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O que se dá, o que se herda, o que se gera : família, política e terra entre os habitantes do vilarejo do Venâncio, Barroquinha, Ceará

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LORENA LEITE ARAGÃO

O QUE SE DÁ, O QUE SE HERDA, O QUE SE GERA: FAMÍLIA, POLÍTICA E TERRA ENTRE OS HABITANTES DO VILAREJO DO VENÂNCIO, BARROQUINHA

- CEARÁ.

CAMPINAS 2018

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O QUE SE DÁ, O QUE SE HERDA, O QUE SE GERA: FAMÍLIA, POLÍTICA E TERRA ENTRE OS HABITANTES DO VILAREJO DO VENÂNCIO, BARROQUINHA

- CEARÁ.

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Mestra em Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Dra. Nashieli Cecilia Rangel Loera

ESSE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA LORENA LEITE ARAGÃO E ORIENTADA PELA PROFA. DRA NASHIELI CECILIA RANGEL LOERA

CAMPINAS 2018

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 26 de março de 2018, considerou a candidata Lorena Leite Aragão aprovada.

Profa. Dra. Nashieli Cecilia Rangel Loera - Unicamp (orientadora)

Profa. Dra. Renata Medeiros Paoliello – Unesp (membro)

Prof. Dr. Antônio Roberto Guerreiro Júnior – Unicamp (membro)

A ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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A escrita da dissertação não foi um processo fácil. Daquilo que se recebe, muitas outras são tomadas em troca. Com o processo de construção de conhecimento, esta lógica não seria diferente. Das coisas que tive de ceder para continuar, ao longo dos dois anos de mestrado, esta jornada não teria sido suportável sem o apoio das pessoas, que, aqui irei agradecer. Esta dissertação foi escrita por muitos e muitas e é a eles e elas que este trabalho será dedicado.

Agradeço, em primeiro lugar, às divindades espirituais que me circundam, que me proveem força, que abrem os meus caminhos e que permitem a realização dos meus sonhos. Se eu não tivesse fé, dificilmente eu estaria aqui escrevendo esta dissertação. Falar de fé e proteção é falar, ao mesmo tempo, de minha família: minha mãe, Francimar, meu pai, José (em memória), minha irmã Roberta e seu esposo, Armando. A fé que eles depositam em mim ao longo do meu percurso dentro, e fora, da academia faz-me pensar que, até nos momentos mais difíceis, haverá sempre uma outra alternativa, uma rota com novos caminhos. Para a minha sorte, um novo caminho foi aberto há um ano com a chegada da nossa florzinha Laura, minha sobrinha, que veio para abrilhantar e renovar o amor e a esperança em nossa família. Agradeço ainda à parte de minha família cearense residente em São Paulo, à Andrea, Haroldo, Carol e Zenaide, por fazerem com que eu me sentisse acolhida e bem cuidada, mesmo estando em terras distantes.

A minha existência na Unicamp não teria sido possível sem o apoio que minha orientadora Nashieli me deu durante todo esse percurso. Nashieli depositou em mim, como em minha pesquisa, uma confiança inquestionável, mostrou-me que sou capaz de realizar descobertas e trilhar caminhos que até pouco tempo seriam, por mim, inimagináveis. Devo a você, Nash, carinho, respeito e admiração.

Às minhas professoras do primeiro ano de curso, Suely Kofes, Artionka Capiberibe e Bibia devo o engrandecimento teórico-metodológico adquirido no decorrer das aulas. Certamente, seus ensinamentos não serão esquecidos.

Agradeço, ainda, à banca avaliadora desta dissertação, Antônio Guerreiro e Renata Paoliello, por conferirem um outro, e aprofundado, olhar à minha pesquisa. Às suplentes Verena Sevá e Artionka Capiberibe, agradeço por se disponibilizarem tão prontamente à esta função. Aos

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Agradeço, ainda, às minhas colegas de Ceres, Elis, Lídia, Marina e Maiane por compartilharem neste grupo suas descobertas etnográficas e permitirem a nossa mútua construção intelectual. Aos funcionários do prédio do IFCH e à Márcia Goulart, agradeço por facilitarem os processos fora da sala de aula.

Agradeço, ainda, ao CNPq por garantir para a minha permanência em Campinas, na Unicamp, bem como a realização de minha pesquisa.

Das fortunas que esta vida me permite ter, as amizades que possuo são uma das mais valiosas. Em Campinas, tive a sorte de entrelaçar meu caminho aos de pessoas incríveis, amorosas e divertidas, o que garantiu, com toda certeza, que minha estada em uma nova cidade se tornasse mais leve. À amiga Ana Rabêlo agradeço todo carinho e cuidado que você tem comigo, desde os nossos primeiros dias de Barão Geraldo. À Maiara Dourado, Lígia Medeiros, Brunela Succi, Laura Luedy e Ralyana Freire agradeço o suporte emocional e as palavras sempre reconfortantes. Ao amigo Cristiano Sobroza, agradeço por ter te encontrado, que nossa amizade e afinidades e sejam infinitas. Á José Cândido agradeço por acalentar, com tanta paciência, as minhas inseguranças intelectuais.

Às amigas e amigos de Fortaleza, amizades de décadas, agradeço o imensurável carinho que vocês me dão diariamente. Em especial, agradeço à minha amiga Joana Borges, por todos os momentos alegres e tristes que passamos e vamos passar juntas: You are my person. Agradeço, ainda, às amigas de UFC, Janainna Pereira e Lara Saraiva, amigas antropólogas que a vida me permite ter. Ao meu amigo e colega de profissão, Jorge Luan, agradeço por toda solicitude conferida à minha pesquisa. Pensar o campesinato feito no e do Ceará, com você, tem uma sido uma das experiências mais prazerosas.

Agradeço, por fim, mas não menos importante, àqueles que, de fato, dão forma e sentido à minha pesquisa e, ouso a dizer, conferem substância ao meu projeto intelectual. À D. Adelaide, por nossas conversas ao pé da pia, D. Otacília, Cícero Vieira, Zé Vieira, à D. Marli e Seu Otacílio por sempre terem me recebido com cuidado e atenção. Aos herdeiros velhos e herdeiros novos e às pessoas de fora residentes no Venâncio e no sítio Capiaçú, devo gratidão por me acolherem ao longo destes oito anos de pesquisa em seus lares, entre festas, enterros,

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Não! Você não me impediu de ser feliz! Nunca jamais bateu a porta em meu nariz! Ninguém é gente! Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!

Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos! Não sou da nação dos condenados! Não sou do sertão dos ofendidos! Você sabe bem: Conheço o meu lugar! "Conheço o meu lugar - Belchior"

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mesma família, que reverberam nas relações cotidianas, nos entrelaçamentos entre família e política, bem como nos entendimentos destes elementos com a terra que habitam. Política, família e terra são noções mobilizadas nesta dissertação com o objetivo de compreender de que maneira os casamentos consanguíneos entre as pessoas do vilarejo atuam como um idioma para circulação e manutenção da terra. Ancorada nas teorias de parentesco, estas não somente da consanguinidade e da aliança, mas também naquela da relacionalidade, as relações familiares são ampliadas e percebidas em seus pormenores, em que se percebe que os laços familiares, a depender da circunstância, tornam-se laços políticos e vice-versa. Neste lugar, dificilmente encontra-se família sem política e terra sem família. Da junção dessa tríplice condição camponesa, debate este aprofundado por estudiosos brasileiros desde os anos da década de 1970, terra, família e política são aqui detalhadas e analisadas etnograficamente dentro de uma perspectiva processual, em que se privilegiam os eventos e as narrativas de vida dos sujeitos, suas reconstruções genealógicas e documentos físicos como a fonte principal de dados.

Palavras chave: Parentesco; Herança e sucessão; Regiões áridas; Brasil, Nordeste - Política e governo.

