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CAPÍTULO 3 – AGORA A TERRA TÁ PEQUENA PARA TANTO HERDEIRO

3.3 Os 17 cabeças velhas e a inalienabilidade da terra

Cícero Vieira: Tudo é nosso, uma família grande, Belchior e Carvalho. Eu sou filho da finada Chicota, esta filha da finada velha Vitorina, aqui só da Belchior e Carvalho, sabe? É muito. Velha Vitorina é a antiga velha, morreu com 95 anos. Aqui é família velha, se tem muito velho, só de herdeiro dessa casa, desse terreno, são 17 herdeiros velhos, fora os novos. Aí quando eu me entendi eu já era Belchior.

Lorena: Eu gostaria que o Sr. me explicasse como é a história desses herdeiros.

CV: Rapaz, os herdeiros é a velha Vitorina, a Vitorina que era a mais velha do lugar, era a dona desse lugar, o finado Henrique, que é irmão dela, o finado Jovi [joviniano], o finado Livi[lívio], tudo um irmão só, mas eram donos. O finado Jovi morreu com 100 anos, era velhozinho. Esses herdeiros velhos que morreram tudo do meu tempo quando eu me entendi, eu já era gente, aí eu estou com 80 anos, né? E eles já eram gente. Aí acabaram tudo, morreu tudo.

[...]

CV: Olhe, é assim: Tio Mané, no tempo do tio Jovi, tio Jovi pega e dá a parte dele pra Tio Mané Vitorino, dá e aumenta a dele. Aí da minha avó[Vitorina] um ano era só pra dez [filhos da Vitorina], aí depois, em outro ano, passa pro Tio Henrique, ai noutro ano Tio Mané Vitorino tem uma banda[metade] e eles dois [Vitorina e Henrique] tem a outra, certo? Se é dez mil reais o carnaubal, tio Henrique fica com metade, e a velha Vitorina com ¼ e Mané com outro ¼. E assim vai dividindo, todo mundo. [...]

Quem faz a divisão as vezes é o Louro [Otacílio], da época que eu mandei arrendar o carnaubal, pra ver se aumentava, porque ganhava uma mixaria, porque no começo dava 1.000 reais. Aí depois eu botei pra frente aí deu 1.500 reais. Aí quer dizer que cada herdeiro desses 10 da velha Vitorina participou[ganhou] 150 [reais] para cada um. Ai os 150 de cada um, como eu não tinha mãe, nem pai, ficou em nos três (irmãos) e os outros [primos que eram em dez, oito irmãos] tocava nem 15 [reais], ai eles ignoravam muito, eu explicava que era porque vocês são dez, são oito, são sete, e nós somos três.7

Se fizermos um contraponto com a entrevista de D. Adelaide que abre o capítulo e o trecho acima de Cícero Vieira, podemos perceber que ambos tratam do mesmo assunto, a distribuição dos rendimentos dos carnaubais8. Podemos entender que a distribuição ocorre de maneira cíclica com uma periodicidade trienal. Se convencionarmos como primeiro o ano 1, então teremos que o rendimento irá de forma integral para um herdeiro velho e seus descendentes, seguindo na mesma convenção, o segundo ano como ano 2, o rendimento irá de maneira integral para outro herdeiro velho e seus descendentes, e por fim, o terceiro, ano 3, é fracionando em 3 partes iguais, cada parte correspondendo ao herdeiro 1 e 2 e um terceiro outro herdeiro, que ganhou direito, por meio de concessão, a ter essa parte.

Conferindo nome às partes, podemos identificar e convencionar que o ano 1 será o tempo em que os 10 cabeças velhas herdeiros de Vitorina Rosalina são os beneficiários, no ano 2, será a vez dos 7 cabeças velhas de Henrique Ferreira e no terceiro ano os rendimentos são partilhados em três, sendo a metade do ano de direito de Mané Vitorino, e a outra metade dividida entre Vitorina e Henrique. Abaixo, pode ser observada graficamente tal distribuição.

