismo como forma de conhecimento “pelo corpo”, tradicionalmente

antagônica ao racionalismo, forma de conhecimento que se dá “pela mente”. Materialidade empírica, o “referente” de Frege, por seu estatuto “corpóreo”, “de mundo”, não interessa ao recorte feito por Ducrot para o estudo da significação. O que resulta da experiência corpórea, sensível, não define o sentido, essencialmente linguístico.

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Buscando exemplificar a concepção ducrotiana de objetos de discurso, Resende (2016) faz uma breve análise do modo como é (re)construída a referência “capitães da areia”, a partir da obra de mesmo nome do escritor baiano Jorge Amado. Vejamos os fragmentos da obra selecionados pela autora para ilustrar a discussão acerca das categorias de Ducrot:

Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido notícias sobre a atividade criminosa dos Capitães da Areia, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia não foi localizada. [...] Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a cem crianças das mais diversas idades, indo desde os oito aos dezesseis anos. (2009, p. 9)

[Nota da redação do Jornal da Tarde]

Tendo chegado ao conhecimento do dr. chefe de polícia a local publicada ontem na segunda edição deste jornal sobre as atividades dos Capitães da Areia, bando de crianças delinquentes, e o assalto levado a efeito por este mesmo bando na residência do comendador José Ferreira, o dr. chefe de polícia se apressa a comunicar à direção deste jornal que a solução do problema compete antes ao juiz de menores que à polícia. [...] (2009, p.13)

[Carta do Secretário Chefe de Polícia à redação do Jornal da Tarde] Folheando, num dos raros momentos de lazer que me deixam as múltiplas e variadas preocupações do meu espinhoso cargo, o vosso brilhante vespertino, tomei conhecimento de uma epístola do infatigável dr. chefe de polícia do estado, na qual dizia dos motivos por que a polícia não pudera até a data presente intensificar a meritória campanha contra os menores delinquentes que infestam a nossa urbe. (2009, p. 14)

[Carta do Dr. Juiz de Menores à redação do Jornal da Tarde]

Desculpe os erros e a letra pois não sou costumeira nestas coisas de escrever e se hoje venho a vossa presença é para botar os pingos nos ii. Vi uma notícia sobre os furtos dos Capitães da Areia e logo depois veio a polícia e disse que ia perseguir eles e então o doutor dos menores veio com uma conversa dizendo que era uma pena que eles não emendavam-no reformatório para onde ele mandava os pobres. [...] (2009, p. 16) [Carta de uma mãe, costureira, à redação do Jornal da Tarde]

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Embora todas as expressões sublinhadas apontem para um mesmo referente, qual seja, o grupo de menores de idade abandonados que, para sobreviverem, praticam crimes diversos na Bahia7, a maneira como cada um dos enunciados se apresenta remete à enunciação, isto é,

ao acontecimento histórico de aparição dos enunciados, assinados por diferentes locutores que colocam em evidência pontos de vista em relação ao objeto que, sob um olhar não muito atento, poderiam ser interpretados como meras descrições daqueles sobre quem se diz: os Capitães da Areia8.

Oswald Ducrot não negaria a fatídica existência – ficcional - no mundo do grupo de meninos abandonados, ele argumentaria, em contrapartida, que não interessa à Linguística o objeto em si, em sua materialidade empírica, dado que, a partir do momento em que algo é dito desse objeto, ele é trazido para a realidade discursiva, criada nela e por ela, assim, o grupo de meninos será tudo aquilo que é dito sobre ele dentro daquele universo - o universo do discurso.

Fica evidente, desse modo, a contribuição ducrotiana para o estudo dos objetos de discurso. Sob uma perspectiva teórico-analítica que faz apontar, mais uma vez, para uma dicotomia: há o linguístico e o não linguístico, o linguista diz da significação na e pela linguagem. Uma vez mais, a língua é tratada como sistema, de maneira autônoma. Ela não diz a respeito do mundo, e não diz a respeito do sujeito. A significação, sob essa perspectiva, está “presa” às cadeias linguísticas.