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same family, reverberating in daily relationships, in the interweaves between family and politics, as well as in the understandings of these elements with the land they inhabit. Politics, family and land are notions mobilized in this dissertation in order to understand how consanguine marriages among the people of the village act as a language for circulation and maintenance of the land. Anchored in kinship theories, not only of consaguinity and alliance, but also in that of relationality, family relations are amplified and perceived in their details, in which it is perceived that family ties, depending on the circusntance, become bonds and vice versa. In this place, it is difficult to find family without politics and land without family. From the junction of this threefold peasantry condition, this debate has been deepened by Brazilian scholars since the 1970s, land, family and politics are detailed and analyzed ethnographically within a procedural perspective, in which the events and life narratives of the subjects, their genealogical reconstructions, and physical documents as the primary source of data.

Keywords: Kinship; Inheritance and succession; Arid regions – Brazil, Northeast; Brazil,

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Imagem 1: Bodega O Louro. Na foto, Seu Otacílio e Dona Marli (fevereiro/2017)...16

Imagem 2: Casas do vilarejo (fevereiro/2017)...16

Imagem 3: Do alto das dunas ao caminho das casas (março/2013)...17

Imagem 4: Zé Vieira e o menino na bodega de Otacílio (maio/2012)...47

Lista de Mapas Mapa 1: Limites municipais de Barroquinha. Localização do Venâncio destacado em círculo vermelho...26

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Genealogia 1: 17 cabeças velhas ... 90 Genealogia 2: Fissão e fusão da herança...90

Lista de Gráficos

Gráfico 1: Ciclo de distribuição dos rendimentos do carnaubal...105

Quadro de notações

" Entre aspas" Termos externos ao contexto pesquisado: termos da autora e termos de outros autores (estes virão com referências)

Itálico Termos nativos

Imagens, Mapas e genealogias* Numerados, podendo ser consultados nos elementos pré-textuais.

*todas as imagens e genealogias são de autoria da pesquisadora.

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INTRODUÇÃO ... 14

Caracterização da Localidade ... 23

Aqui Todo Mundo É Parente ... 27

CAPÍTULO 1 – ESTÁ NO SANGUE, É DE FAMÍLIA ... 36

1.1 Causo com Dona Otacília ... 36

1.2 Fazendo família: as famílias do Venâncio ... 39

1.3 Famílias de sangue bom: sobre os pertencimentos de uns aos outros ... 45

CAPÍTULO 2 – FAMÍLIA É IGUAL POLÍTICA ... 59

2.1 O Evento com a médica cubana ... 59

2.2 Disputa e tradição – família 14 e família 12 ... 66

2.3 Fazendo política como se faz família ... 78

2.3.1. A desfamiliarização de D. Otacília ... 81

2.3.2. A familiarização de Rita ... 83

CAPÍTULO 3 – AGORA A TERRA TÁ PEQUENA PARA TANTO HERDEIRO ... 87

3.1 A distribuição dos lucros do carnaubal ... 87

3.2 Seguindo os documentos e seus rastros ... 92

3.3 Os 17 cabeças velhas e a inalienabilidade da terra ... 103

CONCLUSÃO ... 111

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 117

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INTRODUÇÃO

O trajeto entre Fortaleza e Venâncio1 é marcado gradualmente por mudanças de paisagens: a saída de um cenário urbano desgasta-se e transforma-se nas variadas imagens que compõem as praias do litoral oeste cearense. Para chegar até Venâncio, segue-se pela CE-085 (denominada estruturante litoral oeste), que tem por destinos as praias de Fleixeiras, Paracuru, Jijoca de Jericoacoara, Camocim e, por último, Barroquinha, sede do município onde se localiza o vilarejo do Venâncio. Partindo de Fortaleza até Barroquinha, são percorridos 420 km; de lá até Venâncio são mais 22 km município adentro, pela CE-187, seguindo por uma via asfaltada cujos limites são diariamente disputados com a constante movimentação das dunas que cerceiam o vilarejo.

Na medida em que se percorre o caminho de asfalto, percebe-se a mudança para o chão de terra, anunciando a chegada aos pequenos núcleos populacionais, com seus arranjos simples, em sua maioria compostos por uma praça e sua igreja, casas de porta e janelinha de madeira, a vara de porcos passeando pela rua e se esquivando dos carros, para, logo mais, retornarmos à estrada de asfalto.

O vilarejo do Venâncio não difere muito das demais localidades que o antecedem durante o caminho percorrido. Ali, ao longo da estrada que finda quando se chega na praia de Bitupitá, concentram-se duas igrejas – uma da família e outra da comunidade – um cemitério sem muros, com suas lápides divididas entre seu espaço e o quintal de algumas residências; mais à frente, em uma acentuada curva, surge a bodega - O Louro – e, logo mais atrás, avista-se, em um horizonte não muito distante, a imensidão das dunas brancas que se movimentam lado a lado às palhas dos carnaubais e coqueirais que, igualmente, compõem a paisagem da região.

As casas do vilarejo aglomeram-se como em pequenos blocos compostos por quatro ou cinco casas. Falar em blocos é uma forma de explicar que essas casas compartilham entre si

1 Por vilarejo do Venâncio, ou simplesmente Venâncio, refiro-me ao território no qual constam o núcleo populacional alocado na estrada que liga Barroquinha à praia de Bitupitá, mais o terreno do sítio Capiaçú, este alocado a dois km do vilarejo, local de morada dos antigos líderes do vilarejo e parte do distrito de Leitão, também vizinho do vilarejo e local onde habitam algumas famílias. Estes territórios podem ser entendidos como territórios de parentesco, da forma desenvolvida por Comerford (2003) - tais noções serão aprofundadas nas próximas páginas.

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os limites dos quintais e das plantações. Mas, para além do espaço físico, estas famílias compartilham um vínculo familiar, descendem da mesma família ou “tronco”, o dos Viturino, como se autodenominam. A exploração deste contexto se deu da forma como trago em meu diário de campo: em um dos dias de trabalho, já apontava quatro da tarde, e depois de um longo dia aplicando questionários no vilarejo, sento-me na bodega de seu Otacílio, ou seu Louro da bodega, a fim de esperar algum carro para me levar de volta para Bitupitá, lugar onde eu estava hospedada. Foi quando, em meio às curiosidades sobre o que eu estava fazendo por “aquelas bandas”, seu Otacílio me afirma acerca de sua proximidade com os moradores do vilarejo. Ele me relata que o vizinho da frente é seu primo, bem como aquele que passou na rua com uma enxada no ombro. De igual maneira, identificou tantos outros que passavam à rua como primo legítimo, ou filho de um compadre seu, ou primo de “segundo grau”. Todos, de alguma forma, pareciam estar aparentados naquele vilarejo. Esta foi a questão inicial que mobilizou meu interesse de pesquisa neste lugar.

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Imagem 1: Bodega O Louro. Na foto, Seu Otacílio e Dona Marli (fevereiro/2017)

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Imagem 3: Do alto das dunas ao caminho das casas (março/2013)

A minha virada para o interior - diferentemente dos meus colegas do grupo de pesquisa desde a graduação, cujas pesquisas direcionaram-se para as dinâmicas daquele litoral, teve por influência direta, e ponto de partida, meu contato com Seu Otacílio e sua esposa, Dona Marli. Ao sentar em sua bodega e trocar algumas conversas, passei a conhecer um tanto das pessoas, das famílias, e que, ali, todo mundo era parente.

No dia seguinte a esse contato, Seu Otacílio e Dona Marli me receberam em sua casa, me convidaram para almoçar e por lá fiquei. A minha circulação junto a essa família me caracterizou como a “menina que estava na Marli”, o que, como percebi, implicaria diretamente nos modos como outras pessoas do vilarejo se relacionariam comigo. Algumas portas foram abertas em razão dessa proximidade com D. Marli e com os seus. De fato, muito da minha pesquisa de campo, nos anos iniciais, foi facilitada pela grande rede de pessoas próximas a eles. De uma receptividade comumente encontrada em contextos não urbanos, ou do interior, fui extremamente bem acolhida e bem cuidada. Dona Marli frequentemente me convidava para visitar este ou aquele parente, intimava Seu Otacílio a me mostrar os limites do vilarejo e as salinas que o avizinham, tudo na garupa de sua moto. Participei ativamente de festejos locais, almoços de família, missas, novenas, aniversários, velórios, dentre muitos outros eventos. De igual importância, devido à proximidade com essas pessoas de alargados laços sociais naquela

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localidade, pude conversar com políticos locais, representantes de associações, bem como tive acesso a importantes documentos da localidade e do município.

