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CAPÍTULO 2 – FAMÍLIA É IGUAL POLÍTICA

2.1 O Evento com a médica cubana

Era um dia de fevereiro, um dia chuvoso, já que estávamos no período de inverno no Ceará. Eu me encontrava no vilarejo do Venâncio, na casa de Dona Marli, minha interlocutora de mais longa data. Tomamos nosso café da manhã em torno das sete horas. Muito embora o dia das pessoas da casa inicie entre as cinco e as seis da manhã, Dona Marli tomou mais uma xícara para me fazer companhia. O trabalho cotidiano de Dona Marli com a casa é bastante similar ao trabalho de outras mulheres do vilarejo, de acordo com minhas observações: acordar cedo, às cinco da manhã, fazer o café, passar uma rápida vassoura em casa, isso tudo ainda nas primeiras horas do dia. Na medida em que o sol aparece, tiram as roupas do varal, alimentam animais de criação que possuem, algumas galinhas, patos e porcos. Quando está na época, colhe-se feijão, acerola, pimentão e tomate dos pomares alocados em seus quintais. Prevendo a hora do almoço, D. Marli prepara a mistura, põe o feijão para cozinhar, corta hortaliças do tipo pimentão e tomate e as adiciona à farinha de mandioca. Essa é a base alimentar das famílias daquela região.

Nesse dia que narro, a casa recebe um trato especial; é varrida a todo instante, coloca- se uma mesa e algumas cadeiras na varanda, arrumam-se os jarros para ficarem mais aparentes e para ajustarem-se numa imagem mais bonita. Lá, ligam a internet, que no caso é ligar o aparelho roteador na tomada, emitindo sinal para aqueles que possuem a senha wi-fi da casa, uma situação que nos dias comuns não acontece, uma vez que o roteador passa o dia desligado.

Seguindo as preparações desse dia, o quarto da frente (quarto em que me alojo e que, na realidade, é o quarto de Mauro, filho mais novo do casal) recebe uma mesa de plástico e outras algumas arrumações especiais, tornando-se o consultório da médica que está por vir. A chegada da médica é ansiosamente aguardada pelas pessoas que já se concentram na varanda, em torno de dez. Muitas delas entram na casa e perguntam se haverá, de fato, consulta naquele dia. Dona Marli responde, então, de forma segura: “hoje quem vem é a médica mesmo, não é enfermeira, não.”

Antes de a médica chegar, a auxiliar de enfermagem e o motorista despejam na varanda uma caixa com medicamentos (remédios para pressão, soro, analgésicos), materiais de uso médico (luvas, máscaras, medidores de pressão e temperatura) e receitas de medicamentos a serem preenchidas. O fluxo de pessoas continua aumentando, elas chegam e se acomodam na varanda, aguardando a chegada da médica. As pessoas que param na casa são todas conhecidas de Marli, tem certa intimidade com a dona da casa. Abrem o portão sem sinalizar que chegaram, puxam cadeira, adentram a sala, ligam a televisão e se abancam nos sofás. A fila de espera não aumenta naquele intervalo de tempo. Algumas das pessoas, ao perceberem a morosidade daquela consulta, optam por desistir e retornar às suas casas para aprontar o almoço. Das que permaneceram, contei oito mulheres, algumas acompanhadas de seus filhos, e dos dois homens que lá surgiram, impacientes, marcando sua presença ao circularem entre a sala, varanda e calçada.

Em meio a esse fluxo, Seu Otacílio, esposo de Marli, comunica que irá em Barroquinha falar com o Prefeito Ademar. Horas depois, Marli me afirma que tal visita era para ver se ele consegue alguma coisa para ela, que seria um emprego para ela e para algumas amigas.

Das pessoas que observei, reconheci todas, pois, se não sabia do nome, pelo menos as feições não me eram estranhas. Posso afirmar que ali estavam presentes somente pessoas moradoras do vilarejo. Apesar dessa observação, não posso afirmar que estavam naquele dia na casa de Marli unicamente pessoas do grupo político da anfitriã. No entanto, daquelas que lá compareceram, todas tinham uma relação de proximidade com o núcleo familiar anfitrião.