1.1.3 O viés da cognição: os objetos de discurso não preexistem à atividade cognitiva de um indivíduo sócio historicamente situado

O estudo da significação pelo viés cognitivo, assim como a Semântica Enunciativa, desenvolve-se sob uma perspectiva não referencialista. O significado não é a correspondência entre o “real” e a linguagem. Ademais, a língua por si só não significa o mundo, tampouco este o faz sozinho. O(s) significado(s) são concebidos, sim, de dentro para fora, do corpo em direção

7 Sob o viés de Ducrot, a maneira como trazemos para a discussão os Capitães da Areia, por meio da expressão

referencial: “o grupo de menores de idade abandonados”, e o modo como construo a predicação: “que, para sobreviverem, praticam crimes diversos na Bahia”, não escapam à argumentação dentro das cadeias linguísticas, trata-se, afinal, de um objeto de discurso. Aliás, encontro dificuldade para propor uma expressão referencial o mais “imparcial” quanto possível para tentar elucidar um objeto em si – o objeto de mundo- dentro deste exercício de enunciação.

8 Note que trata-se, também, de um objeto de discurso. A expressão “Capitães da Areia”, em vez de “Meninos da

Areia”, “Marginais da Areia” ou “Menores infratores da Bahia”, sob a perspectiva ducrotiana, encerra em si mesma uma argumentação, de ordem lexical e semântica, que será mantida e desenvolvida no desenrolar de toda a obra.

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a seu exterior. A relação de cada indivíduo com a realidade circundante, sua atividade sensório-motora, que “dá a conhecer” o mundo, é que confere significado à língua. Logo, sob o viés cognitivista clássico, o significado não deve ser reivindicado como exclusivamente ou prioritariamente linguístico: há uma dimensão cognitiva na linguagem.

Voltando nossa atenção mais uma vez para as dicotomias que sustentam as diversas perspectivas de estudo da significação, lembrando que tanto em Frege quanto em Ducrot podemos observar uma divisão estanque entre o que é linguístico e não linguístico, nos estudos cognitivos clássicos essa separação se apresenta a partir dos pares mente e corpo, substância e forma, interior e exterior.

Nesse sentido, a noção de “representação” fregeana, epígrafe deste capítulo, e excluída do recorte proposto pela Semântica Formal, diz respeito a dimensão cognitiva da significação. Essa dimensão do sentido descartada por Frege toca a relação entre o indivíduo- mente e corpo- e seu exterior: “minha representação é uma imagem interna, emersa das lembranças de impressões sensíveis passadas e das atividades, internas e externas, que realizei” (FREGE, 1978, p. 64– grifos nossos). Há, nesse dizer, uma remissão às formas de cognição “linguagem” e “memória”.

Para dar conta do pressuposto de que é nossa relação com o mundo- interior/ exterior- que confere significado às formas linguísticas, Lakoff e Johnson (1980), importantes expoente da Semântica Cognitiva, e seu “realismo experiencialista” (PIRES, 2012, p. 41), propõe as noções de caminho e recipiente para demonstrar como a significação pela linguagem se dá a partir de esquemas imagéticos, os quais, por sua vez, são produzidos mentalmente por meio do contato do indivíduo com seu entorno, e, consequentemente, de sua ação sobre ele.

Esses modelos de esquemas mentais, conforme propostos por Lakoff e Johnson (1980), estendem sua significação linguística via metáfora9, já que é preciso considerar que essa significação não parte apenas da internalização do contato corpóreo direto do indivíduo com o mundo, mas também da aplicação indireta dessa experiência a outros domínios. Em nossa relação sensório-motora com o mundo, pois, experimentamos, diretamente, e em uma primeira instância, as noções de espaço, e, por extensão, as de tempo, e essa experiência organiza e determina a significação pela linguagem, mesmo quando a atribuição de sentido foge à prática

9 Pires (2012) ressalta a importância da distinção entre a metáfora conforme trabalhada pela Semântica Cognitiva,

e a metáfora como aprendemos na escola. A metáfora “Maria é uma leoa quando se trata dos filhos” seria, para a Semântica Cognitiva, uma metáfora linguística, enquanto que a metáfora que estende –indiretamente- para os domínios mais diversos a significação é uma metáfora conceitual.