7 Entrevista com Cícero Vieira, fevereiro 2017.

8 Anualmente os herdeiros arrendam seus carnaubais para uma empresa que utiliza a palha da carnaúba para fazer cera.

Gráfico 1: Ciclo de distribuição dos lucros do carnaubal

Logo quando iniciaram a distribuição dos rendimentos dos carnaubais, ainda na primeira geração, aquela dos irmãos Vitorina, Henrique, Lívio e Joviniano, a partilha foi realizada entre três dos quatro irmãos: Henrique, Joviniano e Vitorina. Segundo relato de Cícero Vieira, Jovi deu sua parte para seu sobrinho Mané Vitorino, filho de sua irmã Vitorina, o que garantiu a este mais uma parcela dos lucros, para além daquela que já possuía como sendo filho de Vitorina.

Como disse Cícero Vieira, são poucos os herdeiros que podem contar com os rendimentos advindos do arrendamento. Com exceção dele e de seus dois irmãos, a maioria das pessoas recebem uma mixaria, ou seja, um valor irrisório, às vezes R$15,00 reais por pessoa, por ano. Essa fragmentação contínua deve-se à formação constante de núcleos familiares descendentes dos 17 cabeças velhas.

Por exemplo, Cícero Vieira e os irmãos recebem os rendimentos porque sua mãe, Chicota, é filha de Vitorina. Na geração de Chicota9, ela e os 9 irmãos dividiam entre si os lucros quando estava no ano de Vitorina. Da mesma forma que Cícero Vieira e seus dois irmãos recebem pela parte de sua mãe, seus tios e primos por parte da mãe de Cícero Vieira também recebem.

Mas como fora dito, Cícero tem somente dois irmãos e recebem uma quantia maior, que chega até R$100,00 reais, enquanto que os núcleos familiares de seus tios e tias, por parte de mãe, eram compostos por uma quantidade maior de descendentes. O mesmo acontece com todos os moradores do vilarejo, a depender da quantidade de irmãos que se tem e a quem genealogicamente se aproxima, a quantia do lucro por pessoa irá variar. A esse fato da divisão dos rendimentos, são poucos os que deixam de receber já que todos os herdeiros do Venâncio descendem dos 17 cabeças velhas.

Se a quantia que recebem é tão pífia quanto falam, então passei a me perguntar do porquê de ainda haver a preocupação em executar anualmente esta partilha. Certamente as pessoas tem interesse em receber os lucros, mesmo que a quantia seja pouca, mas porque a manutenção de um quadro de partilha tão rígido? O que isto nos informa?

Podemos perceber que a lógica distributiva dos lucros dos carnaubais não possui o rendimento como finalidade imediata, pois a tendência do valor pago para cada família é ser diminuído na medida em que as gerações transcorrem. A característica pouco utilitária dessa transação me faz pensar que a existência de regras tão rígidas estão mais para servirem de quadros referenciais classificatórios do que para a obtenção de lucros financeiros. Classificação e organização me parecem ser o ponto de partida para compreender o sentido subjacente conferido à distribuição dos carnaubais. Essa lógica faz sentido se pensarmos que tal classificação é realizada tomando como referência a geração dos 17 cabeças velhas.

As ideias de Wiggers, ancoradas em Mauss e Durkheim em “Algumas formas primitivas de classificação”, sugerem que a classificação entre grupos pressupõe uma conformação hierárquica de grupos que os mantém, não como isolados, mas sim como grupos que mantém entre si relações definidas como um todo (WIGGERS:83). O modo como os herdeiros estabelecem o entendimento de si, se são herdeiros velhos ou novos, se fazem parte da herança de Vitorina, Mané Vitorino ou Henrique, se mostram como quadros organizativos que assim se apresentam para classificar e unir as ideias, unificar o conhecimento. Mais do que garantir uma renda de sobrevivência, algo de valor “mercantilizado” os valores recebidos pelos carnaubais mais servem para marcar fronteiras, criar conhecimento sobre pessoas, famílias, lugares. As transações garantem conexões, pois o que interessa é estar conectado.

A distribuição do carnaubal se mostra como um sistema lógico organizatório que permite os herdeiros novos conectarem-se com os velhos, garantindo a continuidade dos hábitos

de tradição. Como já foi mostrado, a herança “física” do Venâncio são os lucros dos carnaubais e o território individual das casas mais áreas comuns. O ponto de encontro entre estas duas heranças está ancorado no fato de ambas terem na família, no seu sentido aqui conferido, o seu vínculo comum.

