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Querida Kitty _QueridaKitty_Final.indd 1 30/03/ :46

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Academic year: 2022

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Querida Kitty

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clássicos zahar

emedição bolso de luxo Aladim*

Peter Pan*

J.M. Barrie Alice Lewis Carroll

Sherlock Holmes (9 vols.)*

A terra da bruma Arthur Conan Doyle

As aventuras de Robin Hood O conde de Monte Cristo Os três mosqueteiros Alexandre Dumas

O corcunda de Notre Dame Victor Hugo

O ladrão de casaca*

Arsène Lupin contra Herlock Sholmes*

Maurice Leblanc O Lobo do Mar*

Jack London O Pequeno Príncipe Antoine de Saint-Exupéry Frankenstein Mary Shelley

20 mil léguas submarinas A ilha misteriosa Viagem ao centro da Terra A volta ao mundo em 80 dias Jules Verne

O Homem Invisível*

A máquina do tempo H. G. Wells

Títulos disponíveis também em edição comentada e ilustrada (exceto os indicados por asterisco)

Veja a lista completa da coleção no site zahar.com.br/classicoszahar

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Anne Frank

Querida Kitty

Um romance epistolar

Traduzido dos manuscritos originais em holandês de Anne Frank por Karolien van Eck e Ana Iaria

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Copyright da tradução © 2019 by Anne Frank Stichting, Amsterdam Gra�a atualizada segundo o Acordo Ortográ�co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa e ilustração Rafael Nobre Preparação Tamara Sender Revisão Marise Leal Adriana Bairrada Renata Del Nero

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Frank, Anne, 1929-1945

Querida Kitty : Um romance epistolar / Anne Frank ; tradução Karolien van Eck , Ana Iaria. — 1a ed. — Rio de Janeiro : Zahar, 2021.

(Edição bolso de luxo) Título original: Liebbe Kitty.

isbn 978-85-378-1916-6

1. Crianças judias no Holocausto – Holanda – Amsterdã – Biografia 2.

Frank, Anne, 1929-1945 – Literatura infantojuvenil 3. Judeus – Holanda – Amsterdã – Biografia – Literatura infantojuvenil I. Título II. Série.

21-58739 cdd-028.5 Índices para catálogo sistemático:

1. Anne Frank : Biografia : Literatura infantil 028.5 2. Anne Frank : Biografia : Literatura infantojuvenil 028.5 Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – crb-1/3129 [2021]

Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz s.a.

Praça Floriano, 19 — sala 3001 — Cinelândia 20031-050 — Rio de Janeiro — rj

Telefone: (21) 3993-7510 www.companhiadasletras.com.br www.zahar.com.br

facebook.com/editorazahar instagram.com/editorazahar twitter.com/editorazahar

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sumário

Apresentação: Quem mais além de mim vai ler estas cartas no futuro?,

por Leda Cartum 7

A Casa dos Fundos 15

Nota da tradução 283

Posfácio: Por que eu quero escrever!, por Laureen Nussbaum 287

Cronologia 303

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apresentação

Quem mais além de mim vai ler estas cartas no futuro?

Há pouquinho, quando eu estava escrevendo algo sobre a madame, ela chegou perto de mim e eu fechei rápido o diário.

“Mas, Anne, não vai me deixar ver?”

“Não, senhora.”

“Nem só a última página?”

“Não, também não, minha senhora.”

Os textos do caderno xadrez vermelho e branco que Anne Frank havia ganhado por seu aniversário de treze anos tornaram-se um livro, editado pelo seu pai, pouco depois do final da Segunda Guerra Mundial. A primeira edição se esgotou em poucos meses, e a obra logo se tornou um sucesso internacional. Em 1955, ou seja, exatamente dez anos depois de Anne ter morrido de tifo no campo de Bergen-Belsen, o livro foi adaptado e virou uma peça de teatro que conta a história dos anos em que ela viveu na Casa dos Fundos, escondida dos nazistas. Com estreia no Cort Theatre, na Broadway, a peça ganhou grandes prê- mios, rodou várias cidades dos Estados Unidos e diversos países do mundo — na Alemanha, foi vista por mais de

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dois milhões de pessoas. A partir dessa peça, foi produzido em 1959 o filme O diário de Anne Frank, ganhador de três Oscar, dirigido por George Stevens. Desde então, foram feitas inúmeras adaptações para o cinema a partir do diário;

em 2019, a Netflix lançou um documentário em que a atriz Helen Mirren lê trechos de Anne Frank, intercalados com depoimentos de sobreviventes do Holocausto. Até hoje, o livro já vendeu mais de 30 milhões de cópias e foi traduzido para mais de setenta línguas.