Por conta dessa mesma proximidade, entretanto, outras portas foram fechadas, e meu posicionamento enquanto pesquisadora, posto em questão. Nesses anos de pesquisa fui associada como pertencente a um grupo político, a uma facção e a uma família. Vi, então, as possibilidades de conversas que iam se fechando, que aqueles parentes com quem eu me acompanhava eram pessoas articuladas, de casa movimentada, cheia de atribuições, e que, por isso, poderiam ser percebidos como pessoas políticas. Não é por menos que seu Otacílio e D. Marli são alguns dos atuais porta-vozes do vilarejo, detentores dos documentos de propriedade daquelas terras e descendentes do patriarca e fundador, Alexandre Ferreira, que, em 1879, tornou-se o proprietário legal daquelas terras.

A todo instante se escutava alguém perguntando à porta: comadre Marli taí?, seguido pelo barulho do chinelo arrastando no chão como forma de limpar o calçado (ou gerando um som que sinalizasse a sua chegada). A circulação das pessoas suscitava outros modos de movimentação; ao passo que as pessoas iam e vinham, entravam e saiam na casa de D. Marli, entravam também os assuntos que se viviam naquele momento. A questão da vez incidia nas dunas que estavam comendo as casas e que, à época de minha primeira ida a campo, estavam soterrando a única escola do vilarejo, o que alavancava grandes debates nas calçadas, entre as caronas, ou dentro dos domicílios, enquanto as pessoas realizavam suas tarefas de casa.

Inegavelmente a relação que estabeleci com a família de seu Otacílio e D. Marli, com seus irmãos e irmãs, pais, cunhados (as), filhos (as) e sobrinhos (as), proporcionou um ponto de vista que me permitiu entender que família, política e terra são faces de uma mesma realidade cotidianamente vivida, produzida e, por isso, mobilizadoras da localidade. A casa de D. Marli mais parece uma extensão da prefeitura. Com a entrada e saída das pessoas, as demandas surgem, os assuntos vão e vêm, a solução ou não das questões/causos são levadas e trazidas para serem resolvidas por intermédio desse casal e de suas redes de relações. Nesse núcleo familiar, as questões da vida cotidiana apresentam-se e as demandas são resolvidas em meio à informalidade destas relações.

Das questões que estão constantemente em pauta, a movimentação das dunas que cercam o Venâncio vem ganhando proporções cada vez maiores. Nos tempos de antigamente, período em que os vivos se referem aos seus antepassados, a localização do vilarejo

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distanciava-se quilômetros de distância de onde o núcleo populacional atualmente vive. Antes das dunas comerem as casas, Venâncio localizava-se mais próximo ao litoral. O que hoje se vê no horizonte como o banco de dunas foi antes um espaço composto por casas, comércios, lagoas e estradas. Ao longo dos anos, as famílias e os espaços reconfiguraram-se, modificando, reconstruindo e impondo novas sociabilidades em novos ambientes.

O cemitério do vilarejo, que outrora localizava-se distante do centro populoso, atualmente apresenta lápides fazendo limites com os quintais e roçados. Tal movimentação trouxe outras maneiras de interação e outras tarefas cotidianas desempenhadas pelas famílias no novo ambiente que as circunda. As novas tarefas incluem marcar e preparar o terreno, fazer a base e depois levantar a nova casa, plantar no alto das dunas espécies arbóreas nativas buscando minimizar os efeitos das movimentações dos ventos. Não somente isso, construir uma nova casa pressupõe reconstruir uma nova “territorialidade”,2 espaço negociado, que, ao ser feito, traz à memória acordos, negociações e pertencimentos feitos no passado, mas ainda sentidos e vividos no presente. Todas essas são tarefas que demandam esforço coletivo, mas de desfrute conquistado individualmente.

De fato, a concepção daquilo que podemos denominar de configuração social do vilarejo não foi algo construído a um primeiro olhar, mas demandou um longo caminho de imersão no campo para então se chegar à definição das questões mobilizadoras naquele contexto. Logo de início, o modo como D. Marli e seu Otacílio relacionavam-se com os vizinhos, seus parentes, surgiu como imperativo para a percepção das relações entre os sujeitos no vilarejo. Percebi que ali havia uma cooperação mútua, um fluxo ativo de atividades que extrapolavam as ações individuais dos sujeitos.

Prevalecem questões da ordem do cotidiano, como assuntos administrativo-burocráticos municipais (busca por vaga de emprego na prefeitura), marcação de consultas, exames médicos, negociação de caronas, troca e compra de suprimentos nas bodegas locais, dentre outras que podem ser percebidas no cotidiano de um pequeno vilarejo.

2Por territorialidade, Godoi (2014) define um processo de construção de territórios: apropriação, uso, controle e atribuição de significados.

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Mas, essas trocas a nível microscópico revelam um entrelaçamento bem mais profundo, de ordem temporal, que antecede aqueles que “performatizam” tal ação. Estas atividades cotidianas são reflexos de atividades tradicionais.

O fato de haver diversas questões de ordem financeira, administrativa, burocrática e política intimamente ligadas às relações estabelecidas entre parentes foi a pista seguida durante o mestrado para explorar as conexões entre família, política e terra. Nesta dissertação, portanto, como forma de apresentar o conteúdo desta pesquisa e ilustrar o porquê de família-terra-política serem importantes neste contexto etnográfico, apresentarei três eventos ou situações sociais que, aos modos daquilo realizado por Gluckman (1987) na Zululândia, me permitam desenhar as relações que estruturam o vilarejo do Venâncio.

Em “Análise de uma situação social na Zululândia moderna” Gluckman constrói seu argumento em posse de situações sociais3 observadas durante sua pesquisa de campo. O autor revela que o intuito de observar eventos em diferentes momentos permite ao pesquisador extrair a estrutura social que aquele grupo em análise tem. Enraizado na proposta de acadêmicos de sua época, a explicação às suas perguntas pode ser alcançada ao se encontrar as estruturas e os modos de funcionamento que permitiriam a uma determinada localidade ser estável. Gluckman buscava respostas àquilo que ele chamou de “unidades funcionais em equilíbrio temporário.”

Mas será no acerto metodológico de Gluckman que me apoiarei. Das observações e análises das “situações sociais” ou eventos captam-se as relações desses eventos dentro de um sistema social específico. A análise de eventos nos permite aqui perceber as relações subjacentes não perceptíveis em dias ordinários: essas inter-relações permitem delinear separações, conflitos, cooperações e modos de comportamento socialmente definidos (GLUCKMAN, 1987, p. 262)

Como um recurso metodológico profícuo, a observação de um conjunto de “situações sociais” me permite apreender os eventos aqui apresentados num esforço intermitente, porém continuado, em mostrar aos leitores as maneiras pelas quais são acionadas categorias analíticas. Aqui levanto a hipótese de que o tripé no qual se sustenta o campesinato, família, trabalho e terra - extensivamente trabalhado por antropólogos que teorizam sobre o campesinato brasileiro - se

3 Segundo a definição do autor, situação social é “o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões” (GLUCKMAN, 1987, p. 238)

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reconfigura em família, política e terra. Estrategicamente, cada capítulo buscará ilustrar a correlação do causo com um tema teórico: capítulo 1, família; capítulo 2, política; e capítulo 3 terra.

São as “situações sociais”: “O causo com dona Otacília”, descrito no capítulo 1; “A visita da médica cubana” no capítulo 2; e “A distribuição dos rendimentos dos carnaubais entre os parentes” no capítulo 3. O primeiro desses eventos narra a insatisfação de uma moradora do vilarejo, D. Otacília, com uma situação na qual a gestão da prefeitura, à época, foi protagonista. Tal evento apresenta-se como um problema para as mães do vilarejo que, dentre outras preocupações, terão que permitir o traslado diário de seus filhos entre o vilarejo e a escola de Bitupitá (distância de 5 km) em transportes públicos, como consequência da movimentação das dunas que estavam comendo a escola local. Esta querela, longe de ser resolvida dentro dos trâmites formais entre cidadão-prefeitura, aprofunda-se em virtude de circunstâncias políticas envolvendo a filha de D. Otacília, D. Marli, e a prefeitura.

