• Nenhum resultado encontrado

As anáforas indiretas: a rede de conhecimentos socialmente compartilhados e a

Conforme mencionado no tópico anterior, as anáforas indiretas representam um salto teórico no que diz respeito ao estudo do processamento anafórico, visto que nem todos os nomes e expressões nominais colocados em inter-relação apresentam congruência semântica e permitem, por meio de uma relação direta e linear entre o elemento anaforizado e o elemento anaforizante, chegar a um mesmo referente, a partir do qual a significação será construída.

Nesse sentido, as anáforas indiretas, doravante AI, mais complexas que as AD em termos de processamento, têm sua significação construída a partir de uma rede de conhecimentos socialmente compartilhados, “publicamente” alimentada pelo próprio discurso. Dessa maneira, as representações que operam como essa rede são em parte responsáveis pelas seleções lexicais feitas pelos interlocutores, especialmente no que diz respeito às expressões nominais (KOCH, 2015). Dizendo de outro modo, “uma vez produzidos, os conteúdos implícitos são integrados à memória discursiva juntamente com os conteúdos linguisticamente validados, sendo, por isso, suscetíveis de anaforização” (KOCH, 2015, p. 68)

Essa memória discursiva, sobre a qual Koch (2015) versa, é entendida por nós como um escopo de conhecimentos compartilhados entre sujeitos sociais históricos em determinado espaço-tempo. Nesse sentido, a noção de cognição contingenciada, de Marcuschi (2007), funda-se nesse mesmo escopo. Para o autor, essa noção diz respeito à “cognição que se dá diretamente na elaboração mental vinculada a situações concretas colaborativamente trabalhadas na interação contextualizada” (MARCUSCHI, 2007, p. 19);

Deste modo, o processamento das AI passa necessariamente pelo acordo intersubjetivo firmado entre sujeitos pertencentes a determinado tempo e espaço cultural. Acordo esse firmado, mantido e renovado junto às práticas discursivas que constroem os objetos de discurso, ao mesmo tempo em que têm seu sentido concebido junto a eles.

Não se trata, aqui, de uma relação direta e linear entre os elementos envolvidos na anaforização, mas sim de uma relação indireta entre eles, a qual aponta para referentes distintos, e que, graças a uma rede de conhecimentos socialmente compartilhados, os sujeitos- locutor e interlocutor- conseguem colocar em inter-relação. Vejamos, novamente, o esquema proposto por Kleiber, Schnedecker e Ujma apresentado no trabalho de Marcuschi (2015, p. 57), desta vez, sobre a forma de processamento das AI:

Como podemos observar no esquema, a relação referencial entre SNa e SNb, ao contrário do que acontece no processamento das AD, é indireta, o que vem assinalado pela seta pontilhada entre esses dois sintagmas no esquema. Os referentes evocados –e especificados- por SNa e SNb, por sua vez, são distintos: Ea e Eb, e não únicos conforme visto no caso das AD.

Esclareçamos, pois, o que faz com que esses SN e seus respectivos referentes (a) sejam postos em relação, ou sobre o que (b) faz com que essa relação produza sentido, ou (c) faz com que esses elementos sejam passíveis de anaforização.

Vejamos, Ea e Eb estabelecem uma relação baseada em processos discursivos e cognitivos por algum tipo de associação semântica para ser interpretado por processos inferenciais. Essa possibilidade interpretativa, conforme mencionado anteriormente, encontra- se ancorada na rede de conhecimentos socialmente compartilhados. Do que podemos admitir, conforme versa Marcuschi (2015), que não se trata, no caso das AI, de um processo de referenciação por extensão, tampouco de um processo que se dá por concatenação linear entre os elementos envolvidos na anaforização. O que configura o princípio de legível nas anaforizações indiretas é o que foi produzido, repetido, estabilizado discursivamente, de modo a fundar um “já dito” ou “já visto” que respalda a textualização anafórica.

Façamos uma breve análise do processamento das AI a partir do fragmento (3) abaixo23:

23 Fragmento retirado do texto “Piedad Córdoba: Mulher negra candidata à presidência da Colômbia”. Fonte:

Podemos observar, no fragmento acima, que “a candidata” (B) reativa o nome anteriormente mencionado “Piedad” (A) não por uma congruência semântica direta com ele, mas graças à ancoragem cognitiva proporcionada pelo sintagma nominal “as eleições colombianas”, que situa a significação nesse universo semântico. Os dois nomes, neste caso, permitem a anaforização por meio de dois aspectos, um co-textual e outro con-textual24: (1) pela utilização do artigo definido “a”, que faz com que o elemento anaforizante seja identificado somente pela relação que estabelece com o elemento anaforizado, e (2) pela ancoragem cognitivo-discursiva no contexto semântico básico decisivo para a convergência conceitual entre os referentes evocados por “Piedad” e “candidata”, qual seja “as eleições colombianas de 2018”.

Dizendo de outra forma, se não houvesse mecanismos linguísticos e cognitivos que cerceassem a produção de sentido, ele se dispersaria, e não seria mais provável que o interlocutor significasse “Piedad” e “candidata” sob a mesma especificidade referencial. Afinal, esses nomes tomados isoladamente, sem um artigo definido que coloque B em relação a um elemento previamente introduzido A, e sem a ancoragem no universo semântico de “eleições”, poderiam evocar e especificar referentes diversos. Portanto, mecanismos linguísticos e discursivos concorrem, neste exemplo, para a textualização e a construção de sentidos no fragmento apresentado.