Finalmente a médica Ana chega. É uma mulher loira, de média estatura, branca, fala um “portunhol” bom, as pessoas conseguem entendê-la e ela também as compreende. É uma mulher que fala alto, ou pelo menos sua voz se destaca, e parece bem relacionada com as pessoas que estava na casa da Marli. Entra fazendo piadas, “fazendo graça”. Desde a hora de sua chegada até o atendimento, passou quase uma hora. A médica abanca-se na sala, e muitos reclamam aos sussurros: “deixa a conversa pra depois, fofoquem depois da consulta.”

Contavam-se mais de dez pessoas na varanda, todas insatisfeitas e reclamando da demora para o início da consulta - o horário aproximava -se das onze quando a médica iniciou o atendimento. Cada sessão durava em torno de 15-20 minutos, porém, sem muitos recursos para examinar com maior precisão, a consulta era basicamente medir pressão, pesar e distribuir medicamentos para o coração, diabetes e dor de cabeça. Ao fim desse dia de consultas, D. Marli

guarda algumas guias de exames que foram passados para os pacientes. Ela mesma irá providenciar o agendamento de tais consultas e conseguir transporte para aqueles que precisem de exames além do município. O telefone neste dia não para de tocar e a movimentação permanece intensa até horas depois do término das consultas.

A presença da médica no vilarejo nos conduz a perceber algo a respeito daqueles presentes e ausentes àquele evento. Os que compareceram à consulta são pessoas conhecidas de Marli, tem intimidade com aquela casa e com os anfitriões - tanto que a transformação do ambiente doméstico em um consultório médico não evitou críticas, por aqueles que lá estavam, em razão da demora. As pessoas que ali compareceram eram, de alguma maneira, familiarizadas com a transformação do ambiente doméstico em um equipamento do serviço público.

Se estabelecermos que nesse evento há dois tipos de performance social, aqueles que compareceram à consulta e aqueles que não compareceram, o contraste entre ambos ilustra a quantidade de capital político e simbólico sendo transferido do município para um ambiente de completo domínio de D. Marli e sua família. Desse retratamento, percebemos a existência de uma distância politicamente estabelecida entre os simpatizantes da anfitriã e os não simpatizantes.

A presença da médica como representante de maior autoridade dita as regras do lugar. Ela chega tarde ao compromisso, sem pressa, segue para a cozinha tomar um café. Sua demora não é questionada diretamente, embora se perceba o incômodo das pessoas que esperam. Sendo a médica a única pessoa de fora, a cena continua com a formação daqueles “de dentro”, e a consequente: os doadores de serviços e os tomadores de serviços.

A proximidade entre Ana e Marli, especificamente, permite, naquele momento, uma equiparação de status entre a representante municipal e a representante local. Simbolicamente, as duas são as detentoras de maior capital simbólico naquele lugar.

Marli disponibiliza sua casa, liga a internet, permite que os vizinhos vejam sua casa sempre impecável. A médica, embora receba reclamações em razão de sua demora, é aguardada. Ali, Ana é uma autoridade, não só porque foi uma enviada da prefeitura, mas porque tem um tipo de conhecimento detido por poucos. O poder simbólico de um médico, naquele local, é comparado à autoridade de um prefeito. Os “de dentro, doadores serviços”, agentes de saúde, técnicos de enfermagem e motorista, são uma segunda segmentação do poder municipal dentro da casa de Marli. Eles foram incumbidos, da mesma maneira que Ana fora, de atribuições

específicas: distribuir medicamentos, passar guias de exames, transportar a médica. São, como Marli, representantes locais da prefeitura.

D. Marli e família, como anfitriões, fazem a ligação entre as partes. O evento relatado mostra, tão somente, a superposição de estruturas e de forças de poder. A microestrutura local, com a tessitura de suas próprias linhas – família, parentes, vizinhos, considerados, intrigados1 - encontra-se com a macroestrutura municipal – funcionários do município, correligionários, representantes que, em teoria, deveriam neutralizar a polaridade política.

O relato do dia da visita médica ao Venâncio destaca, como diria Max Gluckman (1987), as estruturas de poder sobressalentes naquela circunstância e sobre aquela localidade. A transformação do ambiente doméstico - da sala e do quarto do filho de Mali, em um consultório médico - a intimidade entre Marli e a médica e a movimentação de pessoas que, cotidianamente, já frequentam aquele ambiente, informam o quão personalistas são as relações do poder público entre alguns dos sujeitos do vilarejo.

O que a proposição de Gluckman, em sua análise situacional, nos permite inferir da narração deste evento é que a ausência de certos habitantes do vilarejo neste momento não se dá por mera falta de interesse em serem atendidos pela médica, mas sim por não poderem lidar diretamente com tamanha transmutação do poder político.