O segundo evento traz momentos de meu diário de campo no qual narro um dia de consulta da médica do município, a médica cubana, no vilarejo do Venâncio. Neste dia, a casa de Dona Marli, anfitriã do evento, contou com preparações especiais, ficou mais limpa do que de costume e teve, inclusive, o sinal de wi-fi liberado para aqueles que quisessem acessar a internet. A frenética movimentação da casa dizia sobre a importância desse momento para os habitantes da localidade. Não somente isso, dizia sobre interações e intencionalidades dos atores sociais presentes – da médica, da anfitriã, dos pacientes –, informando como essas interações são performatizadas dentro de um contexto sociopolítico específico.

O terceiro relato, intitulado “A distribuição dos lucros dos carnaubais entre os parentes”, destaca o debate sobre o status e aquilo que se entende por herança no vilarejo, a partir de uma conversa com Dona Adelaide, uma das interlocutoras mais ativas nesta pesquisa. A distribuição dos rendimentos dos carnaubais fala dos modos de apropriação da terra, embora ela não seja o objeto direto de herança. Como será demonstrado, na distribuição dos carnaubais estão inscritos símbolos de propriedade e uso que recaem de modos diferentes nos habitantes desse vilarejo.

Aqui entra em questão a transferência do patrimônio da família – os carnaubais e a terra em si – por meio das gerações, mostrando que “partilha” e “divisão” (WOORTMANN, 1995, p. 223) são duas faces distintas de um mesmo fenômeno. A distribuição dos rendimentos

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dos carnaubais, da forma relatada por D. Adelaide, faz recuperar a questão destacada por Moura (1978), que recai no que a autora denomina de “contradição fundamental na área camponesa” (MOURA, 1978, p. 36), ou seja, como conciliar o grande número de herdeiros sem parcelar exaustivamente o patrimônio? Proponho demonstrar, então, que as possíveis respostas a essa “contradição” recaem nos modelos de casamentos performados localmente e, principalmente, nas formas em que se constroem as noções de família e parente na localidade e no entendimento do parentesco como uma forma de falar sobre terra.

As contribuições de Moura (1978, p. 34), em São João da Cristina, a respeito dos diferentes usos do termo “parente” serve para elucidar o uso de parente e família no Venâncio. Como destacou a autora, o termo “parente” é acionado em dois contextos: o primeiro quando relacionado a um exterior versus “todos nós”, situação em que todos performam horizontalmente o papel de parente; já o segundo uso surge em situações “entre os nossos”, usado convenientemente de acordo com o reconhecimento de graus de parentes. A definição de parente que proponho aproxima-se da primeira evocada pela autora, em que prevalece a ideia de que “aqui todos são parentes”. Esta noção, no limite, diz respeito ao fundador em comum que todos possuem, mas condiz também em uma relação que o vilarejo, como uma ideia de grupo “unificado”, tem frente a pessoas externas ao lugar.

A segunda concepção de “parente” definida pela autora aproxima-se do uso que aqui faço de família, ou seja, ser da família pressupõe uma construção em que se leva em conta aspectos qualitativos: com quem se casa, de quem é filho e, principalmente, que papel a pessoa exerce dentro do vilarejo. Como poderá ser percebido durante toda a dissertação, esse entrelaçamento verticalizado composto pelas tramas que envolvem casamentos e alianças políticas é o que provê vida às dinâmicas de fazer e desfazer família e política.

Os trechos destacados no início de cada capítulo propõem, dessa forma, a criação de imagens sobre o local: a movimentação das dunas, minha aproximação com o campo de pesquisa, a descrição de um causo entre prefeitura e uma moradora do vilarejo, o evento da visita da médica cubana e como a casa de D. Marli se torna o lugar dos encontros quando se trata da relação com serviços da prefeitura, além da análise dos rendimentos dos carnaubais da família. São excertos escolhidos com o propósito de conferir movimento às narrativas e, ao mesmo tempo enfatizar que, destes recortes, se têm processos da vida social das pessoas que habitam este vilarejo.

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A criação de tais imagens nos remete à construção de um presente etnográfico, e os caminhos para se entender este presente são abertos pelo entendimento daquilo que aqueles que ali vivem têm para nos informar. Decerto, essa perspectiva de se analisar partindo das formulações nativas daqueles que lá vivem não é algo recente, mas aqui vale destacar a guinada da etnografia voltada à defesa de uma antropologia das teorias nativas. Uma antropologia das teorias nativas que nos leva a entender o que é política no sentido prático. Como exemplo específico do cenário desta pesquisa, podemos mencionar uma produção de conhecimento feita por Rita, uma moradora do vilarejo que ganhará relevo no capítulo 3, cujas afirmações trazem a compreensão de que os casamentos têm por fim a não fragmentação do território. Esta é uma visão que parte da própria interlocutora, que, de acordo com Borges (2003) e Peirano (2002, p. 38) “seria a forma apropriada para resumir, expandir, suportar e encorajar o conhecimento que continua a se pretender universalista, mas multicentrado nas suas manifestações.” Trata-se de um trabalho etnográfico realizado como numa relação triangular em que se interpenetram o sentido conferido pela comunidade estudada, o contraste com o corpus teórico do pesquisador e a teorias antropológica (BORGES, 2003, p. 16). É este modelo que terei como referência nessa dissertação.

Caracterização da Localidade

A localidade em que desenvolvo o presente estudo pode ser compreendida na interseção entre o sertão e o litoral. Por sua localização ao extremo oeste do litoral cearense, Barroquinha faz divisa com Piauí, e compartilha com este, a bacia do Delta do Parnaíba. Na medida em que se deixa litoral, Barroquinha vai ganhando outras formas e cores, do branco das dunas para o vermelho das terras, onde são plantados milho, feijão e mandioca.

Recentemente Barroquinha, e outros 9 municípios, foram inseridos na categoria do semiárido cearense4, o que lhe garante intervenções financeiras por parte do governo federal. Por distanciar-se 420 km de Fortaleza, Barroquinha vem buscando imprimir às suas principais praias,

4 Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/online/10-municipios-cearenses-sao-incluidos-na-regiao-do-semiarido-brasileiro-1.1855670 Acesso em 16/03/2018.

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a de Bitupitá, distanciada 25 km da sede do município, e a praia das Curimãns, distanciada 20 km da sede, uma identidade de “praias paradisíacas”. A praia de Bitupitá, em especial, vem buscando firmar a identidade de “paraíso dourado”, ou então a alcunha de “a última praia do litoral cearense” como uma das formas de chamar atenção de turistas, e de, algum dia, atrair uma boa movimentação turística, ao lado das famosas praias de Camocim e Jericoacoara.

Segundo o Perfil Básico Municipal, a população de Barroquinha em 20105 é de 14.476 habitantes, sendo 9.770 o número de pessoas residente em áreas urbanas e 4.706 residente em área rural. O número total de moradores conglomera a população das 57 localidades, distribuindo-se em dois distritos político-administrativos, Araras, em 1961, e Bitupitá, em 1892, e nas microrregiões: Chapada, Leitão, Venâncio, Capiaçú, Curimã, Taquari, Pereira, Canadá, Vertente, Baixa grande, Rochedo, Praia Nova, dentre outras, como ilustra o mapa 16.

O vilarejo de Venâncio, embora de diminuta população, estimada em 518 pessoas, pode ser caracterizado como uma localidade com muitas particularidades. Sua demarcação territorial compreende a junção com o sítio Capiaçú, este frequentemente lembrado como casa dos cabeças antigas. A peculiaridade de Venâncio ainda pode ser percebida em razão de sua situação fundiária. Diferentemente dos distritos vizinhos, os moradores do vilarejo possuem documentos de propriedade de terras, e isso, como será demonstrado ao longo desta dissertação, tem significativas implicações.