E agora, pela primeira vez em português, é lançada esta edição do livro idealizado pela própria Anne: o romance epistolar que ela escreveu a partir das páginas do seu caderno.

A história de Anne Frank na Casa dos Fundos, relatada por ela mesma na forma de cartas para a amiga imaginária Kitty, passou a ser tão conhecida, tão lida e adaptada que fica fácil esquecer o caráter que aquele diário tinha enquanto era escrito. Todo adolescente tem segredos, coisas que guarda dentro de si e que só compartilha com amigos seletos — ou nem isso. Mas, no caso de Anne Frank, existe ainda mais uma camada nisso tudo: ela escondia um diário e morava dentro de um esconderijo. É um caderno, então, que foi du- plamente secreto — o caderno secreto de uma menina que vi- via com mais sete pessoas dentro de um apartamento secreto.

É um tanto absurdo pensar que, no intervalo de apenas dez anos, aquilo que estava mais escondido no mundo aca-

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bou por ganhar a maior evidência do mundo. “Quem mais além de mim vai ler estas cartas no futuro?”, Anne Frank se pergunta no dia 7 de novembro de 1942. E a pergunta é legí- tima: naquele momento, as cartas para sua amiga inventada —

“aquela amiga”, como ela diz no início do diário, com quem se pode ter uma conversa um pouco mais íntima, desabafar sem medo de julgamentos —, essas cartas são, na verdade, para os próprios olhos de Anne, e para mais ninguém. É ela mesma quem se lê, depois de ter se escrito; Kitty é a possibilidade que Anne cria de se olhar de fora, de longe, e perceber o que está vivendo e como tudo aquilo a afeta por dentro. “É um fenô- meno estranho, às vezes me vejo através dos olhos de outra pessoa. Nesses momentos, observo com toda tranquilidade os assuntos de uma tal de Anne Robin, como se estivesse folhe- ando um livro sobre a vida de uma pessoa estranha.”

Uma pessoa estranha. Anne Frank é essa pessoa estra- nha para nós hoje, oitenta anos depois, e aqui, no Brasil, longe da Amsterdam onde ela se escondeu. No entanto, quando folheamos as páginas do seu diário, pode acontecer de surgir, aos poucos, uma estranha familiaridade. Estamos diante de uma menina e de sua adolescência: suas confu- sões, seus medos, seus desejos. Uma menina que se abre com o caderno muito mais do que com qualquer pessoa ao redor. Otto Frank, o pai de Anne e o responsável pela pu- blicação póstuma do diário, disse que, quando conseguiu ler as palavras da filha depois de saber que ela tinha morrido, ficou surpreso em descobrir alguém muito diferente de

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quem ele conhecia na convivência diária — e sua conclu- são foi que a maioria dos pais nunca realmente conhece os filhos. A própria Anne admite, em mais de uma passagem, que se comporta sempre de forma diferente do que devia quando está com as outras pessoas. É no papel que ela pode ser quem é, ou ser quem ela quer ser; e é também pela escrita que ela consegue deixar de ser quem é, sair do con- texto difícil em que é obrigada a viver, tornar-se outra para então se observar por olhos estranhos. Nós, agora, lendo seu diário depois de tanto tempo, fazemos o movimento contrário — somos essas “outras pessoas” que, com esse caderno secreto nas mãos, dentro da intimidade de alguém que não conhecemos, podemos por um instante ver a nós mesmos pelos olhos de Anne: como seria viver essa vida?

