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O uso do artigo indefinido no processo anafórico: estratégia argumentativa

Ao apresentarmos e discutirmos as anáforas diretas e indiretas como estratégias referenciais alvo deste trabalho, vimos que, para que seja estabelecida uma relação anafórica entre um elemento anaforizado e seu anaforizante, no caso da AD nominais, é preciso que haja um traço definido que permita colocar em relação de correferencialidade dois nomes.

Assim sendo, o papel dos artigos definidos colocados antes dos nomes a serem postos em relação de remissão com o elemento anaforizado é o de linearizar o sentido, permitindo que dois nomes façam apontar para o mesmo referente, ainda que, quando tomados individualmente, possam remeter a referentes distintos.

O que podemos perceber, contudo, é que o artigo indefinido, por vezes, também é utilizado para sinalizar uma relação anafórica e não para introduzir um novo referente.

Podemos observar, no fragmento 425 acima, que a expressão nominal indefinida “um feminismo” é utilizada três vezes. Na primeira delas, a indefinição auxilia a caracterização, ou seja, a construção discursiva catafórica da vertente feminista “interseccional”, a partir da apresentação prévia desse viés feminista. As duas expressões “um feminismo” [2] e [3] que se seguem dizem respeito, respectivamente, [2] a outras vertentes feministas, que não a interseccional, e [3] à interseccionalidade.

É evidente na tessitura do texto que a expressão nominal indefinida “um feminismo” em sua terceira ocorrência no fragmento funciona como elemento anaforizante de “a interseccionalidade”, isto é, essas duas expressões nominais são correferenciais. O que justificaria, então, a utilização de um artigo indefinido para sinalizar essa anaforização e não um artigo definido?

Cunha Lima (2015) apresenta duas grandes categorias de relações semânticas estabelecidas entre o sintagma nominal indefinido e seu antecedente, quais sejam: uma relação meronímica ou uma identificação de tipo.

As ocorrências meronímicas, segundo a autora, são caracterizadas por algum tipo de relação entre elemento anaforizante e anaforizado, mas não a de retomada, como, por exemplo, a relação parte-todo. Já a identificação de tipo “parece indicar que o indefinido opera em particular como identificador de um membro de um conjunto não unitário, ou, mais precisamente, como identificador de tipo” (CUNHA LIMA, 2015, p. 200).

Koch (2001), por sua vez, enumera as principais circunstâncias em que o artigo indefinido é utilizado com função anafórica:

(i) quando se seleciona um referente no interior de um conjunto já mencionado; (ii) quando se nomeia parte de um referente previamente mencionado ou, então, conscientemente, não se especifica melhor o referente, para criar um efeito de

25 Fragmento retirado do texto “Por quais mulheres o feminismo radical luta?”. Fonte: Blogueiras Negras.

[...] Para mim, como mulher negra, a interseccionalidade não é uma alternativa à minha militância, e sim a mais próxima e melhor maneira de exercer [1] um feminismo que gosto de chamar de universal. Quando penso no conceito de universal, penso em algo que dialogue com todo tipo de indivíduo, respeitando suas particularidades e vivências. [...] entre escolher [2] um feminismo que apenas me inclui dentro de um molde hegemônico e [3] um feminismo que se propõe a abranger e priorizar a luta contra diferentes maneiras de opressão, eu fico com o segundo.

suspense, ou (iii) quando a expressão anafórica focaliza mais fortemente a informação por ela veiculada do que o prosseguimento da cadeia coesiva (KOCH, 2011, p. 83).

Trazendo a contribuição das autoras mencionadas acima para uma análise da utilização do artigo indefinido em “um feminismo”, constante no fragmento 4, este parece ir ao encontro da relação de identificação de tipo sugerida por Cunha Lima (2015), já que se trata do apontamento de um dentre tantos outros feminismos, do que é pertinente asserir que o locutor, ao lançar mão do artigo indefinido para anaforizar, o faz também como estratégia argumentativa, e não somente como estratégia de otimização de energia dispensada ao processamento textual.

No que diz respeito à utilização da indefinição para argumentar, vale ponderar, ainda, que a opção da locutora pela utilização do artigo indefinido proporciona um efeito de focalização na informação veiculada por meio da expressão indefinida, tal como versa Koch. Deste modo, a ênfase estaria na ideia de que a interseccionalidade é uma das formas de conceber e praticar o feminismo, de modo a fazer com o que o interlocutor não perca de vista essa concepção: de diversas outras formas de compreender o feminismo, a locutora prefere a interseccionalidade, por se tratar da prática de um feminismo que ela categoriza como universal.

Vimos, portanto, que, embora seja necessário um traço definido para colocar em correlação elementos envolvidos em uma anaforização, em certas circunstâncias, os locutores se valem do artigo indefinido para anaforizar. Essa opção de que os atores sociais se valem funciona como mais uma estratégia de argumentação.

A referenciação, concebida como estratégia dinâmica e criativa de nominalização de que os seres de discurso se valem para construir seus discursos, não é utilizada meramente para a produção de textos coesos, mas também- e sobremaneira- para possibilitar a produção de sentido a partir de um fio argumentativo literalmente tecido pelo locutor.

2 METODOLOGIA

Neste capítulo, apresentaremos a metodologia utilizada neste trabalho, apontando o percurso a que foi submetida nossa pesquisa. Para tanto, são necessárias (a), primeiramente, uma breve discussão acerca dos blogs, a fim de que fique clara a concepção de blog com que estamos trabalhando, e (b) uma descrição dos blogs de onde foram retirados os textos que compõem nosso corpus: o “Blog da Marcha Mundial das Mulheres” e o “Blogueiras Negras”, com o intuito de evidenciar pontos de afastamento e de aproximação entre eles em relação à estrutura das páginas, a quem escreve para esses blogs, além de outros aspectos relevantes para as análises que serão empreendidas no próximo capítulo. A seguir, discorreremos sobre a constituição do nosso corpus de trabalho, de maneira a justificar sua escolha e apontar suas características.