As práticas econômicas no município concentram-se no funcionalismo público, comércio, agricultura familiar e pesca. A pesca, nos dias de hoje, segundo contam os pescadores locais, não proveem tantos lucros como antigamente. Justificam o decréscimo em razão do crescente aumento da pesca com barco a motor, em detrimento da tradicional pesca de curral. Araújo (2013) ilustrou em sua dissertação, dentre outros argumentos, esta dinâmica de desvalorização do peixe e da pesca em razão de sua vinculação ao pouco ganho vindo desta.

Especificamente no Venâncio, trabalhar com pesca é uma atividade para aquelas famílias de poucos recursos financeiros, o que mostra a importância social de determinadas atividades econômicas em detrimento de outras. Dos poucos homens que trabalham com pesca, e das mulheres que catam mariscos neste vilarejo, o produto da atividade é para consumo próprio,

5 Dados do último censo demográfico realizado pelo IBGE. 6 Conferir página 26.

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dificilmente voltado para a venda. Trabalhar em alto mar, nas embarcações, com a pesca, se mostra como última opção para aqueles que têm possibilidade de escolha. Trabalhar como funcionário público, como proprietário de seu negócio, a bodega, trabalhar com transporte coletivo e no roçado, são, entretanto, possibilidades que ganham preferência e investimento financeiro.

Das visitas que fiz ao Venâncio, poucas foram as vezes que me ofereceram o peixe como mistura. A presença deste tipo de proteína animal na mesa dos almoços e jantares que presenciei se davam, por justamente, meu pedido. Lá, a condição financeira diz muito sobre o tipo de alimentos que entram nas casas. Consumir peixe, naquele contexto, se mostrou como uma atividade econômica desempenhada por aquelas pessoas que não possuem muitas opções. Para ter acesso à carne de gado, por exemplo, D. Marli faz uma permuta com proprietários dos criadouros de gado da região, uma vez que nem esta, nem sua família, possuem terrenos adequados para a pastoragem. Em troca da carne de gado, Marli cria patos, galinhas e porcos dos donos destes criadouros, em seu quintal. Da mesma forma, Marli troca a carne de suas galinhas pela carne do peixe com pescadores de Bitupitá. Marli, como será dito mais adiante, é uma das moradoras que tem poder de escolha e decisão dentro do vilarejo.

Na praia de Bitupitá, não raro, as famílias de pescadores têm como base da alimentação diária peixe, sururu7 e farinha. Se classificarmos os alimentos proteicos, podemos dizer que, naquele lugar, o peixe alcança o status mais baixo dessa hierarquia. Um fato intrigante é que o peixe é "menosprezado" por razões outras que não tem relação com a abundância ou fácil captura. Pelo contrário, é consenso no discurso das pessoas de toda a região sobre a difícil relação dos homens com o mar. Digo dos homens porque o mar é um ambiente predominantemente masculino8. Trabalhar com pesca é sempre penoso, e muito sacrificante, pois se trabalha muito para ganhar pouco em um ambiente de difícil controle, com o mar, sol.

7 O sururu (Mytella charruana) é um molusco bivalve (inserido entre duas conchas) da ordem Mytiloida.

8A pesca mais praticada na praia de Bitupitá é a pesca de curral, um tipo de pesca artesanal no qual se constrói com estacas de madeira de eucalipto, armadilhas, ou currais, disposta em formato de semi-coração, muito realizado naquela região onde o mar manso favorece a captura de peixes. Araújo (2013) explica sobre os saberes e fazeres tradicionais que a pesca de curral é frequente em vários pontos do nordeste brasileiro e aqueles que nele trabalham são conhecidos como os vaqueiros do mar.

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Vale ressaltar que a opinião sobre as dificuldades dos homens do mar é difundida em toda a localidade e que trabalhar como pescador, como aquele que entra no mar em pequenas embarcações sob o mando do dono desta embarcação é visto como pessoas subordinadas e de pouco ganho. Lá, dificilmente “se faz dinheiro” sendo empregado da embarcação de outros. Somente quando se adquire um barco, ou se constrói um curral próprio, é que se passa a ganhar dinheiro.

Nas reuniões e almoços de família as carnes de gado e frango também são as mais consumidas. O interessante é perceber que as carnes de gado não são produtos de animais cuidados nos arredores do Venâncio ou do Sítio Capiaçu, são carnes que vem de outros lugares e, com isso, consequentemente, tê um elevado preço frente à galinha e ao peixe. A galinha é um alimento que cotidianamente está na mesa das famílias, seja por compra, troca ou criação no quintal do consumidor.

Mapa 1: Limites municipais de Barroquinha. Localização do Venâncio destacado em círculo vermelho.

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Mapa 2: Imagem google earth – trecho Barroquinha – Venâncio – Bitupitá.

Aqui Todo Mundo É Parente

Como já tratei em outros trabalhos9 o vilarejo do Venâncio é um daqueles lugares do interior do Ceará no qual facilmente se encontra uma conformação social envolvendo estreitos relacionamentos entre pessoas da mesma família, cujos entrelaçamentos ressoam nas maneiras de habitar e pertencer à terra, entre as formas de fazer e desfazer família e política.

Desde o início de minha pesquisa de campo, em 2011, Venâncio captou minha atenção em razão de seu complexo tecido social, cujas relações familiares entrelaçavam-se fortemente a um cotidiano que supunha troca, reciprocidade, descendência e consideração.10 Muitas

9 ARAGÃO, 2014a; 2014b.

10 Consideração aqui ganha um sentido de performance social mútua: quando se tem consideração por alguém significa que este alguém corresponde àquela intencionalidade inicial. A consideração não existe sozinha e, neste contexto, surge como meio de estabelecer vínculos e firmar alianças, como, por exemplo, na hora de apadrinhar os filhos, em que um compadre é designado para ser o mentor social e espiritual da criança (ver Woortmann, 1995) e o designado aceita por ter consideração pelo designador. De igual maneira, tal situação ocorre em transações comerciais: vende-se fiado só para aqueles que se tem em consideração, que neste caso é alguém que irá honrar seus compromissos financeiros. Pode-se perceber algumas aproximações ao uso contextual desse termo nas obras de Pina-Cabral e Vanda Aparecida (2013) e na obra de Ellen Woortmann (1995). Esse termo será melhor detalhado nas páginas que seguem.

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etnografias que tratam das sociabilidades no nordeste brasileiro11 constroem seus objetos sob a rubrica de que aqui todo mundo é parente. De maneira similar, o povoado do Venâncio erige-se sobre essa premissa, que traz também, como marca, a afeição desse povoado à participação no fazer política na localidade. Isso pode igualmente ser estendido a todo município de Barroquinha, do qual o vilarejo faz parte, lá dizem: “Eu gosto da disputa [política], corre na veia a participação, igual à família, corre no sangue.”

Fazer família e fazer política muitas vezes se confundem em meio à similaridade de seus processos. Neste vilarejo não há tempo que não seja propício para se construir uma família, da mesma forma que para vivenciar a disputa política. Tal configuração entre família e política não é uma característica unicamente encontrada no interior do Ceará. Lewin (1993) ilustra, em sua riquíssima pesquisa, as congruências entre agrupamentos familiares e facções políticas na política oligárquica da família Pessoa, na Paraíba; Marques (2002, 2005, 2007a, 2007b), Villela (2004, 2009), Villela e Marques,12 trabalham com as famílias do Vale do Pajeú, interior pernambucano e, em estudos mais recentes, Teixeira (2014), com as famílias do sertão dos Inhamuns, no Ceará.

Em viagem de campo realizada em fevereiro de 2017,13 senti os ânimos ainda agitados em decorrência das eleições municipais de 2016, a ferida ainda estava aberta em razão dos embates ocorridos durante os 45 dias de processo eleitoral e, como consequência disso, o volume de conversas, entrevistas e percepções direcionaram-me para o entendimento mais amplo sobre o que significava fazer política entre meus interlocutores.