Anne Frank não começou a escrever porque era uma refugiada de guerra e queria registrar a sua condição. Em uma das primeiras entradas do diário, ainda quando está em sua casa e não precisa se esconder, ela diz que o maior medo da turma da escola naquele momento é da reunião de professores, que vai decidir quem passou de ano e quem não. Mais do que uma fugitiva que só pode ver o mundo pelas frestas da janela, com binóculos de longo alcance, Anne é uma adolescente que está descobrindo quem pode ser no mundo, conhecendo sua própria personalidade, e com isso também amadurecendo como a escritora que ela já sabe que pode ser. Ela explora possibilidades de estilo, experimenta tons e vozes diferentes, descreve personagens,

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esboça pequenos contos, faz uma ode à sua caneta-tinteiro (queimada por acidente).

“É por isso que acabo sempre voltando ao meu diário, ele é o meu começo e o meu fim, porque Kitty sempre tem paciência comigo.” Ela imaginou uma amiga que entende suas preocupações, e esse foi o recurso que encontrou para escrever o que tinha vontade — porque “o papel aceita tudo, as pessoas não”; e porque ela se importava “mais com lembranças do que com vestidos”. Acompanhamos uma Anne, dos treze aos quinze anos, que se sente cheia demais “a ponto de transbordar”, que fica confusa com a montanha de coisas que pensa à noite na cama, sem saber se ri ou se chora, que se preocupa com o que pensam dela (“Todo mundo me considera fofoqueira quando falo, ridí- cula quando me calo, atrevida quando respondo, manhosa quando tenho uma boa ideia, preguiçosa quando estou cansada, egoísta quando como um pedaço a mais…”), que se incomoda com os próprios pais que “nos levam a sério quando fazemos uma piada e riem quando falamos a sério”.

E, no meio de tantos segredos, o segredo maior: o es- conderijo em que Anne Frank e sua família têm de morar para escapar da perseguição nazista. O que começa como um registro pessoal aos poucos ganha uma dimensão histó- rica, e Anne vai adquirindo cada vez mais consciência dessa dimensão. Os anos passam e ela amadurece, e assim se dá conta de que uma etapa se encerrou completamente, que ela nunca mais vai voltar a ser quem era antes. “Quando penso

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na minha vidinha despreocupada em 1942, não parece real.

Essa vida foi vivida por uma Anne muito diferente da que está sendo educada na Casa dos Fundos. […] Comecei a pensar, a escrever histórias, e cheguei à conclusão de que os outros já não tinham nada a ver comigo, não tinham o direito de me empurrar de um lado para o outro como se eu fosse um relógio de pêndulo; eu queria me moldar segundo minha própria vontade.” Philip Roth — que sem- pre cultivou uma fascinação por Anne Frank* — comenta numa carta a um amigo que, a princípio, o diário atendia às necessidades imediatas de Anne; mas ela vislumbra que pode publicar um livro a partir do que está escrevendo quando o seu senso de experiência muda de “isso é o que eu tive de fazer” para “isso é o que uma família judia teve de fazer para sobreviver à guerra”.**

Nesse sentido, esta nova edição do livro tem uma dife- rença importante. No diário publicado originalmente em 1947, e que ficou conhecido até hoje, o que lemos é uma edição feita por Otto Frank, que misturou duas versões

* Roth demorou a escrever um livro em torno de Anne Frank por receio — não sabia como abordar o tema dessa menina judia, martirizada e santificada. Mas em Escritor fantasma, de 1979, o per- sonagem Nathan Zuckerman atravessa uma madrugada imaginando que Amy, a assistente do escritor que o hospeda, é na verdade a própria Anne Frank, que sobreviveu à guerra e se escondeu atrás de outra identidade.

** Claudia Roth Pierpont, Roth libertado: O escritor e seus livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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diferentes, alterando e até omitindo algumas passagens do diário — a versão original, escrita a partir de 1942 e sem a revisão de Anne, e a versão reescrita por ela mesma com a intenção de transformar o diário num livro. Aqui, nesta edição, podemos ler a versão da própria autora: o livro que ela decidiu escrever. Depois de ouvir um anúncio no rádio de que publicariam uma coleção de jornais e cartas sobre a guerra, Anne revisa os próprios textos, com a consciência de que existe nos seus segredos algo que deve ser tornado público. É com esse olhar que ela corta passagens que lhe parecem excessivamente pessoais ou infantis, como os de- sabafos explosivos sobre a relação conturbada com a mãe ou a preocupação com sua primeira menstruação. Anne converteu seu diário secreto em um romance epistolar:

“Cerca de dez anos depois da guerra deve ser engraçado ler sobre como nós, judeus, vivemos, comemos e conversamos aqui. Ainda que eu lhe conte muito sobre nós, você sabe bem pouco sobre a nossa vida”.

