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Relacionada à ideia de anáfora está a ideia de repetição, retomada ou reativação contextual de referentes. Lançando mão de estratégias anafóricas, os sujeitos produzem textos não repetitivos, concisos, que progridem na e para a construção dos sentidos intencionados. Lancemo-nos a essa primeira concepção de anáfora: estratégia referencial de reativação de referentes cujo contexto linguístico imediato é suficiente para a significação- as anáforas diretas, doravante AD.

Marcuschi (2015) problematiza a noção clássica do termo “anáfora”, conforme tomada pelos estudos retóricos: “repetição de uma expressão ou de um sintagma no início de uma frase” (p. 54) 19, apontando uma outra noção desse conceito, também passível de problematização, aquela que concebe a estratégia como sendo “um processo de reativação de referentes prévios” (ibid., p. 55 – grifos do autor). Ora, essa última concepção de anáfora, pondera o autor, não dá conta da complexidade dos processos cognitivo-discursivos envolvidos na significação de retomadas anafóricas em que não é possível observar uma congruência morfossintática entre o elemento anafórico e seu antecedente ou cujo sentido não emerge das relações contextuais situadas no âmbito linguístico.

Procedamos, neste primeiro momento, à apresentação e discussão da concepção de anáfora como “processo de reativação de referentes prévios", para em seguida, elucidar suas limitações.

Essa concepção clássica de “anáfora” é linear e implica uma relação correferencial e direta entre o elemento anafórico e o antecedente por ele reativado- ou retomado. A relação entre o elemento anaforizado e o elemento anaforizante pode se dar por meio de pronomes ou por meio de nomes, respectivamente, as anáforas pronominais e as anáforas nominais. Vejamos a contribuição de Milner (2003) na explicitação dessas relações:

Há relação de anáfora entre duas unidades A e B quando a interpretação de B depende crucialmente da existência de A, a ponto de se poder dizer que a unidade B só é interpretável a medida em que ela retoma –inteira ou parcialmente- A. Esta relação existe quando B é um pronome cuja referência virtual20 só se estabelece pela

interpretação de um N’’ que o pronome “repete”, ela existe igualmente quando B e um N’’ cujo traço definido- ou seja, o traço identificável do referente- depende

19 Vale pontuar que essa noção é utilizada até os dias atuais no ensino de língua e literaturas em língua materna na

educação básica para tratar da repetição intencional, para produzir determinado efeito de sentido, de conjunções, nomes, grupos nominais ou frases inteiras, especialmente em textos do domínio literário.

20 Para Milner (2016, p. 86), “o segmento da realidade associado a uma sequência é sua referência real; o conjunto

exclusivamente da ocorrência, no contexto, de um certo N’’- na verdade, geralmente, o mesmo do ponto de vista lexical (MILNER, 2003, p. 94).

Com o intuito de explicar a partir de uma breve análise as palavras de Milner, segue fragmento (1) abaixo, retirado do blog “Blogueiras Negras”21:

Podemos observar nesse fragmento que o pronome de terceira pessoa “ela” reativa o nome anteriormente mencionado “Angela Davis”. A interpretação de “ela”, vale observar, só é possível por conta da existência da referência nominal “Angela Davis”, pois os pronomes, por seu estatuto mesmo- enunciativo, não apontam para uma referência virtual, recebendo, pois, a referência do nome por eles reativado.

Há, na anáfora pronominal, uma relação simétrica e direta de correferência, já que o pronome não carrega consigo significação alguma além daquela trazida pela elemento que ele anaforiza. Deste modo, produzir sentido a partir de um pronome anaforizante não requer maiores esforços cognitivos22, nem a ativação de saberes negociados intersubjetivamente, já que o referente encontra-se explícito e facilmente retomável na superfície linguístico-textual.

A anáfora pronominal, portanto, é fenômeno dêitico-textual, o que não justificaria apontarmos efeitos de sentido decorrentes do uso deste ou daquele pronome anaforizante em relação ao elemento anaforizado, uma vez que os pronomes reativam o sentido do nome que recuperam, nada mais que isso.

Partamos para o fragmento (2) abaixo, também retirado do blog “Blogueiras Negras”, para explicação das anáforas nominais:

21 Fragmento retirado do texto “Angela Davis e a sua verdade sobre o que é ser radical”. Fonte: Blogueiras Negras 22 Essa noção de esforço cognitivo remete à teoria de Sperber e Wilson (1986), para quem: (a) quanto maior o

esforço interpretativo demandado por um enunciado, tanto menos pertinente é esse enunciado; (b) quanto mais um enunciado produz efeitos, tanto menos é o esforço cognitivo. Nessa perspectiva, a compreensão parte do sentido do enunciado explícito linguisticamente no texto, mas vai além dele pela inferência, tendo como base a cognição situada.

Em maio de 2013, Angela Davis foi chamada para fazer uma fala na Universidade de Chicago para abordar sobre sistema penitenciário e relações de gênero. Pela primeira vez ela tratou da condição da mulher trans [...]