A temática da política surgia de modo transversal ao meu intuito inicial, que consistia na proposta de entender a dinâmica dos casamentos entre pessoas da mesma família, e como isso me ajudaria a entender aquilo que eles consideram família. Mesmo diante das frequentes idas a campo, embora intermitentes, eu ainda não havia presenciado um momento (pré ou pós) eleitoral,

11 A referência à ideia de “aqui somos todos parentes” não é uma conformação exclusiva do Nordeste brasileiro, contudo. Temos exemplos etnográficos citados nesta dissertação (COMERFORD, 2003; PAOLIELLO, 1998) que ilustram os variados contextos nos quais essa afirmação opera. No entanto, faço aqui referência aos estudos mais recentes no contexto nordestino.

12 O sangue e a política: sobre a produção de família nas disputas eleitorais no sertão de Pernambuco (2017). Dossiê: Antropologia, política e Estado. v. 14, n. 27 (2017) – Revista da Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFMA.

13 Foram realizadas duas viagens para campo, a primeira de 8 a 21 de fevereiro de 2017; a segunda, de 24 a 31 de março de 2017.

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ou, pelo menos, as agitações deste momento não haviam se destacado suficientemente para mim. Com o evento das eleições municipais de 2016, passei a apreender que política era percebida e exercida por meus interlocutores como uma força mobilizadora dentro desse vilarejo e que se apresentava como algo que é vivido nas mais simples das relações diárias.

Às minhas pretensões iniciais de pensar família, agreguei as construções nativas de política como fonte de informação genuína a respeito daquele local. Naquela circunstância, para eles, velhas intrigas foram reavivadas e outras novas foram criadas envolvendo a única família que disputa o poder político de Barroquinha, a família Veras, com seus representantes Jaime Veras e Ademar Veras, primos legítimos, que naquele pleito de 2016 disputaram o cargo de prefeito de Barroquinha.

Em todo o município de Barroquinha, intrigas de longa data envolvem a família Veras e seus expoentes. Aos já citados primos Ademar e Jaime, acrescento que foi da cisão chefiada pelos irmãos Pedro e Veraldina Veras, aquele pai de Ademar, e esta, mãe de Jaime, que se iniciaram as versões locais das facções regionais Cara Preta e Fundo Mole. Identificadas como família 14 (PTB), e família 12 (PDT) as facções constroem suas identidades resgatando a característica do tipo de política realizada no lugar. Família é a marca representativa da facção, adicionada do número do partido político.

A família Veras, natural de Barroquinha, apartou em 1988 devido à ocasião das primeiras eleições do município, emancipado de Camocim neste mesmo ano, levando os irmãos Veraldina Veras e Pedro Veras ao palanque e à disputa. A todo instante, fazia presente o discurso de que política é tradição, é coisa de família, ou que política é assunto de família.

Não muito diferente de Barroquinha, o vilarejo do Venâncio, possui sua própria oligarquia representada nas famílias Veras, Belchior, Carvalho e Rodrigues. Foi-me relatado, sobre as intrigas entre grupos políticos distintos, que o pleito de 2016 foi uma acirrada competição entre família 14 e família 12. Dessa forma, percebi que, para falar de família, era imprescindível falar de política, o que recaía, ao mesmo tempo, em assuntos que compreendessem algo além da seleção de cargos representativos. Falar de política é falar de família, de respeito, de sangue, de intriga e de competição.

A política será introduzida neste trabalho por meio da fala das pessoas, processualmente, formulando conceitos erigidos das partes dos discursos nativos. Para os

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interlocutores pernambucanos de Palmeira (2001), falar de política remete imediatamente às eleições (de onde o autor desvenda que o tempo da política é parte integrante do cotidiano). Já para os de Borges (2004), a política encontra-se diluída discursiva e territorialmente nos “lugares-eventos”. Aqui, seguindo o mesmo rastro das interpretações nativas realizadas por Borges e Palmeira, a política ganha forma de representação e de ação, vota-se na política, mas igualmente vive-se a política.

Advirto, ainda, que meu propósito de analisar a política local afasta-se das preocupações concernentes ao campo da ciência política. Não busco chegar a conclusões sobre sistemas políticos e nem discutir se estamos ou não passando por uma crise de representatividade (MANIN, 1995)14 . O contexto etnográfico no qual me inseri me permite destacar instâncias microscópicas da vida política, o que torna possível a análise processual que aqui proponho. Vale lembrar que o olhar microscópico de que aqui faço uso está mais para uma escolha consciente, de um lugar de análise, do que para a percepção desta política como parte de uma microssociedade. Já alertou Villela que,

À microscopia não corresponde um objeto pequeno, mas antes uma posição, um certo ângulo de visão. Posicionar-se entre as moléculas e não nas macroestruturas sociais, verificar a interação entre as duas, retirar estas primeiras para ver as relações de forças existentes sob elas que as compõem (2004, p. 26).

O ângulo microscópico me situa no micro, permitindo dialogar com o macro e mostrar que ambas as faces são lados de um mesmo processo, diferindo, unicamente, por seu ponto de análise.

Na situação percebida em Venâncio, falar de política é também falar de terras, seja sobre sua posse, transferência ou modos de habitação. Lá, ter chão de morada demarcado, registrado e possuir os documentos físicos dessas propriedades, como o caso das famílias em

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estudo, dá aos seus possuidores uma atitude que é percebida pelos de fora15 como pessoas difíceis,

briguentas e autoritárias.

Se os documentos sobre a posse da terra e o uso que dela fazem lhes garantem certa autonomia e conferem poder para com sujeitos internos e externos ao vilarejo, estas mesmas terras (e as pessoas que as habitam) estão sujeitas ao avanço das dunas móveis e dos ventos, aqui considerados elementos que trazem insegurança e instabilidade à localidade.

Do que foi apresentado, surgem questionamentos tais como: se os casamentos entre pessoas da mesma família garantem a circulação da herança (terra e lotes de carnaubais)16 entre os mesmos parentes, o que fazer quando os movimentos das dunas “comem” terras próprias para a construção de moradas e de lugares de convivência social? Os casamentos entre pares de irmãos multiplicaram, ao longo das gerações, o número de herdeiros, mas, como me fora relatado, agora a terra tá pequena para tanto herdeiro. Surge, então, que a terra, mais que um lugar da morada da vida (HEREDIA, 1979), é um bem que precisa ter seu espaço gerido, administrado e constantemente disputado.

Percebi que, no contexto da organização e disputa por este espaço, algumas categorias são acionadas entre meus interlocutores: herdeiros, herdeiros velhos e herdeiros novos. Sendo assim, no vilarejo do Venâncio há uma segmentação entre aquilo que envolve sobrenome (parentesco) e uma determinada temporalidade.17

Via de regra, os herdeiros são sujeitos legitimados pela ascendência a um parente em comum, sendo esta descendência substancializada na casa e terra habitadas e no sobrenome ao qual se identificam e no sangue que compartilham. Ser herdeiro é possuir uma denominação que distingue, que marca suas posições no grupo social, e, de uma forma mais ampla, como aqueles que não podem ser excluídos do patrimônio familiar (rendimentos dos carnaubais e terras que hoje ocupam). Os herdeiros distinguem-se ainda quanto à participação e interferência nos

15Por de fora me refiro àquelas pessoas que ou moram no vilarejo, mas não possuem laços de consanguinidade nem aliança com as famílias, ou então às pessoas que não habitam o vilarejo e geralmente moram nos distritos vizinhos e na sede do município.

16 De propriedade dos habitantes do Venâncio, os loteamentos de carnaubais são terrenos que contêm plantação de carnaúbas (Copernicia prunifera) voltadas para a extração do pó carnaúba com finalidade produtiva da cera de carnaúba.

17 Como bem destaca Loera (2015), trabalhar com temporalidade mais do que uma disposição cronológica, implica um princípio que organiza e delimita as relações. Tal ideia será desenvolvida com mais detalhes no capítulo 1.

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assuntos burocráticos do vilarejo, tais como arrecadação e pagamento do imposto da terra junto ao INCRA.