Já a relação anafórica entre “bolivarismo” e “as esquerdas latinas” também tem sua convergência referencial estabelecida pelo uso do artigo definido “as”. Ademais, a ancoragem na rede de conhecimentos socialmente compartilhados para interpretar “bolivarismo” como umas das “esquerdas latinas” é fundamental para a produção de sentido. Nesse caso, o sintagma

24 A abordagem sociocognitiva não faz distinção entre “texto” e “contexto”. Elas são, afinal, noções constitutivas.

Aqui elas são usadas com o intuito de “simplificar” essa relação e de tentar apontar para o referente que não encontra-se explícito na materialidade linguística. Nesse caso, há uma ancoragem [na materialidade linguística] em que o leitor consegue recuperar e inferir as informações.

Piedad é um grande nome para as eleições colombianas em 2018, nas redes sociais já é possível observar todo o tipo de ofensa odiosa contra a candidata. Mesmo com pouca probabilidade devido ao processo de direitização e retrocesso que a América Latina vive, caso Piedad ganhe a eleição a relação entre Colômbia e Venezuela poderá se alterar, uma vez que a candidata apoia abertamente o bolivarismo, mesmo considerando que as esquerdas latinas foram inferiores ao momento vivido.

nominal “esquerdas latinas”, além de reativar um referente concebido no universo semântico dos movimentos esquerdistas da América do Sul, o bolivarismo, ativa, ainda, um novo referente: os demais movimentos com esse estatuto. Assim, como versa Marcuschi (2015): “A AI é uma espécie de ação remática e temática simultaneamente, uma vez que traz a informação nova e a velha, produzindo uma ‘tematização remática’” (MARCUSCHI, 2015, p. 60).

À guisa dos exemplos, trazemos a contribuição de Scharz, apontada por Marcuschi (idem), para nos auxiliar a apontar características comuns às AI:

a. a inexistência de uma expressão antecedente ou subsequente explícita para retomada, e presença de uma âncora, isto é, uma expressão ou contexto semântico base decisivo para a interpretação da AI;

b. a ausência da relação de correferência entre a âncora e a AI, dando-se apenas uma estreita relação conceitual;

c. a interpretação da AI se dá como a construção de um novo referente (ou conteúdo conceitual) e não como uma busca ou reativação de referentes prévios por parte do receptor;

d. a realização da AI se dá normalmente por elementos não pronominais, sendo menos comum sua realização pronominal.

Vimos, portanto, que as AI configuram-se como um alargamento da noção de AD. Partindo de uma relação direta, correferencial e linear entre os elementos envolvidos na anaforização, as AD não dão conta de certos questionamentos a respeito da produção de sentido nos discursos, sendo aplicável nos casos cuja reativação anafórica pressupõe congruência semântica entre elemento anaforizado e anaforizante, ou naqueles casos em que a reativação do referente anteriormente mencionado se dá sob aspectos dêitico-textuais. Assim, esse modo de processamento das AD é concebido no co-texto linguístico, não reclamando, pois, quaisquer outros mecanismos cognitivo-discursivos para produzir sentido a partir das anáforas.

As AI, por sua vez, apresentam um modo de processamento indireto, ancorado e passível de dispersão. O modo de significação a partir das AI se dá, pois, graças a um compartilhamento de conhecimentos que permite ancorar o sentido de um nome ou expressão nominal que se relaciona com um elemento anaforizado por uma certa proximidade conceitual interpretável graças a esse compartilhamento, a nível com-textual, possibilitado no e pelo discurso, a partir das práticas discursivas situadas de sujeitos cuja cognição passa necessariamente por processos de intersubjetivação e perspectivação.

Aceitar que esse escopo – ou essa rede- de conhecimentos compartilhados é concebido e constituído como alicerce de significação das atividades discursivas de sujeito situados é

assumir, portanto, seu caráter dinâmico, suscetível de (des)estabilização e (re)configuração. É nesse ponto que este trabalho toca em particular. O modo de ser e estar de um sujeito, ou melhor, de uma coletividade de sujeitos, configura o con-texto em que a significação repousará, o tecido a partir de onde esses sujeitos atribuirão sentido à realidade circundante, ao mesmo tempo em que a construirão.

Isso equivale a dizer que é possível conceber uma “disputa” discursiva de versões compartilhadas de mundo resultantes das práticas de linguagem variadas de sujeitos diversos em situação, do que decorre o nosso pressuposto: de que o lugar sócio histórico da “mulher” é tributário da forma como ela é construída discursivamente. Nesse sentido, a referenciação é a estratégia discursiva de que os sujeitos irremediavelmente se valem para a construção, desconstrução e reconstrução de identidades para a “mulher”: para a produção da rede de conhecimentos compartilhados sobre ela.

Apostamos, pois, em uma criação conjunta, sensível, compartilhada e socialmente praticada- discursivamente- das identidades femininas, da “mulher”: trata-se, afinal, de um objeto de discurso e de sua constante ratificação, retificação, enfim, de sua negociação intersubjetiva por meio dos discursos.