Do posicionamento da anfitriã como indicada do município para gerenciar toda esta situação, estabelece-se um distanciamento politicamente estrutural e estruturante com os sujeitos que lá não puderam comparecer. D. Otacília e sua filha, por exemplo, foram algumas moradoras da localidade que não compareceram à consulta. Eliedna, moradora da praia de Bitupitá, mostra bem como se dá essa personalização do poder público e os consequentes distanciamentos causados por interferências de ordem política.

Eliedna: depois que passa a política, assim, acalma tudo, convive, mas fica. Não pise no meu pé não, tá entendendo? Até hoje, os nervos estão a flor da pele. Se eu sair daqui pra ir no posto,

1 Como definido no capítulo 1, a ideia de consideração aplica-se ao alargamento das limitações impostas pelas relações de consanguinidade e afinidade. Pessoas consideradas são sujeitos que não necessariamente compartilham o mesmo código do que lá consideram como biológico, mas que, compartilham códigos morais e de conduta fortes o suficiente para estabelecer uma relação de “familiarização”. Da mesma maneira, as intrigas, são contendas entre familiares, desenvolvidas dentro do contexto de “familiarização” e “desfamiliarização”.

quando eu chego lá e não encontro remédio, aí tudo o que eu queria dizer, eu vou jogar lá: “deveria cair uma bomba nesta peste de lugar, acaba logo que isso aqui não presta, prefeito miserável”. O que eu tenho vontade de dizer, na hora que me magoa, se eu tiver a chance, eu vou rebolar.2 Isso tem muito aqui, e vai passar os quatro anos assim, do mesmo jeito, vai passar. Aqui não acaba política não, não acaba confusão de política, não acaba disputa de política. É como a Edneia tava dizendo. A geração que não votou agora, que já vai se arrumar na próxima, essa geração já brigou agora. Culumim3 com culumim, quer dizer, então tem muito isso, o nosso

lugar é política. Se eu tenho um terreno na beira da praia, eu não posso levantar uma casa porque eu sou Fundo Mole. Se eu tenho um terreno aqui pra levantar, uma pesqueira, mas não levanto. Eu mesma tenho um terreno, mas não levanto uma casa porque eu sou Fundo Mole, porque na hora que eu botar pra levantar, lá é uma pesqueira, mas na hora que eu derrubar a pesqueira, fazer uma casa, eu não posso, porque o Ademar tá no poder e o povo de Ademar vem derrubar a minha obra. Isso existe dentro do lugar, então essa revolta não vai acabar nunca.4

O evento na casa de Marli e a narrativa de Eliedna corroboram o distanciamento estabelecido pela transferência das atribuições do Estado para sujeitos políticos individuais. No caso de Eliedna, a personalização do poder exercido pelo chefe do grupo Cara Preta (família 14) impede a realização do que ela considera como um direito. Eliedna, enquanto cidadã de Barroquinha, tem por direito a liberdade para construir uma casa em seu próprio terreno. As pessoas que não foram à consulta da médica na casa de Marli também têm o direito de receber atendimento médico no local onde moram, mas em razão de “o nosso lugar ser política”, os acessos aos direitos são remanejados segundo as intenções dos detentores do poder.

Como foi apresentado no capítulo anterior, os laços de sangue e consideração são formas de garantir e ampliar o “aparentamento”. A depender da circunstância, essas conformações sociais mostram-se como família, como política ou a interseção dos dois. A narrativa da vinda da médica cubana ao vilarejo ilustra uma das faces de como a política é produção de troca, como a troca produz “aparentamento” e como “aparentamento” produz política.

2 Vale destacar que o verbo rebolar, no contexto cearense, para além de uma movimentação corporal ou dança, significa projetar algo para longe. Fala-se muito, por exemplo, “vou rebolar o lixo fora”. Aqui, Eliedna quis dizer que vai proferir, vai rebolar críticas aos adeptos ao grupo oponente ao seu.

3 Culumim é sinônimo de curumim, ou seja, criança. 4 Entrevista em fevereiro de 2017.

Diversos estudos sobre política e processos eleitorais no interior de regiões do Nordeste (CHANDLER (1981); LEWIN (1993); MARQUES (2002) NUNES LEAL ([1948] 2012; VILLELA (2008, 2009), VILLELA & MARQUES (2017), PALMEIRA & HEREDIA (1996), têm tratado das relações de interdependência recíprocas e de poder entre representantes do poder público e famílias locais como noções sinônimas aos conceitos de “coronelismo” e “nepotismo”.