Nesses tempos, o filme “As Sufragistas”, tem ganhado visibilidade e, com isso, o debate sobre o que a película está disposta a retratar ganha como auxílio o emblemático discurso “Ain´t I a woman?” [...]

Nesse fragmento, observamos que “a película” recupera “o filme As Sufragistas”. Desta vez, o elemento anaforizado é retomado não por um pronome, mas por um outro nome: “película”. Ainda assim, a relação é direta e correferencial, já que “parece haver uma equivalência semântica e sobretudo uma identidade referencial entre a anáfora e seu antecedente” (MARCUSCHI, 2015, p. 55), o que faz com que ambas expressões nominais façam apontar para um mesmo referente: a produção cinematográfica “As Sufragistas”. Essa equivalência semântica, é necessário dizer, é diretamente interpretável pelo co-texto linguístico.

O par anafórico “o filme As Sufragistas” e “a película” possuem o mesmo estatuto morfossintático, são nomes, diferentemente da relação nome e pronome, vista no fragmento (1). Nesse sentido, vale ressaltar que, como aponta Milner (2003, p. 113), quando há homogeneidade categorial, como é o caso do fragmento (2), “a diferença do indefinido para o definido é crucial: o pivô da relação é, com efeito, que o referente do anaforizante seja tomado como identificado somente pela relação que mantém com o referente do anaforizado”. Isso significa dizer que, quando há reativação de referentes por outros nomes ou expressões nominais, é preciso que a expressão ou nome anaforizante seja introduzida/o por um artigo ou pronome definidos, já que serão esses elementos que farão com que a significação repouse na equivalência semântica referencial entre anaforizante e anaforizado.

Percebamos como a significação deixa de ser linear se substituirmos o artigo definido “a”, em “a película”, pelo artigo indefinido “uma”: “uma película”. Na leitura do texto, depararmo-nos com essa indefinição do nome “película” faz com que escape a significação a partir da coincidência referencial com a expressão “o filme As Sufragistas”.

Para fins de síntese, trazemos o esquema sugerido por Kleiber, Schnedecker e Ujma apresentado no trabalho de Marcuschi (2015, p. 57), sobre a forma de processamento das AD:

Consideremos, no esquema, que SNa e SNb correspondem, respectivamente, aos sintagmas nominais anaforizado e anaforizante (SNb também pode ser substituído por um pronome P neste exercício de síntese); enquanto Ea indica uma especificação referencial única.

Logo, as AD, sejam elas pronominais ou nominais, pressupõem uma relação correferencial entre o elemento anaforizado e o elemento anaforizante, visto que o que subjaz a significação de ambos é única e corresponde, pois, a uma mesma especificação referencial (Ea), sendo que SNa evoca essa especificação e SNb ou P a especifica. A seta contínua entre SNa e SNb (ou P) implica uma relação direta entre esses dois elementos, resguardada, no caso dos pronomes, por sua própria natureza, dêitica, nesse caso, dêitico-textual, e, no caso dos nomes, pela presença de artigos ou pronomes definidos antes do nome ou expressão nominal. E por fim, a única possibilidade referencial, Ea, é que permite dizer que trata-se de um processamento linear de referentes, afinal, não há possibilidades referenciais múltiplas e dispersas, e sim um único e específico referente, que SNa evoca. Nas palavras de Marcuschi (idem, p.54), podemos depreender do esquema apresentado:

(1) nas anáforas diretas, o referente pode ser reativado explicitamente; (2) não há alterações discursivas nem referenciais no referente;

(3) embora haja progressão referencial, o grau de elementos contextuais interpretativos é mínimo, isto é, o referente é facilmente retomado e identificado com as indicações do próprio texto.

Há, contudo, processos de compreensão anafórica em que não é possível observar congruência semântica entre o elemento anaforizado e o elemento anaforizante. É o caso, por exemplo, do dizer tão comum quanto aparentemente de simples interpretação como “fui à escola hoje pela manhã, e encontrei minha antiga professora”.

Nesse exemplo, tanto o nome anaforizado “escola” quanto o nome anaforizante “professora” evocam referentes distintos. Em que repousa, então, a relação referencial entre A (escola) e B (professora)? Fatores de que natureza atuam para que sejam postos em relação esses dois nomes e não outros? Por onde passa a compreensão de anáforas como essa?

A ideia de anáfora enquanto processo de reativação de referentes previamente introduzidos não daria conta de responder questionamentos como os que se colocam acima. Fez-se necessária, pois, uma expansão teórico-analítica da noção de retomada anafórica que pudesse contemplar na explicitação de seu processamento o que é da ordem do prévio, isto é, contemplar os processos cognitivo-discursivos que subjazem- ancoram- a negociação intersubjetiva que permite colocar em inter-relação “escola” e “professora”.

As anáforas indiretas representam, portanto, esse salto teórico, sobre o qual nos debruçaremos no tópico que se segue.

1.3.3 As anáforas indiretas: a rede de conhecimentos socialmente compartilhados e a