Certamente Anne Frank não tinha nem como descon- fiar que esse intervalo de pouco mais de dez anos seria suficiente para que as suas palavras fossem reproduzidas em livro pelo mundo inteiro, repetidas por atrizes em gran- des teatros e nas telas de cinema. Mas essa última entrada, de 29 de março de 1944, revela uma virada — parece que agora Anne não está mais falando apenas com Kitty, ou seja, apenas consigo mesma; ela volta o olhar para um leitor hipotético, para um futuro em que esses escritos serão lidos por mais gente, não só como o testemunho da sua con-

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fusão interna, mas também da guerra e da sobrevivência.

Em última instância, é conosco, leitores do futuro, que ela está falando agora. Logo depois disso, no último trecho do diário, o cenário que ela desenha não é íntimo nem secreto, mas quase jornalístico: os bombardeios, as epidemias, as filas para comprar verduras, os roubos e os furtos, as crian- ças subnutridas, as roupas e os sapatos ruins.

Sabemos pouco sobre a vida de Anne Frank. Muita coisa permanece em segredo. Mas a leitura de qualquer diário pode dar essa sensação: a intimidade de alguém está ex- posta, e mesmo assim parece que existe um segredo maior que não se revela nunca, e que talvez chegue até a au- mentar à medida que lemos. Um segredo que esconde a si mesmo, impossível de ser sussurrado em qualquer ouvido.

No caso de Anne, esse imponderável se confunde com a guerra. Uma menina olha perplexa para o mundo dos adul- tos — para o absurdo do mundo dos adultos. E não é à toa que diz, ao final do livro, que conhecemos apenas muito pouco sobre a sua vida. Algo do que eles viveram na Casa dos Fundos não tinha como ser dito, e ela sabia bem disso.

Leda Cartum

Leda Cartum é escritora, tradutora e roteirista. Escreveu os livros As horas do dia — pequeno dicionário calendário, O porto e Bruno Schulz conduz um cavalo. Traduziu O peso e a graça, de Simone Weil. É roteirista e apresentadora do Vinte mil léguas — o podcast de ciências e livros.

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A Casa dos Fundos

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Escrever um diário, para mim, é uma sensação total- mente nova e estranha. Nunca fiz isso. Se eu tivesse uma amiga íntima, a quem pudesse contar tudo o que sinto, certamente não teria me passado pela cabeça comprar um caderno e enchê-lo de bobagens que mais tarde não inte- ressariam a ninguém.

Mas, uma vez que o comprei, vou me dedicar e zelar para não acabar esquecido num canto um mês depois, e não vou deixar que ninguém o veja. Meu pai, minha mãe e Margot podem ser muito carinhosos e até posso lhes contar muitas coisas, mas eles não têm nada a ver com o meu diário e os meus segredinhos.

Em vez de apenas escrever no diário, vou imaginar que tenho uma amiga, daquelas bem próximas, que gosta do que eu gosto e que entende as minhas preocupações — vou escrever cartas à minha amiga imaginária, Kitty.

Mãos à obra!

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Para uma pessoa como eu, é muito estranho escrever em um diário. Não só porque até agora nunca escrevi, mas também porque acho que, mais tarde, nem eu nem nin- guém vai se interessar pelos desabafos de uma menina de treze anos. Bem, nada disso interessa, pois tenho vontade de escrever e, mais que isso, de abrir totalmente meu co- ração sobre tudo o que acontece. “O papel aceita tudo, as pessoas não” — lembrei-me desse ditado um dia quando eu, assim meio melancólica e entediada, estava em casa com a cabeça apoiada nas mãos, sem energia para decidir se deveria sair ou não, e fiquei ali sentada, absorta em minhas preocupações. Pois é verdade, o papel aceita qualquer coisa, e, como não tenho a intenção de mostrar a ninguém este caderno com o nome impressionante de “diário”, a não ser que, quem sabe, um dia eu tenha um amigo ou uma amiga que então será “aquele amigo” ou “aquela amiga”, provavel- mente ninguém vai se importar se escrevo ou não.

