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CAPÍTULO 2 – FAMÍLIA É IGUAL POLÍTICA

2.3 Fazendo política como se faz família

2.3.2. A familiarização de Rita

Enquanto a condição política de D. Otacília resultou a desfamiliarização, trago um relato que percorre outro caminho. Rita é uma das poucas moradoras do vilarejo do Venâncio que não possui vínculos de sangue com as famílias Belchior, Carvalho, Rodrigues e Veras. Foi seu pai que, ao fazer negócios com os herdeiros velhos, garantiu-lhe um espaço no vilarejo no qual pudesse construir sua casa.

Das vezes que encontrei Rita na casa de D. Marli, pude perceber certo nível de intimidade entre as duas. Quando Rita não estava ajudando Marli em seu quintal, esta delegava àquela ir ao centro de Bitupitá vender o que fora colhido em seu pomar. Rita é bastante entrosada com todas as pessoas do vilarejo. Por ser uma jovem mulher, Rita acompanha-se das demais jovens do vilarejo, a exemplo de Gleti, cunhada de Marli. Foi em uma de nossas conversas sobre

os acontecimentos durante o período eleitoral que Rita narrou o quão próxima é do núcleo familiar de Marli.

Rita: Pode até ser todo mundo amigo, mas se neguinho ficou de um lado e outro for doutro, aí começa. E esse ano foi um dos piores de todos, teve polícia, teve xingamento nas redes sociais, teve intrigamento de família…

Lorena: Quem foi que se intrigou?

Rita: Ali a Marli com a cunhada [Gleti], que é a mulher do falecido Edmilson, teve pêa [surra, agressão física], teve muita pêa. Mulher, eu não sei te contar [risos]. Porque assim, como eu trabalhava diretamente com o Jaime, que era [candidato] a prefeito, e ao mesmo tempo, eu era muito amiga dos 14 [grupo de Marli] aí eu me reservei muito, né? Eu fazia minha parte em cima dos dias da política, quando era questão de bagunça poderia sobrar pra mim, eu não ia. Ao mesmo tempo porque a pessoa que mora sozinha, como eu, às vezes a gente precisa de alguém do outro lado. Mas assim questão de precisar, tipo, eu não sei nem qual é a parte que vou precisar. A parte que vou precisar, eu acho assim, que em cima da terra você é todo mundo, mas em questão de saúde, a gente precisa. Pelo menos o pai do meu filho tem mais ou menos condição, aí já não preciso tanto de pedir para eles, né? Porque o que a gente precisa muito, assim, é do carro. Porque o posto de saúde de Bitupitá só funciona até sexta de manhã. Aí sexta à tarde, sábado e domingo o povo não adoece. E segunda de manhã também o povo não adoece, porque para começar a segunda à tarde e parar sexta de manhã só pode o povo não adoecer. Aí a gente valoriza o carro para deslocar até Barroquinha, porque daqui até Barroquinha não pode ser socorrido só pode lá. [...] Aí eu fiquei assim, muito na balança de não querer entrar no meio de chafurdo.22

Embora Rita tenha participado ativamente nas eleições de 2016 como cabo eleitoral de Jaime, família 12, ela admite que seu envolvimento com política tem limites. Ao falar do processo eleitoral, Rita revela sua devoção por Jaime, afirma que este é uma pessoa de princípios e que confia no seu papel enquanto político. No entanto, sua amizade com Marli fez com que ela reservasse a disputa política somente para o momento em que atuava como profissional. Nos momentos em que não estava fazendo campanha oficialmente para Jaime, Rita evitava maiores desentendimentos por ter conhecimento de que sua condição de mãe solteira e não familiar já

seria o suficiente para desestabilizar sua relação com as famílias do vilarejo. Enquanto Rita evitar conflitos de qualquer natureza, ela estará sob a custódia de pessoas como Otacílio e Marli. Essa amizade lhe garante auxílio em momentos difíceis, como em uma situação de urgência de saúde. Por Rita possuir consideração a eles, ela é, da mesma forma, considerada por este grupo.