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física, e se dá por meio da abstração metafórica. Essa noção de esquemas mentais, juntamente com as categorias de nível básico, são princípios fundamentais para a Semântica Cognitiva.

Para os estudos cognitivos clássicos, as categorias são interpretações de percepções provenientes da abstração da experiência sensível e singular de um indivíduo, e têm, portanto, natureza mental. O pressuposto da Semântica Formal de que categorizamos a partir da observação de propriedades necessárias e suficientes para que um elemento pertença a um conceito é recusada pelos cognitivistas com o argumento de que, se categorizamos dessa maneira, implica-se, então, que todos os membros de determinada categoria tenham o mesmo valor dentro desse conceito, e não é isso que pode ser observado na prática. Para ilustrar essa crítica à categorização pelo viés formalista de significação, pensemos nas propriedades necessárias e suficientes para que um elemento pertença à categoria “mulher”, ou melhor, à categoria “mãe”. Essas propriedades se manteriam para todos os povos e culturas? Seriam as mesmas nas tradições orientais e ocidentais?

Para, então, explicar o fenômeno da categorização, a Semântica Cognitiva recorre à noção de protótipos, que seria o significado mais genérico atribuído a um conceito e que será aplicado aos outros membros dessa categoria. Esse significado “mais genérico”- um “exemplo”- é concebido na e pela experiência sensível e singular de um indivíduo, e não pela observação de atributos necessários e suficientes (universais?).

As noções “categorias” e “protótipos” são fundamentais a este estudo, e serão menos brevemente discutidas e problematizadas no capítulo seguinte. Retomemos a relação linguagem- indivíduo- mente- corpo.

Diante de tudo o que fora exposto até este momento, Koch e Cunha-Lima (2005, p. 278) versam que “para o cognitivismo [clássico] interessa explicar como os conhecimentos que um indivíduo possui estão estruturados em sua mente e como eles são acionados para resolver problemas postos pelo ambiente”. Desse modo, o “exterior”, que compreende a cultura em que um indivíduo está imerso, seria analisado como uma representação mental, trazido, retido e acionado por uma cognição individual. Assim sendo, continuam as autoras, “a cultura é subsidiária e dependente do conjunto de mentes que a compõem, um fenômeno em geral passivo, sobre o qual as mentes agem” (ibid., 2005, p. 278).

Nesse primeiro fôlego dos estudos cognitivos na busca pela compreensão da significação, a cognição ocupa-se, portanto, conforme observa Paveau (2013), da “cabeça” do indivíduo: na Semântica Cognitiva, por meio dos esquemas imagéticos e das categorias de nível básico, é “mapeada” a significação na mente do indivíduo. Ora excluídos pelo olhar objetivista de Frege, aspectos do processamento linguístico individual, inato e universal despertam o

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interesse de pesquisadores, os quais, influenciados pelo modelo intelectual cartesiano10 e por

uma tradição logocêntrica, isto é, voltada para a razão, para a mente, debruçam-se sobre os estudos da mente enquanto representação simbólica e dos processos mentais como manipulação desses símbolos. Dessa maneira, o método matemático poderia ser utilizado para lidar com essas operações simbólicas.

Todavia, o caráter universal conferido aos aspectos do processamento linguístico individual fez com que, conforme mencionado anteriormente, a cultura - “exterior”- fosse um “elemento” passivo internalizado pelo indivíduo, sem, contudo, exercer seu efeito sobre o atividade simbólica desses indivíduos.

No que concerne à dimensão social da linguagem, não contemplada de maneira verdadeiramente “ativa” pelo recorte dos estudos cognitivos clássicos, Koch e Cunha Lima (2005) ressaltam que

embora algumas das capacidades cognitivas que mais interessavam aos cientistas cognitivos clássicos tivessem uma dimensão social óbvia, como é evidente na questão da linguagem; e, por outro lado, embora a linguagem tivesse, também de maneira evidente, uma dimensão cognitiva, os aspectos sociais e cognitivos da linguagem foram, muitas vezes, colocados em lados opostos, numa disputa bastante acirrada (KOCH; CUNHA LIMA, 2005, p. 253).