E agora cheguei à questão que deu origem a essa ideia do diário: não tenho nenhuma amiga.

Para ser mais clara, isso merece uma explicação, pois ninguém entende como uma menina de treze anos está sozinha no mundo — o que também não é verdade: tenho

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pais que me amam e uma irmã de dezesseis anos, e uns trinta conhecidos no total, entre os quais algumas pessoas que normalmente se chamam de amigas; tenho um bom número de admiradoras que ficam o tempo todo me adu- lando, encarando e, se não há outra maneira, tentam me espiar usando um espelho de bolso. Tenho uma família, tias carinhosas e uma boa casa. Ou seja, à primeira vista, não me falta nada, a não ser “aquela amiga”. Mas, com as meninas que conheço, apenas me divirto, nunca consigo falar sobre nada além de banalidades nem chegar a ter uma conversa um pouco mais íntima, e aí é que está o problema.

Talvez a culpa pela falta de confiança seja minha, mas seja como for é uma pena, não tenho como mudar isso.

Assim, surgiu o diário. E para reforçar ainda mais, na mi- nha fantasia, a ideia de finalmente ter a tão desejada amiga, este diário não serve apenas para narrar fatos como todo mundo faz, mas quero que ele seja a própria amiga, e lhe dei o nome de Kitty.

Ninguém entenderia as histórias que conto a Kitty se as contasse assim sem mais nem menos, por isso, embora eu relute, primeiro vou fazer um resumo da minha história.

Meu pai, que adoro com fervor, já tinha 36 anos quando se casou com a minha mãe, então com 25. Margot, mi- nha irmã, nasceu em 1926, em Frankfurt, na Alemanha.

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Em 12 de junho de 1929 cheguei eu, e por sermos judeus puros em 1933 emigramos para a Holanda, onde o meu pai foi contratado como diretor da sociedade holandesa Opekta Mij.,* uma fábrica de geleia. Passamos por muitas coisas, pois nossos familiares que ficaram na Alemanha sentiram o peso das leis antissemitas de Hitler. Em 1938, depois dos pogroms, meus dois tios, irmãos da minha mãe, conseguiram fugir para a América do Norte, e a minha avó, com seus 73 anos, juntou-se a nós. Depois de maio de 1940, acabaram-se os bons tempos, veio primeiro a guerra, a capitulação, o avanço dos alemães, e aí começou o sofrimento para nós, judeus. A cada dia apareciam mais leis contra os judeus, e nossa liberdade era cada vez mais restrita, mas ainda assim conseguimos resistir, mesmo com a estrela, à segregação nas escolas, ao toque de reco- lher das oito da noite etc.

Minha avó faleceu em janeiro de 1942; em outubro de 1941, eu e Margot tínhamos sido transferidas para o Liceu Judaico,** ela para o 4o ano, e eu para o 1o ano.

* Otto Frank tinha duas empresas: a Opekta (de comércio de pec- tina) e a Pectacon (de comércio de aromas e especiarias). Em outu- bro de 1940, os judeus são obrigados a registrar suas empresas. Para não perdê-las para os alemães, Otto Frank se retira como diretor e em seu lugar fica Jan Gies, marido de Miep. Por isso, o nome passa a ser Gies & Co. (N. T.)

** Escola secundária, aberta especialmente para alunos judeus, de- pois de os ocupantes nazistas terem decretado que eles deveriam frequentar escolas separadas. (N. T.)

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Tudo corre bem para nossa família de quatro pessoas, e assim chegamos à data de hoje, data da solene inauguração do meu diário.

Amsterdam 20 de junho de 1942 Anne Frank

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20 de junho de 1942

Querida Kitty,

Vou começar logo, agora que tudo está tão calmo. Papai e mamãe saíram, e Margot foi jogar pingue-pongue com alguns amigos na casa da Trees. Ultimamente tenho jogado muito pingue-pongue também, tanto que, com cinco meninas, co- meçamos um clube. O clube se chama Ursa Menor Menos 2.

