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CAPÍTULO 1 – ESTÁ NO SANGUE, É DE FAMÍLIA

1.1 Causo com Dona Otacília

Em 2013, Dona Otacília revela estar desgostosa com a situação das crianças da localidade, ocasionada pela ausência da escola de ensino fundamental no vilarejo. A única escola da localidade foi encoberta ao longo do processo de movimento das dunas móveis que se arrastam gradativamente no vilarejo aos longos dos anos.

A situação - àquela época um fato recente - trazia desgosto às mães da localidade porque, uma vez que a escola de Venâncio não funcionava mais, as crianças precisariam se deslocar para a escola de Bitupitá, localizada 5 km de Venâncio. As dificuldades advindas dessa mudança, relata Dona Otacília, afetavam as crianças, que agora dependiam do transporte oferecido pela prefeitura para fazer o traslado Venâncio – Bitupitá, e as mães, consequentemente, que agora ficavam preocupadas em deixar seus filhos pequenos serem transportados em carros tipo pau-de-arara, ou em micro-ônibus superlotados da prefeitura.

O mais agravante dessa situação, contava Dona Otacília, é que o transporte, cotado para vir diariamente nos turnos da manhã, tarde e noite, fazendo o trecho Venâncio – Bitupitá, com frequência não cumpria com sua rotina diária, fazendo com que as crianças de Venâncio perdessem aula. A situação trouxe insatisfação aos pais, pois além de não poderem cumprir com seus compromissos (já que teriam que cuidar dos filhos), havia o agravante de serem autuados pela prefeitura, já que a frequência à escola é um ponto importante para manutenção dos recebimentos dos benefícios sociais, tais como Bolsa Família. Como traz o relato de Dona Otacília,

Minha filha, pra mim tanto fez como tanto faz, né? Agora só uma coisa que ficou chato aqui pra nós, pra mãe de família: a escola aí fechada, tem dia que é não sei quantos carros correndo. Ninguém tá falando, não! Tá dizendo uma certeza. Tanto fez, como tanto faz ganhar [referindo- se à política]. Tem dia que os meninos vão, tem dia que os meninos não vão, tem dia que não vão buscar. Aí tem dia que ficam mais dentro de casa do que pra escola. Eu estava dizendo, não

era sendo fofoqueira não, não botando defeito nenhum não, mas eu acho que nesses quatro anos o Ademar [ex-prefeito] dava pra ver as condições deste grupo [do grupo que ela faz parte], aí dava pra fazer ao menos duas salas pra não ter que se destacar até as Almas [nome antigo de Bitupitá].1

Mediante toda essa situação, Dona Otacília e sua filha, Sinara, que no momento aderiu à nossa conversa, relataram sobre um grupo de mães que foram ao gabinete da Prefeita, localmente conhecida como Tetê,2 reivindicar a construção de uma nova escola em Venâncio. Desta conversa ficou acertado que as mães fariam um abaixo-assinado e o entregariam à Prefeitura como forma de legitimar sua reivindicação.

Marli não foi não... Marli é contra isso porque ela [...], certo que nós somos do partido diferente, mas isso não inclui partido, porque a gente tá atrás do melhor pros filhos da gente, tá entendendo? Aí na reunião que houve com a Angeliete e com a Dadiva [ambas secretárias da Prefeita] não foi resolvido nada na reunião. Aí teve duas atas pra gente assinar, que elas falaram que era umas atas que elas chamam, é o livro que fica, né? Um pra ir e outro pra comprovar que a gente ia levar à Secretaria, pra ficar lá. E no caso da reunião, quando nós fomos pra lá, o Ademar [ex- prefeito], já falou outra coisa pra gente, que a ata que eles levaram pra lá era [abaixo] assinando, assinatura das mães como nós tá comprovando [permitindo], tá levando os meninos para Bitupitá. Então foi no caso que eu disse pra ele [Ademar]: pois elas andaram mentindo pra gente, porque elas falaram uma coisa no colégio e aqui já foi outra. Porque a gente assinou para vir comprovando que nós íamos pra reunião e não permitindo os meninos irem pra Bitupitá. Porque foi que elas não falaram a verdade? Pois é muito feio andar mentido, eu acho muito horrível. Porque eu acho que no caso da gente soubesse, a gente e nenhuma mãe tinha assinado, porque todas as mães estavam contra dos meninos irem pra Bitupitá. Aí é assim, aí ganha quem tem poder, né?3

Desse causo entre as mães que são contra a transferência das crianças para Bitupitá e a Prefeitura, a filha de Dona Otacília esclarece, continuando,

1 Entrevista em 7/03/2013.

2 Teresinha Maria Cerqueira Lima Gomes, ou Tetê, do PTB, foi prefeita de Barroquinha na gestão de 2012- 2016, continuando o mandato de Ademar Veras. Este, representante maior da facção política local, a família 14, foi eleito prefeito na gestão anterior à de Tetê e não obteve sucesso, em 2012, em razão de ter sua candidatura impugnada por cair no projeto Ficha Limpa, selecionando, então Tetê como candidata hábil para sua substituição.

Lorena: Quando a escola fechou?

Sinara: Agora nesse começo de ano mesmo. Você não fez a pesquisa ali na Marli, não? Ela não lhe falou nada disso não? Pois é, o caso aí foi sério desse negócio da escola aí. Aí é assim, eles prometeram se a gente organizasse esse baixo assinado, a lista dos alunos, ele [Ademar] ficou de vir fazer uma reunião com as mães de Bitupitá, e agora que ele disse que quando viesse ia mandar avisar, e até agora não chegou nenhum aviso. [...] Aí a gente espera que melhore mesmo, porque tem vez que a gente fica esperando, arruma os meninos, aí o projeto que ela [a filha] tá aqui é o projeto que não pode faltar, do auxílio, aí o que elas [professoras] pedem mais para as crianças não faltarem, aí no caso sem o transporte aí fica difícil da gente organizar o dever dos meninos.4

A exemplo do ocorrido no relato acima, muitas outras situações podem ser narradas envolvendo desentendimentos entre conformações sociais que, em dados momentos, podem ser entendidas como contendas entre familiares, em outros, como rivalidades entre os grupos políticos. O caso aqui apresentado por Dona Otacília e sua filha iluminam, no entanto, que tais distinções – família e política – usualmente construídas no intuito de conferir inteligibilidade à realidade social, não operam e não podem ser entendidas como parte de domínios separados.

Neste capítulo, portanto, pretendo apresentar algumas linhas sobre as formas de sociabilidade presentes neste vilarejo, buscando explorar as maneiras nas quais e pelas quais as pessoas arranjam e rearranjam suas formas de existir no mundo. Parto da ideia de que tais arranjos ganham forma e sentido de acordo com formações circunstanciais de agrupamentos que são conformados em meio às trajetórias de vida. Aqui, meu esforço é entender os processos subjacentes e próprios de se fazer família e de constituir os complexos e entrelaçados fios de sociabilidade entre pessoas no vilarejo.

Vale ainda ressaltar que nas próximas páginas serão construídas as concepções de: o que é ser da família, quem se considera ou desconsidera como parente, os entendimentos do sangue como símbolo comunicativo e território enquanto algo construído em meio às narrativas.

Estes são conceitos fundamentais, termos chave desenvolvidos por meus interlocutores. O que me interessa destacar e entender, outrossim, são as formas pelas quais as pessoas classificam a si mesmas e aos outros quando estas categorizações são acionadas. Busco saber quais os entendimentos nativos subjacentes aos tempos dos herdeiros novos/velhos e como isso interfere, classifica e ordena as relações entre as pessoas.