O trabalho com dicotomias, evidenciado no percurso histórico dos estudos da significação aqui empreendido, implica que sejam estabelecidos limites entre um e outro domínio: é necessário definir o que “de língua” e o que é “de mundo”, o que é “da mente” e o que é “do corpo”, o que é “interno” e o que é “externo”. Contudo, não tem sido tarefa fácil para os linguistas determinar limites e fronteiras para esses domínios, e buscar fazê-lo, muitas vezes, pode acarretar a negligência de aspectos relevantes para a compreensão da relação tão complexa quanto imbricada entre homem, linguagem e sociedade.

Assim sendo, é válido ressaltar que, conforme apontam Koch e Cunha Lima (2005), há fenômenos cognitivos que não podem ser adequadamente ou satisfatoriamente descritos unicamente por uma perspectiva interna, já que há aspectos da cognição humana que não se realizam no indivíduo, mas “fora” dele: socialmente, culturalmente, na e pela interação.

10 A dúvida de René Descartes (2001), que o levou à constatação da existência de uma substância

fundamentalmente unida a uma forma, mas independente dela: “penso, logo existo” ou “penso, logo sou”, orienta a pesquisa científica nas mais diversas áreas do conhecimento nas sociedades modernas, e fundamenta as bases da primazia da razão, cujo impacto pode ser sentido, até os dias atuais, nas ditas metodologias de ensino de crianças e adolescentes na educação básica, e mesmo na atribuição cultural de valores às disciplinas das diferenças área do conhecimento: as “humanas”, as “biológicas” e as “exatas”.

(28)

Fica claro, portanto, o lugar teórico a partir do qual desejamos empreender o estudo acerca da construção discursiva da “mulher” em textos retirados de blogs feministas. Trabalharemos, pois, com as categorizações e as anáforas, estratégias referenciais, sob uma perspectiva de referenciação enquanto processo (MARCUSCHI, 2008), afinal, quando a compreendemos dessa forma - processual, dinâmica- lidaremos com os chamados aspectos linguísticos e extralinguísticos não de modo a estabelecer o limite daquele e o início deste, como se fossem domínios independentes e estanques, mas de maneira a enxergá-los como complementares, ou melhor, constitutivos um do outro.

É essa “ruptura” com um olhar dicotômico, acreditamos, que pode ser considerada como sendo o “pulo do gato” dos estudos da cognição situada. Deixamos de lado, por meio dessa quebra, o olhar voltado para a correspondência entre as coisas e estados de coisas no mundo e as palavras, e também o olhar que privilegia a “mente” individual, e passamos, pois, a trabalhar com a referenciação como sendo o processo de construção de objetos cognitivos e discursivos por meio da negociação intersubjetiva, da perspectivação, da modificação e da ratificação de concepções públicas e individuais do mundo (MONDADA; DUBOIS, 2016).

Não há, afinal, objetos de discurso fora da atividade cognitiva de um indivíduo, imerso em uma cultura, em determinado espaço e tempo, isto é, não há construção discursiva independente de um sujeito sócio histórico.

1.2 É preciso organizar o “real”, nominando-o: a categorização

“[...] Somos educados, treinados para perguntar: ‘Como se

chama isso?’- ao que se segue a denominação. E há também um jogo de linguagem: encontrar um nome para algo. Portanto, dizer: ‘Isto se chama...’, e então empregar o novo nome. (Assim as crianças denominam, por exemplo, suas bonecas e falam então delas, e para elas [...]).” (WITTGENSTEIN, L., 1999, p.

37 – grifos nossos).

Neste segundo tópico, empreenderemos uma discussão acerca do fenômeno da categorização. Partindo da ideia objetivista de que categorizamos por meio da observação de propriedades necessárias e suficientes para que, então, um elemento seja “enquadrado” em determinada classe, passando pela concepção experiencialista de categorização por protótipos, de natureza mental, em que o significado mais genérico é aplicado aos membros de uma categoria, o texto que segue pretende trazer à tona uma problemática recorrente nos estudos filosóficos e linguísticos: a atribuição de nomes às coisas e estados de coisas no mundo e sua relação com o “real”, com o social e com o indivíduo- corpo e mente.