Sim, o nome é muito estranho, mas tudo começou com um erro. Queríamos um nome bem especial para o clube, e, como temos cinco membros, nos lembramos das estrelas. Acháva- mos que a Ursa Maior tinha sete estrelas e a Ursa Menor cinco, mas quando fomos pesquisar soubemos que as duas têm sete estrelas. Então acrescentamos “menos 2”. Ilse Wagner tem uma mesa de pingue-pongue, e a ampla sala de jantar da casa dela está sempre à nossa disposição. Susanne Ledermann é a presidente, Jacqueline van Maarsen é a secretária, e eu, Eli- zabeth Goslar e Ilse somos os outros membros do clube. As cinco estrelas jogadoras gostam de sorvete, e no verão, depois de jogar, muitas vezes vamos às sorveterias mais próximas que podem ser frequentadas por judeus: Oase ou Delphi.

Nem nos preocupamos com carteira ou dinheiro; nor- malmente, na Oase há tanta gente que tem sempre alguns

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senhores generosos, nossos conhecidos, ou um ou outro admirador, que nos oferecem tantos sorvetes que demora- ríamos a semana toda para tomar.

Acho que vai ser uma surpresa para você o fato de que eu, tão jovem (a mais jovem do clube), esteja falando so- bre admiradores. Infelizmente, mas em alguns casos não tanto, isso parece inevitável em nossa escola. Assim que um garoto me pergunta se pode me acompanhar de bici- cleta até a minha casa e começa uma conversa, posso ter quase certeza de que ele vai ser um daqueles que logo vão se apaixonar loucamente por mim e não vão querer ficar longe. Uns tempos depois, eu sei que a paixonite vai aca- bar, principalmente porque não me importo muito com os olhares ardentes, e continuo pedalando como se nada tivesse acontecido. Quando vão longe demais e começam a falar sobre ter uma conversa com o meu pai, finjo que não estou controlando a bicicleta, minha pasta cai, e, para não ser indelicado, o jovem desce da bicicleta e vem me devolver a pasta, mas aí já desviei o assunto faz tempo.

Esses são apenas os inocentes, é claro. Há os que me mandam beijos ou que querem andar de braço dado comigo, mas eles não têm ideia da pessoa com quem se meteram!

Desço da bicicleta ou então recuso a companhia, finjo que fui insultada e digo em poucas palavras para me deixar em paz.

Bem, já temos a base para a nossa amizade, até amanhã,

Da sua Anne

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21 de junho de 1942 Domingo*

Querida Kitty,

Toda a nossa turma de 1 lii está tremendo de medo, e a razão é, claro, a reunião de professores. Metade da turma está apostando se passou de ano ou não; Miep Lobatto, minha vizinha, e eu rimos muito de dois colegas atrás de nós, Pim Pimentel e Jacques Kokernoot, que apostaram seu dinheiro das férias. “Você vai passar”, “não vou”, “vai sim”, todo santo dia, e nem mesmo os olhares intensos da Miep, implorando silêncio, nem os meus ataques de fúria conseguem acalmar esses dois. Se fosse eu a decidir, um quarto de toda a turma seria reprovada, são mesmo uns tolos, mas os professores são as pessoas mais imprevisíveis que existem, e talvez neste caso a imprevisibilidade vai para o lado bom.

Não temo pelas minhas amigas nem por mim: mesmo que a gente tenha que fazer alguma tarefa extra ou repe-

* Anne variava a forma das datas e nem sempre assinava as cartas para Kitty. Optamos por seguir fielmente essas variações conforme seus manuscritos originais. (N. E.)

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tir algum exame, certamente vamos passar de ano. Minha única dúvida é a matemática. Mas vou ter de esperar para ver. Até lá, uma vai dando força para a outra.

Eu me dou bem com todos os professores, são nove no total, sete homens e duas mulheres. Durante um tempo, o sr.

Keesing, o velho da matemática, ficava muito irritado comigo porque eu estava sempre conversando, me chamou atenção uma, duas, três vezes, até me dar uma tarefa extra como castigo. Eu tinha de fazer uma redação sobre o tema “Uma tagarela”. Uma tagarela, o que se pode escrever sobre isso?