A maior parte dos habitantes do vilarejo são herdeiros, exceto alguns poucos que moram de favor,18 e têm direito à herança que se materializa na terra que habitam e nos terrenos

de carnaubais, garantidos pela descendência advinda dos fundadores do vilarejo, os irmãos Vitorina Rosalina Veras e Henrique Veras. Dos casamentos destes com Manoel Belchior de Carvalho e Ana Rodrigues Sousa, respectivamente, surgiram 17 filhos, dez de Vitorina e sete de Henrique. Esses 17 filhos, ou como lá se referem, as 17 cabeças velhas, continuaram a povoação do vilarejo por meio de casamentos entre “pares de irmãos” (WOORTMANN,1994), casando entre si os filhos de Vitorina com os filhos de Henrique.

Nos tempos dos antigos, dos cabeças velhas, estes, conforme meus interlocutores, eram os homens que mandavam em tudo, que trabalhavam com gado e caprinos - fazendo transporte de jegue para a região serrana -, e que trabalhavam nas casas de farinha, fazendo a farinhada nas pequenas lavouras e nos carnaubais, cortando a palha, moendo e produzindo a matéria prima da cera de carnaúba. Nos tempos recentes, tais atividades foram substituídas pelos pequenos comércios, as bodegas, pelo funcionalismo público, atividades de frete e transporte escolar. As lavouras ainda persistem, com uma diminuta produção que se volta, em grande parte, para autoconsumo.

Sobre os herdeiros novos, as suas formas de atuação se conectam com os moldes dos antigos, o que me fez perceber que o direito de se tornar uma pessoa à frente das questões do vilarejo, se é que esta é uma questão cobiçada, pode estar relacionada aos modos de construção desse direito. Parece-me que ser um herdeiro novo, que trabalha nas questões do vilarejo, não é algo garantido pela descendência, mas é algo construído na prática cotidiana, na ação. Se ser herdeiro novo ou ser alguém envolvido com questões do vilarejo é algo desejado, pode-se dizer que são poucos os que se dispõem a desempenhar essa tarefa. Assim, essa modalidade de herdar algo a partir do que é construído com confiança e dedicação no cotidiano, me parece algo similar

18 Morar de favor é uma condição que diz respeito a sujeitos exógenos às famílias do vilarejo em um território cedido pelas famílias locais. São poucos os casos de pessoas que moram de favor. Correspondem, segundo minha contagem, às 15 famílias estabelecidas em um espaço que circunda perifericamente as casas dos parentes.

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a um tipo de cálculo no qual se analisam intenções, atos, sentimentos, ganhos e perdas ao se envolver em tal causa.

A herança, no vilarejo do Venâncio, é nitidamente a terra (seja na forma de território onde se alojam as casas, ou nos territórios nos quais estão os carnaubais), mas, como desenvolvido acima, herdam-se também outras coisas: responsabilidades, sobrenome e opção política. Ser herdeiro é uma condição de quem nasce naquela terra. Isso implica que todos ali são herdeiros. No entanto são os desdobramentos das trajetórias de vida que realocam a posição desses sujeitos no direito à terra.

Pode-se atribuir aos caminhos seguidos na política local e às trajetórias construídas nos casamentos como alguns destes desdobramentos, pois em ambas situações compreendem modos em que uma pessoa se envolve e se doa à tradição. O habitus19 conduz, mas os esquemas

são rearranjados conforme o sujeito se entrelaça às tramas da estrutura. Não há predestinação para a vinculação a um partido político, nem as pessoas são obrigadas a firmar matrimônio com primos. Mas, das alianças feitas e desfeitas, polarizam-se as escolhas e reconfiguram-se os esquemas de identificação a um grupo familiar, a uma conformação política. Dessa forma, atenta-se pensar como constantemente e mutuamente esatenta-ses esquemas são reorganizados e mediante quais elementos isso se realiza.

Atualmente, o grupo que se destaca de forma mais nítida no vilarejo tem uma herdeira velha como “cabeça” do grupo, a Dona Adelaide, e seu núcleo familiar,20 vinculados à facção política Cara Preta (família 14), conhecidos como pessoas de nariz empinado, briguentos. Estes podem ser entendidos como os principais agentes dentro do vilarejo:21 são os que possuem os documentos de propriedade da terra, os que pagam os impostos junto ao INCRA, representam o vilarejo frente às reuniões da prefeitura, que detêm as chaves das igrejas da localidade (são duas, uma da família e outra “comum”), e que gerenciam e geram o espaço de construção de novas moradas na localidade.

19 Bourdieu define habitus como: “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas” (Bourdieu, 1983: 65).

20 Tal núcleo familiar é composto, ainda, por Marli, primogênita de D. Adelaide, Otacílio, primo de 1º grau e esposo de Marli, Caizé e Paulinho, ambos irmãos de Marli.

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Por meio dos herdeiros velhos e novos, a gestão do espaço compartilhado passa a ter fundamental importância, pois será o bom funcionamento dessa administração que garantirá novo espaço de moradia para aqueles que procuram um novo lugar para levantar casa em decorrência da movimentação das dunas, da abertura de estradas, bem como para as novas famílias que são geradas. A passagem das atribuições de um herdeiro velho para um herdeiro novo me parece ser de grande importância, já que são transmitidos também os códigos, as regras e as tradições que permeiam o cotidiano do vilarejo.

No capítulo que apresento a seguir será realizado um detalhamento das famílias e dos seus membros, e para facilitar o entendimento destes, adicionarei, em anexo, ao final deste trabalho, um glossário dos sujeitos e de suas trajetórias, aos quais irei me referir, facilitando, assim, o entendimento e a consulta ao longo do texto.

As categorias que aqui tomo – terra, família, sangue, sobrenome – são variáveis que, como será demonstrado ao longo da dissertação, ao combinarem-se em diferentes proporções, dão forma às trajetórias individuais. As combinações sangue bom/ruim, herdeiro velho/novo, consideração/sem consideração, os sobrenomes que habitam o Venâncio (Belchior, Carvalho, Veras e Rodrigues), são o resultado da trajetória das pessoas do vilarejo, o que faz perceber que a forma principal de manter esse “sistema”, essas interligações em operação, é a partir dos casamentos, que sabemos, não são obrigatórios, porém são esperados.

Os casamentos, lá, são esperados. Caso haja uma união fora do prescrito, um casamento destoante, toda a rede será reconfigurada. Como na alusão do antropólogo Marcio Silva,22 o parentesco é como um jogo de Tetris, em que o encaixe de cada peça vai fornecer um novo arranjo àquela totalidade.

As possíveis separações aqui realizadas (família, política, herança) são antes meios de tornar inteligível um universo de ações e representações, do que limitar a realidade social. Esta é complexa, fluida e multidimensional, o que traz para mim um desafio, e dos grandes, ao buscar traçar um contexto tão rico através do plano da escrita, e, nessa escrita, recuperar a riqueza

22 Essa fala foi proferida na ocasião do curso de verão intitulado Kinship Networks, sediado na Unicamp em 2017.

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dos movimentos do lugar através de formas e categorias textuais que, embora limitadas, buscam ser minimamente apropriadas para descrever o que observei.

Como “produto final” ao leitor, apresento uma narrativa, uma espécie de simbiose que procura definir o lugar que estas pessoas ocupam e habitam em seu contexto específico, base concreta que permite a manifestação dessas formas de existência e suporte, também, da manifestação da economia moral dessas formas de constituir família, grupo e de existir no mundo.

Para a minha sorte, a construção de genealogias dessas pessoas, seus intercruzamentos de casamentos entre primos e a conformação das numerosas famílias, não constituiu a parte mais árdua dessa tarefa. Esta, na verdade, vem se prolongando durante todo o meu percurso enquanto pesquisadora, que é a busca por conferir sentido ao discurso e à prática desses sujeitos, em meio a construções e desconstruções pautadas no cotidiano. A inconsistência do cotidiano, ou melhor, essa fluidez do cotidiano, é a substância que vem me permitindo tecer a complexidade social desse vilarejo. Família, terra e política, aqui, são termos centrais, tangenciados por outros assuntos do cotidiano, subentendendo-se um pelo outro (em determinadas situações) e aqui os apresento como os núcleos agenciadores da minha pesquisa.