Como as regras locais possuem lógica própria, cujo fim último é poupar ao máximo a integridade dos patrimônios territoriais, a herança passa a ser fruto de manifestações de preferência e consideração. Relacionada ao fato de que se há indivíduos, filhos que atingiram a maturidade e que contrairão matrimonio, uma série de condições deve ser satisfeita para que se assegure a existência camponesa, e não necessariamente algo deixado pela morte de seu genitor.

Moura (1978) aponta que a herança está mais para manutenção da possibilidade de existência camponesa do grupo que do que para a posse de um bem, enquanto propriedade individual, aqui entra questão da inalienabilidade da terra e das formas jurídicas dessa apropriação. Lógica especifica da herança da terra em discrepância às regras do código civil.

A lei de herança no Brasil, amparada pelo Código Civil brasileiro, como já fora abordada, prevê, em via de regra, 50% para o cônjuge e 50% para os descendentes. Na maneira pensada pela legislação, o vínculo aqui é estabelecido entre a pessoa, o indivíduo e o objeto, terra possui, por sua vez, status de bem transferível. O que surge no vilarejo do Venâncio, por sua vez, é uma lógica distributiva que não se enquadra nos termos legais de um Estado legalista- jurídico. A Lei de herança, vinculada ao entendimento da mercantilização da terra não encontra referência no regime distributivo percebido no Venâncio. Neste lugar, a lógica distributiva dos carnaubais é operacionalizada pelo regime de relação entre pessoas e coisas. A distribuição dos carnaubais está para o relacionamento das pessoas por meio da terra, e esta permite mobilizar relações por meio do dinheiro trocado.

Mas como, de fato, os casamentos endogâmicos permitem contornar a aguda fragmentação da terra? Se, os quadros distributivos dos lucros do carnaubal servem mesmo de referência do próprio entendimento destas pessoas enquanto grupo, o que garante e como se garante que estas terras não serão parceladas exaustivamente?

Concordo quando Woortmann (1994,p.258) afirma que as práticas matrimonias reforçam os laços de solidariedade dentro do grupo, ao mesmo tempo em que cimentam os

vínculos entre a parentela. O que estou denominando aqui de estratégias matrimoniais endogâmicas faze referência ao trato que certos núcleos familiares possuem no momento em que o casamento surge como inevitável. Essas práticas não são livres de significados. Os casamentos prescritivos, de preferência quando há troca de “primos irmãos”, denuncia o entendimento para além da reprodução daquele núcleo familiar. Tais casamentos, longe de possuírem uma finalidade imediata, que é formar uma família, fazem parte de um ciclo reprodutivo maior, não somente da família, mas do substrato no qual esta família se reproduz, a terra.

Leach (1961) já afirmou em seus estudos, com maior ênfase naquele realizado em Pul Eliya, que o parentesco não é uma coisa e si mesma, e aqui parto da mesma ideia, de que no Venâncio, tais práticas matrimoniais são um reflexo do processo de sucessão da propriedade, concretizado pelos padrões de herança estabelecidos no contexto do Venâncio. A gestão das terras do Venâncio, dessa maneira, possui por regra os casamentos preferenciais entre “primos cruzados” gestada em meio à tradição e resgatada anualmente com a divisão dos rendimentos dos carnaubais.

A genealogia acima serve de modelo ilustrativo de como ocorre a circulação da herança nas terras do Venâncio. A primeira geração (G1) é composta por quatro irmãos. Dois deles Vitorina e Henrique, contraíram matrimônio exogâmico, seus parceiros vieram “de fora” da família. Ao casamento de Vitorina com Manoel, este passa a ser herdeiro do mesmo modo que acontece com Ana, ao casar-se com Henrique. Possuindo em mente (G1) a herança ou permaneceu ou foi aumentada, pois houve, neste momento, a agregação de patrimônio advindos dos casamentos exogâmicos.

Na geração subsequente, dos filhos de (G1), os denominados 17 cabeças velhas (ver genealogia em anexo), deram início às práticas matrimonias endogâmicas. O modelo de casamento se dá na replicação da aliança entre primos legítimos, que aqui incide no modelo de casamento entre “primos irmãos” (WOORTMANN, 1994: 258). É o que percebemos no caso das alianças entre Manoel Vitorino e Úrsula e Paulo Henrique e Maria Vitorina, sendo Maria Vitorina e Manoel filhos de Vitorina Rosalina e Úrsula e Paulo Henrique filhos de Henrique Ferreira.