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Categorizar, acreditamos, não diz a respeito de operar com variantes discretas: é ou não é, de acordo com critérios mentais, abstratos, para o enquadre dos elementos da “realidade” com os quais interagimos. Categorizar é organizar, desorganizar e reorganizar o mundo a partir da maneira como somos e estamos nele: trazemos à existência categorias ao mesmo tempo em que somos também cognitivamente organizados e re-organizados por elas. Não nos interessa, pois, neste trabalho, o “sim” ou o “não” conferido a um elemento em eventual exame de pertencimento a uma categoria, interessam-nos os processos linguísticos e cognitivos que fazem com que o objeto discursivo mulher seja re-categorizado como “mana”, “esposa”, “dona de casa”, “companheira”, “irmã”, “mãe”.

1.2.1 O salto teórico no estudo da categorização: a noção de protótipo

Conforme brevemente discutido no tópico 1.1.3 deste trabalho, a noção de esquemas mentais juntamente com as categorias de nível básico são princípios fundamentais para a Semântica Cognitiva. Aqueles dizem respeito à atribuição de sentido na linguagem a partir das práticas sensório-motoras individuais, as quais permitem abstrações individuais “modelares” que, estendidas por metáforas conceituais, subjazem a língua e sua significação. Sob esse viés, o significado estaria no “corpo”, uma vez que a materialidade linguística seria a superfície de conceitos adquiridos por meio da interação de um indivíduo com seu entorno.

Esse modelo, no entanto, aponta para a subjetividade e para a universalidade na produção de esquemas cognitivos de interação com o mundo pela linguagem. Além de estar focada na mente individual, a cognição clássica lida com o “exterior” como elemento passivo, apre(e)ndido pelo sujeito em suas práticas, sem, contudo, conceber que esses elementos, ora “fora” do indivíduo e tratados de maneira estanque, são fundamentais para a “configuração” da mente e fazem sentir seus efeitos na produção de sentido realizada por diferentes atores sociais, situados de modo semelhante ou diverso em um mesmo e em diferentes espaços e tempos. Existem, afinal, processos cognitivos que acontecem na sociedade e não exclusivamente no indivíduo.

As categorias de nível básico, por sua vez, dizem respeito ao fenômeno da categorização. Categorizar é, a partir da interação com as coisas e estados de coisas no mundo, nomear, conceituar. É necessário, afinal, atribuir nomes para, então, re-conhecer, para organizar, para manipular, para ordenar, para falar sobre, para falar

de11:

11 Pensemos o trabalho de um taxonomista de vegetais. Para que as ciências biológicas consigam trazer para seu

escopo uma “nova” espécie de planta encontrada em condições adversas de sobrevivência, é preciso que o taxonomista consiga atribuir um nome a esse vegetal até então desconhecido. Para tanto, ele confronta

(30)

“categorização e categorias são os elementos fundamentais [...] de nossa organização da experiência. Sem elas, isto é, sem essa capacidade de transpor entidades individuais (tanto concretas como abstratas) para chegar a uma estruturação conceitual, ‘o ambiente percebido será (...) caótico e para sempre novo’ (E. Cauzinille-Marmèche, D. Dubois e J. Mathieu, 1988)” (KLEIBER, 1990, p. 13)

Conhecer e sistematizar o(s) processo(s) por meio do qual os indivíduos categorizam, no entanto, não tem sido tarefa fácil.

Os estudos semânticos formais definem determinados conceitos a partir de suas propriedades ou características inerentes- por intensão- e por meio de exemplos- por extensão. Um exemplar de uma categoria, nessa perspectiva, deve compartilhar com os demais membros incluídos no conceito em que foi alocado propriedades necessárias e suficientes para o enquadre nessa categoria. Assim sendo, recorrendo a esses exemplos no mundo, verificaremos que todos os membros desse grupo compartilham determinadas características.