Dito isso, destaco como questões mobilizadoras da minha pesquisa: i) Como se constrói a ideia de família no vilarejo de Venâncio? E o que esta noção mobiliza? ii) De que maneira uma pessoa é considerada, ou desconsiderada como parente no vilarejo do Venâncio, constituindo processos de familiarização e desfamiliarização (COMERFORD, 2003); e o que isso implica para a constituição daqueles considerados herdeiros velhos e herdeiros novos? iii) Quais os caminhos seguidos por essa coletividade que nos permitem saber sobre o fazer política, em meio às dinâmicas de se tornar parente em Venâncio?

Cada capítulo será conduzido como resposta a cada uma dessas indagações. Sistematicamente, os capítulos tratam de assuntos distintos e possuem uma certa independência uns dos outros, mas suas interconexões são percebidas na medida em que a tríplice condição que aqui destaco – política, família e terra – são partes entrelaçadas umas às outras.

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CAPÍTULO 1 – ESTÁ NO SANGUE, É DE FAMÍLIA

1.1 Causo com Dona Otacília

Em 2013, Dona Otacília revela estar desgostosa com a situação das crianças da localidade, ocasionada pela ausência da escola de ensino fundamental no vilarejo. A única escola da localidade foi encoberta ao longo do processo de movimento das dunas móveis que se arrastam gradativamente no vilarejo aos longos dos anos.

A situação - àquela época um fato recente - trazia desgosto às mães da localidade porque, uma vez que a escola de Venâncio não funcionava mais, as crianças precisariam se deslocar para a escola de Bitupitá, localizada 5 km de Venâncio. As dificuldades advindas dessa mudança, relata Dona Otacília, afetavam as crianças, que agora dependiam do transporte oferecido pela prefeitura para fazer o traslado Venâncio – Bitupitá, e as mães, consequentemente, que agora ficavam preocupadas em deixar seus filhos pequenos serem transportados em carros tipo pau-de-arara, ou em micro-ônibus superlotados da prefeitura.

O mais agravante dessa situação, contava Dona Otacília, é que o transporte, cotado para vir diariamente nos turnos da manhã, tarde e noite, fazendo o trecho Venâncio – Bitupitá, com frequência não cumpria com sua rotina diária, fazendo com que as crianças de Venâncio perdessem aula. A situação trouxe insatisfação aos pais, pois além de não poderem cumprir com seus compromissos (já que teriam que cuidar dos filhos), havia o agravante de serem autuados pela prefeitura, já que a frequência à escola é um ponto importante para manutenção dos recebimentos dos benefícios sociais, tais como Bolsa Família. Como traz o relato de Dona Otacília,

Minha filha, pra mim tanto fez como tanto faz, né? Agora só uma coisa que ficou chato aqui pra nós, pra mãe de família: a escola aí fechada, tem dia que é não sei quantos carros correndo. Ninguém tá falando, não! Tá dizendo uma certeza. Tanto fez, como tanto faz ganhar [referindo-se à política]. Tem dia que os meninos vão, tem dia que os meninos não vão, tem dia que não vão buscar. Aí tem dia que ficam mais dentro de casa do que pra escola. Eu estava dizendo, não

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era sendo fofoqueira não, não botando defeito nenhum não, mas eu acho que nesses quatro anos o Ademar [ex-prefeito] dava pra ver as condições deste grupo [do grupo que ela faz parte], aí dava pra fazer ao menos duas salas pra não ter que se destacar até as Almas [nome antigo de Bitupitá].1

Mediante toda essa situação, Dona Otacília e sua filha, Sinara, que no momento aderiu à nossa conversa, relataram sobre um grupo de mães que foram ao gabinete da Prefeita, localmente conhecida como Tetê,2 reivindicar a construção de uma nova escola em Venâncio. Desta conversa ficou acertado que as mães fariam um abaixo-assinado e o entregariam à Prefeitura como forma de legitimar sua reivindicação.

Marli não foi não... Marli é contra isso porque ela [...], certo que nós somos do partido diferente, mas isso não inclui partido, porque a gente tá atrás do melhor pros filhos da gente, tá entendendo? Aí na reunião que houve com a Angeliete e com a Dadiva [ambas secretárias da Prefeita] não foi resolvido nada na reunião. Aí teve duas atas pra gente assinar, que elas falaram que era umas atas que elas chamam, é o livro que fica, né? Um pra ir e outro pra comprovar que a gente ia levar à Secretaria, pra ficar lá. E no caso da reunião, quando nós fomos pra lá, o Ademar [ex-prefeito], já falou outra coisa pra gente, que a ata que eles levaram pra lá era [abaixo] assinando, assinatura das mães como nós tá comprovando [permitindo], tá levando os meninos para Bitupitá. Então foi no caso que eu disse pra ele [Ademar]: pois elas andaram mentindo pra gente, porque elas falaram uma coisa no colégio e aqui já foi outra. Porque a gente assinou para vir comprovando que nós íamos pra reunião e não permitindo os meninos irem pra Bitupitá. Porque foi que elas não falaram a verdade? Pois é muito feio andar mentido, eu acho muito horrível. Porque eu acho que no caso da gente soubesse, a gente e nenhuma mãe tinha assinado, porque todas as mães estavam contra dos meninos irem pra Bitupitá. Aí é assim, aí ganha quem tem poder, né?3

Desse causo entre as mães que são contra a transferência das crianças para Bitupitá e a Prefeitura, a filha de Dona Otacília esclarece, continuando,

1 Entrevista em 7/03/2013.

2 Teresinha Maria Cerqueira Lima Gomes, ou Tetê, do PTB, foi prefeita de Barroquinha na gestão de 2012-2016, continuando o mandato de Ademar Veras. Este, representante maior da facção política local, a família 14, foi eleito prefeito na gestão anterior à de Tetê e não obteve sucesso, em 2012, em razão de ter sua candidatura impugnada por cair no projeto Ficha Limpa, selecionando, então Tetê como candidata hábil para sua substituição.

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Lorena: Quando a escola fechou?

Sinara: Agora nesse começo de ano mesmo. Você não fez a pesquisa ali na Marli, não? Ela não lhe falou nada disso não? Pois é, o caso aí foi sério desse negócio da escola aí. Aí é assim, eles prometeram se a gente organizasse esse baixo assinado, a lista dos alunos, ele [Ademar] ficou de vir fazer uma reunião com as mães de Bitupitá, e agora que ele disse que quando viesse ia mandar avisar, e até agora não chegou nenhum aviso. [...] Aí a gente espera que melhore mesmo, porque tem vez que a gente fica esperando, arruma os meninos, aí o projeto que ela [a filha] tá aqui é o projeto que não pode faltar, do auxílio, aí o que elas [professoras] pedem mais para as crianças não faltarem, aí no caso sem o transporte aí fica difícil da gente organizar o dever dos meninos.4

A exemplo do ocorrido no relato acima, muitas outras situações podem ser narradas envolvendo desentendimentos entre conformações sociais que, em dados momentos, podem ser entendidas como contendas entre familiares, em outros, como rivalidades entre os grupos políticos. O caso aqui apresentado por Dona Otacília e sua filha iluminam, no entanto, que tais distinções – família e política – usualmente construídas no intuito de conferir inteligibilidade à realidade social, não operam e não podem ser entendidas como parte de domínios separados.

Neste capítulo, portanto, pretendo apresentar algumas linhas sobre as formas de sociabilidade presentes neste vilarejo, buscando explorar as maneiras nas quais e pelas quais as pessoas arranjam e rearranjam suas formas de existir no mundo. Parto da ideia de que tais arranjos ganham forma e sentido de acordo com formações circunstanciais de agrupamentos que são conformados em meio às trajetórias de vida. Aqui, meu esforço é entender os processos subjacentes e próprios de se fazer família e de constituir os complexos e entrelaçados fios de sociabilidade entre pessoas no vilarejo.

Vale ainda ressaltar que nas próximas páginas serão construídas as concepções de: o que é ser da família, quem se considera ou desconsidera como parente, os entendimentos do sangue como símbolo comunicativo e território enquanto algo construído em meio às narrativas.

Referências

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