A genealogia ainda nos mostra que, se levarmos em conta a legislação sobre herança, esta deveria ser fragmentada e dividida entre os 17 cabeças velhas, pois foram formados novos núcleos familiares. No entanto, o casamento dos “primos irmãos” que aqui tomo de modelo, no lugar de fragmentar a herança, garantiu que a herança retornasse para a família. Se na (G1) houve um processo de fissão, na (G2) percebemos a fusão entre famílias.

Levando em conta os casamentos ilustrados nesta genealogia, temos ainda que o casamento de “primos irmãos” ocorrido na (G2) foi replicado na (G3), por Quelé e Adelaide e na (G4), por Marli e Otacílio. A (G3), deveria continuar a dividir a partir da fragmentação virtual da geração anterior. No entanto, esta condição foi contornada com as práticas de casamento que garante a circulação de pessoas sem dividir a terra. Como traz Paoliello (1999), a terra, neste contexto, atua como substrato concreto e símbolo organizador das relações, antes de ser objeto material, ela é prática e universal.

Tais modelos de casamento não são estratégias aleatórias. Como aponta Leach (1961), as práticas de parentesco aqui observadas, tanto as de aliança quanto as de descendência, são expressões de relações de propriedade que perduram ao longo do tempo. Diz o autor, que a herança separa, o casamento une e a propriedade perdura.

A aliança faz você ter um direito “restrito”, limitado no sentido de que quem casa herda, mas não transmite. O herdeiro dessa nova aliança não terá herança partilhada como sua, ou como uma propriedade individual, não terá participação de 50%, terá uma participação restrita junto com seus irmãos e seus descendentes. Aqui, quando se trata de herança, pode- se olhar para cima, ou seja, para os cabeças velhas, de modo distinto, dentro de uma concepção de herança de acordo com a prescrições jurídicas acionadas em contextos “metropolitanos”, olha-se para o lado e para baixo, em que tal herança seria cada vez mais fragmentada, pois sempre será regida pela condição de 50% para o cônjuge e 50% para descendentes.

A herança dos lucros dos carnaubais nos permite ver que da segunda geração em diante, aquela dos 17 cabeças velhas, a herança foi “congelada”, ou seja, não surgiram fragmentações posteriores. Assim, como traz Paoliello (1999), a herança permite que haja a reposição inter-geracional dos patrimônios territoriais e pode ser definida como fator de permanência e da reconstrução da “condição camponesa”.

O que interessa são as trocas em si e não a quantificação do objeto, a lei olha a relação entre pessoas individuais, em que coisas trocadas possuem valor agregado. No vilarejo privilegiam a relação entre pessoas por meio de terceiro objeto (sistema de jurisdição local). Convertimento da posse em direito de propriedade. Herança pressupõe divisão de valor igualitário, meio a meio, individualizada. No Venâncio, ela tem um tom moral, afinal ela é coletiva, não se parte aquilo que não se tem posse efetiva.

CONCLUSÃO

Certo dia fui a uma consulta médica em Campinas. Na conversa com a médica, esta me pergunta qual o tema de minha pesquisa. Eu respondo: “estudo família e política no interior do Ceará, as disputas entre famílias para se manterem no poder”. Ela, me pergunta em réplica: “nossa, isso ainda existe?”. Respondi dizendo: “sim, ainda existe”. Repetir esse “ainda” me corroeu por um bom tempo. Fiquei pensando, como eu, pesquisadora, mestranda, cearense, permitiria que as pessoas continuassem a reproduzir essa ideia cristalizada de “ainda”, de um Nordeste com o presente no passado?

Encontrei alento nas palavras de Belchior, epígrafe desta dissertação. “Ninguém é gente! Nordeste é uma ficção!” É sobre essa ficção a que se refere Belchior, o objeto dessa dissertação. O “ainda” da médica me fez lembrar dos tantos “Nordestes” e “Sertões” que existem por aí. Mais, me fez perceber da distância que perdura no imaginário dos centros urbanos, ou em contextos similares, que práticas tais como as aqui descritas, são sinônimas de atraso, de uma localidade congelada no tempo e no espaço. Famílias brigando entre si pelo domínio da máquina pública, quadros da política servindo de moldes para os quadros da família e vice-versa.