Victor Nunes Leal define “coronelismo” como

resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa (1948 [2012], p. 23).

Ou ainda, nas palavras de Villela, “coronelismo” é “uma variante local da noção de “patronagem”, da ideia de centralidade do poder, de um centro sólido emissor ou retransmissor de meios de poder” (VILLELA, 2009, p. 208).

Falar de “coronelismo”, tomando por base os pensamentos de Nunes Leal e Villela, condiz com a coexistência das manifestações do poder privado com base política de cunho representativo e se vincula, diretamente, às maneiras pelas quais se desenvolveram as relações de poder na Primeira República (1889 – 1930). A figura do coronel, como trata Carvalho (1997) a partir das ponderações de Nunes leal, surge da “confluência de um fato político com uma conjuntura econômica”. A centralização do poder, que antes existia nas mãos do presidente da província, agora é pulverizada em razão da centralização dos poderes locais, concentrados nas mãos das oligarquias locais, campanha identificada como política dos governadores.

Em decorrência da superposição de formas representativas locais a uma estrutura política e econômica determinada, permitiu-se o entrelaçamento institucional entre família e política. Mais, a fusão entre família e política, notadamente definida como “coronelismo”, fomentou o debate de que família e política não podem coexistir quando suas atuações reverberarem nas instituições públicas. A importação dos quadros familiares para a esfera pública passa a ser moral e eticamente condenada e denominada de “nepotismo”.

O pensamento político brasileiro recorrentemente repousa suas construções na ideia de que a circulação das relações de poder concentra-se na representação de um centro (núcleo sólido), representado na forma de líder, chefe, patrão, senhor, coronel ou modelo estatal de aparelho (VILLELA, 2008, p. 207). Quando a isso não correspondiam, tais análises direcionavam-se para concepções sem Estado e, por isso, atrasadas. A família foi posta como parte desse núcleo centralizador, certamente por concentrar - através de uma espécie de legislação específica - as relações de parentesco e marcar limites entre grupos. Quando juntas, família e política despertam a incompatibilidade de coexistência, a impossibilidade de uma ser entendida pela outra.

O deslocamento proposto por Villela e Marques (2007), proveniente das discussões sobre “clientelismo”, “coronelismo” e “nepotismo”, constitui-se em explicações dos modos como os sertanejos fazem política e família, o que tem por potencial liberá-los da falta e ausência do Estado, esta intrínseca ao “coronelismo”. Os autores destacam, ainda, que as teorias que procuram explicar a fidelidade partidária na produção de família e na administração pública, fazem-no por meio da reciprocidade e monopólio do acesso e distribuição dos recursos. Tais visões corroboram uma perspectiva utilitarista subjacente a cenários políticos que se mostra insuficiente para dar conta da complexidade dessas relações (VILLELA E MARQUES, 2007, p. 35).

Mas aqui proponho que os entrelaçamentos entre política e família sejam percebidos em um mundo sem solidez, tomando de empréstimo a formulação de Villela: “a família é objeto de fabricação, de solidificações impermanentes, do mesmo modo como o é a política. Mais do que isso, que a política é um dos elementos através do qual se faz, desfaz-se e se mantém família” (VILLELA, 2009, p. 209). O que será tratado neste capítulo, a revés do ditado resgatado por Schneider é que, neste caso em pesquisa, a “política, tanto adensa quanto afina o sangue” (VILLELA E MARQUES, 2017, p. 38).

Serão aqui destacadas as formas de fazer política em seu contexto relacional no vilarejo de Venâncio, no município de Barroquinha e na macrorregião na qual estes estão inseridos. As duas facções políticas locais, família 12 e família 14, ambas sob o comando da família Veras, governam a região e possuem forte representação na localidade, estabelecendo uma movimentada dinâmica provedora de conflitos. Isso se revela em múltiplas redes de relações,

uma vez que a cada nova gestão municipal há a ascensão de um grupo e, com isso, o revezamento de beneficiamentos entre as partes do vilarejo e do município em geral.

O entrosamento percebido entre tais esferas, como será mostrado, intenta elucidar que tais estratégias políticas, longe de representar falta de conhecimento, são na verdade, maneiras articuladas daquilo de que eles têm melhor domínio.