No sentido de auxiliar a compreensão da crítica a esse viés formalista de concepção do fenômeno da categorização, pensemos as propriedades fundamentais, ou seja, a intensão, para que um elemento seja categorizado como “esposa” nas sociedades ocidentais e nas sociedades orientais. Árduo exercício será esse, especialmente se considerarmos que essas propriedades ditas “fundamentais” podem divergir a depender do recorte que se faz dentro de uma ou outra sociedade. As propriedades necessárias e suficientes à “esposa” nos dois universos, por sua vez, podem divergir sobremaneira.

Um exercício de análise por extensão, em que, por meio de exemplares “no mundo”- a referência, elencaríamos e sistematizaríamos as propriedades compartilhadas por todos esses membros da categoria “esposa”, sob diferentes condições sócio históricas, tampouco seria mais profícuo que a tentativa feita anteriormente. Os processos cognitivos e discursivos constituintes do fenômeno da categorização estão intimamente e inevitavelmente relacionados aos diferentes contextos sócio históricos. A categorização não se explica unicamente pelo exame de exemplares a-temporais e a-espaciais de determinada categoria, ou pela análise de suas propriedades, tampouco esse fenômeno pode ser explicado somente mediante análise da mente “recortada” –abstrata, universal- de um indivíduo atemporal e espacialmente deslocado.

Para dar conta da problemática instaurada em relação à proposta formalista para o estudo do fenômeno da categorização, a noção de protótipo coloca-se como um salto teórico na investigação desse fenômeno sob o viés cognitivista. Dedicamo-nos, a partir deste momento, à

características as mais diversas entre essa planta e outras plantas já “conhecidas”. São conhecidas porque a elas fora atribuído um nome. E é a partir da alocação do “novo” vegetal em determinada categoria que se tem a sensação de poder lidar com ele: o “conhecimento” está, de forma imanente, relacionado à atribuição de nomes.

(31)

exposição e discussão do teoria do protótipo da maneira como colocada por Kleiber (1990), além da apresentação da contribuição de Wittgenstein acerca desse tópico através da ideia de “semelhanças de família”, no sentido de reforçar o pressuposto sobre o qual repousam as análises desenvolvidas neste trabalho: o de que categorizar não é trabalhar com a análise de semas que devem ser incluídos ou excluídos para o “enquadre” de determinado elemento em uma categoria, mas sim, acreditamos, trabalhar sob um “contínuo” em que os traços sêmicos de um elemento se aproximam ou se afastam de determinado conceito, cujo membro mais emblemático é eleito por uma cognição individual cuja concepção é dinamicamente estruturada, modelada, situada sócio historicamente.

1.2.2 Kleiber, Wittgenstein e o afastamento da proposta de análise discreta dos traços sêmicos definidores de uma categoria

Tomando as contribuições de Kleiber (1990) e Wittgenstein (1975) acerca do estudo da maneira como categorizamos, chegamos, respectivamente, à noção de protótipo e à de semelhanças de família. Esses conceitos são sobremaneira importantes para embasar e fazer compreender o viés teórico e analítico desta pesquisa sobre a construção do objeto discursivo mulher em textos retirados de blogs.

Acreditamos, pois, que trabalhar com a proposta teórica formalista de propriedades necessárias e suficientes a um elemento para que ele pertença a uma categoria, e com o inevitável “sim” ou “não” como resposta à análise de pertencimento desse elemento nos leva, mais uma vez, a conceber fenômenos complexos de forma dicotômica, o que implica perda analítica, já que, sob esse viés, todos os traços sêmicos correspondentes a uma categoria teriam o mesmo valor e importância para defini-la, e os limites entre uma e outra categoria estariam claramente explicitados. Uma observação das práticas discursivas ordinárias dos atores sociais nos leva a ponderar que os traços sêmicos que definem uma categoria podem não ter o mesmo valor para essa definição, e os limites entre as categorias podem não estar tão nítidos assim.

Dedicamo-nos, a partir deste momento, à apresentação e à discussão da teoria dos protótipos da maneira como discutida por Georges Kleiber (1990), para, em seguida, tratarmos da noção de semelhança de família, contribuição wittgensteiniana.

Principiaremos explicitando as implicações da proposta formalista de propriedades necessárias e suficientes para a categorização de um objeto. São quatro as implicações levantadas por Kleiber (1990):

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