Rita, se comparada ao status de D. Otacília, está muito mais presente, próxima, familiarizada e “aparentada” com as pessoas do grupo de Marli do que Otacília. Rita conseguiu, por meio de seu cuidado com atitudes políticas, tornar-se familiar àquelas pessoas.

Em nossa conversa, Rita revelou-me o quanto trabalhou na campanha de Jaime. Que sua ativa participação na campanha foi de grande valia para o fortalecimento da família 12. Chego-lhe a perguntar se eu conseguiria uma entrevista com Jaime, se ele é uma pessoa acessível, e Rita não só me garantiu como me concedeu o telefone de Jaime e de sua irmã para que eu pudesse agendar uma entrevista com o representante da família 12.

Seguindo os caminhos indicados por Rita, consigo agendar a entrevista. Em dado momento, em minha conversa com Jaime, pergunto como foi a participação dos moradores do Venâncio na divulgação de sua campanha. Jaime revela sua grande admiração pela matriarca da família, Dona Adelaide, esposa de Quelé, e mãe de Marli, e indica como um grande correligionário do vilarejo o filho de D. Adelaide, Edmilson.

Jaime fala das campanhas chefiadas por Edmilson e do quanto este havia se doado para a causa política da família 12. Mas revela que seu falecimento, em 2015, trouxe comoção, não só por este ser uma pessoa muito boa, mas igualmente porque era o seu elo com o vilarejo do Venâncio, ressaltando que a ausência de Edmilson na disputa eleitoral foi muito sentida. Ao perguntar de outros nomes do vilarejo que participaram ativamente da sua campanha, Jaime lembra do nome de Gleti, esposa de Edmilson, e também cita Adelaide Neta e sua mãe Chaga, esta filha e aquela neta de D. Adelaide. O nome de Rita, porém, não surge nessa lista.

Percebi que o “esquecimento” do nome de Rita como uma representante no vilarejo da família 12 se deu por, justamente, ela não ser das famílias do Venâncio. Embora Rita tenha trabalhado ativamente, como a própria e outros relataram, a sua representatividade como cabo eleitoral foi pouco lembrada pelo chefe da família 12.

O que se apresentou para mim como um fato curioso foi que, mesmo Edmilson não tendo participado das eleições de 2016, já que falecera em 2015, ele foi lembrado como uma das

pessoas de maior representatividade política do lugar, e não Rita. Deste relato, infiro que, neste caso, o sangue de Edmilson o fez ser mais percebido do que Rita. Aqui, família fez política.

A dinâmica das variáveis de prestígio, familiarização e desfamiliarização, são produtos da capacidade dos agrupamentos políticos transformarem-se em grupos familiares e vice-versa. A política é um processo dinâmico, nos quais estão impressas qualidades, ações tradicionais e atribuições. Em muitas das entrevistas a política foi lembrada a partir das sensações. Política é algo quente, que machuca as pessoas, pois a ferida está inflamada, como retrata Eliedna. Em outros momentos, a política foi caracterizada como algo vivo, onipresente, lembrada como algo de onde se evocam sentimentos: as pessoas ficam egoístas, com raiva, têm rancor e medo. A família igualmente evoca todos estes sentimentos e em ambas conformações temos relações de confiança, pois os grupos são unidos pelo compartilhamento de uma mesma ideologia, por mesmas visões de mundo. Do mesmo modo, família e política podem ser entendidas por semelhanças comportamentais, desgaste em manter as relações, por uma luta em comum, por paixão ou por amor. Ambas possuem qualidades que correm na veia, tal como o sangue.

A referência, neste capitulo, às formas locais de como o sangue é adensado ou diluído em meio às relações políticas do cotidiano, servirá de base para o que irei discutir no capítulo 3. Será ilustrado que os entrelaçamentos, as classificações, inclusões ou exclusões de sujeitos individuais, parentes, familiares, herdeiros velhos e novos dentro de quadros (como a herança), ou fluidos (como os agrupamentos políticos e os grupos familiares), são maneiras de se falar sobre a propriedade, usos e transferência das terras que habitam.