Bom, mais tarde eu me preocuparia com isso, anotei a tarefa na minha agenda, guardei na pasta e tentei me manter calma.

Em casa, à noite, quando já tinha feito todos os ou- tros deveres, vi a anotação sobre a redação. Com a ponta da caneta na boca, comecei a pensar no assunto; escrever qualquer coisa com letra grande para encher a folha é fá- cil; o que eu queria mesmo era encontrar um argumento válido para comprovar a necessidade de falar. Pensei muito e de repente tive uma ideia, comecei a escrever, enchi as três folhas pedidas e fiquei satisfeita. Os argumentos que apresentei eram que falar é uma característica feminina, que eu ia fazer o possível para me conter um pouco, mas que era impossível deixar de tagarelar, porque minha mãe também falava tanto quanto eu, ou até mais, e que, por ser uma qualidade herdada, não havia nada a fazer.

O sr. Keesing riu muito dos meus argumentos, mas, como não parei de falar na aula seguinte, ele me passou

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outra redação. Dessa vez, eu tinha de escrever sobre “Uma tagarela incorrigível”. Entreguei o novo texto e durante duas aulas o sr. Keesing não teve motivo para reclamar. Na terceira, porém, parece que passei novamente dos limites.

“Anne Frank, sua conversadora, seu castigo é escrever uma redação sobre o tema ‘Quá quá quá, disse Dona Pata Ta- garela’.” Toda a turma caiu na gargalhada. Também tive de rir, embora a minha criatividade no campo das tagarelices estivesse esgotada. Eu precisava encontrar outra solução, bem original. A ajuda caiu do céu. Minha amiga Susanne, boa poeta, se ofereceu para fazer a redação todinha em rima. Eu achei o máximo. Keesing queria fazer graça com esse assunto absurdo, então agora, com o poema, eu teria minha revanche em dobro.

O poema ficou pronto e lindo! Contava a história de uma mãe pata e um pai cisne. Eles tinham três patinhos que tagarelavam tanto que foram bicados pelo pai até mor- rer. Felizmente Keesing entendeu a piada, leu o poema para a nossa classe, fazendo comentários, e para outras classes também. Desde então, continuo falando sem tarefas extras, e Keesing acabou entrando na brincadeira.

Da sua Anne

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Quarta-feira, 24 de junho de 1942

Querida Kitty,

Está um calor insuportável, as pessoas bufando e se abanando, e eu, com essa temperatura, tendo de fazer tudo a pé. Agora é que eu sei o valor de andar de bonde, principalmente um aberto, mas esse prazer não é mais para nós, judeus, que só temos permissão para usar os próprios pés. Ontem, na hora do almoço, tive que ir ao dentista na Jan Luikenstraat, que é muito longe da escola em Stadstimmertuinen, e por isso quase adormeci na escola à tarde. O bom é que as pessoas já nos oferecem algo para beber, a irmã do dentista é realmente uma pessoa calorosa. O único transporte em que podemos andar é a balsa. No cais, na Jozef Israëlskade, tem um barqui- nho, e o barqueiro nos levou imediatamente quando pergun- tamos se podíamos cruzar o canal. Os holandeses não têm culpa de a nossa vida, dos judeus, ser assim tão deplorável.

Quem me dera não ter de ir à escola! A minha bicicleta foi roubada nas férias da Páscoa e minha mãe guardou a dela na casa de uns amigos cristãos. Mas felizmente as férias estão chegando, mais uma semana e o sofrimento acaba.

Ontem de manhã me aconteceu uma coisa boa: che- guei ao estacionamento de bicicletas e alguém me chamou.

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Olhei para trás e vi um rapaz simpático, que eu tinha co- nhecido na noite anterior na casa da Wilma. Ele se aproxi- mou meio tímido e se apresentou como Hello Silberberg.

Fiquei um pouco surpresa e não sabia bem o que ele queria, mas logo o mistério se desfez: Hello desejava me acompa- nhar até a escola. “Se você vai pelo mesmo caminho, vou com você”, respondi, e fomos juntos. Hello já tem dezesseis anos e tem muitas coisas para contar. Hoje de manhã ele estava de novo esperando por mim, e a partir de agora acho que vai ser sempre assim.

Da sua Anne

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