O meu intento aqui, tratando de um tema tão clássico dentro dos estudos de populações em contextos rurais e da própria antropologia social, é, tão somente, dar luz a práticas que, se descoladas do contexto no qual está inserida nesta pesquisa, podem ser tomadas por universais: aliança, descendência, troca e relações de poder. Nada de novo para a Antropologia. O que desta pesquisa cabe destaque é pensar em como as práticas de fazer política, fazer família e multiplicar a herança, práticas estas notoriamente presentes em contextos tradicionais, são atualizadas, repensadas e adequadas ao contexto daquelas pessoas que hoje as concretizam, podendo estes contextos saírem do local para o nacional.

Aqui, busquei trabalhar como as ideias de posse e uso da terra são pensadas e repensadas dentro dos constantes fluxos envolvidos nas práticas de familiarização e desfamiliarização. Tais ideias são evocadas por uma miríade de contextos, usos e práticas, e buscando constantemente dar força às expressões dos interlocutores, alguns autores e autoras se debruçaram ao entendimento relacional da terra com aqueles que a habitam. Uma dessas autoras

é Borges (2014) ao discorrer sobre o verbete “Terra”, em que traz: “Daí a importância de observarmos quais atributos acompanham o termo terra para entendermos seus significados ao longo da história e suas diferentes formulações no presente” (2014, p.431).

Terra é o lugar de trabalho, de criar os filhos e as plantações, é o chão de morada e o lugar onde se passam anos investindo para levantar casa, equipá-la com eletrodomésticos e móveis. No caso de pesquisa que aqui apresento, deslocar tais construções sobre o que é – ou não – terra e território é trazer uma abordagem que agregue novos valores e imagens àquilo que já possui um entendimento cristalizado. Uma destas imagens cristalizadas é a de “sertão”, em que facilmente o contexto do Venâncio poderia ser representado.

No entanto, eu, enquanto nativa do mesmo estado que meus interlocutores, percebo que assimilar aquela região à uma configuração próxima àquela do Sertão não se apresentaria como correta. Para contornar tal imprecisão, a ideia de interior1 tem mais a agregar. Interior seria

uma “territorialidade”, nos termos de Godoi (2014), erigido dentro das práticas e dos discursos cotidianamente firmados.

Interior se constrói num misto de conformações. Dadas as devidas diferenças climáticas e geológicas, interior, em alguns momentos, aproxima-se do “sertão”, este, o lugar de temporalidade e dinâmica próprias, identificado assim por sua oposição ao litoral. Este, por sua vez, faz oposição ao “sertão” por ser reconhecidamente o lugar da capital, do progresso e da modernidade. Em outros, distancia-se por não contar com tantas adversidades relacionadas ao clima, dentre outros fatores que a ele possam ser agregados. Do litoral, traz consigo a composição de ambientes em meio às dunas, os ventos e ao mar, mas tal imagem não é inteiramente fiel à dinâmica socioespacial de Barroquinha.

* * *

Os processos de fazer família no vilarejo do Venâncio são atravessados por limites de inclusão e exclusão de pessoas. Ser da família compreende possuir a mesma ascendência, compartilhar origem a Alexandre Ferreira da Costa Veras. É ainda ter laços de consanguinidade, afinidade e afinidade não consanguínea, como no caso de pessoas “de fora” que entraram na

família por meio do casamento. Ser da família compreende pertencer aos sobrenomes Veras, Carvalho, Belchior e Rodrigues e desta identificação ter o espaço que habita referenciado.

O causo de Dona Otacília mostrou que, para mais que sangue bom, mais do que ser consanguínea e afim e reproduzir os casamentos entre “primos irmãos”, é preciso ter consideração. Por meio da consideração pessoas são inseridas em determinados grupos, mas a contrapartida dessa aceitação é representar e atuar com condutas e códigos comuns, pois a consideração não se faz sozinha. Considerar subentende ser considerado. O causo de D. Otacília e Rita ilustram bem como a consideração atua.

Possuir ascendência comum não foi suficiente para gerar aproximação entre D. Marli e D. Otacília, seus envolvimentos na política e os desdobramentos das formas de fazer política mostrou que neste vilarejo alguns são mais parentes do que outros. A política, claramente, é um elemento que dissolve ou engrossa o sangue, a depender da posição que se tome frente às facções